Sentença de Julgado de Paz
Processo: 106/2013-JP
Relator: DANIELA DOS SANTOS COSTA
Descritores: RESPONSABILIDADE CIVIL
Data da sentença: 03/11/2014
Julgado de Paz de : TAROUCA
Decisão Texto Integral: ATA DE LEITURA DE SENTENÇA

Aos 11 de Março de 2014, pelas 16.00 horas, realizou-se no Julgado de Paz do Agrupamento de Concelhos de Tarouca, Armamar, Castro Daire, Lamego, Moimenta da Beira, Resende, a Audiência de Julgamento do Proc. n.º x em que são partes:
Demandantes: A e marido B.
Demandados: C e mulher D;
Realizada a chamada, não se encontrava ninguém presente.
Reaberta a Audiência, foi pela Meritíssima Juíza de Paz proferida a seguinte:
SENTENÇA
Os Demandantes intentaram contra os Demandados a presente acção declarativa, enquadrável na alínea d) do n.º 1 do Art. 9º da Lei n.º 78/2001, de 13 de Julho, pedindo que se declare que os Demandantes são donos e legítimos possuidores do prédio urbano descrito nos Artigos 1 a 2 desta PI e, por via disso, serem os Demandados condenados:
a) A reconhecer o direito de propriedade dos Demandantes sobre o seu prédio urbano descrito nos Artigo 1 a 3 desta PI;
b) A demolir imediatamente a parte alteada do muro divisório dos prédios urbanos de Demandantes e Demandados, remetendo este ao seu estado anterior por ser violadora do prescrito nos Artigos 73 e 75 do RGEU e das normas constitucionais dos Artigos 65 e 66 da CRP;
c) A absterem-se de praticar quaisquer actos lesivos do direito de propriedade dos Demandantes sobre o seu predio urbano descrito nos Artigos 1, 2 e 3 desta PI e dos direitos de habitação e de ambiente e qualidade de vida dos Demandantes consignados nos Artigos 65 e 66 da CRP;
d) A pagar todas as custas deste processo judicial.
Os Demandados apresentaram contestação, conforme plasmado a fls. 22 a 26, tendo impugnado os factos alegados no Requerimento Inicial (RI), além de terem impugnado o valor da causa indicado na petição inicial e, consequentemente, a incompetência do Julgado de Paz em razão do valor.
O Julgado de Paz é competente em razão do território, da matéria, do objeto, e do valor.
As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias e são legítimas.
Não se verificam quaisquer exceções ou nulidades, nem quaisquer questões prévias, para além da que infra se apreciará, que obstem ao conhecimento do mérito da causa. Procedeu-se à realização da audiência de julgamento com observância do legal formalismo consoante resulta da Ata.
FACTOS PROVADOS:
A. Os Demandantes são donos e legítimos proprietários do prédio urbano do Artigo x da matriz predial urbana da união das freguesias de x que teve origem no Artigoxx - Urbano da extinta freguesia de xx - concelho de Lamego;
B. Os Demandantes encontram-se inscritos definitivamente na Conservatória Do Registo Predial De Lamego como proprietários deste prédio urbano;
C. O prédio urbano dos Demandantes confronta do lado Norte com o prédio urbano do Artigo x da união das freguesia de x - concelho de Lamego que teve origem no Artigo x - Urbano da extinta freguesia de xx.
D. Acontece que entre ambos os prédios urbanos existe um muro divisório em perpianho de granito, com 1 metro de largura, que divide estes dois prédios urbanos;
E. Os Demandados procederam ao alteamento deste muro divisório com 5 filas de tijolos de cimento, de 16 cm de largura e 20 cm cada, ficando o mesmo com mais 1 metro de altura;
F. Na fachada do prédio urbano dos Demandantes existem duas janelas para vistas - iluminação e ventilação do seu rés-do-chão, onde existem a sala de costura e lavandaria e a sala de jantar e de convívio dos Demandantes;
G. O muro agora ampliado dista 1,53 m das duas janelas da fachada do prédio urbano dos Demandantes e a diferença entre tal muro e as janelas é de 30 cm, a contar do parapeito das mesmas;
H. Destas janelas têm os Demandantes iluminação - ventilação e vistas para o seu prédio urbano que ficam reduzidas com o muro ampliado pelos Demandados porquanto passam a ter por paisagem os socalcos durienses, o telhado da casa de habitação dos Demandados e 30 cm do muro;
I. Tais janelas iluminam - ventilam e dão vistas ao rés-do-chão do prédio urbano dos Demandantes onde existe a sala de costura — lavandaria — e sala de jantar e convívio deste prédio urbano;
J. Com o muro ampliado os Demandantes ficaram sem vistas sobre a estrada e com o rés-do-chão húmido - sem luz natural e sem sol por estas suas Janelas se encontrarem parcialmente tapadas;
K. O rés-do-chão sempre foi arejado - ventilado - iluminado com luz natural — isolado — sem correntes de ar — humidades — bolores ou salitres antes do muro ampliado;
L. O muro alteado serve para tapar as vistas - o ar - a luz e o sol das janelas do rés-do-chão do prédio urbano dos Demandantes e para devassar a habitação dos Demandantes porquanto, do lado do muro voltado para a casa de habitação dos Demandados, foi construído por eles um canteiro com plantas, que regam e tratam, tendo de subir ao muro primitivo, o que o fazem regularmente, e vendo, assim, o que se passa no logradouro e no interior da casa de habitação dos Demandados;
M. O muro primitivo dividia os dois prédios urbanos mas nunca tapou as vistas - o ar - a luz e o Sol do rés-do-chão do prédio urbano dos Demandantes;
N. Este muro ampliado veio reduzir a intimidade pessoal e privacidade familiar dos Demandantes e higiene e conforto do seu prédio urbano.
FACTOS NÃO PROVADOS:
Não se provaram quaisquer outros factos alegados pelas partes, com interesse para a decisão da causa.
Os factos assentes resultaram da conjugação dos documentos constantes dos autos, a fls. 7 a 14, 72 a 76, 100 a 105 e da prestação dos depoimentos testemunhais em audiência final.
Mais importa justificar que os factos provados, de carácter instrumental, vertidos nos itens G, H (“porquanto passam a ter por paisagem os socalcos durienses, o telhado da casa de habitação dos Demandados e 30 cm do muro”) e L (“porquanto, do lado do muro voltado para a casa de habitação dos Demandados, foi construído por eles um canteiro com plantas, que regam e tratam, tendo de subir ao muro primitivo, o que o fazem regularmente, e vendo, assim, o que se passa no logradouro e no interior da casa de habitação dos Demandados”) decorreram da instrução e discussão da causa, conforme o admite a al. a) do n.º 2 do Art. 5º do CPC.
As testemunhas indicadas pelos Demandantes, E, irmão do Demandante marido, F, sobrinha dos Demandantes, G, vizinha, H, irmã da Demandante mulher, e I, cunhada da Demandante mulher, descreveram, de forma convincente e rigorosa, o estado do muro em análise e os prejuízos que provocam aos Demandantes. Em razão disso, visto terem conhecimento direto da factualidade em causa, os seus depoimentos foram valorados.
No que concerne à testemunha indicada pelos Demandados – J, desenhador da construção civil, depôs de um modo parcial e pouco espontâneo, razão pela qual não foi valorado por este Tribunal na formação da sua convicção.
No que toca à inspecção ao local, foi profícua pois permitiu apurar e aferir da viabilidade fáctica das versões apresentadas pelas partes, em especial da altura do muro e distância relativamente às janelas dos Demandantes, cujas medições estão devidamente reproduzidas no auto de inspeção de fls. 71 (verso).
Quanto aos factos não provados, eles resultaram da ausência de prova ou de prova convincente sobre os mesmos.
ENQUADRAMENTO JURÍDICO
Questão Prévia: do valor da causa e da competência em razão do valor
Vieram os Demandados impugnar, em sede de contestação, o valor da causa e a consequente incompetência, em razão do valor, do Julgado de Paz.
Cumpre apreciar e decidir:
De acordo com o disposto no n.º 1 do Art. 296º do CPC, a toda a causa deve ser atribuído um valor certo, expresso em moeda legal, o qual representa a utilidade económica imediata do pedido.
Nos termos dos critérios gerais para a fixação do valor, será o valor da ação correspondente à quantia certa em dinheiro que se pretende obter, conforme determina o n.º 1 do Art. 297º do mesmo Código.
Se, porém, se pretender obter um benefício diverso, o valor da causa é a quantia em dinheiro equivalente a esse benefício – cfr. 2ª parte da norma atrás citada.
Por seu turno, a norma especial prevista no n.º 1 do Art. 302º do CPC estipula que se a ação tiver por fim fazer valer o direito de propriedade sobre uma coisa, o valor desta determina o valor da causa.
No caso sub judice, o pedido corresponde ao reconhecimento do direito de propriedade dos Demandantes sobre o seu prédio urbano, à demolição imediata da parte alteada do muro divisório e condenação genérica dos Demandados a absterem-se da prática de quaisquer atos lesivos do direito de propriedade e dos direitos de habitação, de ambiente e de qualidade de vida dos Demandantes.
Resulta do ora peticionado que os Demandantes não pretendem fazer valer o seu direito de propriedade sobre o prédio urbano de que são titulares, porque não foram os mesmos esbulhados da sua posse, conduzindo-os à necessidade de o reivindicar, no todo ou em parte, junto de terceiros.
Contrariamente, o que pretendem é que os Demandados sejam condenados a demolir um muro divisório que ofende, simultaneamente, o direito de propriedade e os direitos de personalidade de que são titulares.
Nesta medida, o valor da causa deverá corresponder à da utilidade económica do pedido, que, atendendo ao pedido e causa de pedir, mormente ao valor correspondente à demolição do muro alteado, fixamos na quantia de €2.000,00, de acordo com o n.º 1 do Art. 297º do CPC.
Posto isto, julgamos o Julgado de Paz competente, em razão do valor, improcedendo, assim, a exceção dilatória arguida pelos Demandados.
O n.º 4 do art. 40.º da Lei de Bases do Ambiente (Lei n.º 11/87, de 07 de Abril, com as alterações da Lei n.º 13/2002, de 09 de Fevereiro) prescreve que os cidadãos directamente ameaçados ou lesados no seu direito a um ambiente de vida humana sadia e ecologicamente equilibrado podem pedir, no, termos gerais de direito, a cessação das causas de violação e a respectiva indemnização.
Por outro lado, o direito de habitação, de ambiente e de qualidade de vida, em condições de higiene e conforto e que preserve a intimidade pessoal e a privacidade familiar, previstos no Art. 65º da Constituição da República Portuguesa, integram a personalidade física dos indivíduos, sendo objecto de protecção da lei ordinária, com especial destaque para o estatuído no Art. 70º do Código Civil (CC).
Prescreve esta norma que “A lei protege os indivíduos contra qualquer ofensa ilícita ou ameaça de ofensa à sua personalidade física ou moral”.
A ordem jurídica portuguesa reconhece, através deste preceito legal, o direito geral de personalidade, compreendendo, tanto a personalidade física como a personalidade moral. O direito a um ambiente de vida humano, sadio e ecologicamente equilibrado, inserem-se em tais direitos de personalidade, constituindo a sua violação facto ilícito, gerador da obrigação de indemnizar o lesado.
O lar de cada um é o local normal de retempero das forças físicas e anímicas desgastadas pela vivência no seio da comunidade, motivo pelo qual a Lei oferece garantias de tutela aos seus residentes.
Resulta, ainda, do disposto no Art. 1315.º do CC que o proprietário goza de modo pleno e exclusivo dos direitos de uso, fruição e disposição das coisas que lhe pertencem, dentro dos limites da lei e com observância das restrições por ela impostas.
No que toca às restrições legais do direito de propriedade, destacam-se as relativas à construção, que por razões de segurança, salubridade e estética, condicionam o seu livre exercício por parte do dono da coisa. Tais normas mostram-se vertidas no Regime Geral de Edificações Urbanas (RGEU), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 38382, de 7 de Agosto de 1951, com a redação do Decreto-Lei nº 220/2008, de 12 de Novembro.
Segundo o Art. 73º do RGEU, as janelas dos compartimentos das habitações deverão ser sempre dispostas de forma que o seu afastamento de qualquer muro ou fachada fronteiros, medido perpendicularmente ao plano da janela e atendendo ao disposto no artigo 75.º, não seja inferior a metade da altura desse muro ou fachada acima do nível do pavimento do comportamento, com o mínimo de 3 metros (sublinhado nosso).
Por seu turno, o Art. 75º do mesmo diploma estatui que sempre que nas fachadas sobre logradouros ou pátios haja varandas, alpendres ou quaisquer outras construções, salientes das paredes, susceptíveis de prejudicar as condições de iluminação ou ventilação, as distâncias ou dimensões mínimas fixadas no artigo 73.º serão contadas a partir dos limites extremos dessas construções.
Quando haja a violação de normas do RGEU, tal como aquelas supra referidas, a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, tem-se orientado no sentido de que está consentida aos particulares a possibilidade de demandarem o infractor das regras do RGEU desde que, face a esta ilegalidade, lhes tenham advido danos patrimoniais compreendidos no atentado ao seu direito de propriedade e, igualmente, lhe tenham causado prejuízos não patrimoniais relativos aos seus direitos de personalidade protegidos pelo artigo 70.º do CC, e com assento constitucional no direito que lhes é concedido pela Lei Fundamental a um ambiente de vida humano, sadio e ecologicamente equilibrado (art.º 66.º, n.º 1, da CRP).
Dito isto e debruçando-nos, agora, sobre o caso concreto que temos para solucionar, não há dúvida alguma que o circunstancialismo fáctico apurado aponta para que o alteamento do muro, em desobediência às normas dos Artigos 73º e 75º do RGEU, tem ofendido o direito dos Demandantes a uma vida sadia, ecologicamente equilibrada, em condições de higiene e conforto e que preserve a intimidade pessoal e a privacidade familiar.
Com efeito, a altura do muro e a sua distância inferior a 3 metros em relação às duas janelas, com tapagem parcial das suas vistas e da exposição do sol, colocação de canteiro e consequente devassa da privacidade e intimidade pessoal e familiar, sempre que os Demandados cuidam daquele canteiro, tem provocado sérias restrições ao direito de personalidade dos Demandantes, de tal modo que o seu direito a habitação, ambiente e qualidade de vida, com preservação da sua intimidade pessoal e a privacidade familiar, essencial à existência física, são postos em causa. Assim, o alteamento do muro não observou os requisitos necessários à observância das condições de salubridade e segurança da edificação e, por causa disso, gerou prejuízos na esfera jurídica dos Demandantes, consubstanciados na falta de luz natural e sol, humidade do rés-do-chão e redução da sua intimidade pessoal e privacidade familiar.
Em razão da factualidade apurada, estamos na presença de um caso de responsabilidade extracontratual ou delitual, cujo enquadramento vem previsto no Art. 483º, n.º 1 do CC, segundo o qual: “Aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação”.
São, assim, pressupostos da responsabilidade civil por factos ilícitos: o facto; a sua ilicitude; a imputação do facto ao lesante a título de dolo ou mera culpa; o dano; o nexo causal entre o facto e o dano.
No caso em análise, resultou provado que os Demandados praticaram um facto ilícito, ao infringirem normas legais destinadas a proteger interesses alheios, previstas no RGEU, e, em razão disso, lesaram os direitos de personalidade dos Demandantes, atrás explanados. Para além do mais, essa conduta praticada pelos Demandados é censurável pois estes podiam e deviam ter agido de outro modo, ou seja, abstendo-se de elevar um muro divisório a uma altura que tapa parcialmente as vistas de duas janelas e que dista das mesmas a menos de 3 metros, respeitando, dessa forma, normas gerais de edificação, e, ainda, edificando um canteiro, cuja rega obriga à subida dos Demandados ao muro originário e consequente devassa da habitação dos Demandantes, que põe em causa normas, já citadas, que tutelam a existência física dos indivíduos.
Os danos sofridos pelos Demandados resultam na falta de luz natural e sol, humidade do rés-do-chão e redução da sua intimidade pessoal e privacidade familiar e, se não fosse a conduta dos Demandados, não teriam os mesmos ocorrido.
Posto isto, será de dar cumprimento integral ao princípio geral da reconstituição natural, previsto no Art. 562º do CC, devendo os Demandados reconstituir a situação que existiria, se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação. Devem, pois, nestes termos, proceder à demolição de duas filas de tijolos de cimento, em toda a sua extensão, da parte alteada do muro e proceder à demolição do canteiro nele edificado, dando-se, assim, provimento parcial ao pedido dos Demandantes.
DECISÃO:
Pelo exposto e nos termos dos fundamentos de Direito invocados, julgo a acção parcialmente procedente e, em consequência, condeno os Demandados a:
a) Reconhecer o direito de propriedade dos Demandantes quanto ao prédio urbano identificado nos itens A e B dos Factos Provados;
b) Demolirem duas filas de tijolos de cimento, em toda a sua extensão, da parte alteada do muro;
c) Demolirem o canteiro nele edificado.
d) Em relação ao demais peticionado, absolvo os Demandados.
Custas na proporção do decaimento que se fixam em 50% para os Demandantes e 50% para os Demandados, em conformidade com os Artigos 8º e 9º da Portaria n.º 1456/2001 de 28 de Dezembro.
Registe e notifique.
Para constar lavrei a presente acta que depois de lida e ratificada, vai ser assinada.
Tarouca, 11 de Março de 2014
Juíza de Paz
(Dr.ª Daniela dos Santos Costa)
Técnica de Apoio Administrativo
(Carina Gonçalves)