Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
163/09.0PBPVC-A.L1-9
Relator: FERNANDA SINTRA AMARAL
Descritores: CÚMULO JURÍDICO
PENA ÚNICA SUPERIOR A OITO ANOS DE PRISÃO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 02/22/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO
Sumário:  (da responsabilidade da relatora)
I. O texto da Lei n.º 38-A/2023, de 2/08, assim como os das demais anteriores leis de amnistia, como providências de excepção, devem interpretar-se e aplicar-se nos seus precisos termos, sem ampliações ou restrições que nelas não venham expressas, não admitindo, por isso, interpretação extensiva, restritiva ou analógica.
II. Assim, temos por definidas com precisão, na actual Lei da Amnistia - Lei n.º 38-A/2023, de 2/08 -, as regras a aplicar, nos seus precisos termos, concretamente: que o perdão, em caso de cúmulo jurídico (ainda que englobe penas perdoáveis e penas não perdoáveis) incide sobre a pena única e que o perdão só tem lugar se a pena de prisão a que possa ser aplicado for até 8 anos.
III. O limite máximo dos 8 anos é um dos limites introduzidos pelo legislador desta nova lei de amnistia, pelo que não seria compreensível interpretar tal limite como não sendo igualmente aplicável à pena única resultante do cúmulo jurídico.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na 9ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa:

I- RELATÓRIO
I.1 No âmbito do processo comum colectivo nº 163/09.0PBPVC, que corre termos pelo Juízo Central Cível e Criminal de Ponta Delgada - Juiz 2, Tribunal Judicial da Comarca dos Açores, em que são arguidos AA e BB, com os demais sinais nos autos, foi proferido despacho, datado de 28/09/2023, no qual o Mmº Juiz a quo decidiu nos termos seguintes [transcrição]:
“(…)
. percebemos que o arguido AA beneficia, uma vez que se tratada de penas até 8 anos, do perdão de 1 (um) ano, o que declaro.
. percebemos que o arguido BB, apenas beneficia de perdão quanto aos crimes por ele cometidos até 26.3.2010, contudo, porque em nada relvam os crimes que cometeu posteriormente, já que o perdão incide sobre a pena única, perdoo-lhe 1 (um) ano de prisão sobre a pena única a que foi condenado.
(…)”
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I.2 Recurso da decisão
Inconformado com tal decisão, dela interpôs recurso o Ministério Público, por requerimentos recursivos individualizados, datados de 15/10/2023 (refª 5392032) – quanto ao arguido AA; e de 16/10/2023 (refª 5394348) – quanto ao arguido BB, para este Tribunal da Relação, com os fundamentos expressos nas respectivas motivações, das quais extraiu as seguintes conclusões [transcrição]:
Quanto ao arguido AA:
“(…)
III. - CONCLUSÃO:
1. A discordância com a decisão do Tribunal a quo ocorre, por este ter aplicado 1 ano de perdão numa pena única de 9 anos de prisão.
2. Tal despacho violou o artigo 3.º n.º 1 e 4 da Lei n.º 38-A/2023 de 02/08, pelo que deve ser concedido provimento ao recurso, em consequência deverá o despacho em crise ser alterado por outro que negue a aplicação do perdão, mantendo-se a pena única em 9 anos de prisão.
Assim se fazendo “JUSTIÇA.”
(…)”
Quanto ao arguido BB:
“(…)
III. - CONCLUSÃO:
1. A discordância com a decisão do Tribunal a quo ocorre, por este ter aplicado 1 ano de perdão numa pena única de 9 anos e 2 meses de prisão.
2. Tal despacho violou o artigo 3.º n.º 1 e 4 da Lei n.º 38-A/2023 de 02/08, pelo que deve ser concedido provimento ao recurso, em consequência deverá o despacho em crise ser alterado por outro que negue a aplicação do perdão, mantendo-se a pena única em 9 anos e 2 meses de prisão.
Assim se fazendo “JUSTIÇA.”
(…)”
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Foram admitidos os recursos nos termos dos despachos proferidos a 06/11/2023 (quanto ao arguido AA) e a 09/11/2023 (quanto ao arguido BB).
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I.3 Respostas aos recursos
Efectuadas as legais notificações – ao arguido AA em 10/11/2023 (refª 56164912) e ao arguido BB em 10/11/2023 (refª 56164870), os mesmos não responderam aos respectivos recursos.
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I.4 Parecer do Ministério Público
Remetidos os autos a este Tribunal da Relação, nesta instância o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer, nos termos do qual, aderindo à posição do Digno Magistrado do Ministério Público na primeira instância, pronunciou-se no sentido da procedência dos recursos.
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I.5. Resposta
Pese embora tenha sido dado cumprimento ao disposto no artigo 417º, n.º 2, do Código de Processo Penal, não foram apresentadas respostas ao sobredito parecer.
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I.6 Concluído o exame preliminar, prosseguiram os autos, após os vistos, para julgamento do recurso em conferência, nos termos do artigo 419.º do Código de Processo Penal.
Cumpre, agora, apreciar e decidir.
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II- FUNDAMENTAÇÃO
II.1- Poderes de cognição do tribunal ad quem e delimitação do objeto do recurso:
Conforme decorre do disposto no n.º 1 do art.º 412.º do Código de Processo Penal, bem como da jurisprudência pacífica e constante [designadamente, do STJ1], e da doutrina2, são as conclusões apresentadas pelo recorrente que definem e delimitam o âmbito do recurso e, consequentemente, os poderes de cognição do Tribunal ad quem, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso a que alude o artigo 410º, nº 2, do Código de Processo Penal3, relativas a vícios que devem resultar directamente do texto da decisão recorrida, por si só ou em conjugação com as regras da experiência comum, a nulidades não sanadas (n.º 3 do mesmo preceito), ou quanto a nulidades da sentença (artigo 379.º, n.º 2, do C.P.P.).
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II.2- Apreciação do recurso
Face às conclusões extraídas pelo recorrente (Ministério Público), da motivação dos recursos interpostos (em tudo idênticos, apenas versando sobre arguidos diferentes), a questão decidenda a apreciar e decidir é a seguinte:
- se é de aplicar o perdão previsto na Lei n.º 38-A/2023, de 02/08, à pena única de 9 anos de prisão em que foi condenado o arguido AA e à pena única de 9 anos e 2 meses de prisão em que foi condenado o arguido BB, ambas na sequência de cúmulos jurídicos efectuados.
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Vejamos.
II.3- Da decisão recorrida [transcrição dos segmentos relevantes para apreciar a questão objecto de recurso]:
“(…)
Da aplicação ou não da Lei nº.38-A/2023, de 2 de agosto
(Perdão)
1.
Nestes autos, temos como arguido:
1.1.
AA, nascido a 29.12.1984…por isso com 30 anos de idade até 28.12.2015.
Por decisão transitada em julgado, tal arguido está aqui condenado:
1.1.a.
Por factos praticados entre 21.11.2009 e 12.8.2010, integradores de 7 crimes de furto simples (artº.203º do CP); 7 crimes de furto qualificado (artº.204º, nº2, al.e) do CP); 1 crime de furto qualificado (artº.204º, nº1, al.b) do CP) e 1 crime de condução sem habilitação legal (artº.3º, nºs.1 e 2 do DL 2/98, de 3.1), nas penas parcelares de 2 anos e 7 meses; 1 ano e 10 meses; 5 meses, 6 meses, 5 meses, 2 anos e 9 meses, 5 meses, 7 meses, 2 anos e 9 meses, 5 meses, 5 meses, 2 anos e 10 meses, 2 anos e 10 meses, 8 meses 2 anos e 9 meses e 2 anos e 6 meses;
1.1.b.
A pena única foi fixada em 9 anos de prisão.
1.1.
BB, nascido a 27.3.1979…por isso com 30 anos de idade até 26.3.2010.
Por decisão transitada em julgado, tal arguido está aqui condenado:
1.1.a.
Por factos praticados entre 21.11.2009 e 12.8.2010, integradores de 7 crimes de furto simples (artº.203º do CP); 7 crimes de furto qualificado (artº.204º, nº2, al.e) do CP); 1 crime de furto qualificado (artº.204º, nº1, al.b) do CP) e 1 crime de condução sem habilitação legal (artº.3º, nºs.1 e 2 do DL 2/98, de 3.1) e um crime de ameaça (artº.153º, nº.1 do CP), nas penas parcelares de 2 anos e 7 meses; 1 ano e 10 meses; 5 meses, 6 meses, 5 meses, 2 anos e 9 meses, 5 meses, 7 meses, 2 anos e 9 meses, 5 meses, 5 meses, 2 anos e 10 meses, 2 anos e 10 meses, 3 meses, 8 meses 2 anos e 9 meses, 2 anos e 6 meses;
1.1.b.
A pena única foi fixada em 9 anos e 2 meses de prisão.
*
2.
Nos termos do artº.2º da lei a que vimos fazendo referência, estão por ela abrangidas, para o que nos importa, as infrações praticadas até às 00:00 horas de dia 19 de junho de 2023, por pessoas que tenham entre 16 e 30 anos de idade à data da prática do facto.
É o caso do arguido AA, pois, efetivamente, tinha menos de 30 anos à data da prática dos factos a que se reportam os crimes que lhe estão imputados e elencados acima em 1.1.a.
No que toca ao BB apenas em parte dos crimes por ele cometidos, os que se contêm até 26.3.2010, será o caso.
*
(…)
6.
Aqui chegados, percebemos que os arguidos estão condenados, como resulta acima do ponto 1., 1.1. e 1.2., por crimes que não figuram nas exclusões (…).
(…)
Mais sabemos que os crimes por ele cometidos não podem ser amnistiados face a respetiva moldura pena
Logo, há agora, que ter em conta o que decorre:
6.a.
Do artº.3º…que nos diz:
6.a.1.
Sem prejuízo do disposto no artº.4º, é perdoado um ano de prisão a todas as penas de prisão até 8 (oito) anos…sendo certo que, no caso de a pena surgir de cúmulo jurídico, o perdão incide sobre a pena única (nº.4 do artº.3º);
(…)
Olhando para o que vem de se apontar:
. percebemos que o arguido AA beneficia, uma vez que se tratada de penas até 8 anos, do perdão de 1 (um) ano, o que declaro.
. percebemos que o arguido BB, apenas beneficia de perdão quanto aos crimes por ele cometidos até 26.3.2010, contudo, porque em nada relvam os crimes que cometeu posteriormente, já que o perdão incide sobre a pena única, perdoo-lhe 1 (um) ano de prisão sobre a pena única a que foi condenado.
Perdões que, nos termos do artº.8º da lei a que vimos fazendo referência lhe é concedido sob as condições resolutivas de o beneficiário não praticar infração dolosa no ano subsequente à data da entrada em vigor da presente lei, caso em que à pena aplicada à infração superveniente acrescerá a pena ou parte da pena perdoada.
8.
Como resulta dos autos as liquidações das penas elaboradas perderam acuidade pelo que os autos haverão de ir com vista ao MºPº para as reformular, o que determino.
Comunique ao TEP este despacho.
Remeta boletins ao registo.
Notifique.
PD, d.s.
O Juiz de Direito,
(…)”
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II.4- Da questão decidenda
Como vimos, a questão colocada à apreciação deste Tribunal de recurso é se será de aplicar o perdão previsto na Lei n.º 38-A/2023, de 02/08, à pena única de 9 anos de prisão em que foi condenado o arguido AA e à pena única de 9 anos e 2 meses de prisão em que foi condenado o arguido BB, ambos na sequência de cúmulos jurídicos efectuados.
O recorrente Ministério Público entende que não, alegando que o despacho recorrido, que aplicou:
- 1 ano de perdão numa pena única de 9 anos de prisão, ao arguido AA; e
- 1 ano de perdão numa pena única de 9 anos e 2 meses de prisão, ao arguido BB,
viola o artigo 3.º n.º 1 e 4 da Lei n.º 38-A/2023 de 02/08, pelo que requer que o mesmo seja alterado por outro que negue a aplicação de tais perdões, mantendo-se a pena única de 9 anos de prisão, quanto ao arguido AA e de 9 anos e 2 meses de prisão, quanto ao arguido BB.
Cumpre apreciar.
A Lei n.º 38-A/2023, de 2 de Agosto estabelece um perdão de penas e uma amnistia de infracções por ocasião da realização em Portugal da Jornada Mundial da Juventude, abrangendo, além do mais, como resulta do seu art. 2.º, n.º 1, as sanções penais relativas aos ilícitos praticados até às 00:00 horas de 19 de Junho de 2023, por pessoas que tenham entre 16 e 30 anos de idade à data da prática do facto, nos termos definidos nos artigos 3.º e 4.º (cfr. arts. 2.º, n.º 1, e 3.º, n.º 1, da referida Lei).
Se o perdão de um determinado crime não estiver excluído do âmbito de aplicação da Lei n.º 38-A/2023, de 02/08, o benefício do perdão depende das demais condições de aplicação daquela lei, sendo relevante, desde logo, a idade do agente à data da prática dos factos, a medida da pena e o crime praticado.
Dispõe o n.º 1 do art. 3.º que “Sem prejuízo do disposto no artigo 4.º, é perdoado 1 ano de prisão a todas as penas de prisão até 8 anos”.
Em caso de cúmulo jurídico, estipula o referido n.º 4 que o perdão incide sobre a pena única, solução que, na sequência de um amplo consenso da doutrina e da jurisprudência 4, veio sendo adoptada ao longo do tempo, nas várias leis de amnistia, a partir da Lei n.º 16/86, de 11/06 5.
Incidindo o perdão sobre a pena única e não sobre as penas parcelares, colocou-se ao longo do tempo a questão de saber como aplicá-lo quando umas penas dele beneficiem e outras não.
Historicamente, várias foram as soluções adoptadas, que foram variando até à presente data.
Como refere o Conselheiro Artur Rodrigues da Costa 6: “ Começou por proceder-se do seguinte modo: efectuava-se um cúmulo jurídico das penas abrangidas pelo perdão e calculava-se a respectiva pena única, a que se descontava o perdão a que houvesse lugar; de seguida, realizava-se outro cúmulo com o remanescente dessa pena e todas as outras que não beneficiavam do perdão 7. (...) Uma corrente jurisprudencial foi, entretanto, formando-se em sentido diferente até se tornar hoje maioritária, senão unânime. Essa corrente parte dos seguintes pressupostos: Efectua-se um cúmulo jurídico das penas perdoáveis, segundo as regras dos arts. 77.º e 78.º do CP (cúmulo parcial), só para o efeito de calcular a extensão do perdão (em relação à pena encontrada); seguidamente, cumulam-se juridicamente, levando sempre em conta aquelas regras, todas as penas que fazem parte do concurso de crimes (quer as perdoáveis, quer as não abrangidas pelo perdão) e determina-se a pena única, sobre a qual incidirá o perdão. As razões para tal procedimento encontram-se no facto de, num cúmulo jurídico de penas, só deverem entrar penas parcelares e não penas que tenham sido construídas já a partir de uma operação de cúmulo, e o perdão dever incidir sobre a pena única obtida a partir do cúmulo jurídico de todas as penas parcelares 8.
Finalmente, outra solução acabou por surgir e que passou a ser defendida pelo referido autor, em consonância com o que defende no tocante à determinação da medida da pena única. Rejeitando a teoria de que a pena única deve ser obtida por uma determinada compressão ou fracção das penas singulares adicionadas à parcelar mais elevada, considera que deve ser determinada nos mesmos moldes da determinação das penas singulares, em função da culpa e prevenção, mas desta feita referidas à totalidade dos crimes em concurso (culpa pelos “factos em relação”, pelos quais se afere também a gravidade do ilícito global) e à personalidade unitária do agente, em termos de esta revelar uma tendência criminosa ou uma simples pluriocasionalidade. Não se trata, pois, de qualquer operação de adição, em que as penas singulares entrem de uma forma comprimida ou em determinada proporção, mas de encontrar a pena adequada, em função daquele critério, entre os limites mínimo e máximo que balizam a respectiva moldura penal do concurso. A essa pena conjunta é que se aplica o perdão, seja ele qual for, calculado através de um subcúmulo, da forma sobredita. Não há que ver, pois, o “peso” que tiveram as penas que beneficiaram do perdão na formação do cúmulo.
Perante a conjugação do disposto nos pontos 1 e 4 do art. 3.º da Lei n.º 38-A/2023, de 2/08, não há que recorrer, porém, a tais soluções jurídicas.
Isto porque, o texto da lei é inequívoco a tal respeito, sendo que desde há muito que a jurisprudência dos Tribunais Superiores vem sustentado que, como providências de excepção, as leis de amnistia devem interpretar-se e aplicar-se nos seus precisos termos, sem ampliações ou restrições que nelas não venham expressas, não admitindo, por isso, interpretação extensiva, restritiva ou analógica, devendo a respectiva interpretação, pura e simplesmente, conter-se no texto da respectiva lei, adoptando-se uma interpretação declarativa em que “não se faz mais do que declarar o sentido linguístico coincidente com o pensar legislativo” 9.
Ora, da análise do texto da Lei - nº 4 do art. 3.º, da Lei n.º 38-A/2023, de 2 Agosto - e de harmonia com a intenção legislativa (vejam-se os respectivos trabalhos preparativos), a primeira conclusão que se pode retirar é que, nas situações de cúmulo jurídico em que tenha sido aplicada pena única de prisão igual ou inferior a 8 anos, uma vez verificados os demais requisitos, o perdão deve ser aplicado na pena única de prisão, determinada de acordo com as regras estabelecidas nos arts. 77.º e 78.º do C.P., sendo nosso entendimento que sem necessidade de reformulação daquele cúmulo, mas tal extravasa o objecto do presente recurso, razão porque não desenvolveremos tal temática.
E o mesmo acontecerá relativamente a cúmulos jurídicos de penas em que tenham sido englobadas penas parcelares de prisão aplicadas por crimes que estão excluídos do perdão, com penas parcelares de prisão aplicadas por crimes não excluídos do perdão (cfr. arts. 3.º, n.º 4, e 7.º, n.º 3, da dita Lei). Isto porque, estando em causa vários crimes, a exclusão do perdão quanto a um ou alguns deles não prejudica a aplicação do perdão relativamente a algum ou alguns dos outros, verificados que estejam os necessários requisitos.
Portanto, como referimos, no caso de condenação em cúmulo jurídico, deverá atender-se à pena única, independentemente da medida fixada para as penas parcelares, dado que, neste caso, o perdão incide não sobre as penas parcelares, mas sobre a pena única. Sendo que, dos trabalhos preparatórios resulta que foi assim que a norma foi interpretada, ou seja, que em caso de condenação em cúmulo jurídico, a pena única de prisão não pode exceder 8 anos. Na verdade, consta do parecer do Conselho Superior da Magistratura: “Nestes casos, a aplicação da lei não suscita dificuldades: o perdão incidirá sobre a pena única, sendo perdoado um ano, com o limite previsto no n.º 1 do art.º 3.º (a pena não exceda 8 anos de prisão)”10.
Por outro lado, comparando o presente regime com o anterior previsto na Lei da Amnistia - Lei n.º 29/99, de 12 de Maio, facilmente se depreende que o legislador entendeu criar um limite máximo (8 anos) a partir do qual a aplicação de tais medidas de clemência não se poderiam colocar, dado ferirem a consciência ético-social geral, sendo que a sociedade não entenderia a aplicação das mesmas, para além daquele limite.
Como se lê no artigo publicado pela Julgar Online11, da autoria de Pedro José Esteves de Brito, cujo entendimento perfilhamos totalmente:
“Em bom rigor, trata-se de uma opção legislativa de apenas considerar merecedores do perdão aqueles que, nas demais condições previstas, tenham sido condenados numa pena de prisão não superior a 8 anos.
Ora, não se pode dizer que a limitação seja politico-criminalmente infundada. Na verdade, uma vez que uma pena de prisão de 8 anos é uma pena grave, não se afigura arbitrário considerar que um agente condenado numa pena de prisão de duração superior a 8 anos não é merecedor de qualquer medida de graça, tenha tal pena sido aplicada apenas por um crime ou se trate de uma pena única em cúmulo jurídico de várias penas parcelares porventura, cada uma delas, de medida inferior.
Por outro lado, no passado, já se atendeu à medida da pena de prisão aplicada para estabelecer uma diferenciação para a medida do perdão (cfr. arts. 1.º, n.º 1, da Lei n.º 29/99, de 12 de maio, 8.º, n.º 1, al. d), da Lei n.º 15/94, de 11 de maio, 14.º, n.º 1, al. b), da Lei n.º 23/91, de 4 de julho, 13.º, n.º 1, al. b), da Lei n.º 16/86, de 11 de junho).”
E tal mais não é do que a tradução do carácter restritivo12 que é característico da Lei em análise, opção legislativa sem dúvida, que pretendeu criar um quadro legislativo limitado no seu âmbito de aplicação, e resulta de forma bem patente das inúmeras excepções que da mesma decorrem, que vão desde o bem jurídico em causa, às vítimas, a determinadas qualidades ou características do agente ou da verificação de determinada agravante geral, entre outras.
O limite máximo dos 8 anos é igualmente um dos limites introduzidos pelo legislador da nova lei, pelo que não seria compreensível interpretar tal limite como não sendo igualmente aplicável à pena única resultante do cúmulo jurídico.
Por todo o exposto, temos por definidas com precisão, na actual Lei da Amnistia - Lei n.º 38-A/2023, de 2 Agosto -, as regras a aplicar, nos seus precisos termos, concretamente que o perdão, em caso de cúmulo jurídico (ainda que englobe penas perdoáveis e penas não perdoáveis) incide sobre a pena única e que o perdão só tem lugar se a pena de prisão a que possa ser aplicado for até 8 anos [art. 3.º, n.ºs 1 e 4], sendo este o índice inultrapassável de gravidade de comportamento do agente adoptado pelo legislador. A interpretação da lei, nos exactos termos em que se mostra redigida, veda a aplicação do pretendido direito de graça a penas superiores a tal limite máximo. Se assim não fosse, careceria, aliás, de sentido a fixação de tal limite.
Vejam-se, neste sentido, sendo a questão em apreço ainda e necessariamente muito recente, os seguintes arestos: Ac. RL, Rel. Desembargador Manuel José Ramos da Fonseca, datado de 23-01-2024, processo nº 1161/20.8PBSNT-D.L1-5; Ac. RP, Rel. Desembargador José António Rodrigues da Cunha, datado de 10/01/2024, processo nº 996/04.3JAPRT.P2 e Ac. RP, Rel. Desembargadora Maria dos Prazeres Silva, datado de 10/01/2024, processo nº 441/07.2JAPRT-E.P1.
Posto isto, vejamos a situação in casu.
No caso concreto, resulta que o arguido AA nasceu em 29/12/1984, por isso, com 30 anos de idade até 28/12/2015 e que o arguido BB, nasceu a 27/3/1979, por isso com 30 anos de idade até 26/3/2010.
O arguido AA, por decisão transitada em julgado, foi condenado por factos praticados entre 21/11/2009 e 12/8/2010, integradores de 7 crimes de furto simples (artº.203º do CP); 7 crimes de furto qualificado (artº.204º, nº2, al.e) do CP); 1 crime de furto qualificado (artº.204º, nº1, al.b) do CP) e 1 crime de condução sem habilitação legal (artº.3º, nºs.1 e 2 do DL 2/98, de 3.1), nas penas parcelares de 2 anos e 7 meses; 1 ano e 10 meses; 5 meses, 6 meses, 5 meses, 2 anos e 9 meses, 5 meses, 7 meses, 2 anos e 9 meses, 5 meses, 5 meses, 2 anos e 10 meses, 2 anos e 10 meses, 8 meses 2 anos e 9 meses e 2 anos e 6 meses; tendo sido condenado, em cúmulo jurídico, na pena única de 9 anos de prisão.
Por sua vez, o arguido BB, por decisão transitada em julgado, foi condenado por factos praticados entre 21/11/2009 e 12/8/2010 (incluindo aqui crimes não abrangidos pelo perdão, desde 26/3/2010 a 12/8/2010 - o que por si só não invalidaria a aplicação da Lei), integradores de 7 crimes de furto simples (artº.203º do CP); 7 crimes de furto qualificado (artº.204º, nº2, al.e) do CP); 1 crime de furto qualificado (artº.204º, nº1, al.b) do CP) e 1 crime de condução sem habilitação legal (artº.3º, nºs.1 e 2 do DL 2/98, de 3.1) e um crime de ameaça (artº.153º, nº.1 do CP), nas penas parcelares de 2 anos e 7 meses; 1 ano e 10 meses; 5 meses, 6 meses, 5 meses, 2 anos e 9 meses, 5 meses, 7 meses, 2 anos e 9 meses, 5 meses, 5 meses, 2 anos e 10 meses, 2 anos e 10 meses, 3 meses, 8 meses 2 anos e 9 meses, 2 anos e 6 meses; tendo sido condenado, em cúmulo jurídico, na pena única de 9 anos e 2 meses de prisão.
Assim, em tese, tendo em conta a idade dos arguidos à data da prática dos factos, e não estando qualquer deles incluído nas excepções decorrentes do art.7º da Lei n.º 38-A/2023, de 2 Agosto, nada obstaria à aplicação do referido perdão.
Ocorre que, considerando a medida das penas únicas em que foi condenado cada um dos arguidos, em cúmulo jurídico, logo se conclui que a aplicação do perdão, quer à pena única de 9 anos de prisão em que foi condenado o arguido AA, quer à pena única de 9 anos e 2 meses de prisão em que foi condenado o arguido BB, manifestamente extravasa os limites de uma estrita interpretação do texto da Lei n.º 38-A/2023, de 2 de Agosto, pois ultrapassa o limite máximo previsto no seu art.3º, nº1, aplicável igualmente ao disposto no nº 4, pelo que não é aplicável tal perdão.
Merece, pois, censura o despacho recorrido, que, ao aplicar 1 ano de perdão numa pena única de 9 anos de prisão, ao arguido AA; e 1 ano de perdão numa pena única de 9 anos e 2 meses de prisão, ao arguido BB, efectivamente violou o art. 3.º n.º 1 e 4 da Lei n.º 38-A/2023 de 02/08, revogando-se, assim, a aplicação de tais perdões, mantendo-se a pena única de 9 anos de prisão, quanto ao arguido AA e de 9 anos e 2 meses de prisão, quanto ao arguido BB.
Procedem, pois, os dois recursos interpostos pelo Ministério Público, relativamente a cada um dos arguidos.
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III- DISPOSITIVO
Pelo exposto, acordam os juízes da 9.ª Secção (Criminal) do Tribunal da Relação de Lisboa em conceder provimento aos recursos interpostos pelo Ministério Público, revogando-se a aplicação dos perdões concedidos, no despacho recorrido, mantendo-se a pena única de 9 anos de prisão, quanto ao arguido AA e de 9 anos e 2 meses de prisão, quanto ao arguido BB.
Sem custas.
Notifique nos termos legais.
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Lisboa, 22 de Fevereiro de 2024
Os Juízes Desembargadores,
Fernanda Sintra Amaral
Amélia Carolina Marques Dias Teixeira
Nuno Matos
_______________________________________________________

1. Indicam-se, a título de exemplo, os Acórdãos do STJ, de 15/04/2010 e 19/05/2010, in http://www.dgsi.pt.
2. Germano Marques da Silva, Direito Processual Penal Português, vol. 3, Universidade Católica Editora, 2015, pág.335; Simas Santos e Leal-Henriques, Recursos Penais, 8.ª ed., Rei dos Livros, 2011, pág.113.
3. Conhecimento oficioso que resulta da jurisprudência fixada pelo Acórdão de fixação de jurisprudência n.º 7/95 de 19/10/1995, publicado no DR/I 28/12/1995.
4. Ainda na vigência do Código Penal de 1886, o Supremo Tribunal de Justiça fixou a seguinte jurisprudência através do Assento de 11.10.1983, relatado pelo Conselheiro Quesada Pastor, acessível in www.dgsi.pt: “No caso de concurso real de infracções em que, nos termos do artigo 102 do Codigo Penal de 1886, tem de aplicar-se ao reu uma pena unica, é sobre esta, e não sobre as penas parcelares que o paragrafo 2 do mesmo artigo manda também indicar, que deve incidir o perdão previsto pelo artigo 2 da Lei n. 3/81, de 13 de Março”.
5. Cfr. Artur Rodrigues da Costa, O cúmulo jurídico na doutrina e na jurisprudência do STJ, Revista Julgar, n.º 21, 2013, Coimbra Editora, págs. 197 e segs. (https://julgar.pt/wp-content/uploads/2013/09/10-ArturCosta-C%C3%BAmulos-na-Jurisprud%C3%AAncia-do-STJ.pdf).
6. Loc. cit.
7. Cf., a título de exemplo, os Acórdãos de 04/10/2001, Proc. n.º 1801/01, da 5.ª Secção; de 03/07/2003, Proc. n.º 2022/03, da 5.ª Secção e de 26-01-2000, Proc. n.º 1182/99, da 3.ª Secção (este com dois votos de vencido e voto de desempate do presidente).
8. Cf. Acórdãos de 26/01/2000, Proc. n.º 931/99; de 16/2/2000, Proc. n.º 1140/99; de 11/10/2000, Proc. n.º 2357/2000; de 26/01/2005, Proc. n.º 3282/04; de 14/12/2005, Proc. n.º 3561/03; de 15/11/2006, Proc. n.º 3183/06, todos da 3.ª Secção
9. Cfr. Acórdão de Fixação de Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça n.º 2/2023, Diário da República, 1.ª série, de 1 de fevereiro de 2023.
10. https://app.parlamento.pt/webutils/docs/doc.pdf?path=6148523063484d364c793968636d356c6443397a6158526c63793959566b786c5a793944543030764d554e425130524d5279394562324e31625756756447397a5357357059326c6864476c3259554e7662576c7a633246764c324935596d4a68597a426d4c546b774d6a63744e444135595330344e4755334c545934595755344e446c6c4e6a5930595335775a47593d&fich=b9bbac0f-9027-409a-84e7-68ae849e664a.pdf&Inline=true
11. (https://julgar.pt/notas-praticas-referentes-a-lei-n-o-38-a20023-de-2-de-agosto-que-estabelece-um-perdao-de-penas-e-uma-amnistia-de-infracoes-por-ocasiao-da-realizacao-em-portugal-da-jornada-mundial-da-juventude/)
12. Vd.autor citado, pág.14, nota de rodapé 20, onde é exaustivamente referido o carácter restritivo da Lei n.º 38-A/2023, de 2 Agosto.