Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
211/21.5T8ALM.L1-7
Relator: LUÍS FILIPE PIRES DE SOUSA
Descritores: ACIDENTE DE VIAÇÃO
AUTO DE PARTICIPAÇÃO
RASTO DE TRAVAGEM
VALOR PROBATÓRIO
CONCORRÊNCIA DE CULPAS
PRIVAÇÃO DO USO DE VEÍCULO AUTOMÓVEL
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 02/20/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE PROCEDENTE
Sumário: I. O auto de participação de acidente de viação (vulgo croquis), no segmento em que se mensura e regista a distância do rasto de travagem, integra um documento autêntico, dotado de força probatória plena, a qual só pode ser desvirtuada mediante a arguição e prova de falsidade ideológica ou de falsidade material do documento.
II. Partindo do conhecimento científico expresso em tabelas (distância de travagem em metros em função da velocidade), um veículo comum, à velocidade de 100 km/h, tem uma distância de travagem (após o acionamento desta) até à imobilização de 56 metros. No caso em apreço, a distância de travagem foi de 48,30 metros, mas com esta particularidade: esta distância inicia-se após o ponto de embate entre o Porsche e o Renault. Este embate, de per si, constitui um evento que reduz a velocidade imprimida ao Porsche na medida em que o choque entre duas massas, em que a primeira esbarra na segunda, leva a que a velocidade da primeira seja esbatida tendo como consequência um encurtamento da distância percorrida até à sua imobilização. Não fora o embate com o Renault (que lhe diminuiu a velocidade), o Porsche ter-se-ia imobilizado a uma distância inevitavelmente superior a 60 metros.
III. Ocorrendo uma situação de concorrência de culpas de ambos os condutores na produção do acidente (concausalidade necessária), para efeitos de fixação da responsabilidade dos intervenientes, há que  averiguar se existe diferença de grau entre a culpa do lesante e o facto culposo do lesado, sendo certo que não existe correlação direta entre a amplitude dos danos e a gravidade da culpa:  nem sempre a culpa mais intensa provoca os danos mais extensos.
IV. Na jurisprudência do STJ existem várias posições a propósito do âmbito da indemnização por privação do uso de veículo:
(i) corrente que exige a prova concreta dos prejuízos efetivamente sofridos em consequência da privação do uso (prejuízo concreto);
(ii) corrente que exige a prova da utilização normal do veículo, bastando-se com isso para determinar os danos, nomeadamente pela equidade (Artigo 566º, nº3, do Código Civil) e
(iii) corrente que exige apenas a mera privação de uso, sem necessidade de demonstração de prejuízos concretos, podendo o dano ser calculado segundo a equidade (Artigo 566º, nº3, do Código Civil; prejuízo abstrato).
V. Subscreve-se a  corrente enunciada em (iii)  porquanto o mero uso constitui uma vantagem suscetível de avaliação pecuniária que, a ser suprimida, tem um impacto negativo na esfera do titular do direito, sendo que a tese do prejuízo concreto implica uma interpretação restritiva do ius fruendi inerente ao direito de propriedade, sendo certo que se pode possuir um veículo para colecionismo e/ou recreio e não necessariamente para deslocações do dia-a-dia, merecendo também tutela a primeira situação. A essencialidade do uso pode majorar a indemnização, mas não é requisito da existência desta.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes na 7ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:

RELATÓRIO
D... intentou  ação declarativa, sob a forma de processo comum, contra C..., S.A., pedindo a condenação da Ré a proceder à integral reparação do veículo sinistrado propriedade do Autor, designadamente o Porsche Panamera Turbo S, com a matrícula (...), ou em alternativa a indemnizar o Autor em quantia não inferior a €90.000,00 e, em qualquer dos casos, acrescida da compensação diária no montante de €50,00 desde 28 de Maio de 2020 até integral reparação, por privação de uso da viatura acidentada, e que se computam provisoriamente em €11.150,00, quantias essas acrescidas de juros de mora à taxa legal aplicável às obrigações civis vencidos e vincendos até integral reparação.
Alega, em suma, o Autor que a sua viatura foi interveniente num acidente de viação, cuja responsabilidade pela produção cabe em exclusivo ao segurado da Ré, do qual resultaram danos patrimoniais.
Regularmente citada, veio a impugnar parcialmente os factos alegados pelo Autor.
Após julgamento, foi proferida sentença com o seguinte dispositivo:
«Face ao exposto, julgo a presente acção parcialmente procedente e, em consequência:
a) condeno a Ré a proceder ao arranjo/reparação da viatura do Autor;
b) condeno a Ré a pagar ao Autor a título de indemnização pela privação de uso da viatura a quantia de €20,00 (vinte euros) por dia, a contar desde a data do acidente e até à efectiva reparação do veículo, o que perfaz à presente data a quantia de €22.620,00 (vinte e dois mil seiscentos e vinte euros);
c) condeno a Ré no pagamento de juros de mora vencidos e vincendos, sobre a quantia constante da alínea b), à taxa legal de 4% ao ano, a contar desde a data de citação da Ré e até efectivo e integral pagamento;
d) absolver a Ré do restante peticionado».
*
Não se conformando com a decisão, dela apelou a requerente, formulando, no final das suas alegações, as seguintes CONCLUSÕES (após despacho para as sintetizar):
«a. O Recurso é interposto da Sentença que julga a Ação parcialmente procedente e condenou a Recorrente a proceder à reparação do veículo do Recorrido, a pagar ao Recorrido a quantia de € 20,00/dia a título de a. O Recurso é interposto da Sentença que julga a Ação parcialmente procedente e condenou a Recorrente a proceder à reparação do veículo do Recorrido, a pagar ao Recorrido a quantia de € 20,00/dia a título de privação do uso, desde a data do acidente e até à data da reparação, e no pagamento de juros de mora à taxa de 4%; decisão com a qual a Recorrente não se conforma.
b. Entende a Recorrente que o Tribunal fez uma incorreta apreciação da prova documental e testemunhal, conforme melhor se detalha em sede de Alegações, devendo este Tribunal alterar a decisão quanto à matéria de facto nos termos aí devidamente alegados.
c. De tal alteração quanto à matéria de facto concluir-se-á que a responsabilidade pelo acidente em causa nos presentes Autos é de imputar ao Recorrido, e não ao condutor do veículo seguro junto da Recorrente, sendo esta, em consequência, absolvida dos pedidos.
d. Também de tal alteração se deverá concluir que o veículo do Recorrente ficou numa situação de perda total, sendo qualquer eventual indemnização cumprida em dinheiro, e não através da reparação do veículo.
e. Quanto à dinâmica do acidente, tendo presente os meios de prova devidamente elencados e apreciados nas Alegações, entende a Recorrente que os factos provados M), N) e O) deveriam ter sido considerados como factos não provados, o facto Q) deveria ter a redação indicada nas Alegações, e os factos não provados 4, 5, 6, 7, 9 e 10 deveriam ter sido considerados como factos provados.
f. Deve a decisão quanto à matéria de facto no que respeita à dinâmica do acidente ser alterada em conformidade com o alegado nas Alegações, com a consequente alteração da Sentença recorrida, mais concretamente, com a integral absolvição da Recorrente do pedido.
g. No que respeita à perda total do veículo do Recorrido, entende a Recorrente que o facto provado S) deverá ser alterado, e os factos não provados 11 e 12 deverão passar a ser considerados como factos provados, tendo presente os meios de prova devidamente elencados e apreciados nas Alegações.
h. Deve a decisão quanto à matéria de facto no que respeita à perda total, ser alterada em conformidade, com a consequente alteração da Sentença recorrida, sendo Recorrente absolvida dos pedidos.
i. Em suma, deve a decisão quanto à matéria de facto, no que respeita à dinâmica do acidente e à perda total, ser alterada em conformidade com alegado em sede de Alegações, mais concretamente, (i) passando os factos provados M), N) e O) a ser considerados como factos não provados; (ii) passando os factos provados Q) e S) a ter a redação transcrita nas Alegações; e (iii) passando os factos não provados 4, 5, 6, 7, 9, 10, 11 e 12 a ser considerados factos provados, com a consequente alteração da decisão quanto à matéria de facto e com a consequente alteração da Sentença recorrida no segmento condenatório, mais concretamente, com a integral absolvição da Recorrente dos pedidos.
j. A procedência da impugnação da decisão sobre a matéria de facto terá consequências sobre a decisão condenatória que assenta em pressupostos de facto que não encontram eco na verdade material, pelo que se pugna pela respetiva retificação, nos termos supra alegados.
k. Mas, mesmo que assim não fosse, sempre deveria a Recorrente ser absolvida dos pedidos, devendo a Sentença recorrida ser alterada em conformidade.
Na verdade,
l. Tendo presente a decisão do Tribunal no que respeita à matéria de facto, designadamente no que respeita aos factos impugnados, considerou o Tribunal que a responsabilidade pelo acidente era de imputar ao condutor do veículo com a matrícula VT..., seguro junto da Recorrente e condenou-a nos termos constantes na Sentença recorrida.
m. Tendo presente a alteração da decisão quanto à matéria de facto conclui-se que a responsabilidade pelo acidente é de imputar ao condutor do veículo com a matrícula VS..., aqui Recorrido, o qual circulava uma velocidade excessiva e desadequada para o local, não guardava distância de segurança e, apercebendo-se que não conseguiria imobilizar o veículo, tentou realizar uma manobra de ultrapassagem entre os dois demais veículos intervenientes no acidente, inexistindo qualquer via de circulação entre ambos.
n. É de imputar ao condutor do veículo com a matrícula VS..., aqui Recorrido, na sua totalidade, a responsabilidade pelo acidente em causa nos presentes Autos, o qual, com a sua conduta, violou, para além do mais, o disposto no n.º 1 do artigo 18.º, no n.º 1 do artigo 24.º e no n.º 1 do artigo 35.º do Código da Estrada.
o. Não guardou entre o seu veículo e os veículos com as matrículas VT... e EB... distância suficiente para evitar acidentes em caso de súbita paragem ou diminuição de velocidade; não regulou a velocidade de modo a que, atendendo à presença dos veículos com as matrículas VT... e EB..., às características e estado da via e do veículo e à intensidade do trânsito pudesse, em condições de segurança, executar a manobra em causa e de fazer parar o veículo no espaço livre e visível à sua frente; tentou realizar uma manobra de ultrapassagem em local e de forma que da sua realização resultou perigo tendo ocorrido o embate em ambos os veículos; e, em consequência, provocado o acidente em causa nos presentes Autos.
p. Se o Recorrido, tivesse guardado distância dos veículos com as matrículas VT... e EB..., não circulasse em excesso de velocidade, e não tivesse tentado ultrapassar os veículos com as matrículas VT... e EB... entre ambos, o acidente em causa nos presentes Autos não teria ocorrido.
q. Não sendo o condutor do veículo com a matrícula VT..., seguro junto da Recorrente, responsável pelo acidente, não pode à Recorrente ser assacada qualquer responsabilidade, pelo que deverá a Recorrente ser integralmente absolvida dos pedidos, conforme resulta da alínea a) do n.º 1 do artigo 11.º do Decreto-Lei n.º 291/2007, de 21 de Agosto.
r. Não sendo a responsabilidade do acidente de imputar ao condutor do veículo seguro junto da Recorrente, não recai sobre esta a obrigação de indemnizar nos termos da lei civil, ou qualquer outra obrigação, pelo que deverá a Recorrente ser integralmente absolvida dos pedidos formulados pelo Recorrido, sendo a Sentença proferida revogada em conformidade.
s. Caso assim este Tribunal não entenda, no que não se concede, e tendo presente todos os elementos probatórios juntos aos Autos deverá, quando muito, considerar estarmos perante a impossibilidade de identificar o responsável pelo acidente em causa nos presentes Autos e, consequentemente, concluir pela divisão de responsabilidades, conforme resulta dos n.ºs 1 e 2 do artigo 506.º do Código Civil.
t. Isto sem prescindir da integral absolvição da Recorrente do pedido nos termos devidamente alegados e sustentados no presente Recurso.
u. Quanto à perda total, deverá este Tribunal alterar a decisão quanto à matéria de facto nos termos alegados em sede de Alegações e, em consequência, num cenário de condenação, que não se aceita nem se reconhece, sempre deverá qualquer condenação da Recorrente ter em consideração a situação de perda total do veículo com a matrícula VS..., nos termos do artigo 41.º do Decreto-Lei n.º 291/2007 de 21 de Agosto.
v. Concluiu-se que o valor de mercado do veículo ascende à quantia de €60.300,00, que o valor da reparação do mesmo veículo ascendia à quantia de €101.400,70, e foi atribuído ao salvado o valor de €10.120,00.
w. Somando o valor do salvado - €10.120,00 - com o valor estimado da reparação - €101.400,70 - obtemos a quantia de €111.520,70, valor substancialmente superior a 120% do valor venal do veículo em causa, considerando que está em causa um veículo com mais de 2 (dois) anos.
x. Pelo que se conclui que se encontram integralmente preenchidos os pressupostos para se considerar a perda total do veículo, sendo que qualquer indemnização devida ao Recorrido ascenderia, apenas e só, à quantia de €50.180,00 (€60.300,00 - €10.120,00) conforme melhor se alegou em sede de Alegações e resulta do disposto no n.º 3 do artigo 41.º do Decreto-Lei n.º 291/2007 de 21 de Agosto.
y. O próprio Recorrido acaba por aceitar que o veículo está numa situação de perda total ao fazer um pedido subsidiário de pagamento considerando que o veículo em causa teria o valor de mercado de €90.000,00.
z. A ser assim, sempre a tal quantia deveria ser subtraída a quantia de €10.120,00, correspondente ao valor do salvado, o que corresponderia, no raciocínio do Recorrido na Petição Inicial, a uma quantia de €79.880,00.
aa. Em face do exposto, improcede, em absoluto, o decidido na Sentença recorrida, devendo concluir-se que o veículo com a matrícula VS..., na sequência do acidente em causa nos presentes Autos, ficou numa situação de perda total, sendo a obrigação cumprida em dinheiro, mais concretamente mediante o pagamento por parte do responsável pelo acidente da quantia de €50.180,00, considerando os cálculos e raciocínio acima realizados.
bb. No que respeita à condenação a título de privação do uso, relacionada com a situação de perda total do veículo do Recorrido, importa referir que, estando perante uma situação de perda total, não há lugar ao pagamento de privação do uso, não obstante não resultar da decisão quanto à matéria de facto quaisquer factos que permitissem ao Tribunal a quo condenar a Recorrente a título de privação do uso nos termos em que o fez, salientando-se, a este respeito, o disposto nos n.ºs 1 e 2 do artigo 42.º do Decreto-Lei n.º 291/2007, de 21 de Agosto
cc. Porquanto se o direito apenas surge com a definição de responsabilidades, não tendo a Recorrente assumido qualquer responsabilidade, não recaía sobre esta qualquer obrigação de disponibilizar ao Recorrido um veículo de substituição, pelo que nunca haverá lugar ao pagamento de qualquer quantia a título de privação do uso.
dd. Por outro lado, a necessidade do veículo por parte do Recorrido é, manifestamente, discutível, porquanto o mesmo terá, certamente, outros veículos que poderá utilizar durante o alegado período de privação do uso, não se justificando, pois, uma condenação no valor elevadíssimo como o Tribunal a quo o fez, devendo a mesma, num cenário de condenação que não se aceita, ser substancialmente reduzida, salientando-se, a este respeito, a jurisprudência citada em sede de Alegações.
ee. Pelo que, e em face de tudo quanto se expôs, deverá também ser revertida a decisão no que respeita à privação do uso sendo a Recorrente, em qualquer dos casos, absolvida de tal pedido.
ff. Deve, pois, ser a Sentença recorrida revogada em conformidade com o alegado, sendo a Recorrente absolvida da condenação.
Nestes termos, e nos mais de Direito, deve o presente Recurso ser considerado totalmente procedente, com alteração da Decisão relativa à Matéria de Facto - nos termos supra expostos - e consequente alteração da Decisão, designadamente quanto à matéria de direito, sendo a Recorrente integralmente absolvida dos pedidos, em virtude de a responsabilidade pelo acidente ser de imputar, na sua totalidade, ao aqui Recorrido,
Caso assim não se entenda, no que não se concede, sempre se deverá considerar pela repartição de responsabilidades, nos termos do artigo 506.º do Código Civil,
Em qualquer dos casos, sempre se deverá considerar que qualquer indemnização a arbitrar ao Recorrido deverá ter em consideração a situação de perda total do veículo, inexistindo, também por esta via, e pelos demais fundamentos invocados, lugar ao pagamento de qualquer quantia a título de privação do uso,
Assim fazendo, V. Exas., a costumada Justiça!»
Não se mostram juntas contra-alegações.
QUESTÕES A DECIDIR
Nos termos dos Artigos 635º, nº 4 e 639º, nº 1, do Código de Processo Civil, as conclusões delimitam a esfera de atuação do tribunal ad quem, exercendo um função semelhante à do pedido na petição inicial.[1] Esta limitação objetiva da atuação do Tribunal da Relação não ocorre em sede da qualificação jurídica dos factos ou relativamente a questões de conhecimento oficioso, desde que o processo contenha os elementos suficientes a tal conhecimento (cf. Artigo 5º, nº3, do Código de Processo Civil). Também não pode este Tribunal conhecer de questões novas que não tenham sido anteriormente apreciadas porquanto, por natureza, os recursos destinam-se apenas a reapreciar decisões proferidas, ressalvando-se as questões de conhecimento oficioso, v.g., abuso de direito.[2]
Nestes termos, as questões a decidir são as seguintes:
i.Impugnação da decisão da matéria de facto (conclusões a) a l));
ii.Culpa do autor na produção do acidente (conclusões m) a s));
iii.Perda total do veículo do autor (conclusões u) a aa));
iv.Indemnização pela privação de uso (conclusões bb) a dd)).
Corridos que se mostram os vistos, cumpre decidir.
FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
A sentença sob recurso considerou como provada a seguinte factualidade:
A - No dia 28 de Maio de 2020, o veículo de marca Peugeot, modelo 3008, com a matrícula VT..., à data conduzido por JA..., o veículo de marca Renault, modelo Mégane Cabrio, de matrícula EB..., à data propriedade de CM... e por esta conduzido, e o veículo de marca Porsche, modelo Panamera, de matrícula VS..., à data conduzido por D..., foram intervenientes num acidente de viação na A33, ao Km 3,5, em Almada, por voltas das 18 horas e 40 minutos.
B - No local o limite de velocidade é de 100 Km/hora.
C - No exercício da sua atividade comercial a Ré celebrou um contrato de seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel que teve por objeto o veículo automóvel de marca Peugeot, modelo 3008, com a matrícula VT..., titulado pela apólice nº (...).
D - O veículo de marca Porsche, modelo Panamera Turbo S, de matrícula VS... é propriedade de D....
E - Do documento junto a folhas 24 verso e 25 junto aos autos, cujo teor se dá aqui por reproduzido para todos os efeitos legais, consta:
Exmo.(a) Sr.(a)
D...
Lisboa, 16 de Junho de 2020
Assunto: Comunicação de Perda Total Condicional
Exmo.(a) Sr. (a),
Após peritagem efetuada à vossa viatura, a título condicional, concluíram os nossos serviços técnicos, pela impossibilidade da sua reparação, porquanto:
- Valor da estimativa da reparação, 101.400,70€, efetuada pela empresa Entreposto l,H
- Valor venal imediatamente anterior ao acidente: 60.300,00€
- Valor do salvado 10.120,00€, de acordo com a proposta apresentada pela empresa RPA, Lda. ou a quem esta indicar, com morada na Rua …, Braga, Telefone: (…) (proposta válida por 30 dias).
Do que precede, resulta que, o valor da estimativa da reparação, adicionado ao valor do salvado, é superior a 100% do valor venal da viatura imediatamente antes do acidente, pelo que, é a mesma considerada Perda Total.
De harmonia com o acima exposto, propõe-se esta seguradora indemnizar V. Exa, com base nos valores acima discriminados, contando que seja atribuída alguma percentagem de responsabilidade - e apenas na proporção, em que eventualmente, tal resultado se venha a verificar - ao condutor da viatura que garantimos.
Caso se confirme a obrigação de indemnizar, por parte da C…, S.A., o montante a liquidar, será sempre deduzido o valor do salvado, que ficará na vossa posse.
Mais informamos V. Exa, que nos termos do DL 291/07, se encontra disponível para consulta nos nossos serviços, cópia do relatório de peritagem.
Estamos ao dispor de V. Exa. para qualquer esclarecimento adicional que julgue necessário.
(…)’’
F - Do documento junto a folhas 26 e 26 verso junto aos autos, cujo teor se dá aqui por reproduzido para todos os efeitos legais, consta:
Exmo.(a) Sr.(a)
D...
Lisboa, 8 de Julho de 2020 Assunto: Definição de responsabilidade Exmo.(a) Sr. (a),
No seguimento de peritagem efetuada à viatura de V. Exa, concluímos estarmos perante uma situação de perda total do veículo em apreço, dado que a sua reparação é economicamente inviável nos termos do DL 291/07.
- Valor da estimativa da reparação, 101.400,70€, efetuada pela Empresa Entreposto I, H;
- Valor venal: 60.300,00€
- Valor do salvado, 10.120,00€ (melhor proposta recebida);
Neste contexto e caso estivéssemos a assumir a responsabilidade, o valor a indemnizar seria de 50.180,00€, deduzido do valor do salvado acima avaliado que se manterá na posse do seu proprietário.
No entanto, concluídas que estão as diligências necessárias com vista à tomada de posição, apuramos que a responsabilidade pela produção do presente sinistro lhe é imputável, já que não regulou a velocidade de modo que, e à intensidade do trânsito e a qualquer outras circunstâncias relevantes, possa, em condições de segurança, executar as manobras cuja necessidade seja de prever e, especialmente, fazer parar o veículo no espaço livre e visível à sua frente e ainda a manobra de ultrapassagem deve ser realizada de forma a que a sua realização não resulte em perito ou embaraço para trânsito, assim incumprindo o disposto no Artigo 24 do nº 1 e o art.º 35 ambos do Código da Estrada.
Mais informamos V. Exa. que não nos responsabilizamos por quaisquer despesas relacionadas com reboques, recolhas e privação de uso.
Estamos ao dispor de V.exa., para qualquer esclarecimento adicional que julgue necessário.
(...).”
G) As condições meteorológicas eram boas e o local concreto do acidente é uma reta com boa visibilidade, tendo 3 (três) vias de trânsito no mesmo sentido.
H) O Autor adquiriu o veículo em questão em 14 de Fevereiro de 2016 pelo preço de €150.000,00, enquanto trabalhava na Suíça, como (...).
I) No dia, hora e local a que alude a alínea A), o Autor circulava na referida autoestrada 33, no sentido Sul-Norte.
J) O veículo com a matrícula VT..., seguro junto da Ré, provinha do acesso à A33, no sentido Montijo - Almada, na via de aceleração, circulando na retaguarda do veículo com a matrícula EB....
L) Assim, a condutora do veículo com a matrícula EB..., ao entrar na via de aceleração para acesso à A33, inicia uma manobra de ultrapassagem ao veículo que a precedia, passando da faixa de rodagem mais à direita da A33 para a fixa de rodagem central da A33.
M) O veículo com a matrícula VT..., seguro junto da Ré, que circulava imediatamente atrás do veículo com a matrícula EB..., a velocidade não concretamente apurada, iniciou, igualmente, a mesma manobra de ultrapassagem ao veículo que precedia, ou seja, ao veículo com a matrícula EB..., e logo após essa mesma viatura de marca Peugeot 3008, com matricula VT..., entrou de imediato na faixa mais à esquerda onde o Autor circulava naquele momento, cortando a marcha do veículo conduzido pelo Autor.
N) O condutor do veículo de marca Peugeot 3008, com matrícula VT..., não verificou se podia passar a circular na faixa mais à esquerda da A33, e, como tal, não verificou a presença do veículo conduzido pelo Autor nessa faixa mais à esquerda, praticamente ao lado do veículo que circulava na faixa central da A33.
O) Em face da manobra encetada pela condutor do veículo Peugeot 3008, com matricula VT..., o Autor tentou desviar-se da mesma, não tendo logrado conseguir fazê-lo, embatendo com a sua parte dianteira mais à esquerda na traseira direita da viatura de marca Peugeot 3008, com matricula VT..., e também, com maior incidência, com a sua parte frontal mais à direita na traseira esquerda da viatura marca Renault, com matricula EB....
P) Por força do embate o veículo de matrícula EB... efetuou uma derrapagem de 32,40m.
Q) Foi feita Declaração Amigável de Acidente Automóvel, tudo conforme documento junto a folhas 23 verso e 24 dos autos, e cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais.
R) A reparação da viatura propriedade do Autor de marca Porsche, modelo Panamera Turbo S, de matrícula VS..., foi orçada em €101.400,70, pela empresa Entreposto I. H..
S) A viatura de marca Porsche, modelo Panamera Turbo S, de matrícula VS... valia, à data do sinistro, possuía os extras constantes do documento junto a folhas 07 a 19 verso dos autos, e cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais.
T) O Autor ficou privado do uso do veículo de marca Porsche, modelo Panamera Turbo S, de matrícula VS..., desde a data do sinistro e o que ainda ocorre.
U) A viatura de marca Porsche, modelo Panamera Turbo S, de matrícula VS... é do ano de 2014.

FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO
Impugnação da decisão da matéria de facto.
A apelante pretende que se proceda à alteração da matéria de facto provada nos seguintes termos:

FACTO CONSIDERADO PROVADO PELO TRIBUNAL A QUO:NOVA REDAÇÃO IMPETRADA PELA APELANTE:
Q) Foi feita Declaração Amigável de Acidente Automóvel, tudo conforme documento junto a folhas 23 verso e 24 dos autos, e cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais.Q) Foi feita declaração amigável de acidente de automóvel, tudo conforme documento junto a fls. 23 v a 24 dos autos, e cujo teor se dá aqui por reproduzido para todos os efeitos legais, num momento em que  o condutor do veículo seguro junto da Ré, fruto da pressão do acidente e das pessoas que se encontravam no local assinou sem consciência do croqui, tanto que o mesmo é contrário às declarações prestadas pelo mesmo às autoridades.
S) A viatura de marca Porsche, modelo Panamera Turbo S, de matrícula VS... valia, à data do sinistro, possuía os extras constantes do documento junto a folhas 07 a 19 verso dos autos, e cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais.S) A viatura de marca Porsche, modelo Panamera Turbo S, de matrícula VS... valia, à data do sinistro a quantia de €60.300.

Pretende ainda a apelante que os factos provados sob M), N) e O) sejam revertidos para não provados, bem como que os factos não provados sob 4 a 7, 9 a 12 sejam revertidos de não provados para provados. Recapitulando tais factos:
4 - O veículo com a matrícula VT..., seguro junto da Ré, após sinalizar a manobra, e acautelou-se que conseguiria realizar a manobra em segurança, e deslocou-se para a via de trânsito mais à esquerda.
5 - Quando o veículo com a matrícula VT..., seguro junto da Ré, já se encontrava na via de trânsito mais à esquerda e ao lado do veículo com a matrícula EB..., mais avançado, surge na sua retaguarda, inesperadamente, o veículo com a matrícula VS..., conduzido pelo aqui Autor.
6 - O condutor do veículo com a matrícula VS..., aqui Autor, ao deparar-se com os dois veículos lado-a-lado, apercebendo-se que, em virtude de circular com velocidade excessiva para o local e em virtude de, considerando a velocidade a que circulava, não guardar a distância suficiente dos demais utilizadores da via, travou bruscamente e, não tendo conseguido imobilizar o veículo, tentou ultrapassar os veículos passando entre ambos, o que não logrou conseguir.
7 - O veículo com a matrícula VT..., seguro junto da Ré, circulava a uma velocidade de cerca de 80 Km/hora.
9 - O Autor tentou realizar uma manobra de ultrapassagem entre dois veículos que circulavam à sua frente, em vias de trânsito contiguas.
10- O veículo com a matrícula VS..., conduzido pelo aqui Autor, circulava a velocidade superior a 100 Km/h.
11 - A viatura de marca Porsche, modelo Panamera Turbo S, de matrícula VS... valia, à data do sinistro, a quantia de €60.300,00.
12 - O valor do salvado referente à viatura de marca Porsche, modelo Panamera Turbo S, de matrícula VS... é de €10.120,00.
A apelante cumpriu os ónus processuais impostos pelo Artigo 640º, nada obstando à apreciação da impugnação da decisão de facto, com ressalva do que dirá de imediato a propósito da nova redação propugnada para a al. Q) dos Factos Provados.
A nova redação propugnada pela apelante para a al. Q) integra matéria que não foi oportunamente alegada pelas partes nos seus articulados e, como tal, é inatendível (Artigo 5º, nº1, do Código de Processo Civil). Mesmo que se considerasse tal factualidade como complementar, certo é que tais factos só poderiam ser introduzidos no processo no decurso do julgamento em primeira instância, mediante iniciativa da parte ou oficiosamente, sendo que, neste último caso, cabe ao juiz anunciar às partes que está a equacionar utilizar esse mecanismo de ampliação da matéria de facto, sob pena de proferir uma decisão-surpresa (cf. também: Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 7.2.2017, Pinto de Almeida, 1758/10, de 6.9.2022, Graça Amaral, 3714/15, de 30.11.2022, Barateiro Martins, 23994/16, de 30.5.2023, Jorge Dias, 529/21, de 7.12.2023, Cura Mariano, 2017/11; Acórdãos do Tribunal da Relação de Coimbra de  11.12.2018, Moreira do Carmo, 2053/14, de 13.9.2022, Moreira do Carmo, 3713/16; Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 19.12.2019, Castelo Branco, 11605/18). Em qualquer dessas circunstâncias, assiste à parte beneficiada pelo facto complementar e à contraparte a faculdade de requererem a produção de novos meios de prova para fazer a prova ou contraprova dos novos factos complementares – cf. Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Sousa, Código de Processo Civil Anotado, I Vol., 2022, 3ª ed., Almedina, p. 32.
Não tendo a apelante desencadeado tal mecanismo de ampliação fáctica nem tendo o mesmo sido utilizado oficiosamente pelo tribunal,  está precludida a ampliação da matéria de facto com tal fundamento em sede de apelação porquanto o conteúdo da decisão seria excessivo por envolver a consideração de factos essenciais complementares ou concretizadores fora das condições previstas no art.º 5º (cf. Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Sousa, Código de Processo Civil Anotado, I Vol., 2022, 3ª ed., Almedina, p. 860) ou, segundo Alberto dos Reis, ocorreria erro de julgamento por a sentença/acórdão se ter socorrido de elementos de que não podia socorrer-se (Código de Processo Civil Anotado, vol. V, pp.. 145-146). Note-se que a ampliação da matéria de facto (Artigo 662º, nº2, al. c), in fine, do Código de Processo Civil) tem por limite a factualidade alegada, tempestivamente, pelas partes, não constituindo um sucedâneo do mecanismo sucedâneo do Artigo 5º, nº2, al. b), do Código de Processo Civil).
Termos em que improcede a pretendida alteração da redação do facto Q).
O tribunal a quo fundamentou a decisão de facto no que tange à dinâmica do acidente nestes termos:
«Ao considerar como provados os factos descritos nas alíneas I) a Q) e como não provados os vertidos nos pontos 4 a 10 o Tribunal firmou a sua convicção no teor dos depoimentos prestados pelas testemunhas inquiridas e no teor de folhas 20 a 22 verso/64 a 66 dos autos (participação do acidente).
Em primeiro lugar importa desde já referir que a testemunha JS..., à data condutor do veículo de matrícula VT..., prestou um depoimento no entender do Tribunal parcial e pouco credível, visando de modo inequívoco afastar qualquer conduta que o pudesse responsabilizar pela ocorrência do acidente.
Com efeito, esta testemunha, afirmando que não ia com pressa, chegando ao ponto de dizer que se fosse com pressa faria outro percurso, descreveu o modo como o acidente ocorreu de forma a que das suas declarações resultasse que jamais efetuou um atravessamento das faixas de rodagem na diagonal, da direita para a esquerda, referindo que não é o seu modo de conduzir e afirmou ainda que realizou duas manobras de ultrapassagem de forma segura, só não se recordando se tinha ou não acionado o sinal de pisca-pisca com vista a sinalizar as referidas manobras.
Esta versão foi, em nosso entender, amplamente contrariada pelas testemunhas LM... e FC... que presenciaram o acidente.
A testemunha LM... que à data se fazia transportar no veículo conduzido pelo Autor, disse que forma convicta que o veículo seguro na Ré entrou na A33 e veio "meter-se” imediatamente à frente do veículo conduzido pelo Autor, sem verificar se a faixa esquerda de rodagem se encontrava livre. Tendo o veículo seguro na Ré surgido de forma inesperada e repentina na faixa da esquerda por onde circulava o Autor, este ainda tentou ir para a esquerda, mas como não conseguia então, e sempre com vista a evitar o embate, guinou para a direita embatendo num outro veículo.
Também a testemunha FC..., que circulava no seu veículo atrás do veículo conduzido pelo Autor e na mesma faixa de rodagem, afirmou que à data não conhecia o Autor e que só por força do acidente é que veio a conhecer.
Esta testemunha afirmou que o veículo seguro na Ré assim que entra na A33, passa de imediato da faixa da direita para a faixa da esquerda, atravessando as faixas de rodagem, na diagonal, de uma só vez. Assim, e de acordo com o depoimento desta testemunha, que ao aperceber-se da situação conseguiu desviar-se de modo a evitar qualquer embate, o veículo de marca Peugeot quando se coloca à frente do veículo conduzido pelo Autor, de modo inesperado para este, o Autor tenta desviar-se para a direita, mas não consegue evitar o embate na traseira direita do veículo Peugeot e no veículo de marca Renault, dado que este último circulava na faixa central.
Esta testemunha disse não se recordar se o veículo seguro na Ré acionou o sinal de pisca-pisca e afirmou ainda que o condutor do veículo seguro na Ré assumiu logo que "errou”.
Não obstante os esclarecimentos solicitados pela Ré a estas duas testemunhas, no sentido de apurar-se quando se dá o embate o veículo de marca Peugeot já se encontrava na faixa da esquerda, podendo levar à hipótese do Autor conduzir em excesso de velocidade ou em velocidade excessiva de modo a que não lograsse evitar o embate, o Tribunal ficou convicto que o veículo de marca Peugeot estava na faixa da esquerda, mas a passagem para a faixa da esquerda não foi efetuada de forma segura e da faixa central para a faixa esquerda, mas sim de forma repentina e inesperada, surgindo à frente do veículo conduzido pelo Autor que tentou efetuar uma manobra de recurso com vista a evitar o embate, o que não conseguiu. Mais ficou o Tribunal convicto que o veículo de marca Peugeot não efetuou duas manobras de mudança de faixa (da direita para a faixa central e da faixa central para a faixa da esquerda), mas sim um atravessamento na diagonal das faixas (uma única manobra da direita para a esquerda), sem tomar qualquer precaução no sentido de verificar se as vias, muito em particular a faixa da esquerda, se encontrava livre.
Esta convicção do Tribunal encontra ainda sustentação no teor do croqui elaborado na participação do acidente, pois, do mesmo não constam quaisquer marcas de travagem antes do local do embate. As marcas existentes são posteriores. Repare-se que de acordo com as regras de experiência comum de condução, caso o Autor circulasse em excesso de velocidade ou com velocidade excessiva (o que não se provou conforme infra se explicará), e avistasse o veículo de marca Peugeot a entrar na faixa da esquerda a primeira reação seria travar (até porque o veículo que conduzia permite uma travagem mais célere e segura e os veículos habitualmente conduzidos), mas como circularia com velocidade, não conseguiria imobilizar o veículo de modo a evitar o embate e então existiriam marcas de travagem antes do local de embate, o que não se verificou. O Autor apenas logrou guinar o volante do veículo como manobra de recurso, sem qualquer travagem, o que, no entender do Tribunal é demonstrativo que o surgimento do veículo de marca Peugeot na faixa da esquerda ocorreu de modo imprevisível, inesperado e repentino.
Também a testemunha JPS..., militar da GNR que elaborou a participação de acidente, afirmou que o embate ocorreu na faixa onde se encontram sinalizados os vestígios do embate o que sustenta a convicção do Tribunal, pois daqui resulta que, quando o embate ocorreu, a manobra de entrada do veículo de marca Peugeot na faixa da esquerda ainda não estava concluída (motivo pelo qual o veículo do Autor embate na traseira direita do veículo de matrícula VT...) e ainda na tentativa de evitar o embate o Autor apanha e embate no veículo Renault.
Mostrou-se ainda relevante a declaração amigável do acidente junta a folhas 23 verso a 24 dos autos, a qual se mostra assinada pelo punho do condutor do veículo seguro na Ré. Em audiência este condutor (testemunha JS...) tentou fazer crer que havia sido “pressionado” a assinar e concordar com o teor dessa declaração invocando argumentos, em nosso entender, pouco credíveis e até incongruentes de modo a desresponsabilizar-se quer do teor do que assinou, quer do modo como ocorreu o acidente.
Cumpre ainda referir que dos depoimentos prestados não foi possível aferir com certeza e segurança qual a velocidade a que circulavam os veículos, bem como não se provou que o veículo de matrícula EB... tenha capotado.
Por último, as testemunhas RS..., PD... e HM..., peritos averiguadores, que tiveram intervenção na elaboração do relatório junto pela Ré aos autos, em nada beliscaram a convicção do Tribunal.»
Apreciando.
Foi ouvida na íntegra a produção da prova testemunhal em julgamento.
Da respetiva audição resulta que está correto e fidedigno o resumo feito pelo tribunal a quo quanto aos depoimentos prestados por JPS... (GNR que fez o croquis junto aos autos), LM... (passageiro do veículo do autor, seguindo no banco de trás do lado do condutor), FC... (empresário que seguia a conduzir atrás do autor na A33, curiosamente a conduzir também um Porsche Panamera) bem como por JA... (condutor do Peugeot 3008, veículo segurado na ré/apelante).
O que se dirá de seguida serve apenas, por um lado,  de reforço da argumentação expendida pelo tribunal a quo, e, por outro, para desbravar caminho para um aspeto que, no nosso entender, não foi devidamente avaliado pelo tribunal a quo, qual seja a velocidade que o autor imprimia ao seu veículo.
A testemunha JS..., GNR que elaborou o croquis, precisou os termos da sua elaboração e foi confrontado com o mesmo. No croquis consta que o veículo do autor, após o ponto da colisão, deixou marcas de travagem de 48,30 m (cf. fls. 66). Mais consta que o veículo EB... (Renault), após ser embatido, efetuou uma derrapagem de 32,40 m. Este último facto consta do facto provado sob P). Todavia, o mesmo procedimento não foi adotado quanto às marcas de travagem.
Ora, o auto de participação de acidente de viação (vulgo croquis), no segmento em que se mensura e regista a distância do rasto de travagem, integra um documento autêntico, dotado de força probatória plena, a qual só pode ser desvirtuada mediante a arguição e prova de falsidade ideológica ou de falsidade material do documento (cf. Luís Filipe Sousa, Direito Probatório Material Comentado, Almedina, 3ª ed., pp. 156-160).
A testemunha LM... (ia no Porsche) afirmou ver o condutor do Peugeot a pôr-se logo de seguida (após sair da faixa de aceleração) na faixa da esquerda, sem fazer pisca, conjeturando que o condutor viria distraído porque isso “não é normal”. O autor tentou evitar a colisão (“cada um reage à sua maneira”), sendo tudo muito rápido, de maneira que o autor não conseguiu evitar a colisão. Questionado quanto à velocidade a que vinham, respondeu “íamos a circular normalmente, nem depressa nem devagar”.
A testemunha FC... (conduzindo outro Porsche atrás do autor) afirmou que assistiu a tudo, sendo que o Peugeot 3008, “mal entra vem tudo para a esquerda”, “nem olhou”, sendo que “não dava para desviar”. De forma espontânea, disse que “O Sr. do Peugeot, na altura, assumiu logo que erro, não devia ter feito aquilo”. “Ninguém está à espera que façam uma manobra daquelas”.
JS... (segurado da Ré) relatou a sua manobra a dois tempos até chegar à faixa da esquerda (“diagonal não é o meu estilo”), mais afirmando “é óbvio que não me recordo de todos os pormenores”, nomeadamente se fez pisca, asseverando que, habitualmente, faz o pisca e olha pelo retrovisor. Quando se apercebeu da aproximação “muito repentina” do veículo do autor na sua traseira, desviou-se mais para a esquerda numa altura em que já estava mais à frente do Renault (este seguia na faixa do meio), vindo o Peugeot a sofrer embate na traseira esquerda por parte do autor, sendo que este foi embater no Renault.
Finalmente, a testemunha HM... é perito averiguador, mas não teve intervenção pessoal nas diligências que deram azo ao “Relatório de Averiguação Completa” de fls. 46 e seguintes. Tal relatório foi elaborado por colaboradora da empresa que já não exerce aí funções. O papel da testemunha foi só de acompanhar a elaboração do relatório na qualidade e coordenador. Esta testemunha não evidenciou uma razão de ciência direta, limitando-se a elaborar conjeturas com base nas partes embatidas dos veículos e das fotografias que viu do local.
Aqui chegados, há que confluir na convicção assumida pelo tribunal a quo no que tange ao carácter imprevisto, repentino, irresponsável e insensato da manobra protagonizada pelo condutor do veículo seguro da Ré quando inicia a manobra de ultrapassagem do veículo EB..., que circulava na faixa central. Os depoimentos prestados por LM... e FC... são bastante assertivos e precisos quanto a essa manobra inopinada em diagonal. É certo que o condutor (JS...) tentou branquear a própria conduta, concedendo que não se lembrava se tinha feito pisca e que não tem tais hábitos. Todavia, se a manobra tivesse sido rodeada das precauções legais, o segurado da ré ter-se-ia apercebido da aproximação do autor e não teria chegado a ocupar a terceira via à esquerda. Acresce que a circunstância objetiva de inexistirem rastos de travagem do veículo do autor, antes do ponto de embate, reforça esta versão no sentido de que a manobra feita pelo segurado da ré foi inopinada e precipitada de modo a que o autor, confrontado com a mesma, não logrou travar antes do embate. Note-se que, conforme é sabido, o tempo de reação que precede a travagem é variado, diferindo entre ¾ de segundo e dois segundos e meio (cf. Luís Filipe Sousa, Prova por Presunção no Direito Civil, 4ª ed., Almedina, p. 345).
Sem prejuízo do que antecede, já não acompanhamos a convicção do Tribunal a quo quando desconsiderou a velocidade que o autor imprimia ao seu veículo.
Conforme vimos supra, está provado com valor de prova plena, que, após o ponto de embate entre o veículo do autor com o Renault (via do meio), existem marcas de travagem do veículo do autor que se estendem por 48,30 m.
É sabido que existem tabelas que sedimentam o conhecimento científico quanto à distância percorrida pelo veículo, em função da velocidade que lhe é imprimida, durante o tempo de reação do condutor, após o acionamento da travagem e a distância total em metros.
Refere-se em LUÍS FILIPE SOUSA, Prova por Presunção no Direito Civil, 4ª ed., Almedina, p. 346, o seguinte:
«A tabela que segue estabelece a distância total de travagem, partindo de um tempo médio de perceção-reação de ¾ de segundo, com um piso de asfalto seco, ou seja, reporta-se a um conjunto de condicionalismos ideais:

KM/hMetros
por segundo
Distância de
reação em
metros
Distância de
travagem
em metros
Distância total
em metros
102.82.10.62.7
205.64.22.26.4
308.36.3511.3
4011.18.3917.3
5013.910.41424.4
6016.712.520.232.7
7019.414.627.542.1
8022.216.735.952.6
902518.845.464.2
10027.820.856.176.9
11030.622.967.990.8
12033.32580.8105.8
13036.127.194.8121.9
14038.929.2109.9139.1
15041.731.3126.2157.4

»
Também em https://www.qld.gov.au/transport/safety/road-safety/driving-safely/stopping-distances/graph  se encontra este tipo de informação, nestes termos:
Stopping distances on a dry road
The following table shows the distance needed to stop on a dry road in an average family car.

SpeedReaction distanceBraking distanceTotal stopping distance
40km/h17m9m26m
50km/h21m14m35m
60km/h25m20m45m
70km/h29m27m56m
80km/h33m36m69m
90km/h38m45m83m
100km/h42m56m98m
110km/h46m67m113m

A diferença essencial entre as duas tabelas assenta no tempo de reação, assumindo-se nesta última um tempo de reação mais prolongado.
Deste conhecimento científico resulta que um veículo comum, à velocidade de 100 km/h, tem uma distância de travagem (após o acionamento desta) até à imobilização de 56 metros. No caso em apreço, a distância de travagem foi de 48,30 metros, mas com esta particularidade: esta distância inicia-se após o ponto de embate entre o Porsche e o Renault. Este embate, de per si, constitui um evento que reduz a velocidade imprimida ao Porsche na medida em que o choque entre duas massas, em que a primeira esbarra na segunda, leva a que a velocidade da primeira seja esbatida tendo como consequência um encurtamento da distância percorrida até à sua imobilização. O embate entre o Porsche e o Renault foi de tal forma violento que o Renault efetuou, por sua vez, uma derrapagem de 32,40 metros, indo imobilizar-se junto ao separador central.
Articulando estes elementos, inferimos que – não fora o embate com o Renault, que lhe diminuiu a velocidade – o Porsche ter-se-ia imobilizado a uma distância inevitavelmente superior a 60 metros.
 Acresce que os avultados danos sofridos pelo veículo do autor (cuja reparação foi orçada em €101.400,70 - facto R)) bem como pelo Renault (visíveis nas fotos de fls. 72 a 75, sendo o segurado da Ré a afirmar que a sua condutora ficou na altura inanimada) constituem também facto probatório ou facto-base indicador de que a velocidade imprimida ao Porsche era superior a 100 km/h.
 Dito de outra forma, há elementos seguros para afirmar que o Porsche seguia, antes do embate, a uma velocidade necessariamente superior a 100 km/h.
Note-se que o Porsche do autor é dotado de tração integral permanente e de sistema de anti bloqueio de rodas (ABS; cf. fls. 16), sendo comummente afirmado que o ABS não reduz necessariamente a distância de travagem, evitando apenas que as rodas bloqueiem (cf. https://road-safety.transport.ec.europa.eu/european-road-safety-observatory/statistics-and-analysis-archive/esafety/anti-lock-braking-systems-cars-abs_en ). Admitindo, em sentido contrário, que o sistema ABS é idóneo a reduzir a distância de travagem, então a conclusão anterior  teria de ser majorada no sentido de que a velocidade do Porsche era, ainda, superior.
Pelas razões acima expostas e analisadas, justifica-se a procedência parcial da impugnação da matéria de facto e sua clarificação nestes termos:
§ O facto N) passa a ter a seguinte redação: N - O condutor do veículo de marca Peugeot 3008, com a matrícula VT..., não verificou se podia passar a circular na faixa mais à esquerda da A33 e, como tal, não verificou a presença do veículo conduzido pelo autor nessa faixa mais à esquerda.
§ O facto O) passa a ter a seguinte redação: O – Sem prejuízo do referido em V), em face da manobra encetada pela condutor do veículo Peugeot 3008, com matricula VT..., o Autor tentou desviar-se da mesma, não tendo logrado conseguir fazê-lo, embatendo com a sua parte dianteira mais à esquerda na traseira direita da viatura de marca Peugeot 3008, com matricula VT..., e também, com maior incidência, com a sua parte frontal mais à direita na traseira esquerda da viatura marca Renault, com matricula EB....
§ É aditado o facto V) com a seguinte redação: V – O veículo com a matrícula VS..., conduzido pelo autor, circulava a velocidade superior a 100 km/h.
Em sentido inverso, improcede a pretendida reversão dos factos não provados sob 4, 5, 6, 7 e 9 para factos provados.
O Tribunal a quo considerou como provado sob S) o seguinte: A viatura de marca Porsche, modelo Panamera Turbo S, de matrícula VS... valia, à data do sinistro, possuía os extras constantes do documento junto a folhas 07 a 19 verso dos autos, e cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais.
A apelante pretende que esse facto passa a ter esta redação: a viatura de marca Porsche, modelo Panamera Turbo S, de matrícula VS... valia, à data do sinistro, a quantia de € 60.300.
Esta redação corresponde, na íntegra, à do facto não provado sob 11, cuja reversão para provado também é peticionada.
A prova produzida não sustenta a pretendida alteração.
Com efeito, a testemunha PD... é que explicou a metodologia seguida pela ré para elaborar a documentação junta a este propósito. Assim, a testemunha explicou que vão ver a site do país da matrícula (no caso, Suíça) veículos semelhantes ao veículo sinistrado. No caso, viram Porsches Panamera GTS 4.9 PDK e Turbo 4.8 PDK (fls. 98 a 100), mas o veículo do autor é um Porsche Panamera Turbo S 4.8 (fls. 14). Ou seja, não há total correspondência entre o que encontraram e o veículo do autor. E, sobretudo, tal testemunha foi bastante clara no sentido de que não foi atendido o valor dos extras, o que normalmente – quando fazem – aferem de acordo com o valor nacional. Ora, o veículo do autor tem 25 itens de equipamento opcional (cf. fls. 17).
Infere-se do que fica exposto que o valor proposto pela Ré de €60.300 não é fidedigno nem realista, sendo uma aproximação muito grosseira.
Contudo, do contexto da sentença, ressalta que ocorre erro de escrita na redação do facto S) porquanto não foi explicitada a ausência de apuramento de valor ou um valor concreto. Na fundamentação de direito, o Tribunal a quo expressou-se assim:
«Não se logrou provar que o veículo propriedade do autor valia, à data do sinistro, a quantia de, pelo menos, €90.000 (versão carreada pelo autor), ou que valia, à data, o montante de €60.300 (versão defendida pela Ré seguradora)» (p. 23 da sentença).
Assim, justifica-se a seguinte correção e clarificação do facto S): A viatura de marca Porsche, modelo Panamera Turbo S, de matrícula VS... tinha, à data do sinistro, valor concretamente não apurado, possuindo os extras indicados a fls. 17.
Finalmente, pretende a apelante que o facto não provado sob 12 (“O valor do salvado referente à viatura de marca Porsche, modelo Panamera Turbo S, de matrícula VS... é de €10.120”) seja revertido para provado.
A mesma testemunha explicou qual a metodologia seguida para atingir esse valor: colocam informação num portal de salvados e depois os potenciais compradores propõem valores, sendo indicado o melhor valor. Também aqui, salvo o devido respeito, não cremos que esta metodologia seja idónea para fixar o valor do salvado. Mais do que o mercado a falar circunstancialmente, haveria que recorrer a perito com conhecimentos na matéria.
Improcede, também aqui, a pretendida reversão.
Culpa do autor na produção do acidente (conclusões m) a s)).
Decorre da matéria de facto consolidada que o acidente dos autos se deveu a concorrência de culpas entre o autor e o condutor do veículo segurado na Ré.
O condutor do veículo segurado na Ré – ao efetuar a manobra de ultrapassagem nos termos apurados em J), M) a O) – incorreu em violação ao disposto nos Artigos 11º, nº 2 (“Os condutores devem, durante a condução, abster-se da prática de quaisquer atos que sejam suscetíveis de prejudicar o exercício da condução com segurança”), 35º, nº 1 (“O condutor só pode efetuar as manobras de ultrapassagem (…) em local e por forma que da sua realização não resulte perigo ou embaraço para o trânsito.”), 38º, nº 1 (“O condutor de veículo não deve iniciar a ultrapassagem sem se certificar de que a pode realizar sem perigo de colidir com veículo que transite no mesmo sentido ou em sentido contrário”), do Código da Estrada.
Por sua vez, o autor – ao conduzir da forma descrita sob i) e V), a mais de 100 km/h em local onde não era permitida circulação a mais de 100 km/ - incorreu em violação ao disposto no Artigo 24º, nº 1 (“O condutor deve regular a velocidade de modo a que, atendendo  à presença de outros utilizadores, em particular os vulneráveis, às características  e estado da via e do veículo, à carga transportada, às condições meteorológicas ou ambientais, à intensidade do trânsito e a quaisquer outras circunstâncias relevantes , possa, em condições de segurança, executar as manobras cuja necessidade seja de prever e, especialmente, fazer parar o veículo no espaço livre e visível à sua frente”) bem como ao Artigo 28º, nº 1, al. b) (limites especiais de velocidade instantânea, no caso, 100 km/h), do Código da Estrada. «O conceito de velocidade excessiva, definido no art.º 24.º, n.º 1, do CEst, contempla duas realidades distintas: uma vertente absoluta, verificada sempre que se ultrapassem os limites legalmente estipulados, e uma vertente relativa, quando a não adequação da marcha à situação concreta, implica que o condutor não consiga parar no espaço visível à sua frente» (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 23.5.2019, Hélder Almeida, 2222/11).
De acordo com os princípios consignados nos Artigos 483º e 563º do Código Civil, causa de um acidente é a ação ou omissão idónea a produzi-lo. Tem tais características a ação ou omissão que, no consenso da generalidade das pessoas medianamente prudentes, colocadas nas circunstâncias do caso, e segundo um juízo de prognose póstumo e de acordo com as regras da experiência comum ou conhecida do agente, é apta a produzir o efeito danoso.
No caso em apreço, o acidente ocorrido corresponde a um daqueles que a lei pretende evitar quando impôs a disciplina traduzida nas normas violadas por ambos os condutores. As infrações cometidas pelos condutores foram causais do acidente porque, quando não concretamente cometidas, este não se teria seguramente verificado. Existe nexo de causalidade entre o acidente e as infrações salvo se se interpuser outra causa que, interrompendo o nexo causal, seja por si só causa do acidente, o que não está minimamente provado nos autos.
Verifica-se, assim, uma situação de concorrência de culpas de ambos os condutores na produção do acidente (concausalidade necessária). Nestas situações, cumpre averiguar se existe diferença de grau entre a culpa do lesante e o facto culposo do lesado, sendo certo que não existe correlação entre a amplitude dos danos e a gravidade da culpa: «Pode bem suceder que a uma negligência relativamente leve corresponda um efeito particularmente grave e que uma negligência grave provoque um dano relativamente ligeiro» (a. Varela, Das Obrigações em Geral, 7ª ed., p. 918) . Há, assim, que separar na eficácia causal de cada uma das condutas culposas qual a parcela de dano adequadamente condicionada por uma e por outra - Martins De Almeida, Manual de acidentes de viação, 3ª ed., p. 150. Há que ponderar a gravidade das culpas em função das regras legais violadas e considerar os efeitos que delas decorreram, porquanto nem sempre a culpa mais intensa provoca os danos mais extensos (cf. José Brandão Proença (Coord.), Comentário ao Código Civil, Direito das Obrigações, Das Obrigações em Geral, Universidade Católica Editora, 2018, p. 579).
«Em caso de concorrência de culpas (art.º 570, n.º 1, do CC), na graduação dessas culpas, há que ter em conta, além do mais, a maior ou menor influência ou medida, em termos de causalidade adequada, da contribuição da conduta de cada um dos condutores intervenientes para a eclosão do sinistro em questão» (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 20.3.2003, Oliveira Barros, 24/03, Sumários).
No caso em apreço, cremos que foi equivalente a contribuição da conduta de cada um dos condutores – atentas as normas violadas – para a eclosão do acidente (culpa equivalente). Todavia, já no que tange ao contributo individual para a parcela de danos causada, o concurso do veículo do autor é maior do que o do veículo do segurado na Ré. Com efeito, o veículo do autor vinha a uma velocidade bem superior ao veículo da Ré, a uma velocidade instantânea superior a 100 km/h, sendo essa velocidade que explica a larga extensão dos danos sofridos pelo veículo do autor (reparação orçada em € 101.400,70 – facto R)) por contraposição aos menores danos sofridos pelo veículo seguro na Ré (apenas na traseira direita – facto O)).
Termos em que se fixa a responsabilidade do autor em 65% e a do segurado da Ré em 35%, respondendo – assim - a Ré por 35% dos danos.
Em função do pedido principal deduzido pelo autor, deve a ré ser condenada a suportar 35% do valor da reparação do veículo do autor.
Perda total do veículo do autor.
Em sede de contestação, veio a ré arguir a perda total do veículo do autor, considerando que a reparação está orçada em €101.400,70, que o valor do veículo do autor é de €60.300 e que o salvado vale €10.120.
Apreciando.
Nos termos do Artigo 41º do Decreto-lei nº 291/2007, de 21.8:
1 - Entende-se que um veículo interveniente num acidente se considera em situação de perda total, na qual a obrigação de indemnização é cumprida em dinheiro e não através da reparação do veículo, quando se verifique uma das seguintes hipóteses:
a) Tenha ocorrido o seu desaparecimento ou a sua destruição total;
b) Se constate que a reparação é materialmente impossível ou tecnicamente não aconselhável, por terem sido gravemente afetadas as suas condições de segurança;
c) Se constate que o valor estimado para a reparação dos danos sofridos, adicionado do valor do salvado, ultrapassa 100 % ou 120 % do valor venal do veículo consoante se trate respetivamente de um veículo com menos ou mais de dois anos.
2 - O valor venal do veículo antes do sinistro corresponde ao seu valor de substituição no momento anterior ao acidente.
3 - O valor da indemnização por perda total corresponde ao valor venal do veículo antes do sinistro calculado nos termos do número anterior, deduzido do valor do respetivo salvado caso este permaneça na posse do seu proprietário, de forma a reconstituir a situação que existiria se não se tivesse verificado o evento que obriga à indemnização.
4 - Ao propor o pagamento de uma indemnização com base no conceito de perda total, a empresa de seguros está obrigada a prestar, cumulativamente, as seguintes informações ao lesado:
a) A identificação da entidade que efetuou a quantificação do valor estimado da reparação e a apreciação da sua exequibilidade;
b) O valor venal do veículo no momento anterior ao acidente;
c) A estimativa do valor do respetivo salvado e a identificação de quem se compromete a adquiri-lo com base nessa avaliação.
5 - Nos casos de perda total do veículo a matrícula é cancelada nos termos do artigo 119.º do Código da Estrada.
Em termos processuais, o pagamento de uma indemnização com base na perda total (em vez da reparação do veículo) integra matéria de exceção, cabendo à ré seguradora a prova dos respetivos factos (cf. Artigo 342º, nº2, do Código Civil).
No caso em apreço, não está demonstrada factualidade integradora dessa perda total. Na verdade, não está demonstrada a destruição total do veículo do autor, que a reparação do veículo não seja tecnicamente aconselhável e, muito menos, que o valor estimado para a reparação dos danos sofridos, adicionado do valor do salvado, ultrapassa 120 % do valor venal do veículo.
Improcede, neste segmento, a apelação.
Indemnização pela privação de uso.
A apelante insurge-se contra a condenação da 1ª instância a título de privação de uso do veículo pelo autor, argumentando que: havendo perda total, não há lugar ao pagamento de privação de uso; a apelante não estava obrigada a disponibilizar ao apelado um veículo de substituição; o valor fixado é manifestamente elevado, sendo discutível a necessidade do veículo por parte do apelado.
Recorde-se que o tribunal a quo fixou a este título uma indemnização de €20/dia por 1131 dias, totalizando €22.620.
A questão da indemnização pela privação do uso de veículo, na sequência de acidente de viação, tem dado azo a vasta doutrina e jurisprudência, em grande parte  compendiadas em Liliana Fernandes Gonçalves, Indemnização do dano de privação do uso de veículo decorrente de acidente de viação, Universidade do Minho, 2014.
Na jurisprudência do STJ existem várias correntes a propósito do âmbito da indemnização por privação do uso de veículo:
(i) corrente que exige a prova concreta dos prejuízos efetivamente sofridos em consequência da privação do uso (prejuízo concreto);
(ii) corrente que exige a prova da utilização normal do veículo, bastando-se com isso para determinar  os danos, nomeadamente pela equidade (Artigo 566º, nº3, do Código Civil) e
(iii) corrente que exige apenas a mera privação de uso, sem necessidade de demonstração de prejuízos concretos, podendo o dano ser calculado segundo a equidade (Artigo 566º, nº3, do Código Civil; prejuízo abstrato).
Para esta última corrente mais permissiva, mesmo que nada se prove a respeito da utilização ou do destino que seria dado ao veículo, o lesado tem de ser compensado monetariamente pelo período corespondente ao impedimento dos poderes de fruição.
«O direito de propriedade integra, como um dos seus elementos fundamentais, o poder de exclusiva fruição, do mesmo modo que confere ao proprietário o direito de não usar. A opção pelo não uso ainda constitui uma manifestação dos poderes do proprietário, também afectada pela privação do bem. Neste contexto, sendo a disponibilidade material dos bens um dos principais reflexos do direito de propriedade, apenas excepcionalmente, perante um quadro factual mais complexo, será possível afirmar que a paralisação não foi causa adequada de danos significativos merecedores da ajustada indemnização» (Abrantes Geraldes, Temas da Responsabilidade Civil, I Vol. – Indemnização do Dano da Privação do Uso, 2ª ed., Almedina, 2005, pp. 57 e ss.).
Na jurisprudência mais recente do STJ neste sentido releva o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 28.9.2021, Oliveria Abreu, 625/18:
III. O dano decorrente da privação do uso veículo constitui dano patrimonial autónomo, quando o proprietário do veículo danificado se viu privado de um bem que faz parte do seu património, deixando de dele poder dispor e gozar livremente, com violação do respetivo direito de propriedade.
IV. Demonstrado o dano que advém da privação do uso do veículo, na falta de quantificação objetiva, é legítimo o recurso à equidade para fixar a respetiva compensação.
A segunda corrente (ii) exige a singela prova do uso habitual da viatura (cf. Maria da Graça Trigo, Responsabilidade Civil, Temas Especiais, UCE, pp. 60-63), colhendo expressão, por exemplo, no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17.6.2021, Cura Mariano, 879/17:
I. Para o reconhecimento de um direito de indemnização pelo dano de privação de uso de um veículo acidentado é suficiente a prova pelo lesado que utilizava habitualmente a viatura na sua vida diária, presumindo-se que, da respetiva privação, derivem danos efetivos.
II. Os prejuízos podem ser de ordem patrimonial (acréscimo de despesas) ou de ordem não patrimonial (incómodos, sacrifícios, etc.) e, não sendo os mesmos concretamente apurados na fase declarativa, deve a respetiva indemnização ser remetida para posterior liquidação, nos termos do artigo 609.º, n.º 2, do Código de Processo Civil. Em último caso, funcionará um juízo de equidade.
No mesmo sentido, cf. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 4.7.2023, Aguiar Pereira, 1290/20.
Por nós, temos como mais adequada a corrente mais permissiva porquanto o mero uso constitui uma vantagem suscetível de avaliação pecuniária que, a ser suprimida, tem um impacto negativo na esfera do titular do direito. Não se pode negligenciar «(…) a normalidade, a qual revela que as pessoas regularmente utilizam os bens que são social e economicamente vistos como úteis, principalmente aqueles cuja prática judicial tem discutido, como é o exemplo dos veículos automóveis» (Nuno Alexandre Pires Salpico, Cálculo de Danos e Equidade, Almedina, 2023, pp. 266-267). A tese do prejuízo concreto implica uma interpretação restritiva do ius fruendi inerente ao direito de propriedade, sendo certo que se pode possuir um veículo para colecionismo e/ou recreio e não necessariamente para deslocações do dia-a-dia, merecendo também tutela a primeira situação. A essencialidade do uso pode majorar a indemnização mas não é requisito da existência desta.
No que tange ao quantitativo, na jurisprudência do próprio STJ encontram-se decisões díspares que fixam tal indemnização em €25 diários (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 10.5.2011, João Camilo, 1253/07, Sumário) e em €10 diários (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 1.12.2015, Gabriel Catarino, 1086/12, Sumários).
No caso em apreço, estando provado que o autor está privado do uso do veículo de marca Porsche, desde a data do sinistro o que ainda ocorre, tratando-se de um veículo do segmento premium e desportivo, não nos repugna o valor diário fixado de € 20 fixado equitativamente pelo tribunal a quo.
Contudo, assumindo a Ré a responsabilidade do pagamento de indemnização de 35%, há que reduzir tal valor para €7 diários, o que perfaz €7.917 nos primeiros 1131 dias.
Custas
A apelação proceder parcialmente, sendo que o apelado não apresentou contra-alegações, cabendo saber se o mesmo responde, ou não, pelas custas.
Ensina a este propósito Salvador da Costa, “Responsabilidade pelas custas no recurso julgado procedente sem contra-alegação do recorrido”, 18.6.2020, publicado no blog do IPPC:
«Na base da referida responsabilidade pelo pagamento das custas relativas às ações, aos incidentes e aos recursos está um de dois princípios, ou seja, o da causalidade e o do proveito, este a título meramente subsidiário, no caso de o primeiro se não conformar com a natureza das coisas.3
Grosso modo, a causalidade consubstancia-se na relação entre um acontecimento (causa) e um posterior acontecimento (efeito), em termos de este ser uma consequência daquele.
Considerando o disposto na primeira parte do n.º 1 deste artigo, o primeiro evento é determinado comportamento processual da parte e o último a sua responsabilização pelo pagamento das custas.
Nesta perspetiva, do referido princípio da causalidade emerge a solução legal de dever pagar as custas relativas às ações, aos incidentes e aos recursos a parte a cujo comportamento lato sensu o ajuizamento do litígio seja objetivamente imputável.
A dúvida revelada pela doutrina e pela jurisprudência ao longo do tempo sobre quem devia ser responsabilizado pelo pagamento das custas processuais com base no princípio da causalidade levou o legislador a intervir por via da inserção do normativo que atualmente consta do n.º 2 do artigo, em termos de presunção iuris et de iure, ou seja, de que se entende sempre dar causa às custas do processo a parte vencida na proporção em que o for.
Consequentemente, o referido nexo de causalidade tem como primeiro evento o decaimento nas ações, nos incidentes e nos recursos, e o último na responsabilização pelo pagamento das custas de quem decaiu, conforme o respetivo grau.
Assim, a parte vencida nas ações, nos incidentes e nos recursos é responsável pelo pagamento das custas, ainda que em relação a eles não tenha exercido o direito de contraditório, o que se conforme com o velho princípio que envolve esta matéria, ou seja, o da justiça gratuita para o vencedor.»
Reiterando tal entendimento, cf. artigo do mesmo autor, “Custas da apelação na proporção do decaimento a apurar a final”, publicando no mesmo blog em 31.10.2020.
Dentro desta mesma linha de raciocínio, é clarificadora a análise feita no AUJ nº 10/2015 nestes termos:
«(…) a sucumbência, como prejuízo causado pela decisão no processo ou recurso é independente e abstrai da posição (ativa ou passiva) da parte que o sofra e da respetiva atitude (intervindo ou não) no processo: o réu que não contesta e o recorrido que não contra-alega, se perderem ou forem condenados, também sucumbem…
E porque a sucumbência abstrai da posição (ativa ou passiva) da parte no processo ou recurso, é que ela deve ser perspetivada objetivamente como dano, prejuízo, perda ou resultado final desfavorável da decisão; sucumbe a parte cujos interesses sofram dano ou prejuízo por serem afetados desfavoravelmente pela decisão (seja porque lhe nega aquilo a que se arroga com direito, seja porque lhe impõe obrigações a que sustenta não estar vinculado).
A sucumbência afere -se, por conseguinte, pelo contraste entre, por um lado, o conteúdo da decisão e, por outro, os interesses da parte, ou seja, pelo reflexo negativo daquela nestes.»
DECISÃO
Pelo exposto, acorda-se em julgar parcialmente procedente a apelação e, em consequência:
a) Revoga-se os dispositivos a) e b) a sentença proferida pelo tribunal a quo;
b) Condena-se a Ré a pagar a reparação do veículo do autor na proporção de 35%;
c) Condena-se a Ré a pagar ao autor, a título de indemnização pela privação de uso da viatura, a quantia diária de €7, a contar desde a data do acidente e até efetiva reparação do veículo, perfazendo os primeiros 1131 dias €7.917;
d) Mantém-se os dipositivos c) e d) da sentença proferida pelo tribunal a quo.
Custas pela apelante e pelo apelado, na vertente de custas de parte, na proporção de 35% e 65%, respetivamente (Artigos 527º, nºs 1 e 2, 607º, nº6 e 663º, nº2, do Código de Processo Civil).

Lisboa, 20.2.2024
Luís Filipe Pires de Sousa
Rute Sabino Lopes
José Capacete
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[1] Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil, 7ª ed., 2022, p. 186.
[2] Abrantes Geraldes, Op. Cit., pp. 139-140.
Neste sentido, cf. os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 9.4.2015, Silva Miguel, 353/13, de 10.12.2015, Melo Lima, 677/12, de 7.7.2016, Gonçalves Rocha, 156/12, de 17.11.2016, Ana Luísa Geraldes, 861/13, de 22.2.2017, Ribeiro Cardoso, 1519/15, de 25.10.2018, Hélder Almeida, 3788/14, de 18.3.2021, Oliveira Abreu, 214/18, de 15.12.2022, Graça Trigo, 125/20, de 11.5.2023, Oliveira Abreu, 26881/15, de 25.5.2023, Sousa Pinto, 1864/21, de 11.7.2023, Jorge  Leal, 331/21. O tribunal de recurso não pode conhecer de questões novas sob pena de violação do contraditório e do direito de defesa da parte contrária (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17.12.2014, Fonseca Ramos, 971/12).