Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
14981/20.4T8LSB.L1-2
Relator: ARLINDO CRUA
Descritores: MEIOS DE PROVA
IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
CONVICÇÃO
DEPOIMENTO
ACIDENTE DE VIAÇÃO
IMPREVISIBILIDADE
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 02/22/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: I - Na função de reapreciação dos meios de prova, o tribunal de recurso deve evitar alterações aos concretos pontos de facto impugnados, fixados na decisão revidenda, quando, no pleno funcionamento do princípio da livre apreciação das provas, não seja possível concluir, de forma sustentada, convicta e segura, pela existência de erro na apreciação sindicada;
II – ou seja, só devem operar alterações na matéria factícia quando seja possível concluir, com necessária segurança e solidez, ter ocorrido erro na apreciação e valoração dos concretos pontos factuais impugnados;
III – pelo que, apesar da percepção de inconsistências, estranhezas e distonias decorrentes da actividade probatória produzida, urge valorar e ponderar se estas são de molde a macular os depoimentos que sustentaram a fixação da matéria factual questionada, ou se, ao invés, e apesar daquelas, não se revelam como suficientes e bastantes para lograrem tal desiderato;
IV – donde, questionando-se a (in)existência de acidente de viação, urge aferir se perante a prova produzida ainda é possível concluir por factualidade tradutora de um evento súbito e imprevisto, ou se, em contraponto, perante o macular desta, não é possível concluir naqueles termos, por falência da factualidade tradutora do sinistro com aquelas vestes de imprevisibilidade.
Sumário elaborado pelo Relator – cf., nº. 7 do artº. 663º, do Cód. de Processo Civil
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: ACORDAM os JUÍZES DESEMBARGADORES da 2ª SECÇÃO da RELAÇÃO de LISBOA o seguinte [1]:
           
I - RELATÓRIO
1 ES………….., LDA., e NA………………., S.A., ambas com sede na ……………………, Lisboa, intentaram a presente acção declarativa sob a forma de processo comum contra:
- PPP……………., residente na Estrada …………………, Portugal ;
- S…………., S.A., com sede na Avenida…………….., Lisboa e;
- VI………………, S.A., com sede na Avenida …………….., Lisboa,
Formulando o seguinte petitório:
“- seja a ré T………….. condenada a pagar às autoras a quantia 41.819,99€ e o respectivo IVA, actualmente no montante de 9.618,60€ respeitante ao valor necessário à reparação da embarcação propriedade da Autora Na………….;
- seja a ré T……………. condenada a pagar à autora ES……………., Lda., a título de lucros cessantes, uma indemnização no valor de 100€ (cem euros) diários devidos desde a data do sinistro (04/03/2019) pela privação da utilização da embarcação e perda de facturação na actividade marítima turística até se verificar a total reparação da referida embarcação, sendo os vencidos desde 04/03/2019 até 05/05/2020, no valor de 42.700,00€ (quarenta e dois mil e setecentos euros)
Subsidiariamente e para o caso do pedido anterior não proceder:
- seja a ré Vi………… condenada a pagar à segunda autora ES………….., Lda., a quantia 41.819,99€ e o respectivo IVA, actualmente no montante de 9.618,60€ respeitante ao valor necessário à reparação da embarcação propriedade da Autora Na………,
- seja a ré Vi………… condenada a pagar à segunda autora ES…………., Lda., a título de lucros cessantes, uma indemnização no valor de 100,00€ (cem euros) diários devidos desde a data do sinistro (04/03/2019) pela privação da utilização da embarcação e perca de facturação na actividade como operador Marítimo-Turismo até se verificar a total reparação da referida embarcação, sendo os vencidos desde 04/03/2019 até 05/05/2020, no valor de 42.700,OO€ (quarenta e dois mil e setecentos euros)
Subsidiariamente e para o caso dos pedidos anteriores não procederem:
- seja o réu PPP ………………….. condenado a pagar às autoras, a quantia 41.819,99€ e o respectivo IVA, actualmente no montante de 9.618,60€ respeitante ao valor necessário à reparação da embarcação propriedade da Autora Na………..,
- seja o réu PPP ……………… condenado a pagar à segunda autora Es……………………, Lda., a título de lucros cessantes, uma indemnização no valor de 100,00€ (cem euros) diários devidos desde a data do sinistro (04/03/2019) pela privação da utilização da embarcação e perca de facturação na actividade como operador Marítimo-Turismo até se verificar a total reparação da referida embarcação, sendo os vencidos desde 04/03/2019 até 05/05/2020, no valor de 42.700,00€ (quarenta e dois mil e setecentos euros)”.
Para tanto, alegaram, em resumo, o seguinte:
- a autora Na…….. é proprietária da embarcação X___ e a autora ES……….. locatária da mesma ;
- no dia 4 de Março de 2019 ocorreu um acidente envolvendo esta embarcação e o veiculo de matricula ..._..._LA, conduzido por PPP …………. ;
- este, ao realizar uma manobra de marcha atrás embateu na embarcação projectando-a para a água e causando-lhe danos substanciais ;
- a responsabilidade civil emergente da circulação do veiculo de matricula LA encontrava-se transferida para a Companhia de Seguros T………….. ;
- por seu turno, a autora ES…….. havia celebrado um contrato de seguro de responsabilidade civil com cobertura de danos próprios referido à embarcação ;
- tendo as autoras reclamado junto das companhias seguradoras a reparação dos danos sofridos, não lograram obter êxito.
2 – Citada a Ré S……………, S.A., veio apresentar contestação, alegando, em súmula, o seguinte:
· aceita a existência e validade do contrato de seguro do ramo automóvel referido ;
· todavia, não aceita estar constituída no dever de indemnizar porquanto no seu entender, e após ter efectuado averiguações internas e externas, o sinistro em discussão não ocorreu conforme o participado ;
· com efeito, tal sinistro não resultou de evento súbito e imprevisto, mas sim forjado com a intenção expressa de retirar benefícios financeiros à custa da seguradora Ré ;
· efectivamente, o que terá sucedido é que o terá sucedido é que o veículo LA estaria a tirar e colocar barcos na água e que a embarcação em causa estaria mal presa e se libertou, acabando por cair à água ;
· e, como as operações de carga e descarga estão excluídas por responsabilidade civil, e também estavam excluídas pelo seguro do barco que só pode ser accionado em navegação, pelo que havia de engendrar uma forma de alguém pagar os prejuízos.
Conclui, no sentido da total improcedência da acção.
3 – Devidamente citada, a Ré Vi…………….., S.A. apresentou contestação, alegando, em resumo, que:
- aceita ter celebrado o contrato de seguro em causa ;
- todavia, tal sinistro está excluído do âmbito da cobertura da apólice ;
- estamos perante um seguro obrigatório de responsabilidade civil das embarcações de recreio com a cobertura facultativa de danos próprios ;
- estando essencialmente em causa acidentes ou acontecimentos de mar, decorrentes da utilização de embarcações de recreio ;
- ora, o acidente não ocorreu em consequência da utilização da embarcação segura ;
- pelo que não estava em causa qualquer risco próprio da navegabilidade da embarcação ;
- acresce, ainda, que o seguro celebrado entre a 1ª Autora e a ora Ré não prevê o direito do segurado a qualquer indemnização pela privação do uso da embarcação segura ou a lucros cessantes decorrentes da utilização da mesma.
Conclui no sentido da sua total absolvição.
4 – O Réu PPP ………….. apresentou igualmente contestação, excepcionando a sua ilegitimidade e impugnando a versão factual aduzida pelas Autoras.
5 – Conforme despacho datado de 25/10/2021, determinou-se a notificação das Autoras para, querendo, se pronunciarem acerca da matéria de ilegitimidade passiva invocada pelo 1º Réu.
6 – Designada data para a realização da audiência prévia, veio esta a ocorrer, conforme acta de 05/07/2022, no âmbito da qual fo(i)(ram):
· fixado o valor da acção ;
· proferido saneador stricto sensu ;
· apreciada a invocada excepção dilatória de ilegitimidade do Réu PPP …………., no sentido da sua procedência, determinando-se a sua absolvição da instância ;
· fixado o objecto do litígio: Direito das autoras a serem indemnizadas pelos danos sofridos em consequência do acidente ocorrido no dia 4 de Março de 2019, no quadro da responsabilidade civil extracontratual ou aquiliana e, subsidiariamente, no quadro da responsabilidade civil contratual ;
· foram fixados os factos pertinentes para a resolução do litígio, quer adquiridos por acordo, quer provados por documentos ;
· fixados os temas da prova:
- No dia 04.08.2015, as Autoras, subscreveram e assinaram um instrumento contratual que denominaram de contrato de locação tendo por objecto a embarcação identificada em A) , com o conteúdo constante do documento junto a fls. 21 verso/22, que se dá por reproduzido;
- A referida embarcação, após ter sido alvo de uma profunda reparação e modernização com instalação de nova electrónica, reparação total do motor, colocação de novos colectores, palamentas, pinturas, etc, ficou em estado novo;
- Após o termo dessa profunda reparação, no dia 04.03.2019 a embarcação em referência foi colocada junto à grua eléctrica da Marina do Parque das Nações - Expo - Lisboa, para vir a ser colocada dentro de água na manhã seguinte para realização de testes de água;
- A embarcação estava colocada em cima de um reboque;
- A grua eléctrica encontrava-se junto ao parque de estacionamento da Marina do Parque das Nações e perto da amurada da marina.
- Nesse dia 04/03/2019, pelas 20:00, ou seja, já bem depois do ocaso (nesse dia às 18:32), o 1º réu ao conduzir o veículo automóvel todo-o-terreno, de marca Nissan, modelo Terrano, com a matrícula …-….-LA, e ao realizar uma manobra de marcha atrás, fez com que a viatura que conduzia fosse embater na embarcação X___ da Autora NA……….., LDA., provocando, com tal embate a sua projecção que a fez galgar o limite da amurada tendo caído para dentro de água;
- O reboque não acompanhou a queda da embarcação;
- Na altura deste acidente a maré estava vazia pelo que a queda foi de uma altura de cerca de 4 metros, sendo que, naquele momento e tendo em consideração a maré vazia, a profundidade da água era de cerca de 20 a 40 cms;
- De imediato e com a ajuda de dois pescadores e de um funcionário do ES……………, que estavam no local no momento do acidente, conseguiram resgatar a referida embarcação da água, com recurso à grua;
- A embarcação em virtude da queda referida sofreu danos no Casco, Convés, Consola, Tejadilho, Flutuadores, Parte Mecânica, Motor e Coluna (a coluna ficou completamente destruída), Parte Eléctrica e Electrónica, o rádio e a sonda saltaram do barco (o Rádio foi descoberto dois dias depois no lodo, totalmente inoperacional e sem reparação possível), as antenas partiram-se, parte da palamenta saltou da embarcação, uma parte para dentro de água, outra para as rochas circundantes;
- A segunda autora vai ter de suportar ainda o transporte da embarcação do Parque das Nações, em Lisboa, para Peniche (instalações da empresa FIB___) e de Peniche para o Parque das Nações num valor de 400,00€;
- Desde a altura do acidente que a embarcação se encontra destruída e a autora impossibilitada de desenvolver a sua actividade como operador Marítimo-Turismo;
- A embarcação ia iniciar a sua actividade em Alhandra, já com serviços programados; - Em decorrência da impossibilidade de desenvolver a sua actividade a 1ª autora perde 100,00 euros/dia em receitas;
- Em consequência do acidente o LA sofreu danos na parte traseira e ficou com o vidro traseiro partido ;
· apreciados os requerimentos probatórios ;
· designada data para a realização da audiência final.
7 – Tal audiência veio a realizar-se com total observância do legal formalismo, conforme acta de 28/11/2022.
8 – Posteriormente, foi proferida sentença, datada de 05/04/2023, traduzindo-se a Decisão nos seguintes termos:
“4- Decisão
Por tudo quanto exposto fica, julga-se a acção parcialmente procedente e, em consequência, condena-se a ré Seguros ……………., a pagar às autoras a quantia de 41.819,99 euros acrescida do IVA à taxa em vigor no montante de 9618,60 euros. Custas pelas autoras e 2ª ré, na proporção do decaimento.
Notifique”.
9 - Inconformada com o decidido, a Ré T…………….., S.A. (ora designada G……………….., S.A.) interpôs recurso de apelação, por referência à sentença prolatada.
Apresentou, em conformidade, a Recorrente as seguintes CONCLUSÕES (corrigem-se os lapsos de redacção existentes):
“a) Sobe a presente apelação da douta sentença de fls. , que julgou a presente acção procedente por provada e, em consequência, condenou a recorrente seguradora a pagar à A. e aqui recorrida a quantia de 41.819,99 €, acrescido de IVA de 9.618,60 €.
b) Sendo que a questão que se coloca à apreciação de V. Exas. passa, no entendimento da recorrente, pela interpretação e aplicação do direito em relação à matéria de facto respeitante ao sinistro dos autos.
c) Foram dados como provados, nomeadamente, os factos Q a Z, AA e DD, matéria de facto dos presentes autos.
d) Respeitantes à responsabilidade da eclosão do acidente de viação em discussão.
e) Para tal, a Mma. Juíza “a quo”, baseou-se, única e exclusivamente nos depoimentos fictícios das testemunhas apresentadas pelas recorridas, como resulta da respectiva fundamentação.
f) Desprezando, nomeadamente, os depoimentos das testemunhas da recorrente, T……….., R………….. e José …………...
g) E, ignorando, especialmente, as contradições dos depoimentos das testemunhas PPP ………… e J ……...
h) Resultando das transcrições dos depoimentos de ambas, que é notória a encenação e o encaminhamento dos seus depoimentos no sentido de tentarem o vencimento das novas teses agora apresentadas, em sede de audiência de discussão e julgamento.
i) Isto para além, das restantes testemunhas arroladas pelas recorridas não passarem de meros peões no cenário montado para ludibriar o douto tribunal.
j) Por outro lado, que caso a embarcação estivesse suportada num berço ou num reboque, esta ter caído ao rio, caso seja verdade a tese trazida pelas recorridas, se as rodas não estavam travadas, estamos perante a culpa do lesado.
k) Por isso, devem ser dados como não provados Q, R, S, U, V, X, Z, DD “Ab Initio”, da fundamentação de facto dos presentes autos.
l) E, deste modo, ser a sentença ora em crise revogada e, assim, a recorrente Generali Seguros, absolvida, com as legais consequências”.
Conclui pela procedência do recurso, com a sua consequente absolvição.
10 – As Apeladas/Recorridas apresentaram contra-alegações, nas quais formularam as seguintes CONCLUSÕES (que ora se transcrevem integralmente, corrigindo-se os lapsos de redacção):
“A) No dia 04.08.2015, as Autoras, subscreveram e assinaram um instrumento contratual que denominaram de contrato de locação tendo por objecto a embarcação identificada em A), com o conteúdo constante do documento junto a fls. 21 verso/22, que sedá por reproduzido;
B) A referida embarcação, após ter sido alvo de uma profunda reparação e modernização com instalação de nova electrónica, reparação total do motor, colocação de novos colectores, palamentas, pinturas, etc, ficou em estado novo;
C) Após o termo dessa profunda reparação, no dia 04.03.2019 a embarcação em referência foi colocada junto à grua electrica por ordem e instruções de J ………………, funcionário do Estado na Marina Parque das Nações, para vir a ser colocada dentro de água na manhã seguinte para realização de testes de água.
D) A embarcação estava colocada em cima de uma estrutura designada de berço com rodas
E) A grua eléctrica encontrava-se junto ao parque de estacionamentoda Marina do Parque das Nações e perto da amurada da marina.
F) Nesse dia 04/03/2019, pelas 20:00, PPP …………… ao conduzir o veículo automóvel todo-o-terreno, de marca Nissan, modelo Terrano, com a matrícula …-…-LA, e ao realizar uma manobra de marcha atrás, fez com que a viatura que conduzia fosse embater na embarcação X___ da Autora NA………….., LDA., provocando, com tal embate a sua projecção que a fez galgar o limite da amurada tendo caído para parcialmente dentro de água e parcialmente na parte seca, em cima de pedras que aí se encontravam.
G) O berço acompanhou a queda da embarcação.
H) Na altura deste acidente a maré estava vazia pelo que a queda foi de uma altura de cerca de 4 metros, sendo que, naquele momento e tendo em consideração a maré vazia, a profundidade da água era de cerca de 20 a 40 cms.
I) De imediato, com recurso à grua e a ajuda de dois pescadores que estavam no local no momento do acidente, conseguiram resgatar a referida embarcação da água.
J) A embarcação em virtude da queda referida sofreu danos no Casco, Convés, Consola, Tejadilho, Flutuadores, Parte Mecânica, Motor e Coluna (a coluna ficou completamente destruída), Parte Eléctrica e Electrónica, o rádio e a sonda saltaram do barco, as antenas partiram-se, parte da palamenta saltou da embarcação, uma parte para dentro de água, outra para as rochas circundantes.
K) Desde a altura do acidente que a embarcação se encontra destruída e a autora impossibilitada de desenvolver a sua actividade como operador Marítimo-Turismo.
L) A embarcação ia iniciar a sua actividade em Alhandra.
M) Em consequência do acidente o Jeep sofreu danos na parte traseira e ficou com o vidro traseiro partido.
N) O sinistro ocorreu nos precisos termos em que foi participado;
O) As testemunhas da recorrida T…………., R………….. e José ……………., não falaram verdade no seu depoimento e vieram colocar em causa a veracidade dos testemunhos tão, só do Srº. David, como de todas as outras testemunhas arroladas, que não tinham nenhuma ligação directa com o Estaleiro Naval e que vieram com total clareza, isenção e precisão explicar a forma exacta como aconteceram os factos, sendo de lamentar que isto possa ainda acontecer em Tribunal
P) As testemunhas arroladas pelas recorridas falaram verdade e duas delas são funcionárias do Estado Português
Q) O depoimento da testemunha E…………… arrolado pela Ré Vi…………. e que é perito oficial da Marinha Mercante com diversas certificações como investigador da área marítima e é Inspector de bandeiras para autoridades estrangeiras e perito credenciado pela Câmara Nacional de Peritos, o qual foi totalmente esclarecedor, isento e correcto, não nos podendo esquecer que esta testemunha é perito da Ré Vi………….., tendo o mesmo explicando com total clareza a inércia do acidente e a forma como o berço se movimenta com total facilidade;
R) O tribunal decidiu bem e em conformidade com a prova produzida a qual não deixou qualquer duvida sobre a forma como decorreu o sinistro e os danos causados na embarcação X___
S) Por isso devem manter-se como provados os factos Q, R, S, U, V, X, Z, DD da fundamentação de facto dos presentes autos
T) Face ao exposto deve ser mantida a douta decisão do tribunal a quo, devendo a recorrida ser condenada a pagar ás autoras aqui recorridas a quantia de 41.819,99€ euros acrescido do iva à taxa em vigor no montante de 9.618,60€”.
Conclui, no sentido da total improcedência do recurso, com manutenção da sentença apelada.
11 – O recurso foi admitido por despacho de 06/07/2023, como apelação, com subida imediata, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo.
12 – Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar, valorar, ajuizar e decidir.
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II ÂMBITO DO RECURSO DE APELAÇÃO
Prescrevem os nºs. 1 e 2, do artº. 639º do Cód. de Processo Civil, estatuindo acerca do ónus de alegar e formular conclusões, que:
1 – o recorrente deve apresentar a sua alegação, na qual conclui, de forma sintética, pela indicação dos fundamentos por que pede a alteração ou anulação da decisão.
2 – Versando o recurso sobre matéria de direito, as conclusões devem indicar:
a) As normas jurídicas violadas ;
b) O sentido com que, no entender do recorrente, as normas que constituem fundamento jurídico da decisão deviam ter sido interpretadas e aplicadas ;
c) Invocando-se erro na determinação da norma aplicável, a norma jurídica que, no entendimento do recorrente, devia ter sido aplicada”.
Por sua vez, na esteira do prescrito no nº. 4 do artº. 635º do mesmo diploma, o qual dispõe que “nas conclusões da alegação, pode o recorrente restringir, expressa ou tacitamente, o objecto inicial do recurso”, é pelas conclusões da alegação da recorrente Ré Apelante que se define o objecto e se delimita o âmbito do recurso, sem prejuízo das questões de que o tribunal ad quem possa ou deva conhecer oficiosamente, apenas estando este tribunal adstrito à apreciação das questões suscitadas que sejam relevantes para conhecimento do objecto do recurso.
Pelo que, no sopesar das conclusões expostas, a apreciação a efectuar na presente sede determina o conhecimento das seguintes questões:
1. DA EVENTUAL PERTINÊNCIA DA MODIFICABILIDADE DA DECISÃO PROFERIDA SOBRE A MATÉRIA DE FACTO, nos quadros do artº. 662º, do Cód. de Processo Civil, por referência às indicadas alíneas Q), R), S), U), V), X), Z) e AA) (parte inicial) da matéria factual dada como provada, pugnando-se pela sua consideração como não provada, o que implica a REAPRECIAÇÃO DA PROVA (inclusive da gravada):
2. Seguidamente, tendo por pressuposto a pretendida alteração da matéria de facto a figurar como provada, aferir acerca da SUBSUNÇÃO JURÍDICA EXPOSTA NA DECISÃO RECORRIDA, TENDO EM CONSIDERAÇÃO OS FACTOS APURADOS, o que implica apreciação do ENQUADRAMENTO JURÍDICO DA CAUSA.
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III - FUNDAMENTAÇÃO
A – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
Na sentença recorrida, foi considerado como PROVADO o seguinte (corrigem-se os lapsos de redacção e assinala-se com * os factos objecto de impugnação):
Factos adquiridos por acordo nos termos do art. 574º nº 2 do CPC e provados por documento (fixados em sede de audiência prévia)
A) A Autora NA…………….. SA é a proprietária da embarcação X___, registada na Delegação Marítima de S. Martinho do Porto, sob o número 1496SM5.
B) A autora ES……………… –Lda. contratou com a Ré Vi……….. um seguro marítimo do Ramo Embarcações de Recreio que tem por objecto seguro a embarcação X___ …, titulado pela apólice número ...,
C) Trata-se de um seguro de responsabilidade civil da embarcação em causa com a cobertura facultativa de danos próprios, tudo como melhor consta do documento junto a fls. 23 a 27 e 135 verso a 157 dos autos, cujo teor se dá por reproduzido.
D) O seguro teve o seu inicio em 8/07/2016, válido à data do sinistro.
E) No dia 6 de Março de 2019 foi participado pela 1ª autora à Vi…… um sinistro ocorrido em 4 de Março de 2019 pelas 20:00 horas, na Marina Expo, em Lisboa envolvendo o veiculo de matricula …-…- LA e a embarcação em causa, conforme teor do documento junto a fls. 157 verso.
F) A responsabilidade civil emergente da circulação do veiculo de matricula ..._..._LA encontrava-se transferida para a …………… Seguros ………… por via do contrato de seguro celebrado entre PPP …………… e a Seguradora, titulado pela apólice nº 0005403909, válida à data do acidente.
G) No dia 13 de Março de 2019 PPP ………… participou à seguradora T………. um acidente, ocorrido em 4 de Março de 2019 pelas 20:00 horas, na Marina Expo, em Lisboa, em que foram intervenientes o veículo seguro e a embarcação X___, cuja descrição consta do documento junto a fls. 83 e 84, cujo teor se dá por reproduzido.
H) A embarcação em causa é um semi-rígido marca “Zodiac”, modelo 733, de motor interno à popa, possuindo no momento do sinistro participado, um tejadilho de protecção sobre a consola de pilotagem.
I) A última inspecção à embarcação data de 10/08/2015, possuindo licença para navegar até 09/08/2020.
J) A 1ª autora está licenciada para o exercício da actividade Marítimo-Turística pelo RNAT, conforme documento junto a fls. 36 verso.
L) Aquando da constituição da 1ªautora, ES………….., datada de 17/072011, eram sócios e gerentes desta empresa, António……….., PPP …………., cada um com uma quota de 1.700,00 €.
M) Em 2011, foram realizadas transmissões de quotas, ficando com a totalidade das mesmas, António ……………, que em 2016 transferiu todas as quotas para a empresa proprietária da embarcação e 2ª A. Na……………….., S.A.
N) Para reparação dos danos da embarcação descritos nas participações às 2ª e 3ª rés a 1ª autora solicitou um orçamento de mecânica que foi pedido ao agente da marca do motor e coluna, C… VACHTS, e que totalizava a quantia de 15.934,59€, valor a que acresce o respectivo IVA que na altura em que foi realizado o orçamento era, tal como na presente data, de 23%, o que perfazia a quantia de 3.664,96€, conforme documento junto a fls. 40 verso/41.
O) O orçamento de reparação da fibra de vidro e da parte electrónica, foi solicitado a uma fábrica de barcos, especializada em fibra de vidro, FIB___, LDA., a qual, após verificação apresentou em 17.04.2019, três orçamentos:
(i) o primeiro, para reparação dos órgãos e componentes eléctricos e electrónicos, no valor de 4.073, 00€, a que acrescia o IVA no montante de 936, 00€;
(ii) o segundo, para reparação do casco, consola e flutuadores, no valor de 17.372,40€, a que acrescia o IVA no montante de 3.995,65€;
(iii) e, o terceiro para reparação do tejadilho no valor de 4.440, 00€, a que acrescia o IVA no montante de 1.021,20€, tudo como melhor consta dos documentos juntos a fls. 37 verso, 38 verso e 39 verso.
Factos resultantes da prova produzida em audiência de julgamento
P) No dia 04.08.2015, as Autoras, subscreveram e assinaram um instrumento contratual que denominaram de contrato de locação tendo por objecto a embarcação identificada em A), com o conteúdo constante do documento junto a fls. 21 verso/22, que se dá por reproduzido.
Q) A referida embarcação, após ter sido alvo de uma profunda reparação e modernização com instalação de nova electrónica, reparação total do motor, colocação de novos colectores, palamentas, pinturas, etc, ficou em estado novo *.
R) Após o termo dessa profunda reparação, no dia 04.03.2019 a embarcação em referência foi colocada junto à grua eléctrica da Marina do Parque das Nações - Expo - Lisboa, para vir a ser colocada dentro de água na manhã seguinte para realização de testes de água *.
S) A embarcação estava colocada em cima de uma estrutura designada berço *.
T) A grua eléctrica encontrava-se junto ao parque de estacionamento da Marina do Parque das Nações e perto da amurada da marina.
U) Nesse dia 04/03/2019, pelas 20:00, PPP ……………… ao conduzir o veículo automóvel todo-o-terreno, de marca Nissan, modelo Terrano, com a matrícula …-…-LA, e ao realizar uma manobra de marcha atrás, fez com que a viatura que conduzia fosse embater na embarcação X___ da Autora NA………….., LDA., provocando, com tal embate a sua projecção que a fez galgar o limite da amurada tendo caído para parcialmente dentro de água e parcialmente na parte seca, em cima de predas que aí se encontravam *.
V) O berço acompanhou a queda da embarcação *.
X) Na altura deste acidente a maré estava vazia pelo que a queda foi de uma altura de cerca de 4 metros, sendo que, naquele momento e tendo em consideração a maré vazia, a profundidade da água era de cerca de 20 a 40 cms *.
Z) De imediato, com recurso à grua e a ajuda de dois pescadores que estavam no local no momento do acidente, conseguiram resgatar a referida embarcação da água *.
AA) A embarcação em virtude da queda referida sofreu danos no Casco, Convés, Consola, Tejadilho, Flutuadores, Parte Mecânica, Motor e Coluna (a coluna ficou completamente destruída), Parte Eléctrica e Electrónica, o rádio e a sonda saltaram do barco, as antenas partiram-se, parte da palamenta saltou da embarcação, uma parte para dentro de água, outra para as rochas circundantes.
BB) Desde a altura do acidente que a embarcação se encontra destruída e a autora impossibilitada de desenvolver a sua actividade como operador Marítimo-Turismo.
CC) A embarcação ia iniciar a sua actividade em Alhandra.
DD) Em consequência do acidente o LA sofreu danos na parte traseira e ficou com o vidro traseiro partido *.
Na mesma sentença foi considerada NÃO PROVADA a seguinte matéria de facto:
Não se provaram quaisquer outros factos com interesse para a decisão da causa e designadamente não se provou que:
- A embarcação estava colocada em cima de um reboque.
- O reboque não acompanhou a queda da embarcação.
- A segunda autora vai ter de suportar ainda o transporte da embarcação do Parque das Nações, em Lisboa, para Peniche (instalações da empresa FIB___) e de Peniche para o Parque das Nações num valor de 400,00€.
- Já houvessem sido programadas serviços a prestar pela embarcação.
- Em decorrência da impossibilidade de desenvolver a sua actividade a 1ª autora perde 100,00 euros/dia em receitas”.
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B - FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO
I) Da REAPRECIAÇÃO da PROVA GRAVADA decorrente da impugnação da matéria de facto
Prevendo acerca da modificabilidade da decisão de facto, consagra o artigo 662º do Cód. de Processo Civil os poderes vinculados da Relação, estatuindo que:
“ 1 - A Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.
2 - A Relação deve ainda, mesmo oficiosamente:
a) Ordenar a renovação da produção da prova quando houver dúvidas sérias sobre a credibilidade do depoente ou sobre o sentido do seu depoimento;
b) Ordenar em caso de dúvida fundada sobre a prova realizada, a produção de novos meios de prova;
c) Anular a decisão proferida na 1.ª instância, quando, não constando do processo todos os elementos que, nos termos do número anterior, permitam a alteração da decisão proferida sobre a matéria de facto, repute deficiente, obscura ou contraditória a decisão sobre pontos determinados da matéria de facto, ou quando considere indispensável a ampliação desta;
d) Determinar que, não estando devidamente fundamentada a decisão proferida sobre algum facto essencial para o julgamento da causa, o tribunal de 1.ª instância a fundamente, tendo em conta os depoimentos gravados ou registados”.
Para que tal conhecimento se consuma, deve previamente o recorrente/apelante, que impugne a decisão relativa à matéria de facto, cumprir o ónus a seu cargo, plasmado no artigo 640º do mesmo diploma, o qual dispõe que:
“ 1 -Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
2. No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:
a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;
b) Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes.
3 - O disposto nos n.ºs 1 e 2 é aplicável ao caso de o recorrido pretender alargar o âmbito do recurso, nos termos do n.º 2 do artigo 636.º”.
No caso sub judice, a prova produzida em audiência foi gravada. E, tendo a Recorrente/Apelante Ré dado cumprimento ao preceituado no supra referido artigo 640º, nº. 2, alín. a), do Cód. de Processo Civil, nada obsta a que o presente Tribunal proceda à reapreciação da matéria factual fixada, procedendo-se, assim, à devida audição da prova produzida e/ou devida análise das transcrições efectuadas.
Não se desconhece que “para negar a admissibilidade da modificação da decisão da matéria de facto, designadamente quando esta seja sustentada em meios de prova gravados, não pode servir de justificação o mero facto de existirem elementos não verbalizados (gestos, hesitações, posturas no depoimento, etc.) insusceptíveis de serem recolhidos pela gravação áudio ou vídeo. Também não encontra justificação a invocação, como factor impeditivo da reapreciação da prova oralmente produzida e da eventual modificação da decisão da matéria de facto, da necessidade de respeitar o princípio da livre apreciação pelo qual o tribunal de 1ª instância se guiou ou sequer as dificuldades de reapreciação de provas gravadas em face da falta de imediação”.
Pelo que, poderá e deverá a Relação “modificar a decisão da matéria de facto se e quando puder extrair dos meios de prova, com ponderação de todas as circunstâncias e sem ocultar também a livre apreciação da prova, um resultado diferente que seja racionalmente sustentado[2].
Reconhece-se que o registo dos depoimentos, seja áudio ou vídeo, “nem sempre consegue traduzir tudo quanto pôde ser observado no tribunal a quo. Como a experiência o demonstra frequentemente, tanto ou mais importante que o conteúdo das declarações é o modo como são prestadas, as hesitações que as acompanham, as reacções perante as objecções postas, a excessiva firmeza ou o compreensível enfraquecimento da memória, sendo que a mera gravação dos depoimentos não permite o mesmo grau de percepção das referidas reacções que porventura influenciaram o juiz da 1ª instância.
Na verdade, existem aspectos comportamentais ou reacções dos depoentes que apenas são percepcionados, apreendidos, interiorizados e valorados por quem os presencia e que jamais podem ficar gravados ou registados para aproveitamento posterior por outro tribunal que vá reapreciar o modo como no primeiro se formou a convicção do julgador”.
Efectivamente, e esta é uma fragilidade que urge assumir e reconhecer, “o sistema não garante de forma tão perfeita quanto a que é possível na 1ª instância a percepção do entusiasmo, das hesitações, do nervosismo, das reticências, das insinuações, da excessiva segurança ou da aparente imprecisão, em suma, de todos os factores coligidos pela psicologia judiciária e de onde é legítimo aos tribunais retirar argumentos que permitam, com razoável segurança, credibilizar determinada informação ou deixar de lhe atribuir qualquer relevo”.
Todavia, tais dificuldades não devem justificar, por si só, a recusa da actividade judicativa conducente à reapreciação dos meios de prova, ainda que tais circunstâncias ou fragilidades devam ser necessariamente “ponderadas na ocasião em que a Relação procede à reapreciação dos meios de prova, evitando a introdução de alterações quando, fazendo actuar o princípio da livre apreciação das provas, não seja possível concluir, com a necessária segurança, pela existência de erro de apreciação relativamente aos concretos pontos de facto impugnados[3] (sublinhado nosso).
Questiona a Apelante Ré, no essencial, que o acidente tenha ocorrido conforme participado, nomeadamente que aquele tenha mesmo resultado de um evento súbito e imprevisto ou que, de qualquer forma, tenha resultado provado pelas Autoras.
O que alega, entendendo que a sentença apelada assentou em “depoimentos fictícios e sem qualquer credibilidade, cheios de contradições e arregimentados para mentir em tribunal”, realçando entre estes o depoimento de PPP ……………., segurado e condutor do veículo alegadamente interveniente no embate em equação.
Por outro lado, acrescenta a Recorrente ter o tribunal a quo desprezado os depoimentos das testemunhas por si arroladas, nomeadamente os de T………….., R…………….. e José ……………., para além de ter ignorado as contradições existentes nos depoimentos das testemunhas PPP ……………… e J ……………..
Considera, assim, resultar das transcrições dos depoimentos destas duas testemunhas, ser notória “a encenação e o encaminhamento dos seus depoimentos no sentido de tentarem o vencimento das novas teses agora apresentadas, em sede de audiência de discussão e julgamento”, não passando as demais testemunhas arroladas pelas Autoras “de meros peões no cenário montado para ludibriar o douto tribunal”.
No essencial, questiona, assim, a Apelante a matéria factual provada relativa á dinâmica do acidente, para além do estado e local onde se encontraria a embarcação alegadamente acidentada, colocando em causa a prova dos seguintes factos:
Q) A referida embarcação, após ter sido alvo de uma profunda reparação e modernização com instalação de nova electrónica, reparação total do motor, colocação de novos colectores, palamentas, pinturas, etc, ficou em estado novo;
R) Após o termo dessa profunda reparação, no dia 04.03.2019 a embarcação em referência foi colocada junto à grua eléctrica da Marina do Parque das Nações - Expo - Lisboa, para vir a ser colocada dentro de água na manhã seguinte para realização de testes de água.
S) A embarcação estava colocada em cima de uma estrutura designada berço.
U) Nesse dia 04/03/2019, pelas 20:00, PPP ……………… ao conduzir o veículo automóvel todo-o-terreno, de marca Nissan, modelo Terrano, com a matrícula …-…-LA, e ao realizar uma manobra de marcha atrás, fez com que a viatura que conduzia fosse embater na embarcação X___ da Autora NA……………, LDA., provocando, com tal embate a sua projecção que a fez galgar o limite da amurada tendo caído para parcialmente dentro de água e parcialmente na parte seca, em cima de predas que aí se encontravam.
V) O berço acompanhou a queda da embarcação.
X) Na altura deste acidente a maré estava vazia pelo que a queda foi de uma altura de cerca de 4 metros, sendo que, naquele momento e tendo em consideração a maré vazia, a profundidade da água era de cerca de 20 a 40 cms.
Z) De imediato, com recurso à grua e a ajuda de dois pescadores que estavam no local no momento do acidente, conseguiram resgatar a referida embarcação da água”.
Bem como, se bem o percepcionamos, o segmento inicial do facto DD), nomeadamente a referência “em consequência do acidente”, assim questionando que os danos sofridos pelo veículo LA tivessem sido ocasionados pelo acidente descrito.
Na resposta apresentada, as Apeladas Autoras referenciam que o acidente dos autos ocorreu nos precisos termos em que foi participado, sendo que as testemunhas T………….., R……………… e José ………… não depuseram com verdade, tendo colocado em causa a veracidade de todas as testemunhas arroladas pelas Autoras, que não apenas a do condutor do veículo seguro, sendo que aquelas não tinham qualquer ligação directa com o Estaleiro Naval, tendo deposto com “total clareza, isenção e precisão”.
Referenciam, ainda, o depoimento de E………………, arrolado pela Ré Vi………, perito oficial da Marinha Mercante com diversas certificações como investigador da área marítima, sendo ainda Inspector de bandeiras para autoridades estrangeiras e perito credenciado pela Câmara Nacional de Peritos, o qual rotulam como “totalmente esclarecedor, isento e correcto”, tendo explicando com “total clareza a inércia do acidente e a forma como o berço se movimenta com total facilidade”.
Desta forma, entendem ter o Tribunal decidido de acordo com a prova produzida, a qual não deixou qualquer dúvida relativamente ao modo como decorreu o sinistro e os danos sofridos pela embarcação X___.
Pelo que deve a factualidade impugnada manter-se como provada, com consequente manutenção da decisão sob apelo.
Relativamente à factualidade questionada, consta da fundamentação de facto da sentença apelada o seguinte:
O tribunal fundou a sua convicção na prova documental e testemunhal produzida e ainda nas declarações de parte de António ……………., legal representante das autoras, no que tange ao contrato de locação junto a fls. 21 verso/22, sua celebração e propósito da mesma, declarações prestadas de forma tida como séria e convincente.
(…)
Especificamente quanto à matéria constante da alínea U) considerou-se o depoimento de PPP ………… que referiu as circunstâncias em que ocorreu o embate e que decorreu da necessidade de efectuar manobra de marcha atrás para conseguir sair do lugar onde estava estacionado. Embateu na embarcação que deslizou e caiu parcialmente na parte seca e só uma parte na água; caiu em cima das pedras.
O seu veiculo ficou com uma mossa na traseira e o vidro traseiro partiu.
Mais referiu que se tinha deslocado ao estaleiro para fazer uma reparação.
A embarcação tinha sido restaurada e estava em muito bom estado.
Na queda a embarcação partiu a hélice, o motor e a coluna, danos estruturais na fibra de vidro e os flutuadores, um deles vazou.
A embarcação estava em cima de dois berços, um à popa e outro à proa.
A 2ª autora ia iniciar a actividade como operador marítimo turístico, tinha licença para o efeito. O seu depoimento foi ainda considerado relevante para efeitos dos factos tidos como provados e constantes das alíneas Q), R), S), AA), CC) e DD).
Quanto aos factos relatados nas alíneas Q) a T), V) a AA), atentou-se no depoimento das testemunhas AZ …………….., Vo………….., Ve……………, Pe………., todos tendo declarado que a embarcação fora objecto de reparação, se encontrava em muito bom estado de conservação, que em consequência do acidente caiu nas pedras, pois a maré estava vazia, localizaram a grua, referiram os danos sofridos pela embarcação com pormenor, pois viram a embarcação antes e depois do acidente e também referiram que foi retirada após a queda com recurso à grua.
As testemunhas referiram que conheciam o condutor do veiculo que costumava prestar serviços na marina e viram o veiculo estacionado no parque.
As testemunhas Vo…………., Ve……………, Pe…….., que se encontravam na marina à data e hora do sinistro referiram que não viram o embate do veiculo na embarcação, mas que ouviram um barulho e viram o veiculo junto ao barco e este a cair.
A testemunha AZ ………….. não assistiu ao acidente e só viu a embarcação quando esta já estava caída no lodo e nas pedras. Referiu que o berço também caiu e ficou por baixo da embarcação; a testemunha Pe………. também referiu que um dos apoios do barco caiu com este.
Também referiram que desde o acidente que a embarcação continua por reparar.
Quanto à testemunha J …………….., referiu não se encontrar presente na data do acidente, mas que tinha sido ele a determinar o local onde colocar a embarcação e que esta estava colocada em cima de um berço e não de um atrelado.
Disse, ainda, que na marina existem câmaras, mas que não apanham a área onde ocorreu o acidente.
Com relevo para a determinação da matéria de facto teve-se o depoimento de E……………., perito indicado pela 2ª ré e que procedeu à avaliação e quantificação dos danos.
Disse ter-se deslocado à marina, visto a embarcação e quantificado os danos, tentando também determinar a causa do acidente.
Disseram que uma viatura embatera na embarcação e os danos que o perito constatou no veiculo são compatíveis com o embate deste nos flutuadores do barco (havia deformações nos pilares do veiculo), sendo certo que uma viatura como a indicada, alta e robusta podia embater a embarcação e atirá-la borda fora.
(…)
A testemunha T……….. procedeu à peritagem do veiculo, tendo falado com o segurado no local do acidente e referiu que os danos que constatou no veiculo são poucos para o acidente que o segurado referiu ter acontecido que era que tinha embatido na embarcação.
Quanto às testemunhas R…………. e José …………., referiram que as informações fornecidas pelos envolvidos eram inconsistentes, não fundamentadas e contraditórias, que os valores pedidos para a reparação eram demasiado elevados, não tendo sido enviados documentos quanto às certificações legais.
(…)
Considerando os depoimentos prestados e os documentos juntos o tribunal concluiu que o acidente se dera pela forma apontada pelas autoras, tendo produzido os danos relatados na petição, a que também alude o documento junto a fls. 30, extraído do relatório apresentado pelo perito indicado pela 2ª ré.
Quanto aos factos tidos por não provados: resultam de nenhuma prova se ter produzido referida aos mesmos ou ter-se feito prova em sentido diferente como no caso da estrutura em cima da qual se encontrava a embarcação que não era um reboque, mas um berço que, igualmente, acompanhou a embarcação na queda”.
Apreciando:
O Tribunal procedeu à audição dos depoimentos e declarações prestadas (ainda que com dificuldades no que concerne ao depoimento de PPP ……………, atento um constante som de um apito de fundo que dificultou tal audição), em concomitância com o teor dos depoimentos transcritos, revelando-se esta transcrição, salvo meros lapsos, globalmente idónea e conforme o declarado.
Entende a seguradora Recorrente que a prova efectuada pelas Autoras, devido à sua falta de fiabilidade e credibilidade, não poderia conduzir á prova dos impugnados factos. E, tal ausência de fidedignidade decorreria não só de serem inverosímeis, fundamentalmente, os depoimentos das testemunhas PPP ……………. (condutor do veículo seguro), e de J ……………… (técnico operacional de marina, desempenhando funções na Marina do Parque das Nações desde 1998), como da própria falta de congruência entre estes, para além da injustificada desvalorização dos depoimentos das testemunhas T…………., R………………. e José ……….., arroladas pela Ré ora Recorrente.
Ora, da audição destas três testemunhas decorrem evidentes perplexidades, distonias e estranhezas, que ora elencamos:
-  a limitada amplitude dos danos causados no veículo automóvel – marca muito ligeira, para além da alegada quebra do vidro traseiro - é dificilmente conciliável com um embate na embarcação que tenha causado o resvalar desta, e respectivos berços onde assentava, de forma a cair na marina, numa altura de 3 a 4 metros. E isto, quando estamos a falar de uma embarcação com praticamente duas toneladas e meia, para além do próprio peso dos denominados berços, em contraponto com um jipe que terá menos de metade desse peso ;
- o facto dos aludidos berços ou reboques onde a embarcação estaria assente nunca terem sido exibidos aos peritos das seguradoras, os quais, alegadamente, teriam acompanhado a queda da embarcação até ao local do lodo e pedras.
Aliás, o valor desses berços não foi sequer peticionado, mas, a ter ocorrido o evento lesivo nos termos descritos, os mesmos teriam sido igualmente arrastados e sofrido necessárias lesões, pelo que naturalmente surgiriam como evidência e resultado do acidente participado. O que não sucedeu, pois na verdade nenhum reboque ou berço acabou por ser exibido como danificado ;
- a circunstância do veículo automóvel em equação estar segurado na Ré Recorrente há menos de um mês, atendo estado anteriormente um período de sensivelmente um mês e meio sem seguro, o que, não sendo decisivo, é indiciador, e terá servido de alerta inicial perante a seguradora outorgante ;
- o facto de não terem sido fornecidas à Ré imagens de vídeo do local, apesar do pedido por esta efectuado, por e-mail e através do perito averiguador, junto do legal representante da Autoras (que nunca terá merecido resposta), sendo dificilmente aceitável como natural uma primeira argumentação de que o local não seria coberto por câmaras e, constatada tal abrangência, a argumentação posterior de que já teria decorrido mais de um mês e, como tal, tais imagens já não estariam disponíveis
A que acresce estarmos perante uma situação de total indisponibilidade de imagens, pois, ainda que eventualmente não existissem daquele específico local onde a embarcação se encontraria, sempre seria possível uma análise da movimentação próxima, capaz de esclarecer concludentemente acerca do ocorrido ;
-  o facto do legal representante das Autoras e o condutor do veículo seguro (PPP ……………), apesar das interpelações efectuadas pelos peritos averiguadores, nunca terem indicado a existência de quaisquer testemunhas relativamente ao acidente participado.
O que não pode deixar de ser considerado como minimamente estranho e anómalo, atendendo até à sua posterior indicação na presente sede judicial ;
- a circunstância destes dois indivíduos – legal representante das Autoras e proprietário e condutor do veículo seguro – já se conhecerem há vários anos, tendo sido inclusive sócios da 1ª Autora durante um curto período, durante o ano de 2011 – cf., factos L) e M) -, circunstância que fez adensar as suspeitas da Ré seguradora do veículo ;
- o alegado comportamento do segurado PPP …………… junto do perito averiguador da seguradora, de total ausência colaboração na transmissão do ocorrido, apenas o tendo atendido para despachar, o que fez aumentar as suspeitas da seguradora de que o acidente não teria ocorrido nos termos concretamente participados ;
- as alegadas sucessivas justificações ou explicitações para que a embarcação estivesse naquele local, ou seja, fora da zona onde normalmente deveria estar, as quais surgiam perante o comprovar da irrealidade da antecedente, nomeadamente no que concerne ao desempenho que a embarcação iria ter no dia seguinte, a existência ou não de licença turística e a existência ou não de vistoria marcada para tal obtenção ;
- tais dúvidas foram ainda alimentadas pela alegado histórico do legal representante das Autoras com a seguradora do veículo automóvel, com alusão a antecedente processo judicial onde era reclamado o pagamento de danos e bens que veio a ser julgado não devido ;
-  o facto de não possuindo a embarcação GPS integrado, mas antes móvel, ser reclamado o seu pagamento, quando a embarcação não se encontrava a navegar e, apesar de alegadamente o ir fazer no dia seguinte, não torna compreensível a sua imputada presença na embarcação, pois poderia ser alvo de subtração, quando sempre seria mais curial a sua colocação no próprio dia de utilização daquela.
Ora, as expostas inconsistências (chamemos-lhe assim), para além do mais, resultaram daqueles depoimentos credíveis e aparentemente idóneos das citadas testemunhas, nomeadamente de:
- T………………, de 64 anos, perito averiguador, que trabalha em regime de prestação de serviços, em exclusivo, para a seguradora do veículo automóvel ;
- R………………., de 40 anos, perito averiguador, mas em funções de coordenação e na área de fraude ao seguro, tendo intervindo como auxiliar da testemunha antecedente, procurando validar algumas questões que foram surgindo, e que levantavam dúvidas e suspeitas.
Presta funções para várias seguradoras, sendo a seguradora do veículo automóvel a sua principal cliente ;
- José ……………….., de 57 anos, perito averiguador de empresa prestadora de serviços no âmbito da peritagem, tendo-o feito para a Ré seguradora do veículo.
Referencie-se que o depoimento desta testemunha foi tão clarividente e explícito (eivado de clara seriedade) que, curiosamente, o Ilustre Mandatário das Autoras não utilizou sequer a contra instância.
Donde, urge valorar e ponderar se as aludidas inconsistências e estranhezas são de molde a macular os depoimentos que sustentaram a fixação da matéria factual ora questionada, ou se, ao invés, e apesar daquelas, não se revelam como suficientes e bastantes para lograrem tal desiderato.
Ou seja, e concretizando, urge aferir se perante a prova produzida ainda é possível concluir por factualidade tradutora de um evento súbito e imprevisto, ou se, em contraponto, perante o macular desta, não é possível concluir naqueles termos, por falência da factualidade tradutora do sinistro com aquelas vestes de imprevisibilidade.
Neste desiderato, vejamos, no essencial, o declarado pelas demais testemunhas:
- J ……………….., de 55 anos, técnico operacional de marina, desempenhando funções na Marina do Parque das Nações desde 1998.
Referenciou trabalhar com a grua fixa que está no porto, e ter sido o próprio a determinar o local da embarcação acidentada.
Acrescentou que não estava presente no local aquando do acidente, pois era o dia do seu aniversário, tendo recebido uma chamada telefónica do legal representante das Autoras a pedir-lhe para utilizar a grua, informando-o da queda do barco, tendo dado autorização ao AZ ………… para manobrar a grua.
Descreveu, ainda, o estado anterior da embarcação acidentada e que as câmaras existentes no local não abrangem o local de ocorrência do acidente.
Mencionou, ainda, que a embarcação estava em cima de um berço, e procurou efectuar a destrinça entre berço e atrelado, mencionando que aquele não se move, pois não tem rodas, o que foi contraditado pelas demais testemunhas que depuseram, relatando claramente que o aludido berço tinha rodas e movia-se. Situação que, evidentemente, não se pode deixar de considerar estranha, atentas as funções pelo mesmo desempenhadas ;
- AZ …………………, de 62 anos, auxiliar de marina, a desempenhar funções na Marina do Parque das Nações desde Maio de 1998, concretizando ser manobrador de grua.
Referenciou não ter assistido ao acidente, mas que o legal representante das Autoras foi-lhe pedir se podia, com a grua, retirar a embarcação que havia caído e estava no lodo, descrevendo que estávamos perante baixa-mar.
Descreveu que anteriormente a embarcação encontrava-se ao lado de uma grua, assente num berço, o qual possui umas rodinhas que serve para a sua deslocação e que, juntamente com a embarcação, terão caído duma altura entre 3 a 4 metros.
Inquirido, mencionou que o barco não tinha que estar amarrado ao berço, mas que aquele estaria amarrado apenas do lado da proa.
Por fim, referiu que o seu chefe deu-lhe autorização para manobrar a grua, tendo o próprio entregado os comandos e autorizado a sua manobra posteriormente, pensando que terá sido o legal representante das Autoras ou outra pessoa a manobrá-la de forma a lograrem retirar a embarcação do lodo e pedras.
E, inquirido expressamente, acrescentou que acidentes daquele género nunca haviam ocorrido no local.
Estas duas testemunhas depuseram de forma medianamente credível, ainda que com algumas distonias de difícil compreensão (exemplificativamente, a questão do berço onde a embarcação se encontrava possuir ou não rodas e a alegação da testemunha AZ …………. de que saberia o estado de todas as embarcações que se encontravam na marina, fora e dentro de água, em número de aproximadamente 300) ;
- E…………………., de 51 anos, Comandante da Marinha Mercante e investigador da área marítima, tendo desempenhado funções de perito para a Ré seguradora da embarcação.
Referenciou que nunca chegaram a ver o berço qua alegadamente havia caído à agua, e no qual a embarcação estaria colocada, pelo que não poderia concluir quanto à forma da sua movimentação.
Inquirido se o alegado toque na viatura seria suficiente para fazer o berço deslocar-se e fazer cair a embarcação na água, procurou fazer a distinção entre velocidade e força de impacto, não excluindo que um toque mesmo pequeno, dado por aquele veículo, atenta a sua robustez e a altura em que o mesmo encostaria na embarcação (parte superior do vidro e dos pilares da parte traseira da viatura), seria suficiente para a deslocação desta.
Negou que a embarcação devesse estar amarrada ao berço, justificando inclusive que seria conveniente que o não estivesse, e inquirido se poderia confirmar qual a zona do veículo que teria embatido, referenciou que segundo a avaliação efectuada teria sido “a zona de vidro do carro, portanto, aqueles pilares teriam batido no flutuador. Isso tem a ver com a curvatura que encontrei no vidro, na altura. Já não estava lá no vidro, mas as marcas dos pilares”, sendo que o jipe apresentava “deformações nos pilares”.
A presente testemunha depôs de forma convincente e idónea, merecendo o seu depoimento total ponderação ;
- Vo………………, de 40 anos, funcionário da Autora Estaleiro Naval de Lisboa, o qual referenciou não ter visto o embate, mas ter ouvido o barulho, vendo a embarcação já caída, numa zona onde existiam pedras.
Acrescentou que a mesma estava sob dois berços com rodas, que o jipe estava numa zona perto da embarcação e que teria sido o mesmo a embater nesta, sendo que o berço ou berços também teria(m) caído ao rio, explicitando depois os actos subsequentes a tal queda, nomeadamente de recuperação dos vários elementos da embarcação.
Ainda que com algumas dificuldades de explicitação, foi mediamente coerente no declarado ;
- Ve……………..e Pe…………., respectivamente de 30 e 40 anos, encontravam-se nas imediações do local aquando do alegado acidente.
Referenciaram ter ouvido um barulho que identificaram posteriormente como o da embarcação a cair (a testemunha La……. afirmou que ainda viu esta a cair), que esta ficou sobre umas pedras, que a embarcação estaria ao pé de uma grua e que era uma altura do dia de maré baixa.
Acrescentaram que estava um jipe na zona onde ocorreu a queda da embarcação, que o condutor do jipe estava stressado e tinha as mãos na cabeça, que a embarcação estaria sob dois apoios com rodas, e que teria sido a traseira do jipe a embater na embarcação, tendo o vidro traseiro ficado partido.
Afirmaram que costumavam ir muitas vezes para aquele local, pelo que conheciam bem a embarcação, mencionando que esta estaria em excelente estado.
A testemunha Ve………. referiu, ainda, que conhecia o legal representante das Autoras, a quem já havia pedido coisas relacionadas com o estaleiro, e que recentemente, a seu pedido, havia saído no barco acidentado, num passeio que havia sido efectuado.
Ainda que com algumas hesitações, e dificuldades decorrentes da comunicação (desde logo linguísticas), as presentes testemunhas depuseram de forma medianamente ponderada, ainda que nem sempre precisa ou totalmente esclarecedora ;
- PPP ……………, de 43 anos, técnico de náutica e condutor do veículo seguro.
Referenciou que aquando do acidente já era de noite, que a embarcação iria ser testada no dia seguinte para poder trabalhar em marítimo-turística e que quando efectuava marcha-atrás num jeep que conduzia deu um toque naquela, deslocando-se a mesma devagar até vir a cair na água.
Acrescentou que estava maré vazia, tendo referido os danos causados na embarcação e o bom estado anterior desta.
Confirmou ter sido anteriormente, há muitos anos, sócio do legal representante das Autoras, na ora Autora Estaleiro Naval de Lisboa, o que se prolongou por aproximadamente três meses, acrescentando ser amigo daquele há muitos anos.
Descreveu a forma como conseguiram içar a embarcação, após a queda, utilizando uma outra grua, pelo que tiveram necessidade de rebocar aquela por aproximadamente 15 metros, e que teve necessidade de fazer marcha-atrás em virtude de estar a sensivelmente 20 cm do veículo da frente.
Referenciou que a embarcação estava colocada em cima de berços, um à popa e outro à proa, os quais possuem rodas, procurou justificar a presença daquela naquele local e que o vidro traseiro da viatura partiu-se (naquele modelo de jeep, o vidro faz como que de porta-bagagens), para além da existência de mossa na parte em que o vidro encosta.
Confirmou não ter indicado testemunhas quando faz a participação à seguradora, o que justificou pelo facto de não lhe ter sido participado, e negou ter-se negado a prestar depoimento por escrito.
Para além das dificuldades de audição do presente depoimento, este configurou-se como medianamente ponderado, ainda que nem sempre respondendo de forma esclarecedora ou detalhada, e tendo mesmo contraditado factualidade decorrente de depoimentos credivelmente produzidos (exemplificativamente, a alegação de nunca se ter recusado a prestar depoimento escrito ao perito averiguador da seguradora).
Ora, da panóplia probatória enunciada parece ainda poder concluir-se no sentido da manutenção da versão factual feita constar na sentença recorrida.
Com efeito, apesar das aludidas inconsistências ou estranhezas, mas ponderando igualmente a ausência de respaldo probatório de algumas, bem como a sua natureza claramente indiciária, cremos que os descritos depoimentos ainda logram sustentar a descrita versão factual caracterizadora da ocorrência de um evento súbito ou imprevisto, decorrente de uma condução do veículo negligente ou ausente dos devidos cuidados.
Ademais, conforme consignámos, as alterações a introduzir pela presente instância na matéria factual, na observância do princípio da livre apreciação das provas, só devem operar quando se conclua, com necessária segurança ou solidez, ter ocorrido erro na apreciação e valoração dos concretos pontos factuais impugnados.
Ora, nos termos expostos, apesar da aludida inconsistência ou volatilidade, tal conclusão surge arredada, pelo que necessariamente se terá de concluir no sentido de manutenção daquela factualidade. O que determina, in casu, juízo de improcedência da impugnação da matéria de facto exarada sob as alíneas S), U), V), X), Z) e primeiro segmento da alínea DD).
Relativamente á factualidade exarada sob as alíneas Q) e R), a impugnação apresentada e a argumentação que a enformou não foi de molde a questioná-la com o mínimo de solidez ou pertinência, pois aquela focou-se, no essencial, na alegada dinâmica do acidente e no efectivo questionar da sua verificação.
Donde, igualmente nesta parte, prevalece o juízo de improcedência da impugnação da matéria de facto.
Determinando, consequentemente, juízo de total improcedência da matéria de facto impugnada, pelo que a factualidade considerada provada sob as alíneas Q), R), S), U), V), X), Z) e DD) (primeiro segmento) deve manter-se, nos consignados termos, como provada.
II) DA VERIFICAÇÃO DE ERRO DE JULGAMENTO NA SUBSUNÇÃO JURÍDICA EXPOSTA NA DECISÃO RECORRIDA, TENDO EM CONSIDERAÇÃO OS FACTOS APURADOS
A pugnada alteração do enquadramento jurídico tem, no essencial, por pressuposto o deferimento da alteração da matéria de facto a figurar como provada, nos termos da impugnação apresentada.
Assim, improcedendo aquela impugnação, inexiste, prima facie, motivo para qualquer alteração do enquadramento jurídico.
Pelo que, nesta parte, mais não restará do que reiterar o juízo exarado na sentença recorrida, formulado, em súmula, nos seguintes termos:
- o objecto do litígio configurava-se no direito das Autoras serem indemnizadas pelos danos sofridos em consequência do acidente ocorrido em 04/03/2019, no quadro da responsabilidade civil extracontratual ou aquiliana e, subsidiariamente, no quadro da responsabilidade civil contratual ;
- as Autoras demandam, em primeira linha, a seguradora do veículo automóvel que provocou o embate, pretendendo que esta as indemnize no quadro da responsabilidade civil extracontratual ;
- conforme a factualidade apurada, tem de concluir-se que o acidente ocorreu por culpa do condutor do veículo seguro, o qual, por imperícia, distração, ou erro de cálculo, ao realizar a manobra de marcha-atrás, acabou por embater na embarcação que se encontrava na sua traseira, provocando a sua queda para a água ;
- as Autoras pretendem ser indemnizadas pelos danos sofridos na embarcação, abrangendo as quantias necessárias à sua reparação, bem como as receitas que a Autora ES…………. deixou de auferir, em virtude da embarcação, pelos danos sofridos, não poder ser utilizada na actividade marítimo-turística da Autora ;
- quanto à quantia necessária para a reparação da embarcação, resultou provado ser necessário o montante de 41.819,99 €, acrescido de IVA à taxa de 23% ;
- quanto à demais verba reclamada pela ES………, não resultou apurada a perda de qualquer receita ;
- com efeito, do alegado, a Autora não concretizou (factualizou) que serviços ia prestar, por quanto tempo e a que custo, pelo que não se pode concluir que o montante peticionado corresponde às vantagens que, segundo o curso normal das coisas, poderia ter obtido ;
- pelo que, nesta parte, improcede o pedido ;
- assim, por que a responsabilidade civil emergente da circulação do veículo encontra-se transferida para a Ré ……………… Seguros ………., por via do contrato de seguro celebrado entre PPP ……………… e a seguradora, válido à data do acidente, ficou constituída na obrigação de indemnizar ;
- o que determina procedência parcial do pedido, com prejudicialidade no conhecimento do pedido subsidiário dirigido à seguradora Victória. 
Referencia, ainda, a Recorrente Ré que caso a embarcação “estivesse suportada num berço ou num reboque, esta ter caído ao rio, caso seja verdade a tese trazida pelas recorridas, se as rodas não estavam travadas, estamos perante a culpa do lesado”.
Ora, a presente conjectura factual não tem respaldo na matéria factual provada.
Com efeito, com eventual relevo para a presente argumentação, apenas logrou provar-se que “a embarcação estava colocada em cima de uma estrutura designada berço”, e que, após o embate do veículo na embarcação, esta foi projectada, o que “a fez galgar o limite da amurada tendo caído para parcialmente dentro de água e parcialmente na parte seca, em cima de pedras que aí se encontravam”, tendo o berço acompanhado a queda da embarcação – factos S), U) e V).
Ora, nada resulta provado acerca das eventuais rodas do berço se encontrarem ou não travadas (nem sequer resulta provado que o mesmo possuísse rodas ou qual o número destas), pelo que estamos perante um quadro putativo ou hipotético, ausente de tradução factual e, como tal, incapaz de enformar o alegado quadro de culpa do lesado na eclosão do embate, capaz de afastar a responsabilidade da Ré seguradora (ou, mesmo, de concorrência de culpa daquele, para a produção ou agravamento dos danos, a enquadrar nos termos do artº. 570º, do Cód. Civil).
Donde, sem ulteriores delongas, conclui-se no sentido da improcedência da presente apelação, com consequente manutenção do juízo consignado na sentença apelada.
Relativamente à tributação, nos quadros do artº. 527º, nºs. 1 e 2, do Cód. de Processo Civil, decaindo no recurso interposto, é a Ré Apelante responsável pelo pagamento das custas devidas.
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IV. DECISÃO
Destarte e por todo o exposto, acordam os Juízes desta 2ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa em julgar totalmente improcedente o recurso de apelação interposto pela Ré/Recorrente/Apelante ……………….. SEGUROS T…………………….., S.A. (presentemente, G………………., S.A.), em que figuram como Autoras/Recorridas/Apeladas ES…………………., LDA., e NA……………….., S.A..
Nos quadros do artº. 527º, nºs. 1 e 2, do Cód. de Processo Civil, decaindo no recurso interposto, é a Ré Apelante responsável pelo pagamento das custas devidas.
                                                                          Lisboa, 22 de Fevereiro de 2024
Arlindo Crua
Orlando Nascimento
Inês Moura
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[1] A presente decisão é elaborada conforme a grafia anterior ao Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, salvaguardando-se, nas transcrições efectuadas, a grafia do texto original.
[2] Abrantes Geraldes, Ob. Cit, pág. 285.
[3] Idem, pág. 285 a 287.