Sentença de Julgado de Paz
Processo: 137/2017-JP
Relator: ISABEL BELÉM
Descritores: USUCAPIÃO
Data da sentença: 09/04/2017
Julgado de Paz de : CANTANHEDE
Decisão Texto Integral:

SENTENÇA
Processo nº 137/2017-JP

I - IDENTIFICAÇÃO DAS PARTES
Demandantes: A e mulher B, residentes na Rua X
Demandados: C e mulher D, residentes no Bairro Y.

II- OBJECTO DO LITÍGIO
Os Demandantes propuseram contra os Demandados a presente ação declarativa, pedindo, em suma, a declaração de que o prédio rústico que melhor identificam lhes pertence exclusivamente, por se ter autonomizado, por via da usucapião, do prédio descrito no artigo 1º do requerimento inicial, passando a ser um prédio autónomo e distinto, cessando assim a compropriedade que pudessem deter na parte sobrante do prédio originário, ordenando-se o registo da aludida parcela a seu favor. Mais pediram a condenação dos Demandados no reconhecimento e aceitação da constituição e existência do referido prédio como autónomo e distinto, assim como no reconhecimento do respetivo direito de propriedade.
Para tanto, alegaram os factos constantes do Requerimento Inicial (fls. 1 a 7- que se dá por reproduzido), e juntaram os documentos de fls. 8 a 9, 10 e 32 (cujo teor se dá igualmente por reproduzido).
Os Demandados, regularmente citados, não apresentaram contestação.
Considerando o tipo de ação em causa, não houve lugar à fase de mediação.
A audiência de julgamento decorreu com observância do formalismo legal, conforme o atesta a respetiva ata.
Cumpre apreciar e decidir

III - FUNDAMENTAÇÃO FÁCTICA
Da discussão da causa, resultaram os seguintes
A - Factos provados:
A) Encontra-se descrito na conservatória do Registo Predial de Montemor –o-Velho, sob o nº XXXX/XXXXXXXX, o prédio rústico, sito em X, freguesia de X, concelho de Montemor-o-Velho, composto de terra de semeadura, com a área de 3.514 m2, a confrontar do norte com X, sul e nascente com a estrada púbica, e do poente com X, inscrito na respetiva matriz predial rústica sob o artigo XXXX;
B) Sobre o prédio identificado no número anterior incidem as seguinte inscrições: AP. XX de 2000/XX/XX – Aquisição de ½ a favor de C e de sua mulher D, por doação de X e de X; AP XX de 2000/XX/XX – Aquisição ½ a favor de A e de sua mulher B, por doação de X e de X;
C) O artigo XXXX Rústico está identificado na caderneta predial rústica com a área de 1623 m2 , com as seguintes confrontações: norte e poente com X, sul com o caminho, nascente com X;
D) Em data não concretamente apurada, mas pelo menos desde 1981, que o prédio descrito em A) se encontra dividido em duas parcelas distintas e autónomas, adjudicadas a cada um dos demandantes e demandados e atualizadas conforme o levantamento topográfico, com as seguintes descrições, configurações e áreas:

1) Prédio 1 – prédio composto de terra de semeadura, localizado em X, freguesia da X, concelho de Montemor-o-Velho, com área de 1.716 m2, que confronta a norte com X, sul com A e B, a nascente com Caminho Público e do poente com X.

2) Prédio 2 – prédio composto de terra de semeadura, localizado em X, freguesia da X, concelho de Montemor-o-Velho, com área de 1.603 m2, que confronta a norte com C e D, do Sul e Nascente com Caminho Público e do Poente com X.

E) Encontrando-se os prédios 1 e 2 individualizados e demarcados com marcos entre si, desde aquela data, e com acessos independentes de e para a via pública, por efeito da doação verbal dos pais e sogros dos demandantes e demandados, X e X, ainda antes da outorga da escritura pública de doação destes àqueles que serviu de base ao registo de aquisição do prédio referido em A), e B), passando os demandantes a usufruir em exclusivo do prédio identificado em D) 2) (prédio 2) e os demandados a usufruir em exclusivo do prédio identificado em D) 1) (prédio 1);
F) Os demandantes, por si e antecessores, vem usufruindo de forma ininterrupta do prédio 2, identificado em D), 2) usando-o e fruindo-o, de forma individualizada, autónoma e distinta relativamente ao prédio primitivo (prédio mãe) descrito em A), de que fazia parte;
G) Semeando-o, cultivando-o, colhendo os respetivos frutos, limpando-o e fazendo melhoramentos, de modo exclusivo, praticando os atos normais de defesa e conservação da propriedade, respeitando rigorosamente as suas divisórias, com total exclusividade e independência, há mais de 20 anos;
H) De forma pacífica e sem oposição de ninguém, à vista de toda a gente, designadamente dos proprietários confinantes e demais moradores na freguesia, incluindo os demandados, na convicção de estarem a usar de direito de propriedade próprio e de que não lesavam direitos de outrem.

B- Factos não provados::
Não se provaram quaisquer outros factos com interesse para a causa.

C- Convicção:

A convicção do Tribunal para a factualidade dada como provada foi adquirida através da análise crítica e ponderada, à luz das regras da lógica e das máximas da experiência de vida, do teor dos documentos juntos aos autos, que não foram impugnados e, ainda, dos depoimentos prestados pelas testemunhas na audiência final.

Assim, os factos assentes de A) , B) e C) , resultam do teor dos documentos (Certidão da Conservatória do Registo predial e certidão matricial).
Para os restantes factos a convicção do tribunal baseou-se no teor do documento de fls. 10 (levantamento topográfico) e nos depoimentos das testemunhas inquiridas que responderam de forma isenta e imparcial, mostrando-se credíveis e com conhecimento direto dos factos por si relatados.
X foi quem procedeu ao levantamento topográfico, explicando de forma coerente como procedeu ao mesmo, identificando a existência de marcos antigos que delimitam os prédios 1 e 2, estando os mesmas perfeitamente demarcados um do outro e dos prédios vizinhos, e com utilizações bem diferenciadas.
X, conhecedora dos prédios em questão antes e após a sua autonomização, por ser moradora no lugar e ter convivido, desde tenra idade com os pais e sogros dos demandantes e demandados, bem como com estes. Esclareceu os limites e demarcação de cada um dos prédios, bem como aos atos de posse praticados em exclusividade pelos Demandantes.

IV - FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA
A questão em apreço reconduz-se em saber se os demandantes podem ver reconhecido o seu direito de propriedade exclusivo sobre uma parcela de terreno que designam por prédio 2, a qual se autonomizou, por via da usucapião, passando a ser um prédio autónomo e distinto do descrito em A) dos factos provados.
O direito de propriedade de imóvel adquire-se por contrato, que é uma forma de aquisição derivada, e por usucapião e acessão, que são formas de aquisição originária – cfr. artigo 1316.º do Código Civil.
Assim, para se reconhecer alguém como proprietário de um bem é necessário que esse interessado prove a aquisição desse direito por uma daquelas formas.
O artigo 7º do Código do Registo Predial vem facilitar aquela prova a quem tenha o bem – imóvel – registado em seu nome, estabelecendo a presunção da respetiva propriedade.
Cumpre esclarecer, porém, que é pacífico, quer na doutrina quer na jurisprudência, que esta presunção não abrange os elementos identificativos do prédio, tais como as confrontações, estremas ou áreas. Por outro lado, a mencionada presunção derivada do registo não é uma presunção absoluta, apenas tem o efeito de inverter o ónus da prova. Como é consabido, o registo não dá nem tira direitos é meramente declarativo, destinando-se a publicitar a situação dos prédios nele descritos.
A presunção do registo não é a única presunção que aqui cumpre referir.
Prescreve o artigo 1268º, nº1 do Código Civil “O possuidor goza da presunção da titularidade do direito, exceto se existir, a favor de outrem, presunção fundada em registo anterior ao início da posse”.
E, de acordo com o disposto no artigo 1287º do mesmo diploma “A posse do direito de propriedade ou de outros direitos reais de gozo, mantida por certo lapso de tempo, faculta ao possuidor, salvo disposição em contrário, a aquisição do direito a cujo exercício corresponde a sua atuação: é o que se chama usucapião”.
Assim, um dos efeitos da posse é a criação de direitos. A posse gera a aquisição da propriedade. Faz adquirir o direito, desde que se mantenha durante certo período de tempo (Cfr. Mota Pinto, Reais, pag. 213).
Segundo tem sido orientação da Jurisprudência e Doutrina, o estado de facto criado pela divisão em parcelas e autonomização destas, operada pelos comproprietários de um prédio rústico, pode converter-se em estado de direito pelo funcionamento das regras da usucapião. Tal significa que na compropriedade, a unidade predial pode parcelar-se por usucapião desde que os comproprietários passem a utilizar partes distintas do prédio como se estivesse materialmente dividido em frações, ocupando cada um a sua parcela, perfeitamente delimitada e circunscrita, sem oposição, de modo exclusivo, à vista de toda a gente, sem violência, na convicção de exercer um direito próprio, como se seu verdadeiro dono fosse, sem invasão de parcelas alheias.
Com efeito, como ensina o Professor Oliveira Ascensão, a base de toda a nossa ordem imobiliária não está no registo, mas na usucapião: as vicissitudes registrais não contendem nem abalam os efeitos da usucapião.
Porém, a verificação da usucapião depende de dois elementos: da posse e do decurso de certo período de tempo. Para conduzir à usucapião a posse tem de revestir sempre duas características: pública e pacífica. Os restantes caracteres (boa ou má- fé, titulada, ou não titulada ) influem apenas no prazo (Cfr. M.H. Mesquita, Reais, 1967, pág. 112)
“A posse é o poder que se manifesta quando alguém atua por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade ou de outro direito real”- artigo 1251º do Código Civil.
Na posse distinguem-se dois elementos: o “corpus” - que se identifica com os atos materiais praticados sobre a coisa, com o exercício de certos poderes sobre a coisa; e o “animus” - que se traduz na intenção de se comportar como titular do direito real correspondente aos atos praticados (Cfr. M.Pinto, Reais, p.181).
A lei exige a existência do “corpus” e do “animus” para que exista posse, o que implica que o possuidor tenha de provar a existência destes dois elementos para poder adquirir por usucapião.
Para facilitar ao possuidor a prova do “animus”, a lei estabelece uma presunção: em caso de dúvida, presume-se a posse daquele que exerce o poder de facto. O exercício do “corpus” faz presumir o “animus”.
Se a posse é titulada e de boa fé, a usucapião de bens imóveis tem lugar decorridos 10 anos, se é titulada e de má fé, decorridos 15 anos, se é não titulada e de boa fé, decorridos 15 anos, se não titulada e de má fé, decorridos 20 anos (artigos 1294º e 1296º, ambos do Código Civil).
Ora, descendo ao caso dos autos, verificamos que os demandantes conseguiram fazer prova de todos os elementos da usucapião no que diz respeito às parcelas em discussão.
Dos factos provados resulta assente que desde pelo menos 1981, por doação verbal dos pais e sogros dos demandantes e demandados, o prédio mãe se encontra autonomizado em duas parcelas distintas e autónomas e separadas entre si, demarcadas por marcos e cada uma delas com acesso independente de e para a via pública, e adjudicadas a cada um dos demandantes e demandados, devidamente identificadas no levantamento topográfico, ficando uma daquelas parcelas, a designada por prédio 2, com área de 1.603 m2, a confrontar a norte com C e D, do sul e nascente com Caminho Público e do poente com X a pertencer aos demandantes e a outra, a designada por prédio 1, com área de 1.716 m2, a confrontar a norte com X, sul com A e B, a nascente com Caminho Público e do poente com X a pertencer aos demandados.
Provada a materialização há mais de 20 anos e em que cada um passou a possuir, como se sua fosse, mutuamente se privando do uso sobre a totalidade do prédio e limitando-o à metade que lhe ficava demarcada, sem qualquer interferência do outro, constitui prova indiscutível da inequivocidade da posse que cada um passou a exercer apenas em nome próprio.
Os demandantes, na parcela que lhes ficou a pertencer (identificado como prédio 2) têm vindo a usufrui-la de forma ininterrupta, semeando-a, cultivando-a, colhendo os respetivos frutos, limpando-a e fazendo melhoramentos, de modo exclusivo, de forma pacífica e sem oposição de ninguém à vista de toda a gente, incluindo dos demandados, na convicção de estarem a usar de direito de propriedade próprio.
A conformidade da autonomização (desanexação) em referência não carece de ser analisada, dado que, acolhemos a tese que sustenta que as regras constantes de outros diplomas cedem perante os direitos adquiridos por usucapião. Sustenta-se, para tanto, que a posse é “agnóstica”, não sendo legítimo ou curial distinguir entre posse “justa ou injusta”, consoante exista, ou não, justa causa possessionis, sendo, pois, indiferente o que quer que historicamente estiver para trás dessa posse (cfr. DURVAL FERREIRA -Posse e Usucapião).
Resulta, assim do exposto, terem os demandantes demonstrado ter adquirido por usucapião o prédio identificado como o nº 2, descrito em D) 2), dos factos provados, por nele terem praticado os atos de posse com as características que conduzem à aquisição originária, encontrando-se preenchidos todos os requisitos exigidos pelo instituto da usucapião.
Resulta ainda inequívoca a desconformidade entre os elementos constantes das descrições prediais e matriciais em referência com a realidade factual, pelo que urge proceder às respetivas atualizações junto dos serviços da Conservatória do Registo Predial e das Finanças, fazendo valer e prevalecer a verdade material e substantiva que a segurança do comércio jurídico exige.

Assim, e em conformidade os pedidos formulados pelos Demandantes, porque provados, têm de proceder.
Custas: Atenta a natureza da presente ação, serão suportadas pelos Demandantes (artigo 535.º, nº 2, al. a) do Código de Processo Civil).

V – DISPOSITIVO

Face a quanto antecede, julgo procedente a presente ação, e, por consequência:

1. Declaro que a parcela predial designada como Prédio 2 no levantamento topográfico junto aos autos de fls. 10, constitui um prédio rústico composto de terra de semeadura, sito em X, freguesia de X, concelho de Montemor-o-Velho, com a área de 1.603 m2, que confronta a norte com C e D, a sul e nascente com caminho público e do poente com X, pertence em exclusivo aos aqui Demandantes (A e mulher B), por se ter autonomizado, por via da usucapião, do prédio mãe originário identificado em A) dos factos provados, do qual se destacou, passando a ser um prédio autónomo e distinto do prédio mãe, cessando a compropriedade que pudessem deter na parte sobrante do dito prédio originário.

2. Condeno os Demandados (C e mulher D) no reconhecimento e aceitação da constituição e existência de tal prédio supra descrito em 1. (“Prédio 2”) como autónomo e distinto, assim como o respetivo direito de propriedade dos Demandantes sobre o mesmo.

3. Ordeno a atualização em conformidade nos competentes registos da Conservatória do Registo Predial bem como do Serviços de Finanças, de modo a que seja conformada a realidade registral e matricial com a realidade factual existente, nomeadamente com a atribuição de artigo matricial e o registo do referido prédio a favor dos aqui Demandantes.

Custas: pelos Demandantes, os quais deverão proceder ao pagamento da quantia de € 35,00 (trinta e cinco euros), no prazo de 03 (três) dias úteis subsequentes à notificação da presente Decisão, sob pena da aplicação de uma sobretaxa de € 10,00 (dez euros) por cada dia de atraso.

Nos termos do disposto no nº 1 do artigo 8º-C, do Código Registo Predial os Demandantes têm dois meses, (sob pena de pagamento de multa de valor igual à prevista a titulo de emolumento - nº 1, do artigo 8º-D), contados do trânsito em julgado desta sentença, para registar o direito de propriedade ora atribuído.

Esta sentença foi proferida e notificada às partes presentes nos termos do artigo 60.º, n.º 2, da LJP, ficando as mesmas cientes de tudo quanto antecede, tendo-lhes sido entregue cópia.
Registe e notifique as partes ausentes.

Cantanhede, 4 de Setembro de 2017
Processado por meios informáticos e
revisto pela signatária..
A Juíza de Paz Coordenadora
(Artigo 18.º da LJP)
(Isabel Belém)