Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
2379/19.1T9PDL.L1-5
Relator: PAULO BARRETO
Descritores: MEDIDA DA PENA
SUSPENSÃO DA EXECUÇÃO DA PENA
PROGNOSE FAVORÁVEL
CONDENAÇÃO POSTERIOR
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 02/20/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO
Sumário: (da responsabilidade do relator)
I - Para a medida concreta da pena, o tribunal tem em conta todas as circunstâncias que depuserem a favor ou contra o arguido, tendo em conta o disposto nos artigos 40.º, n.º 1 (a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade) e 71.º, n.º 2, ambos do Código Penal. Acresce dizer que a determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção (art.º 71.º, n.º 1, do CP). Isto para dizer que os antecedentes criminais, bem como todas as demais circunstâncias agravantes ou atenuantes no âmbito da fixação da medida concreta da pena, são relevantes para avaliar a medida da pena da culpa e da medida preventiva, como se extrai do art.º 71.º, n.º 1, do CP.
II - Perspectiva diferente é a da apreciação da prognose favorável no âmbito da suspensão da execução da pena de prisão. O que o tribunal tem que concluir é se a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste. Na formulação do aludido prognóstico, di-lo o art.º 50.º, n.º 1, do CP, o tribunal reporta-se ao momento da decisão, não ao momento da prática do facto. Por isso, crimes posteriores àquele que constitui o objecto do processo, eventualmente cometidos pelo agente, podem e devem ser tomados em consideração e influenciar negativamente a prognose. Como positivamente a podem influenciar circunstâncias posteriores ao facto, ainda mesmo quando elas tenham sido já tomadas em consideração em sede de medida da pena.
III - Na suspensão da execução da pena, já não estão em causa considerações sobre a culpa, mas prognósticos acerca das exigências mínimas de prevenção.
IV - Há aqui uma clara contradição, na medida em que, num raciocínio lógico, aquele facto apurado conduzia precisamente ao contrário do que se decidiu (cfr. Sérgio Gonçalves Poças (Recurso da matéria de facto, Revista “Julgar”, nº 10, 2010, p. 28). A condenação posterior deveria ter sido ponderada no momento da suspensão da execução da pena e não aquando da determinação da pena, ou seja, o tribunal a quo determinou a pena fundado num facto a que não deveria ter recorrido e descurou aquele facto, ao invés do que devia, na ponderação da suspensão da execução da pena. Contradição que, pela sua relevância, é insanável, verificando-se o vício do art.º 410.º, n.º 2, al. b), do CPP, que, como vimos, é de conhecimento oficioso.
V - Não é possível fazer um juízo de prognose favorável. O arguido não interiorizou a sua conduta, não manifesta arrependimento e voltou a conduzir com álcool no sangue. A ameaça de pena e a simples censura do facto não realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam na Secção Criminal (5ª) do Tribunal da Relação de Lisboa:
I - Relatório
No Juiz 1 do Juízo Central Cível e Criminal de Ponta Delgada, Tribunal Judicial da Comarca dos Açores foi proferido acórdão com o seguinte dispositivo:
A) Nos termos que acima se deixam expostos, o Tribunal Colectivo decide:
1. Condenar o arguido AA, pela prática, em autoria material e na forma consumada, de 1 (um) crime de homicídio negligente, p. e p. pelo artigo 137.º, n.º 1 e 2 do Código Penal, por referência aos artigos 25.º, n.º 1, al. c) e 81.º, n.º 1, do Código da Estrada (Decreto-Lei n.º 114/94, de 03-05) – em concurso aparente com a prática em autoria material e na forma consumada de 1 (um) crime de condução perigosa de veículo rodoviário agravado pelo resultado morte, previsto e punível pelas alíneas a) e b) do n.º 1, do art.º 291.º, do Código Penal, com referência aos arts. 294.º, n.º 3, e 285.º, ambos do Código Penal – na pena de 4 (quatro) anos de prisão, suspensa na sua execução por igual período, sujeita a regime de prova, destinado a facilitar as condições de reintegração do arguido, nomeadamente com a imposição das seguintes injunções: a) Sujeição a tratamento médico à dependência de bebidas alcoólicas, com obrigatoriedade de cumprimento das orientações médicas, caso seja necessário e o arguido consinta; b) Sujeição a eventual a processo de avaliação psicológica e/ou psiquiátrica e ao cumprimento das orientações que da mesma resultarem, nomeadamente sujeição a acompanhamento psicoterapêutico individualizado; c) frequência do Curso “Condução de Veículos em Estado de Embriaguez – Estratégias de Prevenção da Reincidência”, da responsabilidade da Direcção Geral de Reinserção e Serviços Prisionais (DGRSP) ou outro equivalente; d) Sujeição obrigatória a entrevistas de acompanhamento com o Técnico de Reinserção Social; e) Manutenção de actividade laboral regular e/ou inscrição na Agência para a Qualificação e Emprego, absolvendo-o da pena acessória de proibição de conduzir veículos a motor.
2. Condenar o arguido AA, pela prática, em autoria material e na forma consumada, de 1 (um) crime de falsificação de documento, p. e p. pelos artigos 256.º, n.º 1, al. d) e e) e 255.º, ambos do Código Penal na pena de 160 (cento e sessenta) dias de multa, à taxa diária de 7,50€ (sete euros e cinquenta cêntimos, o que perfaz um total de 1.200,00€ (mil e duzentos euros).
3. Condenar o arguido BB, pela prática, em autoria material e na forma consumada, de 1 (um) crime de falsificação de documento, p. e p. pelos artigos 256.º, n.º 1, al. d) e e) e 255.º, ambos do Código Penal na pena de 160 (cento e sessenta) dias de multa, à taxa diária de 7,50 € (sete euros e cinquenta cêntimos, o que perfaz um total de 1.200,00 € (mil e duzentos euros).
4. Determinar a recolha de amostra de ADN ao arguido AA e subsequente inserção na base de dados prevista na Lei nº 5/2008, de 12 de fevereiro.
5. Condenar os arguidos no pagamento das custas criminais, fixando-se a taxa de justiça de 4 UC´s para o arguido AA e 3 UC´s para o arguido BB, bem como no pagamento das demais custas do processo (artigos 523.º e 514.º, n.º 1 e 2 do Código de Processo Penal e 8.º e 9.º do R.C.P.).
B) Relativamente ao pedido de indemnização civil formulado pela demandante ... contra o demandado AA, o Tribunal decide julgá-lo totalmente procedente e, em consequência, decide:
1. Condenar o demandado AA a pagar à demandante ... a quantia de € 196.407,52 (cento e noventa e seis mil quatrocentos e sete euros e cinquenta e dois cêntimos), acrescida de juros vincendos, à taxa legal, desde a citação e até efetivo e integral pagamento.
2. Condenar o demandado AA, nas custas do pedido de indemnização civil, nos termos do disposto no artigo 527.º, n.º 1 e 2 do Código de Processo Civil, ex vi artigo 523.º do C.P.P..
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Inconformado, o Ministério Público interpôs recurso, concluindo do seguinte modo:
“1. O Ministério Público entende que o tribunal recorrido não devia ter suspendido a execução pena de prisão de 4 anos em que foi condenado o arguido AA da forma como o fez, porque, em seu entender, a execução a prisão se revelava, do ponto de vista da prevenção especial de socialização.
2. No caso em concreto, a favor do arguido nada milita, os factos ocorreram quando o arguido se encontrava embriagado, não o tendo tal situação coibido de praticar crime doloso que viria a estar na origem do acidente e do crime negligente.
3. Contra o arguido milita também o facto de o acidente e as suas nefastas consequências se ter ficado a dever exclusivamente a culpa sua (o que nem sempre sucede em matéria de acidentes de viação), relevando quanto ao crime de homicídio a circunstância de a infração causal ser daquelas que a lei considera especialmente graves no exercício da condução, e quanto ao crime de condução em estado de embriaguez o facto de ter atuado com dolo.
4. Com base em tais circunstâncias entende o Ministério Público, ora recorrente ser adequada a sancionar a conduta do arguido, por ser essa a medida da censura social que ela suscita, a aplicação da pena de 4 anos de prisão efetiva.
5. Acresce que no caso, deve atender-se ainda à postura do arguido durante e logo após os factos, que não revelou qualquer capacidade de autocensura, no sentido de prestar qualquer auxílio à vítima, nem de assunção de qualquer responsabilidade, postura que não se alterou em audiência de julgamento, onde não demonstrou qualquer capacidade de autocensura.
6. Por fim, e ainda de dizer que o arguido demonstrou dificuldades de autocrítica relativamente ao seu pensamento consequencial, com tendência a desculpabilizar ou relativizar as suas ações, e as consequências dos seus comportamentos.
7. É certo, todavia, que o arguido está inserido socialmente, contudo o sentimento jurídico da comunidade não se compadece, em crimes como o dos autos, com pena de prisão suspensa na sua execução, sendo certo que, como é notório, os acidentes de viação ceifam, em Portugal, muitas vítimas.
8. A tutela dos bens jurídicos aconselha, por isso, que a pena seja fixada de acordo com o máximo permitido pela culpa.
9. Ora, considerando que suspender a execução da respetiva pena, não pode ser vista como um “ato de clemência”, mas sim como uma forma mais eficaz e adequada de ressocializar e reabilitar o condenado. A análise e ponderação de todos estes fatores, deve reportar-se sempre ao momento da decisão e não ao momento da prática dos crimes.
10. No caso concreto, estamos perante uma situação em que não aconselha a suspensão da execução da pena, pois além das consequências gravosas da conduta do arguido, traduzidas no resultado morte de uma pessoa. Estamos perante um arguido que não confessou de forma livre e espontânea os factos; em julgamento, contra as evidências periciais, fotográficas e testemunhais, tentou a desculpabilização com argumentos absurdos e inverosímeis. Por fim, não revelou qualquer capacidade de autocensura, no sentido de prestar qualquer auxílio à vítima, nem de assunção de qualquer responsabilidade, postura que não se alterou em audiência de julgamento, onde não demonstrou qualquer capacidade de autocensura.
11. Pelo exposto o Ministério Público defende que opção pela suspensão da execução da pena de prisão, por igual período de tempo (4 anos), parece-nos não satisfazer no caso concreto as finalidades da punição e a mais adequada ressocialização do condenado, visando o evitar de situações futuras similares e uma maior autorresponsabilidade e prudência na condução de veículos automóveis.
12. Em consequência deverá ser dado provimento à pretensão e ser revogada a decisão de suspensão da execução da pena de prisão e o arguido AA cumpra a pena de 4 anos efetiva pela prática, em autoria material e na forma consumada, de 1 (um) crime de homicídio negligente, p. e p. pelo artigo 137.º, n.ºs 1 e 2 do Código Penal, por referência aos artigos 25.º, n.º 1, al. c) e 81.º, n.º 1, do Código da Estrada (Decreto-Lei n.º 114/94, de 03-05)
13. Pelas razões acima exposta deve-se ser dado provimento ao recurso ora interposto, devendo ser revogada a decisão como requerido pelo Ministério Público.”
O arguido Público apresentou resposta, sem oferecer conclusões, a pugnar pela improcedência do recurso do Ministério Público.
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O recurso foi admitido, com subida imediata, nos próprios autos e efeito devolutivo.
Uma vez remetido a este Tribunal, a Exmª Senhora Procuradora-Geral Adjunta deu parecer no sentido da procedência do recurso.
Foi cumprido o disposto no art.º 417.º, n.º 2, do CPP.
Proferido despacho liminar e colhidos os “vistos”, teve lugar a conferência.
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II - A) Factos Provados
Do despacho pronúncia/acusação pública
1. No dia 8 de Julho de 2019, cerca das 20H00, o arguido AA entrou no estabelecimento de café a “...”, sito em ..., encontrando-se no interior do mesmo CC com quem o arguido confraternizou durante algum tempo enquanto ambos ingeriam bebidas alcoólicas, nomeadamente vinho.
2. A dada altura, decidiram ir comer sopas de Espírito Santo a um Império sito na ... tendo-se ambos deslocado na carrinha de caixa aberta em madeira de cor branca, propriedade do arguido AA e com aquele a conduzir.
3. Nas festividades do Espírito Santo, AA e CC jantaram as tradicionais sopas, acompanhadas de vinho de cheiro, tendo ambos ingerido alguns copos da referida bebida alcoólica.
4. Após terminarem a refeição e com a intenção de levarem sopas para a dona do café de ..., deslocaram-se para esse local, mais uma vez com o AA a conduzir a carrinha e o CC ao seu lado na qualidade de passageiro.
5. Por volta das 21H30, ao circularem pela ..., no sentido poente/nascente, AA e CC aperceberam-se da presença de DD, o qual se encontrava no lancil encostado à parede junto à porta da sua residência sita no n.º 3 da ..., acompanhado de EE.
6. No local a via de circulação tem 2,47 metros de largura de lancil a lancil e a largura de toda a artéria, a contar da parede da residência do ofendido até ao muro em frente, tem 2,85 metros de largura.
7. Por sua vez, o veículo ligeiro de mercadorias conduzido pelo AA é uma ... com a matrícula ..-BQ-.., a qual tem uma largura de 1,85 metros tirada dos extremos exteriores das barras do gradeamento da caixa de mercadorias, e uma altura de 1,44 metros tirada da altura do taipal da caixa ao solo.
8. No momento e local acima referidos, AA conduziu o referido veículo sob influência de álcool, tendo registado uma TAS de 1,44 g/l em teste realizado através de alcoolímetro legalmente aprovado.
9. Devido a este factor e ainda ao facto de circular numa rua estreita sem se assegurar de que o fazia com segurança e afastado do lancil onde se encontrava DD, AA não conseguiu controlar o seu veículo dentro do espaço livre que tinha à sua frente, indo embater com o espelho retrovisor do lado direito do veículo no lado esquerdo do peito do ofendido FF, o qual perdeu o equilíbrio e caiu a rolar entre a parede da sua residência e a viatura, acabando por atingir o solo onde embateu violentamente com a cabeça, perdendo de imediato os sentidos.
10. Naquele momento a via encontrava-se perfeitamente asfaltada, o piso encontrava-se seco e limpo de detritos e naquele local a via possui iluminação artificial.
11. Alertado do sucedido por CC, AA parou o veículo a cerca de 7 metros de distância do local do embate e saíram ambos do mesmo, deslocando-se para junto do ofendido que se encontrava deitado no solo.
12. Após verificar o estado do ofendido, AA acabou por entrar na carrinha com CC, abandonando o local apesar de se ter apercebido do estado de saúde grave em que se encontrava o ofendido.
13. Depois de estacionar o veículo perto da ..., AA e CC voltaram ao local do sinistro onde se mantiveram durante algum tempo, após o que AA voltou a abandonar o local na companhia de CC com intenção de ir levar para ... as sopas do Espírito Santo que tinha consigo.
14. Em consequência do embate, DD sofreu ferida unida com 9 agrafes na região frontoparietal esquerda e equimose frontoparietal direita; na região da topografia escapular apresenta um dermografismo compatível com trauma por objecto rectangular, incompleto, compatível com espelho retrovisor, faz um grafismo de aproximadamente 2/3 de rectângulo, existindo os dois lados maiores e internamente o menor; equimose no punho anterior e 1/3 inferior do antebraço na região anterior, escoriação do 1/3 inferior e posterior do antebraço; na cabeça apresenta sufusões sanguíneas subepicranianas frontoparietais bilateralmente com infiltração do músculo temporal esquerdo, fractura temporo occipital direita, hematoma subdural frontal mais intenso à esquerda, hemorragia subaracnoídea fronto parieto temporal, occipital esquerda e parieto temporo occipital direita, zona de contusão com destruição parcial frontal esquerda com desaparecimento de sulcos e circunvoluções, edemaciado com encravamento do tronco cerebral ao forâmen magno; tendo a morte de DD, ocorrida em 23 de Julho de 2019, após vários dias em coma, sido devida às lesões traumáticas crânio meníngeo encefálicas descritas.
15. Ao conduzir o veículo sob a influência de álcool, numa rua estreita sem se assegurar de que o fazia com segurança e afastado do lancil onde se encontrava DD, AA provocou o embate do veículo ..-BQ-.. no ofendido, criando, desta forma, perigo para a vida do ofendido, o que quis e conseguiu, não prevendo, no entanto, a possibilidade de queda do mesmo e as lesões que levaram à sua morte.
16. Nas circunstâncias acima referidas AA sabia que estava obrigado a não conduzir após a ingestão de bebidas alcoólicas, a conduzir a uma velocidade lenta naquele local, não só por ser no interior da localidade mas também por se estar a aproximar de peões que se encontravam junto à via por onde circulava a qual era estreita, bem como a circular suficientemente afastado do lancil onde se encontrava o ofendido de forma a não embater no mesmo, não o tendo feito apesar de se aperceber da presença de DD no lancil do lado direito da via onde circulava, encostado à parede.
17. Quando agiu nas circunstâncias acima referidas o arguido AA fê-lo sabendo que a sua conduta era socialmente desvaliosa e criminalmente punível.
18. O arguido AA, logo após o embate do seu veículo no ofendido e da queda deste no solo, apercebeu-se do estado de saúde grave em que se encontrava DD mas, ainda assim, para além de não ter accionado os meios para socorrerem o ofendido, não tentou socorrer o mesmo, abandonando o local de forma a não ser fiscalizado relativamente à taxa de álcool no sangue que sabia ser elevada.
19. O arguido AA agiu de forma deliberada, livre e consciente sabendo que com a sua actuação colocava em perigo a vida do ofendido DD, como colocou, e que a sua conduta era socialmente desvaliosa e criminalmente punível.
20. Junto da ..., AA foi abordado por agentes da Polícia de Segurança Pública, nomeadamente o agente GG, enquanto conduzia o veículo supra referido e, quando questionado onde esteve até ao momento da fiscalização, este respondeu que esteve na zona de ... tendo o seu irmão, o arguido BB, entregue ao mesmo a viatura momentos antes.
21. Nessa altura, de forma não concretamente apurada AA pediu a BB que comparecesse no local e se identificasse aos agentes da Polícia de Segurança Pública como sendo o condutor do veículo no momento do atropelamento de DD, o que este fez, comparecendo no local e identificando-se como o condutor do veículo no momento do atropelamento do ofendido.
22. Em face da informação fornecida por AA e por BB, o agente da Polícia de Segurança Pública GG elaborou a participação de acidente de viação relativa ao atropelamento de DD, fazendo constar da mesma que o condutor do veículo, no momento do atropelamento, foi BB e não AA, como efectivamente aconteceu.
23. Para darem mais consistência à sua versão dos factos de que foi o arguido BB que conduziu o veículo ..-BQ-.. no momento em que DD foi atropelado, de forma a encobrir a prática de um crime por parte de AA, os arguidos AA e BB, em comunhão de intentos e esforços e depois de previamente combinarem a forma de actuarem, elaboraram em conjunto uma participação amigável de acidente de viação com data de 9 de Julho de 2019 relativa ao atropelamento do ofendido na qual fizeram constar que o condutor do veículo foi “BB”, tendo este assinado na zona dos condutores e AA assinado na zona do participante, identificando o ferido como DD e descrevendo o acidente de viação em causa, documento este que entregaram na ... para que esta companhia de seguros regulasse o acidente de viação de acordo com o contrato de seguro em vigor referente ao veículo em causa.
24. Os arguidos AA e BB quiseram agir conforme descrito, elaborando e utilizando um documento cujo conteúdo sabiam não corresponder à verdade com vista a evitar que as autoridades de investigação criminal descobrissem o verdadeiro condutor do veículo que atropelou DD, assim encobrindo a prática por AA de um crime.
25. Na situação acima descrita os arguidos AA e BB agiram de forma deliberada, livre e consciente, sabendo que as suas condutas consubstanciavam a prática de um crime.
Do pedido de indemnização civil da seguradora ...:
26. No exercício da sua actividade de seguradora a ..., pessoa colectiva n.º ..., com sede na ..., celebrou um contrato de seguro do ramo de responsabilidade civil automóvel, obrigatório, contra terceiros, pela apólice n.º ..., através do qual o arguido transferiu a responsabilidade por acidentes de viação do veículo ..-BQ-.. até ao montante de 6.007.000,00 euros.
27. Por sentença proferida em 09.07.2019, e transitada em julgado em 24.09.2019, no âmbito do Processo Sumário n.º 246/19.8PTPDL, que correu termos em Ponta Delgada, foi o arguido AA condenado pela prática, em 08.07.2019, pela abordagem feita em 20. supra, de 1 (um) crime de condução de veículo em estado de embriaguez em pena de 70 (setenta) dias de multa, que pagou, e na pena acessória de proibição de conduzir pelo período de 3 meses e 15 dias.
28. O falecido DD deixou com únicos herdeiros a sua mulher EE e os seus 2 filhos maiores HH e II.
29. DD à data da morte, ocorrida em 23 de Julho de 2019, tinha 65 anos de idade.
30. A cônjuge do falecido despendeu com a funerária a quantia de 1.572,50 euros.
31. Os herdeiros do falecido reclamaram da demandante a quantia global de € 440.578,00 (quatrocentos e quarenta mil quinhentos setenta e oito euros).
32. Tendo a demandante chegado a acordo, através do mandatário dos mesmos, Dr. JJ, com os herdeiros do falecido no pagamento da quantia de €170.000,00 euros.
33. A demandante indemnizou os herdeiros do falecido a título de danos patrimoniais e não patrimoniais da quantia de €170.000,00 euros.
34. Em consequência do acidente o ofendido foi internado no ..., onde ficou nos cuidados intensivos e onde lhe ministraram cuidados de saúde cujo preço ascendeu a €26.407,52 euros e que foi liquidada pela demandante.
Dos antecedentes criminais, situação pessoal, familiar, profissional e económica do arguido AA:
35. Além da condenação referida em 27), por sentença proferida em 19.01.2023, e transitada em julgado em 20.02.2023, no âmbito do Processo Sumaríssimo n.º 236/22.3PTPDL, correu termos em Ponta Delgada, foi o arguido condenado pela prática, em 19.09.2022, de 1 (um) crime de condução de veículo em estado de embriaguez na pena de 80 dias de multa, e na pena acessória de proibição de conduzir pelo período de 9 meses.
Mais se provou que:
36. AA, de 45 anos de idade, é o primeiro elemento na ordem de nascimento de uma fratria de cinco, oriundo de núcleo familiar de nível socioeconómico baixo, recordando do seu processo de crescimento, os hábitos etílicos do progenitor, figura que veio a falecer há cerca de duas décadas, na sequência de patologias do foro digestivo.
37. Há cerca de quinze anos deparou-se com o falecimento de um irmão, quarto na ordem de nascimento, à época, com dezassete anos de idade, na sequência de acidente de viação.
38. Habilitado com o 4º ano de escolaridade, integrou o sistema regular de ensino em idade própria, integrando aos onze anos de idade atividade laboral na …, revelando uma integração social adequada, pautada por hábitos de trabalho regulares, tendo integrado os quadros da ...” há cerca de oito anos, desempenhando funções de ….
39. AA iniciou os consumos de bebidas alcoólicas aos catorze anos de idade, assumindo como hábito beber socialmente, e que perante situações do quotidiano geradores de tensão tem como prática se refugiar nos consumos.
40. AA mantêm há mais de uma década uma relação conjugal com KK e fruto desta relação, o casal tem dois filhos, menores de idade de 17 e 13 anos.
41. O casal reside com os dois descendentes, em casa da sogra do arguido, devido à frágil saúde da mesma, desde o nascimento da filha mais velha.
42. A habitação onde residem, pertence à sogra do arguido, e apresenta condições mínimas de habitabilidade, sendo constituída por cinco quartos, duas casas de banho, uma cozinha, uma sala, acrescida de um espaço exterior (quintal).
43. Na mesma habitação reside também um cunhado do arguido, irmão da sua esposa referenciado na comunidade por ligações ao mundo da toxicodependência.
44. O agregado subsiste do rendimento mensal de AA no valor de 750€ mensais, acrescido dos rendimentos que KK (esposa) aufere de um trabalho em regime de part-time iniciado no presente mês de janeiro, com a duração de cerca de 5 horas diárias.
45. Na sequência de “choque emocional” ocorrido no mês de setembro de 2022, em virtude do arguido se ter deparado com a sua viatura danificada na via pública, o mesmo recorreu ao serviço de Urgência do ..., e sido sujeito a internamento psiquiátrico, encontrando-se desde então de baixa médica auferindo subsídio de 350€.
46. AA beneficiou de suspensão provisória do processo à ordem do 731/18.9PBPDL, pelo eventual crime de violência doméstica, tendo como ofendida o seu cônjuge.
47. A medida tinha como injunção a frequência do Programa Contigo, com data de termino a 09/01/2023.
48. Revelou sempre postura educada, não assumindo consumos etílicos abusivos no decorrer da suspensão provisória, no entanto, recaiu nos consumos etílicos em agosto de 2022, estando referenciado na seguinte ocorrência NUIPC 236/22.3PTPDL, em que foi detido pela prática de um crime de condução de veículo automóvel sob o efeito de álcool, ocorrido a 19/09/2022.
49. AA refere ter recaído recentemente nos consumos etílicos, e perante descompensação psíquica beneficiou de internamento no ..., em 21/09/2022, encontrando-se desde então com atestado de incapacidade temporária para o trabalho, com intervenção psiquiátrica a referida instituição de saúde.
50. Paralelamente foi encaminhado para a ... a 05/12/2022 a fim de ser avaliado no que respeita à possível problemática etílica, encontrando-se a aguardar consulta médica.
51. O arguido não consome bebidas alcoólicas há cerca de dois meses e meio, tendo sido encaminhado pela Direção-Geral a 10/01/2023 para realização de teste de rastreio inopinado, tendo apresentado valores negativos que comprovam a sua abstinência.
Dos antecedentes criminais, situação pessoal, familiar, profissional e económica do arguido BB:
52. O arguido BB não tem antecedentes criminais.
Mais se provou que:
53. BB é oriundo de um agregado familiar de humilde condição socioeconómica e cultural, sendo o terceiro na ordem de nascimento de uma fratria e cinco elementos (um já falecido).
54. Filho de pai, …, falecido há cerca de 27 anos (quando o arguido contava 15 anos de idade), e de mãe, …, atualmente reformada, o arguido descreve o seu processo de desenvolvimento sociocognitivo e comportamental como positivo, embora o progenitor tivesse problemática aditiva associada (alcoolismo), situação com impacto na dinâmica familiar.
55. Há cerca de 22 anos que o arguido mantém relacionamento afetivo com LL, tendo-se autonomizado do agregado de origem aos 21 anos de idade, integrando o agregado de origem da companheira.
56. Em ... o casal contraiu matrimónio, e, desta relação têm um filho em comum, MM, de 16 anos de idade. Desde então o agregado constituído tem vivido, maioritariamente, em moradias de renda.
57. À data dos factos, o arguido vivia com o agregado constituído, na ..., freguesia de ..., deste concelho, em moradia de renda.
58. Actualmente, o agregado constituído do arguido encontra-se integrado no agregado de origem da esposa, composto pelos pais desta, na ....
59. O arguido integrou o sistema de ensino em idade própria, registando um percurso escolar pautado por elevado absentismo, desinteresse e fugas à escola, que culminaram no abandono do sistema de ensino aos 12 anos de idade, ficando habilitado apenas com o 4.º ano de escolaridade.
60. Foi já em idade adulta que o mesmo, por intermédio da Agência para a Qualificação e Emprego, concluiu o segundo ciclo do ensino básico na ..., e concluiu o terceiro ciclo do ensino básico, na ...), através da frequência de curso profissional de dupla certificação de …, ficando igualmente habilitado com o 9.º ano de escolaridade.
61. Aos 12 anos integrou o mercado de trabalho, de forma precária, no sector da …, por cerca de três anos consecutivos, tendo, posteriormente, trabalhado por cerca de três anos na ..., como ....
62. Trabalhou por cerca de dois anos numa empresa de …, e por catorze anos consecutivos, como ..., na empresa ...., situação profissional que perdurou até cerca de 2014, ficando em situação de desemprego, de forma involuntária, por dificuldades financeiras da entidade patronal.
63. Desde há cerca de seis anos que trabalha como ajudante de ... na empresa ....
64. O agregado constituído do arguido subsiste do vencimento deste, ao que acresce o vencimento do cônjuge, enquanto assistente operacional no ..., e o abono atribuído ao descendente, não sendo descritas dificuldades na satisfação das necessidades básicas.
65. O arguido situa o início da sua carreira aditiva aos 16 anos de idade, enquanto consumidor assíduo de canabinóides, que promovia no seio do grupo de pares.
66. Aos 21 anos de idade, após o falecimento do irmão, que tinha 15 anos à data, o arguido refugiou-se nos consumos de heroína, tendo, posteriormente, sido acompanhado em consultório privado, integrando programa de tratamento opiáceo com suboxone.
67. Encontra-se abstinente aos consumos de heroína há mais de 10 anos, embora mantenha, esporadicamente, consumos de canabinóides.
68. No que concerne aos consumos etílicos, admite consumos em contextos sociais e recreativos.
69. O falecimento do irmão revelou-se um acontecimento com grande impacto emocional no arguido, que ainda se reflete na actualidade, ficando o arguido, visivelmente, perturbado e emocionado, ao exprimir-se sobre este acontecimento, contudo, nunca beneficiou de acompanhamento psicoterapêutico individualizado.
70. Aos 14 anos de idade, na sequência de uma queda, foi operado à …, tendo, há cerca de dois anos, sido, novamente, submetido a intervenção cirúrgica …
71. Dos 9 aos 14 anos de idade, BB jogou futebol no ... e no ..., e, paralelamente, dos 7 aos 12 anos, fez parte de um grupo de folclore.
72. Entre os 18 e os 21 anos de idade fez parte de um grupo de teatro amador.
73. Envolve-se na dinâmica da freguesia onde vive, tendo sido, por duas vezes, mordomo nas festas religiosas do Espírito Santo.
74. O arguido ocupa os tempos livres a executar obras de requalificação da moradia adquirida pelo casal, sita na ..., deste concelho.
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II – B) Factos não Provados
Da acusação pública e da decisão instrutória:
a) Nas circunstâncias de tempo e lugar referidas em 21) AA telefonou para BB.
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III – Objecto do recurso
De acordo com a jurisprudência fixada pelo Acórdão do Plenário das Secções do STJ de 19.10.1995 (in D.R., série I-A, de 28.12.1995), o âmbito do recurso define-se pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação, sem prejuízo, contudo, das questões de conhecimento oficioso, designadamente a verificação da existência dos vícios indicados no nº 2 do art. 410º do Cód. Proc. Penal.
O recurso tem um único fundamento: a pena aplicada ao arguido AA não pode ser suspensa, tendo antes de ser efectiva.
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IV – Fundamentação
Depois dos factos em apreciação nestes autos, o arguido, por sentença proferida em 19.01.2023 e transitada em julgado em 20.02.2023, no âmbito do Processo Sumaríssimo n.º 236/22.3PTPDL, foi condenado pela prática, em 19.09.2022, de 1 (um) crime de condução de veículo em estado de embriaguez na pena de 80 dias de multa, e na pena acessória de proibição de conduzir pelo período de 9 meses.
Para a determinação da medida da pena considerou o tribunal a quo: as necessidades de prevenção especial, que se revelam medianas, considerando que o arguido à data da prática dos factos não tinha antecedentes criminais, embora, após estes factos tenha sido condenado em 2023, por factos praticados em 2022, pelo crime de condução de veículo em estado de embriaguez, o que revela necessidades que não podem ser descuradas.
E, na ponderação da suspensão da execução da pena, sustenta o seguinte: acresce que a ausência de antecedentes criminais à data da prática dos factos e a inserção social, laboral e familiar do arguido sustentam um juízo de prognose favorável ao comportamento futuro do arguido.
Ora, a fixação da medida concreta e a prognose favorável para a suspensão da execução da pena são matérias com perspectivas absolutamente distintas.
Para a medida concreta da pena, o tribunal tem em conta todas as circunstâncias que depuserem a favor ou contra o arguido, tendo em conta o disposto nos artigos 40.º, n.º 1 (a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade) e 71.º, n.º 2, ambos do Código Penal. Acresce dizer que a determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção (art.º 71.º, n.º 1, do CP). Isto para dizer que os antecedentes criminais, bem como todas as demais circunstâncias agravantes ou atenuantes no âmbito da fixação da medida concreta da pena, são relevantes para avaliar a medida da pena da culpa e da medida preventiva, como se extrai do art.º 71.º, n.º 1, do CP.
Perspectiva diferente é a da apreciação da prognose favorável no âmbito da suspensão da execução da pena de prisão. O que o tribunal tem que concluir é se a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste. Na formulação do aludido prognóstico, di-lo o art.º 50.º, n.º 1, do CP, o tribunal reporta-se ao momento da decisão, não ao momento da prática do facto. Por isso, crimes posteriores àquele que constitui o objecto do processo, eventualmente cometidos pelo agente, podem e devem ser tomados em consideração e influenciar negativamente a prognose. Como positivamente a podem influenciar circunstâncias posteriores ao facto, ainda mesmo quando elas tenham sido já tomadas em consideração em sede de medida da pena.
Na suspensão da execução da pena, já não estão em causa considerações sobre a culpa, mas prognósticos acerca das exigências mínimas de prevenção. O que está em causa, depois de escolhida a pena detentiva de acordo com os critérios e as finalidades expostas, é determinar se existe a esperança fundada de que a socialização em liberdade pode ser alcançada – cfr. Ac. da Relação de Évora, de 12.07.2016, processo n.º 189/15.4JAFAR.E1. Mas não basta. É igualmente necessário, como ensina o Professor Figueiredo Dias, que, desde que impostas ou aconselhadas à luz de exigências de socialização, a pena alternativa ou a pena de substituição só não serão aplicadas se a execução da pena de prisão se mostrar indispensável para que não sejam postos irremediavelmente em causa a necessária tutela dos bens jurídicos e a estabilização contrafáctica das expectativas comunitárias - Figueiredo Dias, Direito Penal Português – As Consequências Jurídicas do Crime, pg. 333.
Assim, os antecedentes criminais são ponderados na fixação da medida concreta da pena no âmbito das considerações sobre a culpa. Mas só os antecedentes criminais. A conduta posterior ao facto só é relevante quando destinada a reparar as consequências do crime (art.º 71.º, n.º 2, al. e), do Código Penal).
O acórdão recorrido não podia concluir que a prática de factos em 2022 que levaram à condenação pela prática de um crime de 2023 releva necessidades na ponderação determinação da pena que não devem ser descuradas.
Como também, já no momento da ponderação da suspensão da execução da pena – aqui interessa o momento da decisão -, não podia ter-se ficado apenas pela ausência de antecedentes criminais, olvidando a condenação de 2023 pela prática do crime de condução em estado de embriaguez.
Há aqui uma clara contradição, na medida em que, num raciocínio lógico, aquele facto apurado conduzia precisamente ao contrário do que se decidiu (cfr. Sérgio Gonçalves Poças (Recurso da matéria de facto, Revista “Julgar”, nº 10, 2010, p. 28). A condenação posterior deveria ter sido ponderada no momento da suspensão da execução da pena e não aquando da determinação da pena, ou seja, o tribunal a quo determinou a pena fundado num facto a que não deveria ter recorrido e descurou aquele facto, ao invés do que devia, na ponderação da suspensão da execução da pena.
Contradição que, pela sua relevância, é insanável, verificando-se o vício do art.º 410.º, n.º 2, al. b), do CPP, que, como vimos, é de conhecimento oficioso.
Aqui chegados, o nº 1 do art.º 426º do CPP estatui: Sempre que, por existirem os vícios referidos nas alíneas do nº 2 do artigo 410º, não for possível decidir da causa, o tribunal de recurso determina o reenvio do processo para novo julgamento relativamente à totalidade do objecto do processo ou a questões concretamente identificadas na decisão de reenvio.
Ora, é possível a este tribunal, recorrendo ao texto da decisão recorrida, por si só ou conjugado com as regras da experiência comum, decidir da causa sem determinar o reenvio do processo.
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A medida da pena, sem ponto de partida pré-determinado pela jurisprudência, tem como limiar mínimo a expectativa comunitária na validade (e reforço) das normas penais violadas. É a protecção dos bens jurídicos, a prevenção geral positiva. Não obstante, a culpa, assente num juízo de censura sobre a conduta do arguido reflectida no facto criminoso praticado, tem que estar sempre presente, seja como limite máximo, seja como fundamento (para além de não haver pena sem culpa, as normas constitucionais penais, como é o caso do art.º 18.º, n.º 2, da CRP, exigem que a medida concreta não possa, em caso algum, ultrapassar a culpa). E, finalmente, o pendor da pena, mais acima ou mais abaixo, está na denominada prevenção especial positiva, na reintegração do agente (que não tem tanto a ver com as suas relações sociais, se tem família ou amigos, mas sobretudo se é expectável que seja um cidadão fiel ao direito). Se são mínimas as exigências de prevenção especial, a medida da pena baixa; sobe quando são maiores tais exigências.
O arguido foi condenado na pena de 4 anos de prisão pela prática de um crime de homicídio negligente, p. e p. pelo artigo 137.º, n.º 1 e 2 do Código Penal, punido com pena de prisão até 5 anos.
Pena que foi motivada do seguinte modo:
“- as exigências de prevenção geral que se fazem sentir relativamente a infracções desta natureza, são elevadas e relevantes, dada a gravidade que desses factos podem advir, demandando uma solene punição do agente a fim de ser recuperada a confiança na vigência e validade da norma violada.
- o grau de ilicitude dos factos, atendendo ao valor do prejuízo concreto e ao perigo concretizado;
- a conduta negligente do arguido, que reveste a forma de grosseira;
- as necessidades de prevenção especial, que se revelam medianas, considerando que o arguido à data da prática dos factos não tinha antecedentes criminais, embora, após estes factos tenha sido condenado em 2023, por factos praticados em 2022, pelo crime de condução de veículo em estado de embriaguez, o que revela necessidades que não podem ser descuradas.
- deve atender-se ainda à sua postura durante e logo após os factos, que não revelou qualquer capacidade de auto censura, no sentido de prestar qualquer auxílio à vítima, nem de assunção de qualquer responsabilidade, postura que não se alterou em audiência de julgamento, onde não demonstrou qualquer capacidade de auto-censura;
- valora-se ainda o facto de o arguido demonstrar “dificuldades de autocrítica relativamente ao seu pensamento consequencial, com tendência a desculpabilizar ou relativizar as suas açções, e as consequências dos seus comportamentos”.
O tribunal a quo considerou medianas as necessidades de prevenção especial, mas elevou a pena para cima, a um ano do limite máximo. O que, tendo em conta a ausência de antecedentes criminais, só pode ter sido pelas exigências resultantes da condenação em 2023, que, como vimos, não podia ter em conta.
Nesta medida, há que baixar a medida da pena, considerando-se justa e adequada, face às ponderadas exigências preventivas e à culpa, a pena de prisão de 3 (três anos de prisão).
O tribunal suspende a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a cinco anos se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição – artigo 50º, nº 1, do Código Penal.
Subjacente à decisão de suspensão da execução da pena está um juízo de prognose favorável sobre o futuro comportamento do arguido, ou seja, quando se possa prever que o mesmo não cometerá futuros crimes.
Como refere o Prof. Figueiredo Dias (Direito Penal Português, p. 331), sendo a suspensão da execução da pena “a mais importante das penas de substituição” – não apenas pela frequência com que é aplicada, mas também pelo âmbito lato de aplicação que comporta – a lei, nos termos do art.º 50º do Cód. Penal, exige não só a verificação de um requisito objectivo (condenação em pena de prisão não superior a 5 anos) como também requisitos subjectivos, determinados por finalidades de política criminal, que permitam concluir pelo afastamento futuro do delinquente da prática de novos crimes, através da sua capacidade de se reintegrar socialmente. Em causa já não está a medida da culpa do agente, mas prognósticos acerca das exigências mínimas de prevenção, sendo necessário determinar se existe esperança fundada de que a socialização em liberdade pode ser alcançada.
Pressuposto básico da aplicação da suspensão da execução da pena, é a existência de factos que permitam um juízo de prognose favorável em relação ao comportamento futuro do agente, em termos de que o tribunal se convença de que a censura expressa na condenação e a ameaça da pena aplicada sejam suficientes para afastar o arguido de uma opção desvaliosa em termos criminais para o futuro. Mas tal juízo tem de se fundamentar em factos concretos que apontem para uma forte probabilidade de inflexão em termos de vida.
Na formulação do juízo de prognose o tribunal deve correr um risco prudente pois a prognose é apenas uma previsão, uma conjectura, e não uma certeza. Quando existam dúvidas sérias e fundadas sobre a capacidade do agente para entender a oportunidade de ressocialização que a suspensão significa, a prognose deve ser negativa e a suspensão negada (cfr. Leal Henriques e Simas Santos, C. Penal Anotado, 1º Vol., 2ª Edição, 1995, Rei dos Livros, pág. 444 e Figueiredo Dias, ob. cit., pág. 344).
Todavia, mesmo que inserido socialmente, tal não é suficiente para a suspensão da execução da pena de prisão. Como refere o Prof. Figueiredo Dias (ob. cit., p. 344) “apesar da conclusão do tribunal por um prognóstico favorável, à luz, consequentemente, de considerações exclusivas de prevenção especial e socialização - a suspensão da execução da prisão não deverá ser decretada se a ela se opuserem as necessidades de reprovação e prevenção do crime, pois estão aqui em questão não quaisquer considerações de culpa, mas exclusivamente considerações de prevenção geral, sob a forma de exigências mínimas e irrenunciáveis de defesa do ordenamento jurídico. Só por estas exigências se limita - mas por elas se limita sempre - o valor da socialização em liberdade, que ilumina o instituto em análise”.
Ora, indo ao caso concreto, deve dizer-se que, concordantemente com o tribunal a quo, também não se vislumbram motivos de prevenção geral para condenar o arguido em pena efectiva. Apesar da negligência grosseira e da extrema gravidade do resultado (a morte de uma pessoa), não resulta da matéria apurada especiais circunstâncias que se possam considerar extremas e particularmente chocantes. A via era estreita e a infeliz vítima foi atingida pelo espelho retrovisor do veículo do arguido, perdendo o equilíbrio, acabando por atingir o solo onde embateu violentamente com a cabeça. É certo que, se não fosse a condução sob o efeito do álcool, a vítima não teria sido atingida, mas não se pode daí concluir, por um lado, que a suspensão da execução da pena, neste caso, transmitiria uma perigosa mensagem de benevolência, com claros prejuízos para a prevenção geral negativa, e, por outro, que a efectiva execução da pena de prisão se mostre indispensável para que não sejam postas irremediavelmente em causa a necessária tutela dos bens jurídicos e estabilização das expectativas comunitárias (prevenção geral positiva).
Não obstante o exposto, a questão aqui particularmente decisiva é a da apreciação da prognose favorável. Importa apurar se a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste.
Para isso, há que ponderar diversas circunstâncias que resultam do texto da decisão recorrida.
Em primeiro, o arguido abandonou o local do acidente, apesar de se ter apercebido do estado de saúde grave em que se encontrava o ofendido. Nem sequer se preocupou em accionar os meios de socorro. A sua única preocupação foi se eximir ao teste do álcool.
Depois, nunca manifestou qualquer arrependimento. Como se refere no Ac. STJ de 21-06-2007, processo n.º 07P2042, relator Conselheiro Simas Santos, dgsi.pt., dos autos não resulta que o arguido “mostre ter feito reflexão positiva sobre os factos ilícitos cometidos e propósito firme de, no futuro, inflectir na sua conduta anti-social, de modo a poder concluir-se pela probabilidade séria de não recair no crime; o arrependimento é um acto interior revelador de uma personalidade que rejeita o mal praticado; revela uma reinserção social, consumada ou prestes a consumar-se".
O arguido desvalorizou em juízo a sua conduta. Disse, por exemplo, em audiência: “Não me achava bêbado por aí além; devia estar bem; não apercebi que tinha batido; tirei o carro porque disseram que vinha uma ambulância”.
Acresce que engendrou com o co-arguido BB uma estratégia para evitar que as autoridades de investigação criminal descobrissem o verdadeiro condutor do veículo que atropelou DD, assim encobrindo a sua prática de um crime.
Do relatório social consta ainda: “Perante a atual situação jurídico penal, AA refere conhecer a presumível vítima, nomeadamente, por residirem na mesma freguesia, referindo não ter tido a perceção das suas ações no imediato, no entanto, quando abordado pelo facto do possível exercício de condução com ingestão de álcool, o mesmo refere não ter considerado que as suas capacidades estivessem comprometidas para o exercício da condução. No decorrer da entrevista percecionou-se um discurso demarcado por desejabilidade social, sendo percecionado dificuldades de autocritica relativas ao seu pensamento consequencial, com tendência a desculpabilizar ou relativizar as suas ações, e as consequências dos seus comportamentos, não considerando que a causa da morte da vítima tenha sido resultado direto do acidente, mas relativizando pelo facto do mesmo padecer, segundo o arguido, de patologias anteriores. Apesar do seu discurso de fraca autocritica, demonstra ansiedade e nervosismo pelo facto de poder vir a ser condenado, revelando, perante esse eventual cenário, estar disposto a cumprir com qualquer reação penal. É um indivíduo que apresenta necessidades de intervenção, e como tal, caso os factos se comprovem e perante uma eventual condenação, sugere-se a manutenção da terapêutica prescrita para estabilização da sua saúde mental, sendo igualmente importante a manutenção da abstinência ao consumo de álcool, identificando-se dificuldades em lidar com situações geradores de tensão, assim como fraco pensamento consequencial, associados, provavelmente, aos consumos abusivos de bebidas alcoólicas de longa data, embora abstinente nos últimos três meses.”
A sua postura de desvalorizar os factos vai ao ponto de aparentemente não ter sofrido consequências a nível emocional por ter causado a morte de uma pessoa, porém, sofreu um “choque emocional”, em setembro de 2022, por se ter deparado com a sua viatura danificada na via pública, o que levou a internamento psiquiátrico e subsequente baixa médica, que se mantém.
E, finalmente, depois dos factos em apreciação nestes autos, o arguido, por sentença proferida em 19.01.2023 e transitada em julgado em 20.02.2023, no âmbito do Processo Sumaríssimo n.º 236/22.3PTPDL, foi condenado pela prática, em 19.09.2022, de 1 (um) crime de condução de veículo em estado de embriaguez na pena de 80 dias de multa, e na pena acessória de proibição de conduzir pelo período de 9 meses.
Face ao exposto, manifestamente não é possível fazer um juízo de prognose favorável. O arguido não interiorizou a sua conduta, não manifesta arrependimento e voltou a conduzir com álcool no sangue. A ameaça de pena e a simples censura do facto não realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.
Resta citar o acórdão do STJ de 03.04.2003, processo n.º 03P853, relatado por Pereira Madeira, em dgsi.pt:
“O que não quer dizer, obviamente, que o juiz tenha de atingir a certeza sobre o desenrolar futuro do comportamento do arguido. Pois que o que está aqui em causa não é qualquer «certeza», mas a esperança fundada de que a socialização em liberdade possa ser lograda, o tribunal deve encontrar-se disposto a correr certo risco - digamos: fundado e calculado - sobre a manutenção do agente em liberdade. Havendo, porém, razões sérias para duvidar da capacidade do agente de não repetir crimes, se for deixado em liberdade, o juízo de prognose deve ser desfavorável e a suspensão negada”.
Estes os fundamentos para a não suspensão da execução da pena de prisão do recorrente, procedendo o recurso do Ministério Público.
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V – Decisão
Pelo exposto, acordam os Juízes desta Relação em
- Reduzir para 3 (três) anos a pena de prisão em que foi condenado o arguido AA, pela prática, em autoria material e na forma consumada, de 1 (um) crime de homicídio negligente, p. e p. pelo artigo 137.º, n.º 1 e 2 do Código Penal, por referência aos artigos 25.º, n.º 1, al. c) e 81.º, n.º 1, do Código da Estrada (Decreto-Lei n.º 114/94, de 03-05) – em concurso aparente com a prática em autoria material e na forma consumada de 1 (um) crime de condução perigosa de veículo rodoviário agravado pelo resultado morte, previsto e punível pelas alíneas a) e b) do n.º 1, do art. 291.º, do Código Penal, com referência aos arts. 294.º, n.º 3, e 285.º, ambos do Código Penal.
- Conceder provimento ao recurso do Ministério Público, e, em sequência, determinar o cumprimento efectivo desta pena de prisão.
Custas pelo arguido, fixando-se a taxa de justiça em 3 UC´s.

Lisboa, 20 de Fevereiro de 2024
Paulo Barreto
Mafalda Sequinho dos Santos
Sandra Ferreira