Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa | |||
Processo: |
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Relator: | RUI COELHO | ||
Descritores: | QUEIXA CRIMINAL VIA TELEFONE POSTERIOR ENTREGA DE IMAGENS | ||
Nº do Documento: | RL | ||
Data do Acordão: | 03/19/2024 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Texto Parcial: | N | ||
Meio Processual: | RECURSO PENAL | ||
Decisão: | NÃO PROVIDO | ||
Sumário: | (da responsabilidade do relator) I - A queixa corresponde à declaração de vontade do titular do direito violado de que seja instaurado um processo criminal pela prática de factos que possam consistir na prática de um crime. O Código de Processo Penal não prevê, nem sujeita a queixa a qualquer formalismo específico cabendo ao processo registar a forma como a mesma foi produzida. II - Assim, apenas se exige que conste do processo uma comunicação do titular do direito de queixa que revele indubitavelmente a sua vontade de que haja procedimento criminal por determinado facto. III - No caso concreto, essa vontade foi expressa via telefone, como confirmou e registou no auto de notícia e detenção o agente autuante. Meses depois, ainda dentro do prazo legal para o exercício do direito de queixa, o titular da mesma dirigiu-se pessoalmente ao OPC competente e entregou as imagens pedidas para dar andamento à investigação, daí se retirando, mais uma vez, a intenção de que o inquérito continuasse. Não bastando isso, veio ainda deduzir pedido de indemnização cível, aderindo aos fundamentos da acusação. IV - Assim, dos autos consta, de forma clara, manifesta e tempestiva, a vontade de exercício do direito de queixa pelo respectivo titular | ||
Decisão Texto Parcial: | |||
Decisão Texto Integral: | Acordam os Juízes Desembargadores da 5.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa: RELATÓRIO No Juízo Local Criminal de Oeiras – J1, do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Oeste, foi proferida sentença, com o seguinte dispositivo: «1) Nestes termos, e face ao exposto, o Tribunal julga a acusação do Ministério Público parcialmente procedente e, em consequência, decide-se: - Absolver o arguido AA pela prática, em autoria material, e na forma consumada, de um crime de ofensa à integridade física qualificada, previsto e punido pelos artigos 143.º, n.º 1, 145.º, n.º 1, alínea a), e n.º 2, e 132.º, n.º 2, alínea l), todos do Código Penal, pelo qual o arguido veio acusado. - Condenar o arguido AA pela prática, em autoria material, e na forma consumada, de um crime de burla para obtenção de alimentos, bebidas ou serviços, previsto e punido pelo artigo 220.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal, na pena de 40 (quarenta) dias de multa, à taxa diária de € 6,00 (seis euros), o que perfaz o montante total de € 240,00 (duzentos e quarenta euros). - Condenar o arguido AA no pagamento das custas criminais, que se fixam em 2 UC (artigos 513º e 514º do C.P.P. e artigo 8.º n.º 9º do Regulamento das Custas Judiciais, e respetiva Tabela III, anexa ao mesmo), bem como nos encargos do processo a que vier a dar causa (artigos 16.º do Regulamento das Custas Judiciais e 514.º do Código Processo Penal). 2) O Tribunal julga ainda o pedido de indemnização civil totalmente procedente, por provado e, em consequência, decide-se condenar o demandado/arguido AA no pagamento à demandante ... da quantia total de € 39,00 (trinta e nove euros), a título de indemnização por danos patrimoniais, acrescido de juros de mora, à taxa legal em vigor, contados a partir do momento em que tal capital era devido à demandante (dia 9 de julho de 2022), até integral e efetivo pagamento.» - do recurso - Inconformado, recorreu o ArguidoAAformulando as seguintes conclusões: « 1) Vem o presente recurso interposto da douta sentença proferida nos presentes autos que julgou provado a prática de um crime de burla para obtenção de alimentos, bebidas ou serviços previsto e punido nos termos do artigo 220º, nº 1, al. a) do Código Penal (CP). 2) O Arguido encontra-se detido desde abril de 2023, tendo tido conhecimento do presente processo apenas quando foi notificado, já na prisão da Audiência de Julgamento. 3) Pelo que nunca lhe foi dada a oportunidade de se pronunciar sobre eventuais nulidades do presente processo nomeadamente da nulidade da Acusação, e consequente nulidade da sentença condenatória, consubstanciando tal factualidade o fundamento do presente recurso, nos termos do disposto no artigo 410.º, n.º 3. 4) Pelo que, a Acusação é nula por falta de legitimidade do Ministério Público para promover processo pelos factos que integram a previsão do crime de burla para obtenção de alimentos, que é, conforme disposto no artigo 220.º, n.º 2, um crime cujo procedimento depende de queixa. 5) A qual não se verificou ao longo dos presentes autos. 6) Tendo inclusive a ofendida, lesada, manifestado não pretender/desejar a instauração de um processo criminal contra o Arguido. 7) Pelo que, a sentença de que ora se recorre padece de nulidade insanável ao abrigo do disposto nos artigos 48º, 49º, nºs 1 e 2, 119º, al. b) e 122º, todos do CPP. 8) Pelo que deve a douta sentença ser revogada, para os efeitos pretendidos e fundamentos dispostos no artigo 410.º, n.º 3 do CPP e substituída por uma outra que determine a nulidade da acusação nos termos já expostos.» - da resposta - Notificado para tanto, respondeu o Ministério Público concluindo nos seguintes termos: « A) O arguido foi notificado da acusação e esteve presente na audiência de julgamento, representado por Defensor, e em momento algum veio suscitar a questão da ilegitimidade do Ministério Público, como agora o faz em sede de recurso de sentença; B) O arguido foi detido por entidade policial em flagrante delito, nos termos do disposto no artigo 255.º, n.º 1, alínea a) e artigo 256.º, ambos do Código de Processo Penal, e nessa sequência, por o procedimento criminal pelo crime de burla depender de apresentação de queixa, a entidade policial lavrou auto em que registou a queixa apresentada pelo gerente do estabelecimento comercial ofendido pela prática do crime. C) Conforme consta do auto de notícia, a autoridade policial, no exercício das suas funções, e depois do arguido ter sido detido, comunicou com o titular do direito de queixa, o gerente da sociedade comercial exploradora do estabelecimento, o qual foi devidamente identificado como BB , e que depois de informado dos factos que integram a prática de um crime de burla para obtenção de alimentos, bebidas ou serviços, previsto e punido pelo artigo 220.º, n.º 1, alínea a) do Código Penal, declarou formalmente que desejava procedimento criminal contra o detido. D) O auto de notícia, exarado com as formalidades legais, por autoridade pública nos limites da competência que lhe é atribuída por lei constitui um documento autêntico (cf. artigo 363.º, n.º 2 do Código Civil), pelo que fazem prova plena dos factos atestados com base nas perceções do documentador e dos que se passam na sua presença, nos termos do disposto no artigo 371.º, n.º 1 do Código Civil). E) Do auto de notícia é mencionado expressamente que “Questionada a Testemunha CC, o mesmo contactou o proprietário do estabelecimento de restauração mencionado, legítimo titular do direito de queixa pela burla na obtenção de alimentos, devidamente identificado no presente Auto, na qualidade de Denunciante, na pessoa de BB, o qual me comunicou formalmente que DESEJA PROCEDIMENTO CRIMINAL contra o ora detido (…)”. F) A vontade de procedimento criminal contra o arguido pelos factos noticiados foi inequivocamente manifestada, por via telefónica, à autoridade policial, pelo legal representante da sociedade ofendida, com poderes bastantes para vincular a mesma, e na sequência da manifestação desse mesmo propósito, foi subsequentemente deduzido pedido de indemnização civil. G) O facto de constar do referido auto de notícia que o gerente do estabelecimento “apenas iria formalizar essa denúncia na próxima segunda-feira, dia ... de ... de 2022, por de momento se encontrar impedido de o fazer”, é totalmente irrelevante, uma vez que nada o exigiria que o fizesse, uma vez que a queixa já se considerava formalmente apresentada. H) O artigo 246.º, n.º 1 do Código de Processo Penal, refere expressamente que a denúncia pode ser feita verbalmente ou por escrito e não está sujeita a formalidades especiais”, e no seu n.º 3 diz-se que a denúncia contém na medida do possível, a indicação dos elementos referidos nas alíneas do n.º 1 do artigo 243.º. I) Conforme ensina Jorge de Figueiredo Dias, “O Código Penal e o Código de Processo Penal não contêm normas sobre a formalidade da queixa, o que legitima o entendimento de que a manifestação inequívoca do ofendido de que se exerça o procedimento criminal por um certo facto deve ser considerada queixa, independentemente da expressão formal dessa manifestação, seja ou não apelidada de queixa, denúncia, ou qualquer outro conceito, ou ainda do rigor da qualificação jurídico-penal dos factos”. J) Refere o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 05-12-2007, processo n.º 07P3758, relator Pires da Graça, que “não se exige que da queixa conste a fórmula sacramental de desejo de procedimento criminal; o seu conteúdo é muito menos exigente e tecnicista, situando-se ao nível da simples descrição fáctica. Não se exige, ainda, a identificação, total ou parcial, do sujeito activo do delito, que o ofendido pode ignorar (…). O que não se dispensa é que dos seus termos ou dos que se lhe seguirem se conclua, de modo inequívoco, a manifestação de vontade de perseguir criminalmente os autores de um facto ilícito”. K) No caso, em concreto, o gerente da sociedade exploradora do estabelecimento comercial lesado não se encontrava no local em que ocorreram os factos noticiados, pelo que foi contactado pela entidade policial presente, o legítimo titular do direito de queixa, o qual formalmente comunicou que deseja procedimento criminal contra o arguido, tendo ficado tal declaração a constar formalmente do auto de notícia. L) Constituindo a queixa uma manifestação de vontade de que seja instaurado procedimento criminal contra o agente, é de concluir que essa vontade foi adequadamente manifestada pelo seu titular do direito de queixa, no caso, o gerente da sociedade exploradora do estabelecimento comercial onde os factos ocorreram, e que a mesma não se encontrava dependente de quaisquer formalidades.» Respondeu ainda a Demandante, aderindo aos fundamentos da resposta do Ministério Público. Admitido o recurso, foi determinada a sua subida imediata, nos autos, e com efeito suspensivo. Neste Tribunal da Relação de Lisboa foram os autos ao Ministério Público tendo sido emitido parecer no sentido do acompanhamento da posição assumida na resposta produzida na primeira instância. Foi ainda apontado aquilo que, no entendimento do Digno Magistrado, será um erro de escrita constante da sentença recorrida, sem relevo para a decisão proferida. Cumprido o disposto no art.º 417.º/2 do Código de Processo Penal, não foi apresentada resposta ao parecer. Proferido despacho liminar e colhidos os vistos, teve lugar a conferência. Cumpre decidir. OBJECTO DO RECURSO Nos termos do art.º 412.º do Código de Processo Penal, e de acordo com a jurisprudência há muito assente, o âmbito do recurso define-se pelas conclusões que o recorrente extrai da motivação por si apresentada. Não obstante, «É oficioso, pelo tribunal de recurso, o conhecimento dos vícios indicados no artigo 410.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito» [Acórdão de Uniformização de Jurisprudência 7/95, Supremo Tribunal de Justiça, in D.R., I-A, de 28.12.1995] Desta forma, tendo presentes tais conclusões, a única questão a decidir prende-se com a verificação de eventual nulidade insanável por falta de queixa quanto ao crime de burla para obtenção de alimentos, bebidas ou serviços. QUESTÃO PRÉVIA Aponta o Ministério Público junto do Tribunal da Relação de Lisboa a existência de uma incorrecção da sentença. Com efeito, como indicado, na parte que se refere à determinação da medida concreta da pena de multa, consta da sentença “In casu, consideram-se as necessidades de prevenção geral relativas ao crime de ofensa à integridade física de nível médio elevado, pelo facto de estarmos perante tipos de criminalidade crescente, sendo frequentes os casos em que os populares recorrem à força para resolverem os seus atritos, o mesmo se referindo relativamente ao crime de injúria. Por outro lado, as necessidades de prevenção especial de socialização são de nível baixo no caso em apreço.” Concordamos que tais considerandos são, manifestamente, desadequados ao caso concreto, pelo que ao mesmo não dirão respeito. Afigura-se, pois, serem claro resultado de erro no processamento de texto por meios informáticos, correspondendo assim a erro material de escrita. Não se retirando de tal passagem qualquer consequência sobre a pena concreta fixada, a qual está justificada na enunciação dos critérios da sua escolha e nos factos provados, tal erro não comporta qualquer vício da sentença. Consequentemente, tem-se apenas aqueles dois parágrafos por não escritos (art.º 380.º/1 al. b) e n.º2 do Código de Processo Penal). FUNDAMENTAÇÃO Constitui nulidade insanável, nos termos do art.º 119.º al. b) do Código de Processo Penal a realização de inquérito e acusação pelo Ministério Público, relativamente a crimes semi-públicos, quando não tenha sido exercido o direito de queixa pelo seu titular. Apoiado nesta formulação, o Recorrente alega que nos presentes autos não foi exercido tal direito e, como tal, não poderia o Ministério Público acusar e o Tribunal julgar os factos relativos ao crime de burla para obtenção de alimentos, bebidas ou serviços. Antes de mais, está assente que este crime reveste a natureza de crime semi-público nos termos do art.º 220.º/2 do Código Penal. Vejamos, então, a matéria da queixa. Nos termos do art.º 49.º/1 do Código de Processo Penal, relativo à legitimidade do Ministério Público no procedimento dependente de queixa, «Quando o procedimento criminal depender de queixa, do ofendido ou de outras pessoas, é necessário que essas pessoas dêem conhecimento do facto ao Ministério Público, para que este promova o processo». Nenhuma norma especifica requisitos formais para a apresentação de queixa, cabendo ao processo registar a forma como a mesma foi produzida. Pergunta-se então: foi exercido o direito de queixa pela ofendida, legitimando a acusação formulada pelo Ministério Público? Do auto de notícia consta: «23- Questionada a Testemunha CC, o mesmo contactou o proprietário do estabelecimento de restauração mencionado, legítimo titular do direito de queixa pela burla na obtenção de alimentos, devidamente identificado no presente Auto, na qualidade de Denunciante, na pessoa de BB, o qual me comunicou formalmente que DESEJA PROCEDIMENTO CRIMINAL contra o ora detido, no entanto apenas iria formalizar essa denúncia na próxima segunda-feira, dia ... de ... de 2022, por de momento se encontrar impedido de o fazer. - - - //.» Mais consta dos autos o “Aditamento n.º 1” segundo o qual no dia 07 de Outubro de 2022, pelas 20:20h, BB se dirigiu à Polícia de Segurança Pública e entregou imagens refentes aos factos em discussão nos autos. Com efeito, dos termos do processo consta a entrega, na sequência da notificação de preservações de imagens, de uma PEN-DRIVE onde se encontram os videogramas apreciados no processo. Compulsados os factos, termos que concluir que é a sociedade comercial ... (também Demandante) a titular do direito de queixa, uma vez que foi a lesada pela perda do valor dos bens consumidos pelo Arguido. Resulta dos autos igualmente que o legal representante da sociedade é BB, pessoa que, aliás, deu andamento à pretensão indemnizatória em nome da sociedade. É entendimento pacífico que a queixa corresponde à declaração de vontade do titular do direito violado de que seja instaurado um processo criminal pela prática de factos que possam consistir na prática de um crime. O Código de Processo Penal não prevê, nem sujeita a queixa a qualquer formalismo específico. Como tal, apenas se exige que conste do processo uma comunicação do titular do direito de queixa que revele indubitavelmente a sua vontade de que haja procedimento criminal por determinado facto. No caso concreto, essa vontade foi expressa via telefone, como confirmou e registou no auto de notícia e detenção o agente autuante. Meses depois, ainda dentro do prazo legal para o exercício do direito de queixa, o titular da mesma dirigiu-se pessoalmente ao OPC competente e entregou as imagens pedidas para dar andamento à investigação, daí se retirando, mais uma vez, a intenção de que o inquérito continuasse. Não bastando isso, veio ainda deduzir pedido de indemnização cível, aderindo aos fundamentos da acusação. Vai mais longe o Recorrente dizendo que houve desistência de queixa. Apela, para tanto, ao Auto de Inquirição (Ref.: 140455619), datado de 27/10/2022 da testemunha CC. Na parte final do seu depoimento, declara que “não deseja procedimento criminal”. Sendo esta testemunha, apenas, funcionário da queixosa, não tem qualquer poder de representação da mesma. Como tal, quando profere tal afirmação, fá-lo relativamente a si, àquilo que a si respeita relativamente aos factos em apreço, ficando claro que, na eventualidade de se apurar matéria que corresponda à prática de um crime semi-público contra si, não deseja procedimento criminal quanto a tais factos. Ou seja, da declaração em apreço, não se retira qualquer consequência para o direito de queixa exercido pela Sociedade lesada. Assim, como dos autos consta, de forma clara, manifesta e tempestiva, a vontade de exercício do direito de queixa pelo respectivo titular, naufraga a pretensão recursiva. DECISÃO Nestes termos, e face ao exposto, decide o Tribunal da Relação de Lisboa julgar improcedente o recurso do Arguido, mantendo inalterada a sentença recorrida. Custas pelo Recorrente, fixando-se em 3 UC a respectiva taxa de justiça. Lisboa, 19.Março.2024 Rui Coelho João Ferreira Ester Pacheco dos Santos |