Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
8427/2006-5
Relator: FILOMENA CLEMENTE LIMA
Descritores: TRÁFICO DE ESTUPEFACIENTE
TRÁFICO DE MENOR GRAVIDADE
SUSPENSÃO DA EXECUÇÃO DA PENA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 11/29/2006
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO
Sumário: 1. Se num quadro global de actuação considerado como de tráfico, a natureza e quantidade da droga apreendida e usada e as circunstâncias apuradas em geral, acerca da actividade criminosa, avaliada esta na sua globalidade - o arguido num estabelecimento de restauração onde trabalhava, possuía um esquema de compra, corte e venda de droga a consumidores, tendo-lhe sido apreendidos, além do mais, 44 gramas de cocaína, uma caixa de “ Redrate “ com várias carteiras no seu interior, produto este destinado ao corte / mistura no estupefaciente e uma balança de precisão - não são de molde a atribuir a tal actividade um menor relevo ao nível da ilicitude do facto - apesar de se ter apurado que o arguido acedera a efectuar algumas vendas de droga, ao fim de semana, pelas dificuldades económicas que na altura se encontrava a passar - comparativamente com a actividade padrão de tráfico, em função de uma menor perigosidade presumida dessa actividade, não se deverá ter a mesma como situada no limite aceitável de enquadramento no tipo legal previsto art.º 25º da Lei 15/.93 de 22.1.
2. Porém, no caso, mostra-se a actividade de venda de droga caracterizada de forma não regular e enquadrada num circunstancialismo de tempo não exactamente apurado mas que se limitou, na sua condicionante de motivação, a uma situação económica difícil e numa perspectiva temporária não alargada mas definida na decisão como perspectivada à concreta situação económica e familiar, mantendo o próprio arguido, na altura, consumos de cocaína com alguma regularidade, problemática desconhecida pela família e, tendo nessa altura uma outra actividade profissional regular num restaurante, não tendo o arguido antecedentes criminais, tendo demonstrado uma boa capacidade de integração no meio profissional e uma situação familiar satisfatória e adequada a uma boa reintegração, tendo confessado e mostrado arrependimento e encontrando-se sujeito a medida de obrigação de permanência na habitação com vigilância electrónica a que se adaptou de forma adequada.
3. Todos os factores assinalados e ponderados se, por um lado, não permitem formular, com a necessária segurança, um juízo de culpa consideravelmente menos acentuado assim como, relativamente ao quadro típico de actuação, também não permitem considerar que se trate de ilicitude consideravelmente diminuída, permitirão, pelo menos, concluir por uma menor necessidade da pena conjugada com um juízo de censura atenuado pelo quadro de circunstâncias em que agiu, pelo facto de ter interiorizado o mal da sua actuação e por ter um quadro favorável à sua reintegração, se devidamente acompanhado na sua recuperação do consumo de drogas e na reinserção numa vida social e profissional activa, perspectivando-se a possibilidade de a manutenção da liberdade favorecer tal desiderato.
4. A situação pessoal do arguido e as características da sua personalidade, o arrependimento, a sua condição de consumidor e o prognóstico favorável que permitem formular, não supõem a necessidade de uma pena fixada na moldura prevista para o crime que formalmente integrou e permitem a suspensão da sua execução condicionada ao acompanhamento pelo IRS, pelo período máximo de suspensão permitido.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: (…)
3.
3.1.
No campo da apreciação das provas, é livre a forma como o tribunal atinge a sua convicção.
Trata-se de emanação do princípio que vigora no nosso sistema processual penal, o princípio da livre apreciação da prova ou da livre convicção, consagrado no art.º 127º do C.P.P., de acordo com o qual e, ressalvados os casos em que a lei dispuser diferentemente, " a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente".
A apreciação livre da prova não pode ser confundida com a apreciação arbitrária da prova nem com a mera impressão gerada no espírito do julgador pelos diversos meios de prova ; tem como pressupostos valorativos a obediência a critérios da experiência comum e da lógica do homem médio.
Trata-se da liberdade de decidir segundo o bom senso e a experiência da vida , temperados pela capacidade crítica de distanciamento e ponderação, ou no dizer de Castanheira Neves da “liberdade para a objectividade”( Rev. Min. Públ., 19º,40).
Também a este propósito, salienta o Prof. Figueiredo Dias ( "Direito Processual Penal I, 202) " a liberdade de apreciação da prova é uma liberdade de acordo com um dever - o dever de perseguir a verdade material - , de tal sorte que a apreciação há-de ser, em concreto, recondutível a critérios objectivos e, portanto, em geral susceptível de motivação e controlo ".
É na audiência de julgamento que tal princípio assume especial relevo, tendo, porém, que ser sempre motivada e fundamentada a forma como foi adquirida certa convicção, impondo-se ao julgador o dever de dar a conhecer o seu suporte racional, o que resulta do art.º 374º, n.2 C.P.P..
A livre convicção não pode confundir-se com a íntima convicção do julgador, impondo-lhe a lei que extraia das provas um convencimento lógico e motivado, avaliadas as provas com sentido da responsabilidade e bom senso.
Outro princípio geral da prova é o princípio “in dubio pro reo”, segundo o qual, perante a existência de factos incertos e perante uma dúvida irremovível e razoável, deverá o tribunal, na decisão acerca da apreciação e valoração das provas e determinação dos factos provados, favorecer o arguido.
O local ideal para apreciar valorativa e criticamente as provas é, por excelência, a audiência de julgamento em que o julgador dispõe das melhores condições para apreciar, mormente em sede de prova testemunhal, a forma como são prestados os depoimentos, para analisar todas as questões relevantes e susceptíveis de serem ponderadas, de acarear os depoimentos contraditórios para, de um modo geral, criar a convicção necessária à fixação dos factos.
A imediação é condição fundamental de aquisição da verdade processual.
Assim, não é de estranhar que o processo de avaliação da prova feita pelo tribunal de recurso possa ser diferente do alcançado pelo tribunal “ a quo” sem que essa avaliação envolva alguma crítica à forma com este tribunal ponderou a prova produzida.
Porém, nesta fase e, colocada em crise a forma como o tribunal adquiriu a sua convicção, apenas nos é permitido reanalisar as provas produzidas pelo tribunal a quo, se bem que este reexame parta sempre, necessariamente, de uma análise desinserida das possibilidades que a imediação proporciona.

Perante o texto da decisão não se vê qualquer razão para discordar da forma como, no essencial, o tribunal formou a sua convicção. As provas que serviram de suporte a tal convicção foram legalmente produzidas e criteriosa e detalhadamente ponderadas, dentro das regras da livre convicção do julgador que enunciou as razões dessa ponderação.

A decisão recorrida fundamenta a convicção que formou a partir da apreciação global e conjugada de vários meios de prova que pondera de forma transversal, em alguns casos. Assim, além das declarações do arguido que assumiu os factos, no essencial, ponderou outros meios de prova carreados para a audiência como, por exemplo, as vigilâncias e apreensões efectuadas pelos agentes policiais acima identificados e a convicção que firmou, para concluir pela actuação do arguido nos moldes descritos na decisão, assentou essencialmente na avaliação conjugada dos vários elementos resultantes de apreensões de produto estupefaciente ou admissão dos factos pelo arguido.
As declarações do arguido foram apreciadas, não de forma isolada e desintegrada da ponderação dos demais meios de prova, mas numa perspectiva de apreciação global da prova. Efectivamente, a decisão não utiliza isoladamente os meios de prova para justificar a sua convicção, antes os integra numa avaliação concertada. A apreciação da prova impõe a sua análise conjunta e crítica pois é dela e da sua avaliação á luz das regras da experiência que se extrai objectivamente o sentido da prova.

A decisão aprecia a prova produzida por forma a dar como provados os factos referidos fazendo apelo ao encadeamento de factos apurados a partir dos vários meios de prova produzidos, de forma a entrosar os vários meios de prova apreciando o que resulta do confronto e conjugação da prova testemunhal com o teor da demais prova nomeadamente da prova obtida a partir das vigilâncias e apreensões efectuadas.
Aliás, o arguido confessou os factos apenas defendendo que parte da droga apreendida se destinava ao seu consumo, o que não contraria a ponderação global feita pelo tribunal.
Recorde-se da motivação da decisão que :
O arguido H., nas suas declarações, assumiu em audiência que o produto apreendido lhe pertencia, referindo que também consumia drogas e que vendia a amigos, de vez em quando e aos fins de semana, sendo cada grama de produto vendida por 30 Euros.
Referiu que a balança apreendida se destinava a pesar o produto para ver se não era enganado, no produto que comprava, sendo o produto Retarde da sua mulher, a qual estava grávida e tinha enjoos.
Quanto aos veículos apreendidos disse que um dos veículos era da mulher e o outro de um amigo.
Também disse que nenhum dos arguidos presentes em audiência colaborou consigo na aquisição ou venda de droga.
Justificou a sua actuação nas dificuldades económicas do casal, em virtude de a mulher estar grávida e ter deixado de trabalhar.

Se recordarmos a factualidade apurada ver-se-á que a decisão considerou provado o arguido mantinha consumos de cocaína com alguma regularidade, problemática desconhecida pela família, confessou os factos provados, de que se mostra arrependido e a esposa ficou grávida, razão porque teve que deixar de trabalhar, ficando o casal em situação económica muito difícil, tendo acedido a efectuar algumas vendas de droga, ao fim de semana, pelas dificuldades económicas que na altura se encontrava a passar.
Não resulta da matéria de facto fixada que parte da droga apreendida seria destinada pelo arguido ao seu consumo próprio ou sequer se o arguido afectava alguma parte daquela que foi concretamente apreendida a tal destino.
O destino da droga, nomeadamente o de ser vendido a terceiros, não é decisivo para o preenchimento do tipo legal que se basta com a detenção, embora tendo efeitos na apreciação da culpabilidade e respectivo grau.
De todo o modo, não há discordância quanto ao facto de o arguido realizar vendas de cocaína a terceiros, o que o próprio admite e por outro lado, uma apreciação conjunta dos factos apurados não excluirá que uma parte da droga fosse destinada ao consumo pessoal do arguido.
Simultaneamente, trata-se de uma conclusão lógico-dedutiva que resulta dos factos apurados, embora se traduza num facto sem relevância, perante a constatação já adquirida no processo de que o arguido era consumidor e vendedor de droga.
O que não se pode retirar da factualidade, mesmo a aceitar-se essa possibilidade, é qual a parte que destinava a si próprio e a ser vendido aos amigos. E da decisão também não resulta que da prova produzida seja possível concluir tal facto, pelo que não se verifica qualquer insuficiência para a decisão da matéria de facto apurada.
Aliás, a reavaliação feita por este Tribunal acerca dos meios de prova produzidos, sem necessidade sequer de recorrer à transcrição da prova gravada, dada a forma como foram apreciados e valorados na decisão recorrida, admite em parte a afirmação pretendida pelo recorrente, o que não põe em causa a decisão proferida em sede da fixação da matéria de facto dada como provada e não provada.

Assim, a partir das declarações do arguido, que foram tidas por relevantes pelo tribunal recorrido para dar como provada a matéria de facto relativa à sua situação e condições pessoais, que assumiu a detenção e venda de droga mas que invocou ser também ele consumidor de cocaína, e essencialmente com base na análise da factualidade apurada, global e criticamente apreciada à luz das regras da experiência comum, deverá retirar-se a conclusão de que “ Parte não apurada da droga apreendida ao arguido destinar-se-ia ao seu consumo próprio”.


3.2.
Pretende o recorrente que se verifica, no caso, uma situação de tráfico de menor gravidade.
Esta preencher-se-á, nos termos do disposto no art.º 25º do citado diploma sempre que a ilicitude se mostrar consideravelmente diminuída, tendo em conta nomeadamente (sublinhado nosso) os meios utilizados, a modalidade ou as circunstâncias da acção, a qualidade ou quantidade das plantas, substâncias ou preparações.

Raciocinando com base no referido dispositivo legal (art.º25º) que consagra uma situação atenuada de tráfico, considera-se necessário para o seu preenchimento que essa atenuação, reflexo de uma menor gravidade de actuação, resulte de uma “valorização global do facto”, não se mostrando suficiente que um dos factores indicados no preceito seja idóneo, em abstracto, para qualificar o facto como leve.

Não bastará valorar a quantidade da droga pois a atenuação não resulta de uma menor exigência de tutela punitiva face a uma menor potencialidade ofensiva de uma menor quantidade, mas antes a de atribuir menor relevo à menor perigosidade presumida da actividade criminosa, avaliada esta na sua globalidade.

As circunstâncias enumeradas de forma não taxativa deverão ser ponderadas numa perspectiva de averiguação objectiva de um menor relevo ou de um menor grau da ilicitude da acção.

A terminologia usada aproxima-se, aliás, da utilizada pelo artº 72º ,n.º 1 C.P., acerca da atenuação especial resultante da verificação de “circunstâncias que diminuam de forma acentuada a ilicitude do facto...”.

Circunstâncias em que se pode traduzir tal diminuição da ilicitude do facto serão, entre outras, a pequena quantidade ou a natureza do produto traficado, o carácter esporádico dos actos relacionados com o tráfico e a forma como se processavam tais actos.

A factualidade fixada permite já uma apreciação da forma como se desenrolaria a actividade do arguido quer ao nível do consumo quer ao nível da venda que permitirá numa avaliação global concluir que não existem elementos suficientes para concluir pela existência de uma diminuição considerável da ilicitude por forma a enquadrar o crime menos grave.

A propósito do enquadramento legal dos factos, perante as considerações já feitas acerca da matéria de facto, se conclui que haverá que considerar, no essencial, a detenção pelo arguido de cerca de 44 gramas de cocaína, droga dura, suficientes para nos termos da Portaria nº 94/96 de 26/3, produzir mais de 200 doses médias individuais diárias.
Apesar de não se saber exactamente durante quanto tempo nem por quantas vezes ocorreu a actividade de venda de droga, pois tais elementos não constam da matéria de facto, é certo que, como refere o MºPº na resposta ao recurso, o arguido a coberto de um estabelecimento de restauração, possuía um esquema de “compra, corte e venda de droga aos consumidores pois não se esqueça que foram ainda apreendidos, além do mais, uma caixa de “ Redrate “ com várias carteiras no seu interior, produto este destinado ao corte / mistura no estupefaciente e uma balança de precisão “ que se encontravam na arrecadação do estabelecimento.
Assim não se pode afirmar que os meios utilizados também traduzam uma diminuição considerável da ilicitude.
Embora se tenha enquadrado a actividade do arguido no quadro de motivação de uma situação económica difícil e inesperada, não se vê que a avaliação global do facto faça diminuir consideravelmente a ilicitude.

Esta avaliação não pode deixar de considerar todos os elementos disponíveis e estes não permitem inserir a actividade do arguido num contexto de ocasionalidade ou de menor gravidade.

É este contexto de avaliação global que permite conceber a actuação do recorrente numa perspectiva de gravidade não diminuída, com base em efectivos elementos de facto constantes da decisão, e não com base em dúvidas, que impede se enquadre as suas actuações no tipo legal do art.º 25º do DL 15/93 por se não poder concluir, perante as circunstâncias apuradas, que o quadro geral da sua actuação não atingisse o limiar médio do tipo legal de tráfico de estupefacientes todo por padrão .

O quadro global de actuação considerado como de tráfico, a natureza da droga apreendida e usada e as circunstâncias apuradas em geral, acerca da actividade criminosa, avaliada esta na sua globalidade, não são de molde a atribuir a tal actividade um menor relevo ao nível da ilicitude do facto comparativamente com a actividade padrão de tráfico, em função de uma menor perigosidade presumida da actividade que se apurou. Pela quantidade e qualidade da droga e pelo contexto apurado de tal actividade, não se vê que se deva ter a mesma como situada no limite aceitável de enquadramento no tipo legal previsto art.º 25º.

3.3.

O recorrente pretende ainda que se deve ter por verificada uma situação justificativa de atenuação especial da pena e a suspensão da execução da pena de prisão .

Nos termos do art.º 72º ,n.º 1 C.P., o tribunal atenua especialmente a pena, nos termos do art.º 73º CP, quando verificar e existência de “circunstâncias, anteriores ou posteriores ao crime ou contemporâneas dele que diminuam de forma acentuada a ilicitude do facto, a culpa do agente ou a necessidade da pena”.

O recorrente no texto da sua motivação refere as seguintes circunstâncias justificadoras da atenuação especial: « a esposa ficou grávida, razão porque teve de deixar de trabalhar, ficando o casal em situação económica muito difícil, tendo acedido a efectuar algumas vendas de droga, ao fim de semana, pelas dificuldades económicas que na altura se encontrava a passar ».

Recorde-se o texto do acórdão do STJ de 3.11.2004, em www.dgsi.pt relatado pelo Juiz Conselheiro Henriques Gaspar que se transcreve e cita por se reportar a uma situação com alguns contornos idênticos ao do que nos ocupa :
Os tráficos de droga constituem, hoje, nas sociedades desenvolvidas, um dos factores que provoca maior perturbação e comoção social, tanto pelos riscos (e incomensuráveis danos) para bens e valores fundamentais como a saúde física e psíquica de milhares de cidadãos, especialmente jovens, com as fracturas devastadoras nas famílias e na coesão social primária, os comportamentos desviantes conexos sobretudo nos percursos da criminalidade adjacente e dependente, como pela exploração das dependências que gera lucros subterrâneos, alimentando economias criminais, que através de reciclagem contaminam a economia legal.
O reconhecimento do fenómeno e da comoção social que provoca, faz salientar a necessidade de acautelar as finalidades de prevenção geral na determinação das penas como garantia da validade das normas e de confiança da comunidade, mas, do mesmo passo, não podem ser descuradas as finalidades de reinserção dentro do modelo de prevenção especial.
(…)
Na verdade, a confissão integral e, especialmente, o arrependimento sincero, que releva no quadro das exigências de prevenção especial, e as dificuldades que estão supostas na condição de consumidor de estupefacientes, aliadas à unicidade da conduta sem indícios de qualquer pressuposto organizativo, apontam para que a moldura do crime base de tráfico se apresente desajustada e sem a plasticidade suficiente para tratar adequadamente a actuação do arguido nas suas circunstâncias e na consideração global do facto e da personalidade.
Para as situações em que se verifique um afastamento crítico entre o modelo formal de integração de uma conduta em determinado tipo legal e as circunstâncias específicas que façam situar a ilicitude ou a culpa aquém desse modelo, a lei dispõe de um instituto que funciona como instrumento de segurança do sistema: a atenuação especial da pena com os pressupostos do artigo 72º do Código Penal.
Com efeito, quando o legislador dispõe sobre a moldura penal para certo tipo de crime tem de prever as mais diversas formas e graus de realização do facto, desde os de menor até casos de maior gravidade, especialmente para ter em conta situações pessoais do agente em que a prevenção geral não imponha e a prevenção especial não exija uma pena a encontrar nos limites da moldura penal do tipo.
Para resolver situações em que «a capacidade de previsão do legislador é necessariamente ultrapassada pela riqueza e multiplicidade de situações reais da vida» e em que, «em consequência, mandamentos irrenunciáveis de justiça, adequação (ou necessidade) da punição» impõem-se que o sistema disponha de uma válvula de segurança que permita responder a casos especiais, em que concorram circunstâncias que «diminuam por forma acentuada as exigências de punição do facto, deixando aparecer a sua imagem global especialmente atenuada relativamente ao complexo normal» de casos que o legislador terá previsto e para os quais fixou os limites da moldura respectiva (cfr., JORGE DE FIGUEIREDO DIAS, "Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime", 1990, p. 302).
A esta ideia político-criminal responde o instituto da atenuação especial da pena, previsto no artigo 72º do Código Penal.
O tribunal atenua especialmente a pena, para além dos casos expressamente previstos na lei, quando existam circunstâncias anteriores ou posteriores ao crime, ou contemporâneas dele, que diminuam de forma acentuada a ilicitude do facto, a culpa do agente ou a necessidade da pena - artigo 72º, nº 1.
O nº 2 enumera algumas circunstâncias que podem ser consideradas para o efeito de diminuir de forma acentuada a ilicitude do facto, a culpa ou a necessidade da pena, ou seja, também diminuição das exigências de prevenção.
Pressuposto material da atenuação da pena, autónomo ou integrado pela intervenção valorativa das situações exemplificativamente enunciadas, é a acentuada diminuição da culpa ou das exigências de prevenção.
Mas acentuada diminuição significa casos extraordinários ou excepcionais, em que a imagem global do facto se apresenta com uma gravidade tão específica ou diminuída, que possa razoavelmente supor-se que o legislador não pensou em tais hipóteses quando estatuiu os limites normais da moldura do tipo respectivo (cfr. JORGE DE FIGUEIREDO DIAS, idem, p. 306; e v. g., acórdãos deste Supremo Tribunal, de 18/Out/2001, proc. 2137/01, e de 30/Out/2003, in CJ (STJ), ano XI, tomo III, p. 208).
No entanto, se estiverem verificados os pressupostos materiais, a atenuação especial («o tribunal atenua») é uma autêntica consequência jurídica que o tribunal deve declarar.
No caso, a situação pessoal do arguido e as características da sua personalidade, o arrependimento, a sua condição de consumidor e o prognóstico favorável que permitem, não supõem a necessidade de uma pena fixada na moldura prevista para o crime que formalmente integrou.
Deste modo, tendo em consideração todas as circunstâncias, nos termos dos artigos 71º, nº 2, alíneas b), c), d) e e), 72º e 73º, nº 1, alínea b), do Código Penal, atenua-se especialmente a pena pelo crime previsto no artigo 21º, nº 1, do Decreto-Lei nº 15/93, de 22 de Janeiro, que se fixa em três anos de prisão.
7. A suspensão da execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a três anos deve ter lugar, nos termos do artigo 50º do Código Penal, sempre que, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, for de concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.
Constitui uma medida de conteúdo reeducativo e pedagógico, de forte exigência no plano individual, particularmente adequada para, em certas circunstâncias e satisfazendo as exigências de prevenção geral, responder eficazmente a imposições de prevenção especial de socialização, ao permitir responder simultaneamente à satisfação das expectativas da comunidade na validade jurídica das normas violadas, e à socialização e integração do agente no respeito pelos valores do direito, através da advertência da condenação e da injunção que impõe para que o agente conduza a vida de acordo com os valores inscritos nas normas.
A suspensão da execução, acompanhada das medidas e das condições admitidas na lei que forem consideradas adequadas a cada situação, permite, além disso, manter as condições de sociabilidade próprias à condução da vida no respeito pelos valores do direito como factores de inclusão, evitando os riscos de fractura familiar, social, laboral e comportamental como factores de exclusão.
Não são, por outro lado, considerações de culpa que devem ser tomadas em conta, mas juízos prognósticos sobre o desempenho da personalidade do agente perante as condições da sua vida, o seu comportamento e as circunstâncias do facto, que permitam fazer supor que as expectativas de confiança na prevenção da reincidência são fundadas.
Por fim, a suspensão da execução da pena não depende de um qualquer modelo de discricionariedade, mas, antes, do exercício de um poder-dever vinculado, devendo ser decretada, na modalidade que for considerada mais conveniente, sempre que se verifiquem os respectivos pressupostos. .A medida de substituição realiza, assim, de modo determinante, um programa de política criminal, que tem como elemento central a não execução de penas curtas de prisão, na maior medida possível e socialmente suportável pelo lado da prevenção geral, relativamente a casos de pequena e mesmo de média criminalidade.
Deste modo, as penas de prisão aplicadas m medida não superior a três anos devem ser, por princípio, suspensas na execução, salvo se o juízo de prognose sobre o comportamento futuro do agente se apresente claramente desfavorável, e a suspensão for impedida por prementes exigências geral-preventivas, em feição eminentemente utilitarista da prevenção.
O juízo prognóstico favorável constitui, porém, mais do que numa formulação radicalmente positiva, a ausência de elementos ou de certezas que apontem para um juízo negativo sobre a suficiência da simples ameaça da execução para obstar à prática de futuros crimes.
Sendo esta a perspectiva, os factos provados, especialmente o arrependimento sincero, revelam uma personalidade predisposta a aceitar os valores comunitários essenciais e a conformar-se com tais valores, sendo de esperar que a simples ameaça de execução seja bastante injunção para prevenir a reincidência.
Justifica-se, assim, a suspensão da execução da pena, nos termos do artigo 50º do Código Penal, que se fixa pelo período de cinco anos, com adequado acompanhamento em regime de prova, nos termos do artigo 53º, nº 1 do Código Penal.

Tal como no acórdão referenciado, afigura-se que também no presente caso a situação pessoal do arguido e as características da sua personalidade, o arrependimento, a sua condição de consumidor e o prognóstico favorável que permitem formular, não supõem a necessidade de uma pena fixada na moldura prevista para o crime que formalmente integrou e permitem a suspensão da sua execução condicionada ao acompanhamento pelo IRS e pelo período máximo de suspensão permitido.

A partir das declarações do arguido o tribunal teve como provada a factualidade descrita, não se questionando aqui se o fez de forma justificada, ou não, já que tal matéria de facto não é posta em causa.
Recorde-se o teor da matéria de facto vertida na decisão recorrida :

Entrou para a escola em idade normal, tendo efectuado um percurso regular até ao ingresso no ensino preparatório, altura a partir da qual adopta uma postura absentista e de desinteresse.
Neste contexto, surgiram várias reprovações que vieram a culminar no abandono precoce durante a frequência do 7º ano.
Com 16 anos inicia-se laboralmente, como empregado num clube de vídeo, onde permaneceu cerca de 2 anos e meio, contribuindo para a economia familiar.
Posteriormente, desenvolveu actividade profissional como marceneiro (3 anos) e como estafeta (2 anos).
Desde há cerca de dois anos, desenvolve actividade laboral, na área da restauração.
Autonomizou-se relativamente ao agregado da sua progenitora, há cerca de três anos, altura em que iniciou uma união de facto.
Aos 23 anos, num contexto de diversão nocturna, inicia-se o consumo de cocaína, efectuando desde então consumos ocasionais.
À data dos factos, o arguido integrava o seu agregado constituído pela companheira, com quem veio a casar em Janeiro de 2005.
A dinâmica familiar é equilibrada e gratificante do ponto de vista afectivo.
Nessa altura, o arguido desenvolvia actividade laboral no restaurante Preto e Branco, estabelecimento comercial que era explorado pela sua progenitora e por um dos irmãos que assumia a gerência.
A companheira encontrava-se grávida da primeira filha do casal e ajudava a sogra no restaurante.
Na altura, o arguido mantinha consumos de cocaína com alguma regularidade, problemática desconhecida pela família.
A nível familiar dispõe de apoio estruturado por parte da mulher, da progenitora e tia materna.
A mulher trabalha como bailarina de um estabelecimento de diversão nocturna “passerele”, sendo o arguido quem assume os cuidados a prestar à sua filha de 8 meses de idade.
O arguido encontra-se em OPHVE desde 6 de Junho de 2005, decorrendo a medida com normalidade.
O arguido tem beneficiado de apoio estruturado por parte da mulher e da progenitora, elementos que manifestam a sua disponibilidade para o apoiarem incondicionalmente.
No decurso da medida e por forma a ajudar a manutenção do agregado, tem efectuado alguns negócios de venda de automóveis efectuados através do jornal ocasião.
O arguido confessou os factos provados, de que se mostra arrependido.
A esposa ficou grávida, razão porque teve que deixar de trabalhar, ficando o casal em situação económica muito difícil, tendo acedido a efectuar algumas vendas de droga, ao fim de semana, pelas dificuldades económicas que na altura se encontrava a passar.
Não tem antecedentes criminais.

Efectivamente, no caso, não foi possível concluir, a partir de uma valorização global da actividade do arguido - que não se mostra delimitada exactamente no tempo e no modo – por uma contextualização circunstancial específica susceptível de reflectir uma actuação relacionada com a droga, de molde a atribuir a tal actividade um menor relevo ao nível da ilicitude do facto, em comparação com a actividade padrão de tráfico, nomeadamente em função de uma menor perigosidade presumida da actividade.
Com relevância para a apreciação da eventual e pretendida atenuação especial da pena apurou-se, no essencial, a detenção pelo arguido de cerca de 44 gramas de cocaína, de ter este efectuado algumas vendas a amigos em fins de semana, motivado pelas dificuldades económicas que na altura se encontrava a passar, mantendo ele próprio, na altura, consumos de cocaína com alguma regularidade, problemática desconhecida pela família e, tendo nessa altura uma outra actividade profissional regular num restaurante.
Não se sabe exactamente durante quanto tempo nem por quantas vezes ocorreu a actividade de venda de droga mas mostra-se a mesma caracterizada de forma não regular e enquadrada num circunstancialismo de tempo não exactamente apurado mas que se limitou na sua condicionante de motivação decorrente de uma situação económica difícil e numa perspectiva temporária não alargada mas definida na decisão como perspectivada à referida situação económica e familiar.

Acresce que no caso, o arguido que não tem antecedentes criminais, demonstrou uma boa capacidade de integração no meio profissional e uma situação familiar satisfatória e adequada a uma boa reintegração, confessou e mostrou arrependimento e encontra-se sujeito a medida de obrigação de permanência na habitação com vigilância electrónica a que se tem adaptado de forma adequada.

Todos os factores assinalados e ponderados se, por um lado, não permitem formular, com a necessária segurança, um juízo de culpa consideravelmente menos acentuado assim como, relativamente ao quadro típico de actuação, também não permitem considerar que se trate de ilicitude consideravelmente diminuída, permitirão, pelo menos, concluir por uma menor necessidade da pena conjugada com um juízo de censura atenuado pelo quadro de circunstâncias em que agiu, pelo facto de ter interiorizado o mal da sua actuação e por ter um quadro favorável à sua reintegração, se devidamente acompanhado na sua recuperação do consumo de drogas e na reinserção numa vida social e profissional activa, perspectivando-se a possibilidade de a manutenção da liberdade favorecer tal desiderato.


Sempre que o julgador formular um juízo de prógnose favorável, à luz de considerações de prevenção especial acerca da possibilidade de ressocialização, deverá deixar de decretar a execução da pena.
Estão aqui em questão, não considerações sobre a culpa, relativos à determinação da medida da multa, mas prognósticos acerca das exigências mínimas de prevenção. O que está em causa, depois de escolhida a pena detentiva é determinar se existe a esperança fundada de que a socialização em liberdade pode ser alcançada.
Existe pois uma expectativa positiva de que a mera ameaça da pena e a censura do facto bastem para atingir tal desiderato.

Assim, a relativa diminuição do grau de ilicitude e o menor grau de culpa, embora não se possam ter por consideráveis, permitem, na sua apreciação conjugada e numa perspectiva também ela de avaliação global do facto e da necessidade de censura, concluir por uma menor exigência de prevenção e como tal uma menor necessidade da pena a aplicar, considerando-se adequada uma pena de 3 anos de prisão por as exigências concretas de prevenção não reclamarem uma pena fixada na moldura prevista para o crime que formalmente se mostra integrado que deverá ser suspensa na sua execução condicionada ao acompanhamento pelo IRS e pelo período máximo de suspensão permitido.

4. Pelo exposto, acordam os juízes em dar provimento ao recurso e, em consequência, determinam que se adite à matéria de facto provada da decisão o facto referido no ponto 3.1. desta decisão e condenam o arguido como autor do crime p.p. pelo art.º 21º, n .º1 DL 15/93 de 22.1 e 72º e 73º CP, na pena, especialmente atenuada, de 3 anos de prisão suspensa na sua execução por 5 anos, com adequado acompanhamento em regime de prova, nos termos do artigo 53º, nº 1 do Código Penal.
Sem custas.

Elaborado, revisto e assinado pela relatora Filomena Lima e pelos Sr.s Juízes Desembargadores-Adjuntos Ana Sebastião e Simões de Carvalho, sob a presidência do Exm.º Desembargador Pulido Garcia.