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PP873
Analítico de Periódico



SOUSA, Miguel Teixeira de
Os chamados "factos conclusivos" : as razões de um equívoco : anotação ao acórdão do STJ de 14/7/2021 (Proc. 19035/17) / Miguel Teixeira de Sousa
Revista do CEJ, n.2 (2º Semestre 2021), p.199-256


DIREITO PROCESSUAL CIVIL / Portugal, IMPUGNAÇÃO, MATÉRIA DE FACTO, FACTO JURÍDICO, COMPETÊNCIA, SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA

O regime unitário do julgamento constante do artigo 607.º do CPC — em que compete ao juiz da causa tanto o julgamento da matéria de facto, como o da matéria de direito — implicou a supressão da tradicional distinção entre factos materiais e factos jurídicos e a construção de um regime unitário, em torno dos factos constituintes da previsão das regras jurídicas, isto é, dos factos jurídicos. Estes factos jurídicos são os factos essenciais — que integram a causa de pedir ou o fundamento da excepção (artigo 5.º, n.º 1, do CPC) —, a alegar pelas partes em juízo, quer sejam factos empíricos, recebidos pelo direito (como, por exemplo, o nascimento ou a morte), quer sejam factos construídos pelo direito (como, por exemplo, o dolo ou a culpa). A estes factos jurídicos, quando sejam controvertidos, devem reportar-se os temas da prova. Os factos que, em concreto, sejam subsumíveis aos factos jurídicos e que respeitam à substanciação da causa de pedir são os factos complementares ou concretizadores (artigo 5.º, n.º 2, do CPC). Quando os factos jurídicos não são factos empíricos e contêm, por isso, elementos valorativos ou humanos, nada obsta a que os factos considerados provados que lhe são subsumíveis tenham a mesma intensidade axiológica, volitiva, sentimental ou emotiva daqueles factos jurídicos. Assim, se numa ação o trabalhador pede a compensação por danos não patrimoniais sofridos em decorrência da violação do dever de ocupação efectiva, que se prolongou por mais de uma década, e de assédio moral, invocando, entre outros, que se encontrava “chocado” pela circunstância de lhe ter sido atribuído uma secretária que alguém “teve o cuidado” de informar que tinha sido ocupada por um colega recentemente falecido, nem uma nem outra devem ser expurgadas da matéria de facto: a expressão “tendo o cuidado” sugere efetivamente um dolo; quanto à expressão “chocado” exprime um facto psicológico. Ao censurar o julgamento de inutilização — efectuado pela Relação — das expressões referidas em “teve o cuidado” e “chocado”, por entender que “(...) nem uma nem outra são conclusivas, não determinando por si só a solução do litígio” e que “acresce que uma intenção pode ser relevante como sucede, por exemplo, no caso de assédio (ainda que o assédio não exija, de acordo com a nossa lei, uma intenção)”, o ST) prestou um contributo valioso para desfazer o equívoco sobre a possibilidade de utilizar factos conclusivos, quer nos temas da prova, quer na apreciação da matéria de facto. O juízo de subsunção do facto provado ao facto jurídico constitui matéria de direito, de que o STJ pode conhecer.