Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
3867/2005-6
Relator: FÁTIMA GALANTE
Descritores: IMPUGNAÇÃO PAULIANA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 06/02/2005
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Sumário: 1 - Os actos que envolvam diminuição da garantia patrimonial do crédito e não sejam de natureza pessoal podem ser impugnados pelo credor, se concorrerem as circunstâncias seguintes: a) se o crédito anterior ao acto ou, sendo posterior, ter sido o acto realizado dolosamente com o fim de impedir a satisfação do direito do futuro credor; b) resultar do acto a impossibilidade, para o credor, de obter a satisfação integral do seu crédito, ou agravamento dessa impossibilidade.
2 - O acto oneroso só está sujeito à impugnação pauliana se o devedor e o terceiro tiverem agido de má fé; se o acto for gratuito, a impugnação procede, ainda que um e outro agissem de boa fé. Entende-se por má fé a consciência do prejuízo que o acto causa ao credor.
Decisão Texto Integral:
ACORDAM NA 6ª SECÇÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA
I – RELATÓRIO
BANCO, demanda os RR., V, M, C e P, pedindo que seja decretado que a transmissão a favor dos RR. Cátia e Pedro da fracção autónoma designada pela letra "Z", correspondente ao 1° andar esquerdo, do prédio sito na Rua..., lote 1, em Queluz, descrito na Conservatória do Registo Predial de Queluz, com o número 02375/150989, inscrito na respectiva matriz sob o artigo 4495°, não tem eficácia relativamente à A., podendo esta executar aquela fracção autónoma para satisfação do seu crédito relativamente aos RR. V e M. Eventuais transmissões daquele bem, e logo que a presente acção esteja registada, não terão igualmente eficácia relativamente à A. enquanto esta não vir satisfeito o referido crédito.
Como fundamento do seu pedido a A. alegou que os RR V e M devem à A. quantia superior a 3 285 714$00. Sustenta igualmente que em data muito posterior à constituição e vencimento daquele seu crédito relativamente aos RR. V e M, estes doaram aos RR. C e P, filhos daqueles, a aludida fracção autónoma, sendo que desconhecem àqueles primeiros RR. outros bens para ressarcir o referido crédito da A. Alegaram também que os RR. V e M transmitiram o aludido andar aos seus filhos com a única intenção de o salvaguardarem e de causarem à A. prejuízo, na medida em que por essa forma a A. viu-se impossibilitada de ressarcir o seu crédito relativamente aos RR. V e M , os quais tinham disso perfeito conhecimento.

Regular e pessoalmente citados para contestar, os RR alegam em contestação que a doação em causa nos presentes autos foi efectuada sem intenção de defraudar a A., sendo que os RR. C e P ignoram se existe o alegado crédito da A. relativamente aos dois outros RR. Alegam também que a A. poderia ter recuperado o crédito através da execução do património de outros devedores das obrigações a que se faz referência na petição inicial, sendo certo que o R. V desconhece se aqueles devedores procederam já cumprimento das mesmas e os RR V e M apenas tiveram conhecimento que o crédito da A. não havia sido pago aquando do respectivo vencimento em data posterior à doação em causa. Sustentam igualmente que na data de tal doação os RR. V e M tinham rendimentos e bens suficientes para pagar o alegado débito que têm relativamente à A.
Finalmente, os RR. alegam ainda que sobre o aludido andar incide uma hipoteca, constituída em data anterior à mencionada doação, sendo o valor venal de tal andar inferior ao valor da hipoteca e juros, pois estão em atraso amortizações, e cifrando-se o valor venal do mesmo andar equivalente ao valor da mencionada hipoteca à data da doação referida.
Nestes termos, concluíram pedindo que a presente acção seja julgada improcedente, por não provada, e, por isso, os RR. absolvidos do pedido

Designou-se dia para a realização de audiência preliminar, sem que fosse possível nela alcançar acordo entre as partes, motivo pelo qual foi elaborado saneador e indicados os factos assentes e os que constituíam a base instrutória.

Realizada audiência de julgamento, foi proferida sentença que julgou parcialmente procedente a acção e, em consequência, julgou ineficaz relativamente à A. a doação efectuada no dia 4 de Maio de 1995, na qual os RR. V e M doaram aos RR. C e P a fracção autónoma designada pela letra "Z", correspondente ao 1° andar esquerdo, do prédio sito na Rua..., lote 1, em Queluz, declarando que eventuais transmissões da apontada fracção autónoma doada são ineficazes relativamente à A. enquanto esta não vir satisfeito o seu referido crédito, observados que sejam os devidos preceitos do registo predial.

Inconformados com a sentença, dela apelaram os RR, que formularam, no essencial, as seguintes conclusões:
1. Quando da doação objecto da presente impugnação - 4 de Maio de 1995 - o valor do imóvel era de Esc: 20.000.000$00;
2. Sobre tal imóvel impedia então uma hipoteca do valor de 25.400.000$00;
3. Por isso a doação objecto de impugnação não diminui a garantia patrimonial do ora Apelado;
4. Ao assim não entender violou a douta sentença recorrida o art. 610° do Código Civil;
5. Os ora Apelantes provaram que o Apelante V auferia rendimentos do trabalho;
6. Tais rendimentos, dada a sua normal continuidade, excediam o valor do imóvel objecto de impugnação, este com referência à data do acto impugnado, ser negativo.

Contra-alegou a A. que concluiu:
1. Está provado o Quesito 5º da base instrutória: "Não são conhecidos aos RR VeI quaisquer bens que possam ressarcir a A...”;
2. A fracção "Z" doada pelos Apelantes em 04.05.95, encontrava-se, em tal data, onerada como um hipoteca para garantia de um empréstimo contraído em 20.04.94, no montante de 16.000.000$00, até ao montante máxi mo 24.500.000$00 e não com uma hipoteca de 24.500.000$00;
3. O valor comercial da referida fracção à data da doação impugnada - 4.05.95 - era, pelo menos, de cerca de 20 000 000$00;
4. Donde, à data da doação impugna era possível a satisfação dos créditos da A., ora Apelada, sobre os RR. execução judicial da fracção doada;
5. Ainda que nada tivesse sido pago, o banco mutuante/credor hipotecário apenas detinha um crédito correspondente ao somatório do capital (conceda-se que fosse o inicial de 16.000 contos) com juros calculados desde a concessão do mútuo à taxa contratada de 14,25%/ano até 04.05.95, os quais perfazem Esc: 2.280.000$00; a aplicação da sobretaxa de 4% por eventual mora agravaria tal quantia apenas em 640 contos;
6. É, assim, manifesto, que ao doarem a referida fracção, os RR diminuíram garantia patrimonial da Autora, ora Apelada.;
7. Quanto aos rendimentos do trabalho auferidos pelo R. Vasco, resultou provado nos autos, apenas que em Maio de 1995 o referido R. exercia uma actividade profissional pela qual auferia anualmente Esc: 1.325 000$00 i.é. Esc: 94 contos mensais;
8. Não lograram, assim, os RR. provar o Quesito 10°, no qual se perguntava se em Maio de 1995 os RR Ve M tinham bens e rendimentos suficientes para pagarem as quantias em dívida à Autora.

Corridos os Vistos legais,
                                               Cumpre apreciar e decidir.
São as conclusões das alegações que delimitam o objecto do recurso e o âmbito do conhecimento deste tribunal (arts. 684º, nº 3 e 690º, nº 1 do CPC), pelo que, as questões fundamentais a decidir, respeitam a saber se em face da factualidade adquirida nos autos, é possível considerar verificados os requisitos definidos legalmente para a acção pauliana ser considerada procedente .

II – FACTOS PROVADOS
1. Com data de 13 de Janeiro de 1992, por compra, a favor dos RR. V e M, mostrava-se registada na Conservatória do Registo Predial de Queluz a aquisição da fracção autónoma designada pela letra "2", correspondente ao primeiro andar E, do prédio urbano sito na Rua..., designado por lote um, em Massamá, freguesia de Queluz, concelho de Sintra, descrito na Conservatória do Registo Predial de Queluz com o n° 2 375 da freguesia de Queluz e inscrito na respectiva matriz sob o artigo 4 4950 - teor do documento de fls. 83 a 97 dos autos (alínea a) dos factos assentes}.
2. Com data de 13 de Janeiro de 1992, relativamente ao andar indicado em 3.1.1, mostrava-se registada na Conservatória do Registo Predial de Queluz a favor da Caixa Geral de Depósitos uma hipoteca voluntária para garantia de um empréstimo cujo capital era de PTE. 6.920 000$00, juros e despesas, cifrando-se o montante máximo do capital e acessórios em PTE. 12.283.000$00 - teor do documento de fls. 83 a 97 dos autos {alínea b} dos factos assentes}.
3. Com data de 14 de Fevereiro de 1994, relativamente ao andar referido em 3.1.1., mostrava-se registada na Conservatória do Registo Predial de Queluz a favor do Banco Comercial de Macau, SA., uma hipoteca voluntária para garantia de um empréstimo cujo capital era de PTE. 16.000 000$00, juros e despesas, cifrando-se o montante máximo do capital e acessórios em PTE. 25 400 000$00.
4. O registo referido em 2. foi cancelado em 24 de Junho de 1994 - teor do documento de fls. 83 a 97 dos autos (alinea d) dos factos assentes).
5. Com data de 5 de Maio de 1997, mostra-se registada na Conservatória do Registo Predial de Queluz a favor do Banco Português do Atlântico, SA., a cessâo do crédito mencionado em 3 (al. e) dos factos assentes).
6. Em escrito do qual consta a palavra "letra", no qual foi escrita a data de 20 de Setembro de 1993 como sendo a da sua emissão, Xenix Limitada, declarou que a Citiser pagaria àquela ou à ordem da mesma a quantia de PTE. 620.000$00, até 20 de Outubro de 1993, sendo que no verso de tal escrito os ora RR. V e M apuseram a respectiva assinatura antecedida da expressão "por aval ao sacador" - teor do documento de fls. 157 dos presentes autos. Em outro escrito do qual consta igualmente a palavra "letra", no qual foi escrita também a data de 20 de Setembro de 1993 como sendo a da sua emissão, Xenix, Limitada, declarou que a Interseguros, Lda., pagaria àquela ou à ordem da mesma a quantia de PTE. 820.000$00 até 20 de Outubro de 1993, sendo que no verso de tal escrito os ora RR. V e M apuseram a respectiva assinatura antecedida da expressão "por aval ao sacador" - teor do documento de fls. 158 dos presentes autos (resposta aos quesitos 1º e 2º da base instrutória).
7. Em escrito do qual consta a palavra "letra", no qual foi escrita a data de 30 de Setembro de 1993 como sendo a da sua emissão, Xenix, Lda, declarou que a C, Limitada, pagaria àquela ou à ordem da mesma a quantia de 280.000$00, até 31 de Outubro de 1993, sendo que no verso de tal escrito os ora RR.. V e M apuseram a respectiva assinatura antecedida da expressão "por aval ao sacador" - teor do documento de fls.. 159 dos presentes autos (resposta ao quesito 2º da base instrutória).
8. Em escrito em que consta a palavra "livrança", no qual foi escrita a data de 31 de Outubro de 1993 como sendo a da sua emissão, a Xenix Limitada, declarou que no dia 15 de Dezembro de 1993 pagaria à ora A.. ou à ordem desta a quantia de PTE.. 280.000$00, sendo que tal escrito encontra-se assinado no rosto pela gerência da Xenix e do verso dele constam as assinaturas dos ora RR.. V e M antecedidas pela expressão "por aval à firma subscritora" - teor do documento de fls. 160 dos presentes autos (resposta ao quesito 3º da base instrutória).
9. Fundada nos escritos indicados em 6, 7 e 8., a ora A. instaurou execução contra, entre outros, os ora RR. V e M, sendo que estes foram naquele processo citados em 27 de Novembro de 1995 - teor do documento de fls. 153 a 160 dos autos.
10. Em data anterior a 4 de Maio de 1995 os RR. V e M sabiam que as quantias indicadas nos escritos referidos nas respostas aos quesitos 6., 7. e 8 ainda não haviam sido entregues aos portadores de tais títulos (resposta ao quesito 4º da base instrutória).
11. Por escritura publica outorgada no 2º Cartório Notarial de Sintra, intitulada de "doação", datada de 4 de Maio de 1995, os RR. V e M, por si e como representantes dos RR. C e P, declararam que por conta da sua quota disponível doavam a estes, em comum, a fracção autónoma indicada em 1 - teor do documento de fls. 24 a 26 dos autos (alínea f) dos factos assentes).
12. Com data de 2 de Junho de 1995, por doação, a favor dos RR. C e P, mostra-se registada na Conservatória do Registo Predial de Queluz a aquisição da fracção autónoma referida 1 - teor do documento de fls. 83 a 97 dos autos (alínea g) dos factos assentes).
13. Os RR. V e M efectuaram a doação aludida em 11 com a intenção de salvaguardarem o andar mencionado em 1 e de impossibilitarem a A. de satisfazer o seu indicado crédito (resposta aos quesitos 6º e 7º da base instrutória).
14. Em 4 de Maio de 1.995 o R. V exercia uma actividade profissional remunerada enquanto técnico de contas, tendo relativamente a 1995 declarado para efeitos de IRS o rendimento anual ilíquido de PTE. 1.325.000$00 - resposta aos quesito 10º da base instrutória.
15. Relativamente ao mencionado andar, com data de 5 de Maio de 1998, enquanto provisória por natureza e por duvidas, mostra-se registada a favor da A. a penhora para cobrança da quantia exequenda de PTE. 2.504.345$00 aos RR. V e M entre outros - teor do documentos de fls. 83 a 97 dos autos (alínea h) dos factos assentes).
16. Em 9 de Julho de 1998 foram removidas as duvidas aludidas em 15 - teor do documento de fls. 83 a 97 (al. i) dos factos assentes).
17. O valor de mercado do andar referido em 1. era de cerca de PTE. 26.000.000$00 em 1999 (resposta ao quesito 11º da base instrutória);
18. O valor de mercado do andar referido em 1. era pelo menos de cerca de PTE. 20.000 000$00 em meados de 1995.
19. Não são conhecidos aos RR. V e M quaisquer bens que possam ressarcir a A. das quantias indicadas em 6, 7 e 8. (resposta ao quesito 5º da base instrutória).
20. A R. C nasceu no dia 8 de Julho de 1987 e é filha dos RR. V M - teor do documento de fls.22 (alínea j) dos factos assentes).
21. O R. P nasceu no dia 25 de Fevereiro de 1991 e é filho dos RR. V e M - teor do documento de fls. 23 (al. l) dos factos assentes).

III - O DIREITO
1. Da acção de impugnação pauliana
A presente acção de impugnação pauliana rege-se, em termos de legislação aplicável, pelo preceituado pelos arts. 610º a 618º, do Código Civil. Com este tipo de acção visa-se apurar da existência (temporal) de um crédito e da correspondente dívida, que recaía sobre aquele ou aqueles que dispuseram, por acto gratuito ou oneroso, de determinados bens, através dos quais se pretendia obter a satisfação do crédito, e cuja cobrança foi afectada ou posta em crise por aquele acto.
Com a acção pauliana, procura-se a eliminação do prejuízo causado com o acto impugnado, facilitando a impugnação de actos lesivos dos interesses dos credores, e levados a cabo pelos respectivos devedores, consistindo, assim, num "simples meio conservatório da garantia patrimonial[1].
Como refere Menezes Cordeiro, o "escopo da acção pauliana reside na manutenção da garantia patrimonial dos credores. Esta efectiva-se, por regra, sobre bens do devedor ; apenas ocorrências particulares levam à possibilidade de agredir  bens de terceiro" [2].
Os bens alienados não chegam a regressar ao património do devedor, conservando-se no património do terceiro (adquirente ou não), que é - à face de todos (mesmo do credor impugnante) - o seu proprietário: "o bem não reentra no património do devedor alienante nem mesmo para o limitado efeito de ser aí executado pelo credor que impugnou procedentemente o acto" [3].
O que se permite é que o credor impugnante (reunidos os requisitos deste instituto jurídico), afecte a esfera jurídica (o património) do terceiro, de forma a satisfazer o seu crédito sobre o devedor alienante, ou praticar os actos conservatórios autorizados por lei aos credores .
No dizer de Maria Patrocínio Paz Ferreira,[4]embora o acto de alienação impugnável através da pauliana produza o seu efeito típico que é a transmissão da propriedade da coisa com eficácia “erga omnes”, não desenvolve, em relação aos credores com direito a impugnarem o acto, o efeito indirecto que lhe está normalmente associado de subtrair o bem à garantia dos credores do alienante".
Assim se constata que não está em causa a anulação de qualquer acto, pois o de disposição é - por si só – válido, sendo certo que existe a preocupação de evitar que o acto de transmissão seja sacrificado para além do limite necessário para a satisfação do credor impugnante, tendo presente um critério de economia jurídica e de máximo aproveitamento do negócio jurídico.
Através da acção de impugnação pauliana procura-se indemnizar o credor impugnante à custa dos bens ou valores adquiridos pelos terceiros, não podendo tais bens ou valores ser atingidos senão na medida do necessário ao ressarcimento do prejuízo sofrido pelo credor, tratando-se, portanto, de uma acção pessoal com escopo indemnizatório (e não de uma acção de declaração de nulidade ou de anulação, ou de uma acção resolutória ou rescisória dos negócios realizados pelo devedor).
Vale isto por dizer que - para proteger o interesse dos credores perante o acto de um devedor que provoca a impossibilidade de satisfação do seu direito por via coactiva, ou o agravamento dessa impossibilidade - não se torna necessário destruir o acto prejudicial (a transmissão), bastando "suprimir o efeito indirecto da alienação que se projecta na esfera jurídica daqueles e que consiste na subtracção do bem à garantia patrimonial dos credores" [5].

2. Dos pressupostos
Identifiquemos agora os pressupostos da acção pauliana, tal qual resultam dos artigos 610º a 612º, do Código Civil. São eles :
- acto praticado pelo devedor que não seja de natureza pessoal;
- acto esse que provoque, para o credor, a impossibilidade de obter a satisfação integral do seu crédito ou o agravamento dessa responsabilidade;
- existência de má fé ou, simplesmente, um acto gratuito;
- e existência de um crédito anterior ao acto;
- ou, existência de um crédito posterior, quando o acto tenha sido efectuado dolosamente com o fim de impedir a satisfação do direito do futuro credor[6].
Estabelece, portanto, o art. 610º do CC, a possibilidade de o credor impugnar actos que envolvam a diminuição da garantia patrimonial do seu crédito (por redução do activo – por exemplo, por venda, doação, ou por renúncia a direitos; ou por aumento do passivo - por exemplo, por assunção de dívida), que não sejam de natureza pessoal (casamento, divórcio, ou adopção), desde que o crédito seja anterior ao acto, ou sendo posterior, tenha sido realizado com o fim de dolosamente impedir a satisfação do direito do futuro credor; e resulte do acto (nexo de causalidade) a impossibilidade para o credor, de obter a satisfação integral do seu crédito ou o agravamento dessa impossibilidade (com a substituição de um bem, por outro de natureza mais volátil ou deteriorável).
Tratando-se de um acto oneroso (e para além da prova do montante das dívidas - art. 611º, 1ª parte, CC), cabe ao Autor (credor), demonstrar a má fé do devedor e a do terceiro adquirente (art. 612º, nº 1, CC), entendida esta como "a consciência do prejuízo que o acto causa ao credor" (art. 612º, nº 2, CC).
Quer dizer, para além da regra segundo a qual os bens do devedor respondem pelas suas dívidas (art. 601º, CC) e da livre disponibilidade dos bens (com consagração expressa no art. 62º, nº 1, da Constituição da República Portuguesa), uma vez que estão em jogo interesses de terceiros (com relevo para a propriedade e a autonomia privada), entendeu o legislador num desvio a elas, sujeitar o terceiro à impugnação pauliana, mas só o fazendo com um fundamento sério, que tem a ver com a violação de princípios fundamentais da ordem jurídica, in casu, a boa fé.
Em compensação, a má fé é penalizada. A má fé do devedor e terceiro é apresentada, pelo menos formalmente, por igual, visto que não se trata, apenas, de uma fraude do devedor com conhecimento do terceiro, mas antes de ambos terem atentado contra a boa fé, portanto contra determinados vectores fundamentais da ordem jurídica, sendo determinante, para se poder considerar preenchido o requisito da má fé, que o devedor e o terceiro tenham a consciência do prejuízo que a operação causa ao credor, sendo, para tanto, bastante a mera representação da possibilidade da produção do resultado danoso em consequência da conduta do agente.
Por outro lado, refira-se que, quanto ao devedor e ao terceiro, nos termos da segunda parte do art. 611º, CC, cabe-lhes o ónus de provar que o obrigado tem bens penhoráveis de igual ou maior valor.

3. Do caso concreto
No caso dos autos, estamos perante um acto que não pode considerar-se de natureza pessoal: uma doação de imóvel.
De facto, embora a lei não tenha definido claramente "acto de natureza patrimonial", a verdade é que afastou os actos que, sendo patrimoniais, estejam, no entanto estreitamente ligados à pessoa do devedor: seria o caso de, por exemplo, de uma transmissão de bens prejudicar os credores, mas ter sido feita para assegurar necessidades legítimas do transmitente/devedor, como a obtenção de fundos para submeter um familiar a tratamento médico [7].
Importa agora verificar se o crédito do Autor é anterior ao acto que se pretende colocar em causa.
Este requisito explica-se pela circunstância de que "os credores só podem contar com os bens que existam no património do devedor à data da constituição da dívida e com os que nele entrem depois", sendo que, por outro lado, "resultaria perturbada a segurança do comércio jurídico, desde que se admitisse a impugnação de certos negócios com fundamento em actos posteriores de alguns dos seus outorgantes" [8].

Atenta a factualidade apurada, é manifesta a verificação dos apontados requisitos no caso vertente.
In casu, em conformidade com as regras específicas de repartição do ónus probatório nas acções de impugnação pauliana - ao credor incumbe provar o montante do passivo e ao devedor ou terceiro interessado na manutenção do acto provar que o obrigado possui bens penhoráveis de igual ou maior valor (art. 611º do CC).
Ora, está provada a existência do crédito por banda da A. e a sua anterioridade em relação ao acto de disposição a favor dos 3º e 4º RR.
A obrigação dos Recorrentes resulta de aval prestado nas letras acima identificada, sendo certo que a "responsabilidade do avalista não é subsidiária da do avalizado. Trata-se de uma responsabilidade solidária. O avalista não goza do benefício da excussão prévia, mas responde pelo pagamento solidariamente com os mais subscritores"[9].
E o acto cuja impugnação é efectuada nesta acção constitui um contrato de doação: na situação em apreço está em causa a doação efectuada no dia 4 de Maio de 1995, no qual o RR. V e M doaram aos RR. C e P a fracção autónoma identificada nos autos.
Estamos, pois, perante um acto jurídico gratuito, do qual resulta, pela sua própria natureza, a diminuição do acervo patrimonial dos RR. V e M, sendo que este acto é posterior à da constituição do débito, até porque, como ficou provado, em data anterior a 4 de Maio de 1995 (data da celebração da escritura de doação) os RR. Ve M sabiam que as quantias indicadas nas letras que estes avalizaram, ainda não haviam sido entregues aos portadores de tais títulos que se venceram no ano de 1993.
Por outro lado, da referida doação resulta a perda, que se afigura total, dessa garantia do património dos devedores.
Alegam os Apelantes que não estão preenchidos os requisitos da impugnação pauliana uma vez que ao tempo da doação já não existia a garantia patrimonial do Apelado, isto porque o valor do imóvel era em 1995 de 20.000.000$00 e a hipoteca que impendia sobre o mesmo era de 25.400.000$00.
Porém este argumento não pode proceder.
Seja como for, a doação diminuiu o acervo patrimonial dos Apelantes e com isso impossibilita ou dificulta a satisfação do crédito, por banda do credor, sendo certo, por outro lado, que nada impede que o crédito hipotecário não esteja ou não venha a ser liquidado.
Ademais, muito embora o aludido andar estivesse sujeito a hipoteca registada, ao contrário do que pretendem agora fazer crer os Apelantes, o crédito garantido por tal hipoteca mostrava-se, em 1995, inferior ao valor venal do mesmo andar, o que significa que o produto da venda deste possibilitaria à A. ressarcir, ao menos em parte, o seu crédito relativamente aos RR. V e M, facto que deixou de suceder após a mencionada doação, pois àqueles RR. não são conhecimentos quaisquer bens.
Aliás, de acordo com a matéria assente, a fracção "Z" doada pelos Apelantes em 04.05.95, encontrava-se, em tal data, onerada como um hipoteca para garantia de um empréstimo contraído em 20.04.94, no montante de 16.000.000$00, até ao montante máximo 24.500.000$00 e não, como os Apelantes alegam, com uma hipoteca de 24.500.000$00. Por outro lado, o valor comercial da referida fracção à data da doação impugnada - 4.05.95 - era, pelo menos, de cerca de 20 000 000$00, pelo que, à data da doação impugnada era possível a satisfação dos créditos da Apelada.
Na versão dos Apelantes quanto pior a sua situação patrimonial, menor a justificação para a impugnação do acto.
Por último constata-se que os rendimentos auferidos pelo R. V são de tal modo diminutos (rendimento anual ilíquido de 1.325.000$00) que dificilmente asseguram a subsistência do seu agregado familiar, não se conhecendo outros que possam ressarcir o crédito da A., como também resulta demonstrado.
            De onde se conclui, tal como a sentença recorrida, que sendo o acto de diminuição da garantia patrimonial posterior à constituição da dívida, pelo facto de estarmos perante um acto não oneroso, que cai na alçada do disposto no art. 612º, nº 1, 2ª parte do CC, não se mostra necessária a prova da existência do dolo, isto é, do artifício utilizado pelo devedor, com a intenção ou consciência de induzir em erro o credor, exigido, nos termos do art. 610º, al. a) do CC.

Por tudo o exposto, verifica-se que estão reunidos os pressupostos essenciais da impugnação pauliana, em casos de transmissão gratuita, posterior ao crédito, pelo que não merece censura a sentença recorrida, que deve manter-se.

IV – DECISÃO
Termos em que se acorda em julgar improcedente a apelação, confirmando-se a sentença recorrida.
Custas a cargo dos Apelantes.
Lisboa, 2 de Junho de 2005.
(Fátima Galante)
(Ferreira Lopes)
(Manuel Gonçalves)
__________________________________________________________________________-

[1] Menezes Cordeiro, Impugnação Pauliana, Parecer in CJ, 1992, 3, pag. 60.
[2] Menezes Cordeiro, Da Boa Fé no Direito Civil, I, Almedina, 1985, pag. 496.

[3] Maria do Patrocínio Paz Ferreira, Natureza Jurídica da Impugnação Pauliana, Revista da Banca, nº 21, Janeiro/Março 1992, pag. 90; Ac. STJ 14/01/1997, Torres Paulo, CJSTJ, 1, 52.
[4] Paz Ferreira, ob. cit., pag. 91.
[5] M.P.Paz Ferreira, ob. cit., pag. 90.

[6] Sobre os pressupostos da acção pauliana vide Menezes Cordeiro, Impugnação Pauliana, Parecer, in CJ, 1992, T III-58.

[7] Menezes Cordeiro, Da Boa Fé no Direito Civil, I, Almedina, pag. 497.
[8] Almeida Costa, ob. cit., pag. 594 ; Antunes Varela, Das Obrigações..., cit., pag. 438-439.
[9] Ferrer Correia, in "Lições de Direito Comercial", Reprint, Lisboa, 1994, pag. 526.