Sentença de Julgado de Paz
Processo: 694/2017-JPLSB
Relator: MARGARIDA SIMPLÍCIO
Descritores: RESPONSABILIDADE CIVIL CONTRATUAL / CONTRATO DE SEGURO
FURTO E INDEMNIZAÇÃO POR DANOS MATERIAIS
Data da sentença: 12/17/2018
Julgado de Paz de : LISBOA
Decisão Texto Integral: SENTENÇA

Processo n.º 694/2017-J.P.L.X.
RELATÓRIO:

O demandante, JF, NIF. ..., com residência na rua ..., n.º 3/,r/c, no concelho de Lisboa, representado por mandatário constituído.

Requerimento Inicial: Alega em suma que, é o legítimo proprietário do veículo ligeiro de passageiros da marca A, com a matrícula RH. O demandante celebrou a 31/05/2016 o contrato de seguro com a apólice n.º 701..., o qual abrangia, entre outras, situações de furto e/ou roubo, vandalismo. Entre as 20 horas do dia 29/08/2017 a as 13h e 15m do dia 30/08/2017, o demandante quando ia conduzir o mesmo, o qual estava estacionado no mesmo local onde o deixara na noite anterior, verificando que o seu interior fora completamente furtado, nomeadamente não tinha o volante, nem a manete das mudanças, nem o painel de controle, nem o rádio. No seguimento fez participação do sucedido á policia a 30/08/2017, conforme auto de notícia, e posteriormente á demandada a 4/09/2017, por correio eletrónico. Todavia, a demandada acabou por declinar a sua responsabilidade, alegando existir um conjunto de irregularidades que levam a considerar que o sinistro não ocorreu conforme foi participado, conforme documento que junta. Ora não assiste qualquer razão á demandada, pois o furto está abrangido pela apólice, e desde essa data que o veículo não pode circular, encontrando-se por reparar. Foi elaborado orçamento para repor o estado do veículo, cujo montante perfaz a quantia de 7.936,01€. De acordo com a apólice tinha direito a veículo de substituição, o qual foi requerido, sendo-lhe disponibilizado pelo período inicial de mês e meio, e depois por mais um mês, assim teve que suportar várias despesas de deslocação, o que provocou um série de incómodos. Toda esta situação foi inesperada, assim como a atitude da demandada, pois a apólice de seguro estava em dia, o que lhe causou angústia e transtornos. Assim deve proceder ao pagamento da quantia de 7.936,01€ de reparação dos danos sofridos no veículo, ao que acresce os juros, á taxa legal, desde a data do sinistro até á presente data no valor de 459,54€. Mais, ainda deve ser condenada a reparar os danos emergentes resultantes do incumprimento na quantia de 374,03€, bem como a título de danos não patrimoniais no valor de 1.000€. Conclui pedindo: A) na condenação da demandada no valor de 9.769,58€, acrescido dos juros, á taxa legal, até efectivo e integral pagamento da indemnização; B) ser ainda condenada nas custas judiciais, procuradoria condigna, e o que demais for de lei. Juntou 57 documentos.

MATÉRIA: Ação de responsabilidade civil contratual, enquadrada no art.º 9, n.º1, alínea H) da L.J.P.

OBJETO: Contrato de seguro, furto e indemnização por danos materiais.

VALOR DA AÇÃO: 9.769,58€ (nove mil setecentos e sessenta e nove euros e cinquenta oito cêntimos, art.º305, n.º4 e 306 ambos do C.P.C.).

A demandada, Seguros L., S.A., NIF. 50..., com sede na rua …, em Massarelos, no concelho do Porto, representada por mandatário constituído.

Contestação: Questão prévia, a demandada foi extinta por incorporação na Companhia de Seguros X, que por sua vez alterou a denominação para Y, S.A. Quanto ao sinistro, em suma alega que, efetivamente celebrou a 31/05/2016 com o demandante, o contrato de seguro com a apólice n.º 701..., referente ao veículo de sua propriedade com a matrícula RH, o qual, entre outras, cobria os riscos de furto ou roubo, com o capital de 31.903,37€ e a franquia de 280€. Na sequência do sucedido, recebeu a participação do ocorrido no dia 4/11/2017 alegando furto de alguns componentes do interior, pelo que realizou uma série de diligências para apurar o sucedido, nomeadamente as circunstâncias em que ocorreu. Das averiguações foi apurado que peritagem ao veículo, a qual se junta. No decurso desta foi apurado um conjunto de incongruências que a fez suspeitar da veracidade do furto. Na realidade inexiste vestígios de arrombamento, sendo utilizada uma chave mestra da A ou clone da chave do A, nas imediações do local onde se encontra estavam uma serie de outros veículos de gama superior, já fora efectuada peritagem ao veiculo numa oficina concessionária da marca A por outra ocorrência, e agora tenha optado por recorrer a oficina fora da marca, vocacionada para a venda e montagem de pneus, que o veículo fora adquirido no stand S., o qual está sinalizado pela sinistralidade elevada, e também pela incidência de casos de furto e roubo de veículos, que o demandante referiu ao perito ser amigo do vendedor do veiculo confirmando o seu conhecimento de ser suspeito, razão pela qual se afastou dele. Na renovação da apólice ocorrerem 2 situações em que houve devolução por insuficiência de fundos, acrescido do facto de ter dificuldades económicas no cumprimento de obrigações perante entidade bancária. O perito com autorização daquele fez a leitura ótica da chave que lhe foi entregue, a qual tinha sido utilizada a última vez a 16/07/2017, apresentando 134.411km e o aviso de manutenção de pastilhas de travão para substituição, ora aquele referiu que o veículo fora por si estacionado no dia 20/08/2018. Para além disso, o demandante facultou ao perito fotografias do interior do veiculo, quer antes, quer depois do sucedido. Por tudo isto, concluiu-se que o sinistro não terá ocorrido conforme foi participado, por estarmos face a um incidente fictício, pelo que a demandada não está obrigada a indemnizar. Para além disso, a demandada efetuou peritagem ao veículo na oficina por ele escolhida, sendo acordado o valor de 5.118,52€, o qual seria o valor a pagar caso fosse responsável. Por outro lado, pede, ainda, o valor de 374,03€ pela privação do uso da viatura, porém a demandada facultou-lhe veículo de substituição nas condições contratadas na apólice, o que fez antes de concluir as averiguações. Nos documentos que apresenta não discrimina percursos, sendo certo que estão em nome de outra entidade, a qual não tinha direito a receber qualquer verba. Para além disso, requer o valor de 1.000€ por danos morais, para os quais não há justificação, pelo que nunca seriam devidos. Conclui pedindo pela improcedência da ação com a devida absolvição do pedido. Juntou 1 documento.

TRAMITAÇÃO:

Não se realizou sessão de pré-mediação por recusa da demandada.

O Tribunal é competente em razão do território, do valor e da matéria.

As partes dispõem de personalidade e capacidade jurídica e são legítimas.

Não existem exceções, questões prévias ou nulidades que obstem ao conhecimento do mérito da causa.

O processo está isento de nulidades que o invalidem na sua totalidade.

AUDIÊNCIA DE JULGAMENTO:

Foi iniciada dando cumprimento ao disposto no art.º 26, n.º1 da L.J.P., sem que houvesse entendimento entre as partes, pelo que se seguiu pra produção de prova, com audição de testemunhas, e terminando com breves alegações, conforme se infere da ata de fls. 158 a 161.

-FUNDAMENTAÇÃO-

I- DOS FACTO ASSENTES (Por Acordo):

A)O demandante é o legítimo proprietário do veículo ligeiro de passageiros da marca A, com a matrícula RH.

B) O demandante celebrou a 31/05/2016 o contrato de seguro com a apólice n.º 701....

C) O âmbito da cobertura do contrato de seguro abrangia, entre outas, situações de furto e/ou roubo e atos de vandalismo.

II- DOS FACTOS PROVADOS:

1)O veículo RH foi alvo de furto.

2)No seu interior foram subtraídas várias peças da marca A.

3)Nomeadamente, o volante (incluindo o airbag), o auto rádio, o GPS/sistema de navegação (incluindo o ecrã), a maçaneta da alavanca das velocidades.

4) O demandante a 30/08/2017 fez participação á P.S.P., conforme documento 3 junto de fls. 21 a 22.

5)Há data da ocorrência o seguro era válido e estava em vigor.

6) O demandante a 4/09/2017 comunicou a ocorrência á demandada, conforme documentos 4 e 5, junto de fls. 24 a 25, e 26.

7)Posteriormente, a demandada declinou a responsabilidade pela reparação dos prejuízos e a regularização dos prejuízos reclamados, conforme documento 7, junto a fls. 28.

8)Alegando existir um conjunto de irregularidades que a leva a determinar que o sinistro não terá ocorrido conforme foi participado, documento 7, junto a fls. 28.

9) A demandada referiu, ainda, que das diligências efetuadas foi apurado que o sinistro não reveste caráter súbito e fortuito, conforme documento 9, junto a fls. 30.

10)O furto corresponde á cobertura prevista na apólice contratada.

11)Sem as reparações necessárias o veículo não pode circular.

12) O demandante tinha direito a veículo de substituição.

13)A demandada disponibilizou ao demandante um veículo de substituição pelo prazo de 1 mês.

14) O demandante tinha em dia o prémio do seguro.

15) A demandada efectuou uma série de diligências para apurar as circunstâncias em que ocorreu o sinistro.

16)Apurou que não houve arrombamento do veículo para aceder ao seu interior.

17) Apurou que nas imediações do veículo VS estavam outros veículos de gama superior.

18) Apurou que o veículo VS fez uma peritagem na oficina AF, concessionária da A, por uma ocorrência anterior.

19) Apurou que o veículo VS se encontrava para reparar na oficina EL, Unipessoal, Lda.

20) Apurou que o veículo VS fora importado pelo stand S..

21)Que o stand referido em 20 está sinalizado pela demandada por elevada sinistralidade em coberturas facultativas, com especial relevo para o furto e roubo.

22) Apurou que o demandante tinha conhecimento de que havia furtos suspeitos de veículos provenientes daquele stand.

23)Na renovação da apólice houve 2 situações de devolução da ordem de cobrança bancária por insuficiência de fundos.

24) O demandante acabou por pagar posteriormente.

25) O demandante teve, algumas dificuldades, económicas perante entidade bancária.

26)Foi verificada a chave principal do veículo.

27) Detetando-se que não era usada desde 16/07/2017, altura em que o veículo tinha 134411 km e o aviso de mudança de pastilhas de travão.

28) O demandante é sócio de várias sociedades comerciais.

29)Na altura a sociedade PP, Lda., tinha 3 notificações de penhora.

30) O demandante facultou ao perito as fotografias do interior do veículo antes de ter sucedido o furto, e também depois deste.

31)As peças que foram retiradas do veículo podem ser novamente colocadas sem grandes dificuldades.

32)Na peritagem foi apurado que a reparação orçava o valor de 5.118,52€.

MOTIVAÇÃO:

O Tribunal sustenta a decisão com base na analise critica da documentação apresentada pelas partes, conjugado com a prova produzida em audiência de julgamento, regras de repartição do ónus da prova e regras da experiência comum.

O demandante prestou declarações nos termos do art.º 57, n.º1 da L.J.P., relatando o que sucedeu no que respeita ao furto, às diligências que fez para apurar responsabilidades, as comunicações que efectuou, referiu ainda as suas preocupações face ao furto, e as suas declarações junto ao perito da companhia de seguros. Esclareceu que o veículo já está reparado, mas não soube dizer desde quando, no entanto esclareceu que o fez às suas expensas, contudo não apresentou faturas das peças, alegando que foi o dono da oficina que as adquiriu em sites da especialidade, mas também não apresentou o valor que pagou ao dono da oficina, apenas tem o orçamento, embora tivesse referido que foi muito menos mas não sabia dizer concretamente quanto foi, o que se estranha atendendo ao pedido que faz nestes autos. O seu depoimento foi relevado no conjunto com a demais prova produzida em audiência, auxiliando na prova dos factos com os n.º1, 2, 3, 4, 5, 6, 7,13,14,17,18,19, 20, 22, 23, 24, 25, 26, 28, 29 e 30.

A testemunha, MR, é mãe do demandante, não obstante depôs com a devida isenção. Sendo relevante apenas na conversa telefónica que teve com o filho, relatando o motivo e as suas preocupações, uma vez que nada presenciou, sendo apenas uma testemunha indireta. Assim, o seu depoimento foi pouco relevante apenas relevou em relação aos factos n.º 24 e 25, tendo referido o auxílio económico que lhe deu devido a problemas que teve com um ex-funcionário de uma empresa.

A testemunha, JG, vive em comunhão com o demandante, não obstante depôs com isenção. Em relação ao furto nada sabe, pois não viu o veículo, somente o que o demandante lhe relatou uma vez que não se encontrava no local. No entanto acompanhou as diligências realizadas pelo demandante para resolver a situação, ficando indignada com a recusa da demandada em resolver o problema. Auxiliou na prova dos factos n.º8, 10,12, 13 e 14.

A testemunha, EL, é o proprietário da oficina onde esteve o veículo do demandante para reparação e realizar peritagem, daí advém o seu conhecimento. Todavia, estranha-se que não saiba quantos orçamentos fez para a viatura em questão, referindo dois e três, sem explicar o motivo por que fez vários orçamentos, já que nos autos apenas apresenta um, por outro lado também se estranha que não saiba onde adquiriu as peças, e os respectivos valores. Note-se que a oficina, sendo uma sociedade comercial deve ter contabilidade organizada, e como tal deve ter tudo documentado, nomeadamente as faturas e recibos. O seu depoimento foi muito vago e até contraditório face ao demandante, sobretudo quando referiu que as peças foram compradas em sucatas e no site W, o que tinha obrigação de saber, sobretudo quando algumas delas foram por ele adquiridas, conforme referiu o demandante. Por outro lado, estranha-se que não saiba o preço da reparação, nem tenha exibido qualquer fatura, uma vez que se apurou que o veículo já está reparado. Assim, o seu depoimento foi desconsiderado, na medida em que teve muitas contradições, as quais se registaram, e foi também algo vago sobretudo no que diz respeito a peças, valores e orçamentos, ficando o Tribunal com a ideia que nem fora na oficina dele onde foi realizada a reparação ao veículo.

A testemunha, NM, o qual é o perito averiguador do sinistro, sendo o autor do documento junto de fls. 97 a 139, daí advém o seu conhecimento dos factos. Teve um depoimento esclarecedor e claro. Referiu-se às diligências que realizou para apurar os factos, nomeadamente como decorreram as declarações que o demandante prestou, as quais se encontram no relatório, mencionando que aquele uma atitude colaborativa inclusive forneceu a chave do veiculo que alega usar, pois a outra já estava na posse da oficina, para ser analisada, referiu também as dificuldades económicas de uma das empresas de que o demandante é sócio gerente, as quais foram por si confirmadas. Esclareceu que a peritagem foi realizada ao veículo na oficina, local onde já se encontrava, verificou também que o veículo já tinha sofrido outro acidente e fora reparado num stand referenciado da marca. Auxiliou na prova dos factos com os n.º 11, 15, 16,17,18, 19, 20, 21, 22, 23, 24, 25, 26, 27, 28, 29 e 30.

A testemunha, CR, é perito avaliador, sendo o autor do documento 2, junto de fls. 140 a 142, daí o seu conhecimento. Teve um depoimento claro e idóneo, auxiliando na prova dos factos com os n.º 2, 3, 11, 31 e 32.

A testemunha, LC, foi o gestor deste sinistro, daí advém o seu conhecimento. O seu depoimento embora claro limitou-se ao contrato de seguro e o âmbito da sua cobertura, ao veículo de substituição que foi facultado ao demandante, bem como aos motivos que levaram a seguradora a declinar a responsabilidade no presente caso, sendo relevante nestes aspeto, auxiliando na prova dos factos com os n.º 5, 7, 8, 9,10, 12, 13, 14, 21, 23 e 24.

Quanto aos factos não provados resultam essencialmente de não existir prova credível que os corrobore, salvo a parte do valor indemnizatório a atribuir ao demandante uma vez que se apurou que o veículo já está reparado, mas apenas apresentou orçamento e não a fatura.

III- DO DIREITO:

O caso em apreço prende-se com a celebração de um contrato de seguros de responsabilidade civil efectuado entre o demandante e a companhia de Seguros …, S.A., que se extinguiu em virtude de uma fusão por incorporação, passando a demandada, a assumir todas as responsabilidades inerentes à empresa incorporada.

Questões: Responsabilidade pelo sinistro- furto, indemnização.

O contrato de seguro é aquele em que o segurador se obriga, mediante o pagamento de uma determinada quantia, o prémio, a indemnizar o segurado pelos prejuízos por este sofrido em virtude da ocorrência de um risco.

Este é um contrato formal, que reveste a forma escrita de apólice, conforme impõe o art.º426 do C.Com., sendo esta uma formalidade ad substantiam”, a qual funciona como instrumento necessário para a existência do próprio contrato.

Emitida a apólice, o contrato de seguro existe e vale com o conteúdo que consta da apólice, salvo se, se provar que o conteúdo constante da apólice não foi o contratado.

No caso em apreço verifica-se que o demandante subscreveu em 31/05/2016, conforme documento 2 junto de fls. 11 a 20, a apólice titulada com o n.º 701..., a qual tem por objecto segurado o veículo com a matrícula RH.

A mesma abrangia os danos provenientes de furto ou roubo e os atos de vandalismo, conforme foi admitido por acordo, e consta do documento 2, a fls. 12.

No caso vertente estamos no âmbito da ocorrência de um furto sofrido no próprio veículo a que se reporta o contrato de seguro, ou seja no âmbito dos danos próprios (que não no da responsabilidade civil resultante da utilização do mesmo), abrangendo os prejuízos sofridos pelo veículo seguro.

Consta das exclusões constantes da garantia obrigatória, o mencionado documento a fls. 17, relativamente ao veículo aqui em causa, que “ficará excluído das indemnização devidas pelos autores e cúmplices de roubo, furto ou furto de uso de veículos e acidentes de viação dolosamente provocados para com o proprietário …….”

O caso em apreço é referenciado como sendo um furto, ora nos termos do art.º 203 do C.P. entende-se como tal a subtracção de coisa móvel alheia, com ilegítima intenção de apropriação para si.

Na sequência da participação da ocorrência a demandada procedeu às diligências para apurar a mesma, nomeadamente efectuou peritagem e averiguações, o que decorre do documento que juntou com a contestação-relatório de investigação final-, de fls.97 a 136.

Foi no seguimento da efetuada avaliação dos danos que o demandante recebeu uma missiva da demandada, datada de 15/11/2017, documento 7, junto a fls. 28, informando que no seguimento da averiguação efetuada e pela peritagem, foi constatado que existia um conjunto de irregularidades que levava a crer que o sinistro não teria ocorrido da forma como foi participado, pelo que declinava proceder á regularização do mesmo.

Ora no âmbito de tal resposta, compete à demandada provar a causa de exclusão (ou seja, que os danos foram causados intencionalmente pelo tomador do seguro)? Como aliás transparece do teor da própria contestação, atente-se ao seu art.º 10, por isso estamos, perante uma questão relacionada com o ónus da prova.

Consoante o nº 1, do art.º 342 do CC, «àquele que invoca o direito, cabe-lhe fazer a prova dos factos constitutivos do direito alegado», e decorre do nº 2 do mesmo preceito que a «prova dos factos impeditivos, modificativos ou extintivos do direito invocado compete àquele contra quem a invocação é feita».

Na realidade compete à demandada, nos termos do nº 2, do art.º 342 do C.C, alegar e provar os factos que integram as «Exclusões» previstas na apólice, e também que ocorreu um dano fictício – que os danos haviam sido causados intencionalmente pelo demandante, por se tratar de facto impeditivo do direito do à indemnização.

Na realidade a demandada nos presentes autos teceu várias insinuações/sugestões, afirmando estar convicta de não estar perante um verdadeiro sinistro, mas não dizendo claramente que o sinistro foi provocado pelo demandante.

Das averiguações que realizou não posso deixar de concordar que, de facto, é estranho alguém ter uma fotografia do interior do seu veículo, quando o normal é o exterior, sobretudo quando se trata de veículo de gama média alta, o que resulta das pessoas gostarem de se exibirem como demonstra o senso comum. Mas no caso em apreço, o demandante até tinha uma fotografia do antes e do depois do furto. Se é coincidência ou se foi pensado, a realidade é que a demandada, com as fotografias não prova que o demandante “forjou” o seu próprio furto, por isso não passa de mera coincidência.

Também no facto de ter averiguado a chave do veículo RH, ora apurou-se em audiência que o veículo tinha duas chaves exatamente iguais, aquela que o demandante facultou ao perito e a outra que facultou ao dono da oficina, onde o veículo já se encontrava para realizar peritagem e futura reparação. Ora apenas uma das chaves foi inspecionada, e foi com base nela que concluiu que o veículo não tinha circulado desde 16/07/2017, conforme documento junto a fls. 126. Demonstra a experiência comum que o prudente seria ter verificado as duas chaves, e só depois de analisar ambas tecer-se-iam as devidas conclusões, o que na realidade não sucedeu, levantou suspeitas, sem ter acautelado todos os “itens do puzzle”, embora se compreenda porque apenas verificou uma delas, veja-se as declarações do demandante, nomeadamente as proferidas a fls. 122, onde alega que a chave que tinha na posse dele era a que foi usada na última vez.

Acresce que, em audiência, não só o perito averiguador, como também o perito avaliador, admitem que circula na internet vídeos onde se aprende a furtar veículos, desconfigurando as chaves, ora tal significa que, infelizmente, está acessível ao público em geral meios ilícitos de proceder, todavia tal não significa que o demandante, ou mesmo alguém a seu mando, tenha procedido de forma inadequada, para ficcionar um facto, que na realidade não sucedeu, e era isto que importava provar e não sucedeu.

Quanto às dificuldades económicas do demandante, cumpre referir que é preciso distinguir a pessoa do demandante das sociedades comerciais das quais ele é sócio gerente, sendo pessoas distintas, com autonomia e patrimónios diferentes, o que resulta não só do senso comum, como decorre também da legislação aplicável às sociedades comerciais. E, no caso concreto, o que devia importar era o demandante enquanto pessoa singular, e em relação a este não há nada a apontar. Acresce que o mesmo teve sempre uma atitude colaborativa para com o avaliador, tal como o próprio admitiu, fornecendo-lhe todos os elementos que lhe foram solicitados e respondendo de forma adequada, sem omissões ou subterfúgios.

No que concerne ao demandante, incumbia-lhe fazer a prova dos factos constitutivos do direito á prestação por parte da demandada, desde logo a prova dos factos que, atentas as cláusulas do contrato celebrado com aquela determinariam o pagamento da indemnização, ou seja, a prova do sinistro, dos danos e do nexo de causalidade entre o sinistro e esses danos (art.º 483 do C.C.).

Nos termos da lei (art.º 99 da LCS) o sinistro corresponde à verificação, total ou parcial, do evento que desencadeia o accionamento da cobertura do risco prevista no contrato.

Arnaldo Costa Oliveira in, “O Contrato de Seguro, Estudos”, Coimbra Editora, 2009, pág. 220 e 221, menciona que no art.º 99 o “sinistro” ocorre com a realização do evento assegurado.

No AC. do STJ de 3-10-2013, in WWW.dgsi.mj.pt, foi entendido que: o «sinistro é a realização do risco previsto no contrato de seguro, desencadeador, pela sua própria natureza, da garantia subjacente ao seguro; não coincide necessariamente com o acidente, mas com as consequências deste.

Por sua vez, o risco é o evento futuro e incerto, cuja ocorrência se antevê meramente provável ou possível (contingente) e que, a concretizar-se, se materializará em danos cuja ressarcibilidade está prevista no contrato”.

Ou seja o risco reconduz-se á possibilidade de vir a ocorrer um evento futuro danoso, implica a previsão abstrata de certos impactos patrimoniais negativos e a correlativa obrigação de indemnização caso tais hipóteses se verifiquem; o risco é no fundo um evento abstrato que pode ou não vir a verificar-se.

O contrato de seguro, vulgarmente denominado de danos próprios, foi estipulado para que a seguradora indemnize o segurado ou um terceiro, sendo por isso um contrato indemnizatório, pelas consequências de ocorrer um evento danoso, o qual constitui o pressuposto da causa contratual, sendo o elemento essencial do contrato.

No caso concreto, o demandante provou que o veiculo RH foi alvo de um furto, motivo pelo qual fez a devida participação da ocorrência à autoridade policial, que se deslocou ao local verificando o facto, elaborou o auto, documento que se encontra junto de fls. 21 a 22, e novamente a fls. 117 e 119, e também a 138 e 139.

Devido ao furto ocorreram danos no interior do mesmo veículo, nomeadamente que desapareceram componentes da marca A essenciais ao veículo, ou seja, o volante (incluindo o airbag), o auto rádio, o GPS/sistema de navegação (incluindo o ecrã), a maçaneta da alavanca das velocidades, e sem os quais o veiculo não pode circular, o que resulta do senso comum.

Temos, assim, que o demandante provou o sinistro, demonstrando a superveniência do evento acautelado no contrato e nas condições nele previstas.

Quanto ao valor dos danos, foi realizada a peritagem a 7/09/2017 na oficina EL, Unipessoal, Lda., os quais foram orçados na quantia de 5.118,51€, conforme resulta do documento 2, junto de fls. 140 a 142.

Na elaboração deste orçamento foi tido em consideração que as peças que seriam colocadas no veículo RH eram de origem, ou seja, da marca A, tal como foi confirmado pelo perito e na época concordado com o gerente da oficina onde a reparação seria efetuada, o que em declarações na audiência assim o admitiu.

Não ocorreu qualquer lapso neste orçamento, quer no que toca ao modelo do veículo, quer no que toca às peças que seriam necessárias para repor o veículo no estado que tinha antes de ocorrer o evento, que originou a intervenção da demandada (art.º 562 do C.C.).

Assim, não se percebe o que motivou a elaboração do orçamento que o demandante juntou aos autos, documento 10, de fls. 31 a 32, o qual apresenta um valor superior, cerca de mais 2.000€, sobretudo quando a pessoa que supostamente o terá elaborado não sabe explicar a razão do seu aparecimento, além de referir que fez dois ou três, e que o veiculo já se encontrava reparado mas que fora mais barato do que o orçamento ora apresentado, sem explicitar o quantum, e sem exibir qualquer documento (fatura/recibo) comprovativo do valor pago pelo serviço realizado na sua oficina.

Perante tais discrepâncias, não pode proceder o orçamento apresentado pelo demandante, pois não passa de um mero orçamento, uma vez que se apurou que o veículo já estava reparado, e nesse caso era esse o valor pelo qual devia ser ressarcido, montante que se desconhece, pois ninguém se dignou a apresenta-lo.

Assim, e com base neste facto que apenas se teve conhecimento na audiência, e que o demandante não mencionou anteriormente embora dele tivesse conhecimento, atente-se a data em que intentou a ação, relegando-se o seu apuramento para liquidação de sentença (art.º 609, n.º2 do C.P.C.).

No que diz respeito ao pedido de danos não patrimoniais, tendo em consideração que são aqueles que sejam insuscetíveis de avaliação pecuniária, reportando-se a bens que não integram o património do lesado, pelo que apenas podem ser compensados pecuniariamente, não foram alegados factos que se enquadrem no mesmo, aliás apenas foi feito em bloco o referido pedido com um determinado valor, atente-se o teor do art.º 33 do r.i., pelo que sem factos concretos não pode proceder.

Por fim, quanto ao pedido de danos emergentes no valor de 374,03€, dispõe o art.º 564, n.º1 do C.C. que o dever de indemnizar compreende o prejuízo efetivamente causado ao lesado.

O dano da privação de uso de veículo pode manifestar-se no plano patrimonial e ou no plano não patrimonial do lesado.
Tratar-se-á de um dano patrimonial, na modalidade de dano
emergente ou lucro cessante, quando nele se integrem as despesas com o aluguer de um veículo de substituição, as despesas suportadas com transportes alternativos ou os benefícios não auferidos por causa da privação, desde que devidamente alegada a necessidade de utilização do veículo durante o período de imobilização.

O dano terá natureza não patrimonial quando represente o conjunto de incómodos, inconvenientes, contrariedades e esforços do lesado, ditado pela impossibilidade de usar o veículo. Neste caso, a ressarcibilidade do dano terá de apresentar uma gravidade tal que reclame a proteção do direito (art.º 496º do C.C.).

É hoje doutrina e jurisprudência correntes que a privação de uso de uma coisa, inibindo o proprietário ou detentor de exercer sobre a mesma os inerentes poderes, constituiu uma perda que deve ser considerada objeto de indemnização autónoma.

Constituindo o simples uso do bem uma vantagem suscetível de avaliação pecuniária, a sua privação constituiu um dano patrimonial, suscetível de ser indemnizado.

Estando um automóvel, em regra e por sua natureza, destinado a proporcionar ao seu proprietário e legítimo detentor as utilidades, designadamente a possibilidade de se deslocar para onde quiser e quando quiser, e que só podem ser fruídas pelo seu uso, impedido este, há um prejuízo que se traduz na impossibilidade de fruir essas utilidades, situação que pode ou não implicar lucros cessantes, e/ou danos emergentes com tradução monetária imediata, mas que, em regra, importa a frustração do gozo.

Dispõe o art.º 42 do Regime Jurídico do Seguro Obrigatório da Responsabilidade Civil Automóvel que “verificando-se a imobilização do veículo sinistrado, o lesado tem direito a um veículo de substituição de características semelhantes a partir da data em que a empresa de seguros assuma a responsabilidade exclusiva pelo ressarcimento dos danos resultantes do acidente (...)”.

Segundo foi apurado, e admitido pelo próprio demandante, foi-lhe facultado um veículo de substituição equivalente, o que sucedeu em dois momentos distintos, perfazendo o prazo de mês e meio, o que significa que a demandada assumiu a sua obrigação, tal como derivava do contrato de seguro.

No entanto, o demandante requer ainda uma indemnização, a qual deve assim ser provada, conforme já se referiu. Para o efeito o demandante juntou um conjunto de documentos, de fls. 33 a 79. Ora os documentos estão em nome de diversas entidades, o que resulta da sua análise, as quais não são o demandante, para além disso as faturas carecem das devidas explicações, as quais não foram dadas, por estes motivos declina-se este pedido.

DECISÃO:

Nos termos explanados, julga-se a ação parcialmente procedente, relegando-se o apuramento do valor/quantia indemnizatória referente à reparação do veículo RH, para liquidação de sentença (art.º 609, n.º2 do C.P.C.).

CUSTAS:

Face ao decaimento parcial da ação, consideram-se integralmente satisfeitas.

Lisboa,17 de dezembro de 2018

A Juíza de Paz

(redigido pela signatária, art.º 131, n.º5 do C.P.C.)

(Margarida Simplício)