Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
12104/16.3T8SNT.L1-6
Relator: GABRIELA DE FÁTIMA MARQUES
Descritores: SIMULAÇÃO
PROVA
CONLUIO SEM INTENÇÃO DE ENGANAR TERCEIROS
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 02/22/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: I. Na simulação – atenta a dualização entre o elemento interno e o elemento externo da declaração negocial – coloca-se o acento tónico no comportamento declarativo, harmonizando o valor da autonomia com o valor da confiança, pelo que a nulidade apenas ocorre quando se verifique igualmente o intuito de enganar terceiros.
II. O mero conluio entre as partes sem o intuito de enganar terceiros deixa de ter relevância para efeitos de invalidade do acto negocial.
(Sumário elaborado pela relatora)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes na 6ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa:

I. Relatório:
C… e A...intentaram a presente acção declarativa de condenação com processo comum contra G…, Lda e J…, pedindo que: - se declare a nulidade do negócio de compra e venda dos imóveis identificados, nos termos do disposto no art. 892.º do Código Civil, cancelando-se os registos a favor da Ré, Ou subsidiariamente - se declare a nulidade dos negócios de compra e venda dos mesmos imóveis, por simulação das partes.
Para tanto invocam, sumariamente, os Autores que por procuração outorgada em 11-06-2007 constituíram a 1.ª Ré sua bastante procuradora, conferindo-lhe poderes para prometer vender ou vender a quem e pelo preço de € 70 000,00 o lote de terreno com o número ... lado direito, onde está implantada uma casa de rés do chão e primeiro andar, sito na Rua …, lote …, lado direito, Bairro da … e pelo preço de € 50 000,00 o lote de terreno para construção com o número …, sito na Rua …, lote … e ainda, pelo preço de € 50 000,00 o lote de terreno para construção com o número…, sito na Rua …, conferindo igualmente poderes para celebrar negócio consigo mesmo. Alegam, que em 12-06-2007 foi outorgada escritura publica de compra e venda dos imóveis acima identificados, na qual compareceram o 2.º Réu, na qualidade de procurador dos Autores e ainda de gerente e em representação da 1.ª Ré, sem que os tenham conferido poderes ao 2.º Réu para celebrar negócios em seu nome, razão pela qual não tinha o mesmo legitimidade para efectuar tal negócio. Referem ainda que atravessavam à data dificuldades económicas, pelo que a Ré ofereceu-se para ajudar propondo que transmitissem todo o património para a Ré comprometendo-se a posteriormente transmiti-lo novamente para os Autores, sugerindo que, para além da procuração, e por forma a não levantar suspeitas, fosse pago o valor dos imóveis, o que foi feito através do cheque n.º …, no valor e € 170 000,00, sendo que no dia seguinte o Autor emitiu o cheque …, no mesmo valor e entregaram-no à Ré, mas nunca tendo sido intenção nem dos Autores nem da Ré vender ou comprar os imóveis já identificados, mas sim salvaguardar o património daqueles até que os mesmos liquidassem as duas dívidas. Aludem que, em 9 de Maio de 2008, a  Ré cumpriu o acordo relativamente a um dos imóveis, mediante outorga de escritura de compra e venda a favor dos Autores do lote com o número ... lado direito, onde está implantada a casa de rés do chão e primeiro andar, mas não o fez relativamente aos restantes imóveis. Conclui assim pela nulidade dos negócios e consequente procedência da acção.
Devidamente citados vieram os Réus contestar, dizendo que a referencia na escritura a J… constitui um lapso que, logo que detectado, foi rectificado com averbamento à escritura. No mais, confirmam as dificuldades económicas dos AA., mas que nessa sequência pediram dinheiro emprestado ao 2.º Réu sendo que a determinada altura o mesmo não se disponibilizou a emprestar mais montantes sem quaisquer garantias, razão pela qual foi realizada a escritura de compra e venda. Contudo e porque ainda permanecia em dívida quantia avultada, necessitou de manter uma garantia, razão pela qual não transmitiu os restantes prédios, aceitam que os Autores reclamaram a transmissão da propriedade para si dos restantes prédios, mas argumentam que os mesmos não procederam ao pagamento do montante em dívida de € 70 000,00, pelo que o 2.º Réu exigiu a emissão de uma declaração de reconhecimento de dívida, com o plano de pagamentos dos referidos € 70 000,00. Porém, como os Autores nunca pagaram a referida dívida, foi então aceite que os mesmos procedessem à entregar os dois prédios ao 2.º Réu por conta do pagamento da mesma, pois foi acordado que caso os AA.s não pagassem a dívida até Abril de 2010, os referidos prédios ficariam na propriedade do Réu. Concluem que caso o Tribunal entenda declarar a nulidade do contrato sempre os Autores terão de proceder ao pagamento ao Réu da quantia de € 70 000,00 acrescida de juros, mas entendem que a acção é improcedente.
A convite do Tribunal vieram os Autores responder à matéria de excepção invocada na contestação apresentada.
Os autores foram declarados insolventes no decorrer dos presentes autos, tendo havido lugar a constituição de mandatário/nomeação de patrono, a requerimento dos Srs. Administradores de Insolvência.
Após a dispensa da realização de audiência prévia, foi proferido despacho que além do mais, fixou o objecto do litígio e elencou os temas da prova.
Procedeu-se a julgamento tendo sido proferida sentença que julgou a acção totalmente improcedente, por não provada, e em consequência, absolveu os Réus do pedido.
Inconformada veio a A. recorrer, formulando as seguintes conclusões:
«I. Na petição inicial foi requerida a declaração de nulidade do negócio de compra e venda  dos seguintes imóveis: - lote de terreno para construção com o número …, descrito na primeira Conservatória do registo predial de …, de dez de Janeiro de dois mil e sete, e inscrito na matriz daquela freguesia sob o artigo …, e; - lote de terreno com o número …, onde está implantado uma casa de rés do chão e primeiro andar, sito na Rua … Bairro …, freguesia de …, concelho de …, descrito na Primeira Conservatória do Registo Predial de …s sob o número …, e inscrito na matriz daquela freguesia sob o artigo ….
II. O R. J…, em representação da sociedade R., contactou a filha da Recorrente no sentido de lhe apresentar uma proposta, que lhes permitira salvar o imóvel que se encontrava em venda judicial, bem como o património da A. e do marido, que sendo fiadores iriam também eles ser penhorados, uma vez que a venda daquele bem não seria suficiente para liquidar a totalidade da dívida.
III. Foi acordado entre Recorrente e Recorridos que a sociedade R. iria apresentar uma proposta para aquisição da casa da filha da A. e que posteriormente passaria para o neto desta, Sr. R…, o que se veio a verificar e comprovar com a certidão permanente, junta no processo.
IV. Em suma, a Recorrente e o marido transmitiram para a sociedade Recorrida 3 imóveis com o propósito de os salvar de futuras penhoras e posterior venda judicial, atentas as dívidas de elevado valor que tinham, porque tinham sido fiadores da filha e fruto do negócio.
V. Considerou a douta sentença recorrida que da prova carreada e produzida em sede de audiência discussão e julgamento não foi possível provar a verificação dos três pressupostos legais e cumulativos do negócio simulado, com o que, s.m.o, a Recorrente não pode concordar.
VI. Ora, de acordo com o artigo 240.º do C.C. e referido na douta sentença recorrida, são estes os três requisitos cumulativos do negócio simulado: (iv) A divergência entre a vontade real e a declarada; (v) O acordo simulatório; (vi) O intuito de enganar terceiro.
VII. Quanto ao ponto (i) do artigo anterior, salvo o devido respeito por melhor opinião, está o mesmo preenchido, desde logo, porque deu o tribunal como provado que: “Porque os Autores passavam dificuldades económicas à data os Réus ofereceram-se para os ajudar financeiramente, efectuando a transmissão da propriedade para a Ré como garantia da ajuda financeira proposta, comprometendo-se a Ré a transmiti-los novamente para os Autores logo que liquidado o valor financiado.”
VIII. Ora, se o propósito da escritura de compra e venda, nunca foi transmitir efectivamente e de forma definitiva os referidos imóveis para a esfera jurídica da sociedade R. há claramente uma divergência entre a vontade real e a declarada.
IX. E tanto assim é que, foram juntos pela A. através de Requerimento datado de 15.02.2022 (Ref.ª 20453722) os seguintes documentos:  cópia do cheque emitido pela R. a favor do A. após a celebração da escritura de compra e venda no valor de 170.000,00€;  O cópia do cheque emitido pelo A. a favor da R. no valor de 170.000,00, devolvendo assim a quantia transferida ano dia anterior e,  um extracto da conta da A. que reflecte precisamente esta movimentação pecuniária
X. Assim sendo, tem de ser dado como provado que “ a Ré tenha emitido a favor do Autor o cheque número … no valor de € 170 000,00 e que em 12-06-2007 C… tenha emitido a favor da Ré … no valor de € 170 000,00. e) que a intenção de Autores e Réus tenha sido salvaguardar o património daqueles de eventuais créditos que existiam”
XI. Consequentemente, dúvidas não podem subsistir que existiu divergência entre a vontade real e a declarada na escritura.
XII. Do depoimento das testemunhas ficou provada a divergência entre a vontade real e a declarada. Fica ainda provado que, independentemente que quem propôs o quê a quem, o objectivo principal no negócio foi os bens da AA. ficarem salvaguardados dos credores e nunca foi vendê-los efectivamente.
XIII. Aliás, além de ter ficado provado a divergência de vontade, ficou claro que empresa R. nunca teve interesse nenhum (palavras do Sr. J…) em ficar com os imóveis).
XIV. Em suma, ambos os depoimentos provam que: - existiu divergência entre a vontade real e a declarada - existiu acordo simulatório;
XV. No que se refere ao intuito de enganar terceiro, os testemunhos acima referidos são claros quanto afirmam que a Recorrente e o marido passavam por uma situação financeira difícil (facto dado como provado) e que pretendiam salvaguardar o património destes, de forma a que o mesmo não viesse a responder pelas dívidas de ambos.
XVI. Nessa medida e por todo o exposto, estão preenchidos os 3 pressupostos cumulativos acima enunciados, previsto no artigo 240.º do C.C., pelo que estamos perante um negócio simulado, o qual é nulo.
Nestes termos, nos mais de Direito e sempre com o douto suprimento de Vossas Excelências, deve conceder-se integral provimento ao recurso, revogando-se a douta sentença recorrida e substituindo-a por outra que declare o negócio objecto dos autos simulado e consequentemente, nulo, com as legais consequências.».
Os recorridos contra alegaram concluindo que:
«I. A Apelante alega que o recurso sobe imediatamente e em separado, quando efectivamente sobe imediatamente e nos próprios autos (artigo 645.º do Código de Processo Civil);
II. Assim sendo, não tem sentido pedir, no final das alegações, as peças processuais;
III. A Apelante alega que o prazo de recurso é o do disposto no artigo 638.º, n.º 1 do Código de Processo Civil, ou seja, de trinta dias;
IV. A douta sentença judicial foi notificada em 1 de Agosto de 2023, pelo que o prazo começou a contar em 1 de Setembro de 2023;
V. O prazo para interpor o recurso terminou no dia 2 de Outubro de 2023, não obstante a Apelante interpôs o recurso em 10 de Outubro de 2023, pelo que é manifestamente extemporâneo, logo deve ser liminarmente rejeitado;
VI. Com efeito, na presente alegação não se alega se este recurso versa sobre matéria de facto ou de direito, ou de ambas;
VII. Não versa seguramente sobre matéria de facto e sobre matéria de direito não alega nenhum dos requisitos previstos no artigo 639.º do Código de Processo Civil, pelo que por ser deficiente, deve ser também rejeitado liminarmente;
VIII. Este recurso, salvo o devido respeito, constitui uma verdadeira aberração jurídica, na medida em que sem prejuízo do já anteriormente alegado, começa por alegar que foram dados por provados factos na douta sentença judicial quando efectivamente foram dados por não provados;
IX. A Apelante ao alegar desta forma, visando tão só confundir o Venerando Tribunal Superior, falseando os factos provados e não provados pela douta sentença recorrida;
X. Com muito esforço, constatamos que a Apelante troca factos provados por não provados, raiando a total negligência, mas nunca faz uma fundamentação clara para pedir a alteração da matéria de facto fixada pela douta sentença;
XI. Face aos elementos probatórios juntos e à prova testemunhal parece óbvio que o douto Tribunal de 1.ª Instância apreciou e julgou em conformidade na resposta aos factos dados por provados e não provados;
XII. O artigo 607.º, n.º 5 do Código de Processo Civil consagra o princípio da livre apreciação da prova. Segundo este princípio cabe ao julgador apreciar livremente a prova não vinculada, como sucede no caso em apreço, decidindo de acordo com a sua convicção relativamente a cada facto, com base em regras de raciocínio e de experiência face à prova
testemunhal e documental produzida na audiência de julgamento;
XIII. O julgador está obrigado a fundamentar a sua decisão, nos termos do artigo 205.º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa e do artigo 154.º do Código de Processo Civil. Sucede que no caso vertente a Meritíssima Juiz a quo fundamentou exaustivamente a sua decisão, na fixação da matéria de facto. A Meritíssima Juíza a quo fundamentou a sua convicção com base na prova produzida ou não produzida na audiência de julgamento;
XIV. A única coisa que muito vagamente se consegue depreender do presente recurso é que alega que o negócio é simulado, ainda que recorrendo, para alegar a simulação, a factos provados que só estão na mente da Apelante, mas jamais foram dados como provados pelo douto Tribunal a quo;
XV. Sobre a simulação do negócio jurídico remete-se para a douta sentença a quo, transcrita a fls. 7 a fls. 9 destas alegações;
XVI. Assim, entende-se que o douto Tribunal a quo aplicou decidiu bem, pelo que a douta sentença recorrida não merece qualquer reparo;
XVII. Deve, assim, negar-se provimento ao presente recurso e, em consequência, confirmar-se in totum a sentença objecto do presente recurso».
Colhidos os vistos, cumpre decidir.
*
Da tempestividade do recurso:
Os recorridos vêm alegar que ao contrário do defendido pela apelante o recurso sobe imediatamente e nos próprios autos (artigo 645.º do Código de Processo Civil) e não em separado, questão que deixa de subsistir ou ter relevância, pois o recurso foi admitido no modo e efeito adequado.
Por outro lado, convocam a extemporaneidade do recurso, dizendo que o prazo de recurso é nos termos do disposto no artigo 638.º, n.º 1 do Código de Processo Civil, de trinta dias, pelo que tendo a sentença judicial sido notificada em 1 de Agosto de 2023, o prazo iniciou-se a 1 de Setembro de 2023, tendo o seu termino a 2 de Outubro de 2023, pelo que aquando da apresentação do recurso a 10 de Outubro de 2023, o mesmo já seria manifestamente extemporâneo, concluindo que deve ser liminarmente rejeitado.
Razão não assiste aos recorridos, de facto, entendemos que a consideração do prazo de interposição do recurso e da sua tempestividade – inclusivamente com a consideração do acréscimo de 10 dias, a que se refere o artigo 638.º, n.º 7, do CPC, no caso de o recurso ter por objecto a reapreciação da prova gravada - é prévia e independente do conteúdo ou teor da impugnação e da observância, ou falta de cumprimento, dos ónus de impugnação a que se reporta o artigo 640.º do CPC: Uma coisa é o prazo de recurso, e seu acréscimo; outra, a existência de condições processuais para a apreciação da impugnação da matéria de facto ou para a sua rejeição.
Como se elucida o Ac. STJ de 25-03-2010 (Proc.º n.º 740/07.3TTALM.L1.S1, Conselheiro Mário Pereira, disponível em www.dgsi.pt), este alargamento do prazo quando o recurso tenha por objecto a reapreciação da prova gravada “encontra justificação no maior dispêndio de tempo de que o interessado carece, nessa eventualidade, para elaborar e apresentar a alegação, pois que a lei lhe impõe um especial ónus de alegação no que respeita à delimitação do objecto do recurso e à sua fundamentação (…) consistente na indicação dos depoimentos que se consideram relevantes para a alteração das respostas aos quesitos, os locais precisos onde se encontram registados, de modo a que facilmente seja possível apurar a autoria dos depoimentos e o momento em que os mesmos se iniciaram e cessaram”. Todavia, o incumprimento dos ónus impostos pelo art.º 640.º CPC, “não tem por consequência a intempestividade do recurso no que ao segmento da matéria de direito diz respeito, nas situações em que o recurso tenha sido interposto após o decurso do prazo de 20 dias” (neste caso de 30 dias), apenas implicando a rejeição da apreciação da impugnação da decisão sobre a matéria de facto.
Igual entendimento é preconizado por Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa (Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, 3.ª ed., Almedina, 2022, pp. 826-827) ao referir-se que: “Na apelação, pretendendo impugnar a decisão da matéria de facto a partir da reapreciação de meios de prova gravados (e apenas neste caso), o recorrente beneficia de um acréscimo de 10 dias. Para o efeito, é necessário que a alegação apresentada pelo recorrente, ou seja, a peça que define o objecto do recurso, contenha alguma impugnação da decisão proferida acerca da matéria de facto a partir da reponderação de meios de prova que, tendo sido prestados oralmente, tenham ficado registados, independentemente do juízo que ulteriormente seja feito acerca do cumprimento do ónus de indicação das passagens da gravação ou de qualquer outro requisito previsto no art.º 640.º. (…) A apreciação do modo como foram preenchidos os ónus de alegação contidos no art. 640.º poderão naturalmente condicionar o conhecimento da impugnação, mas não colocam em crise a tempestividade do recurso de apelação que, naquelas condições, tenha sido apresentado dentro do prazo alargado” (no mesmo sentido ver por todos Acórdãos do STJ de 14-09-2021 (Pº 18853/17.1T8PRT.P1.S1), de 21-10-2020 (Pº 1779/18.9T8BRG.G1.S1); de 19-06-2019 (Pº 3589/15.6T8CSC-A.L1.S1), de 06-06-2019(Pº 2215/12.0TMLSB-B.L1.S1). de 28-04-2016 (Pº 1006/12.2TBPRD.P1.S1) e de 22-10-2015 (Pº 2394/11.3TBVCT.G1.S1; bem como Acórdão desta Relação de 26/10/2023, Pº 3945/20.8T8ALM.L1-2, todos in www.dgsi.pt).
No caso, a recorrente não só faz menção expressa de pretender impugnar a matéria de facto, como para além disso produz alegações com esse propósito, não havendo de cuidar, por ora, se tal impugnação surtirá ou não efeito, nomeadamente por cumprimento do artº 640º do Código de Processo Civil.
Logo, não assiste, pois, razão aos recorridos. Poderá a recorrente não ter cumprido devidamente os ónus de impugnação, mas essa é questão diversa que adiante apreciaremos, nada obstando à admissibilidade do recurso por questões de tempestividade.
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Questões a decidir:
O objecto do recurso é definido pelas conclusões do recorrente (art.ºs 5.º, 635.º n.º3 e 639.º n.ºs 1 e 3, do CPC), para além do que é de conhecimento oficioso, e porque os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, ele é delimitado pelo conteúdo da decisão recorrida.
Importa assim, saber se, no caso concreto:
- É de considerar a alteração factual nos termos pretendidos pela recorrente;
- Se se verificam os pressupostos que determinem a nulidade do negócio por simulação.
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II. Fundamentação:
No Tribunal recorrido foram considerados provados os seguintes Factos:
1. Por escritura pública outorgada no dia 11 de Fevereiro de 2007, no Cartório Notarial de Lisboa C… e mulher A…, casados sob o regime de comunhão de bens constituíram seu procurador G… Lda., NIPC …, no acto representada por J…, a quem conferiram poderes para:
- prometer vender ou vender a quem e pelo preço de € 70 000,00 (setenta mil euros) o lote de terreno com o número … lado direito, onde está implantada uma casa de rés do chão e primeiro andar, sito na Rua …, lote ..., lado direito, Bairro …, concelho de …, descrito na Primeira Conservatória de Registo Predial de …s sob o número …25 de Junho de 1999 e inscrito na matriz predial daquela freguesia sob o artigo …, receber o preço e dar quitação, outorgando o respectivos contratos;
- prometer vender ou vender a quem e pelo preço de € 50 000,00 (cinquenta mil euros) o lote de terreno par construção com o número …, sito na Rua …, lote …, Bairro …freguesia de …, concelho de …, descrito na Primeira Conservatória de Registo Predial de Oeiras sob o número … de 10 de Janeiro de 2007 e inscrito na matriz predial daquela freguesia sob o artigo …, receber o preço e dar quitação, outorgando o respectivos contratos;
- prometer vender ou vender a quem e pelo preço de € 50 000,00 (cinquenta mil euros) o lote de terreno par construção com o número …, sito na Rua …, Bairro …, freguesia de …, concelho de …, descrito na Primeira Conservatória de Registo Predial de Oeiras sob o número… de 21 de Maio de 2007 e inscrito na matriz predial daquela freguesia sob o artigo …, receber o preço e dar quitação, outorgando o respectivos contratos;
Sendo que no uso dos poderes que lhe foram conferidos o procurador constituído tinha poderes para celebrar negócio consigo mesmo.
2. Em 12-06-2007 foi outorgada escritura publica de compra e venda dos imóveis referidos em 1. Na qual J…, na qualidade de a) procurador de C… e de A...e ainda de b) gerente e em representação da sociedade comercial por quotas da firma G… Lda.
3. A referida escritura foi objecto de averbamento a 20-11-2015 no qual se rectificou a qualidade em que J… interveio na mesma como sendo na qualidade de procurador da sociedade G… Lda. e esta, por sua vez, na qualidade de procuradora de C… e A…, conforme procuração aludida na escritura.
4. Porque os Autores passavam dificuldades económicas à data os Réus ofereceram-se para os ajudar financeiramente, efectuando a transmissão da propriedade para a Ré como garantia da ajuda financeira proposta, comprometendo-se a Ré a transmiti-los novamente para os Autores logo que liquidado o valor financiado.
5. Em 09-05-2008 a Ré G… vendeu aos Autores do lote de terreno com o nº… lado direito, onde está implantada uma casa de rés do chão e primeiro andar, sito na Rua …, lote … lado Direito, Bairro …, freguesia de …, concelho de …, descrito na 1.ª Conservatória de Registo Predial de … sob o nº … e inscrito na matriz predial da mesma freguesia sob o artigo ….
6. Os Autores atravessaram dificuldades económicas e por diversas vezes a 1.ª Ré e o 2.º Réu emprestaram dinheiro aqueles.
7. Os Autores não procederam ao pagamento da quantia emprestada pela Ré G….
8. A Ré emitiu a favor do Autor o cheque número … no valor de € 170 000,00 e em 12-06-2007 C… emitiu a favor da Ré … no valor de € 170 000,00. * Aditado nesta decisão.
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Foram ainda considerados como Não Provados os seguintes factos:
a) que tenham sido os Réus a propor que os Autores transmitissem todo o seu património para a Ré;
b) que tenham sido o(s) Reú(s) a sugerir a outorga de uma procuração a favor da Ré;
c) que os Réu(s) tenham sugerido que para não levantar suspeitas fosse pago o valor dos imóveis constantes da procuração, mediante cheque a favor dos Autores.
d) que a Ré tenha emitido a favor do Autor o cheque número … no valor de € 170 000,00 e que em 12-06-2007 C… tenha emitido a favor da Ré … no valor de € 170 000,00. *Eliminado nesta decisão
e) que a intenção de Autores e Réus tenha sido salvaguardar o património daqueles de eventuais créditos que existiam;
f) que a quantia mutuada aos Autores tenha sido de 70 000,00.
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Mais se deixou consignado que: “Os restantes factos alegados e que não constam do elenco dos factos provados ou não provados ou são afirmações de direito, conclusivas (como é o caso dos artigos 4, 5, 6, 7 e 8 da petição inicial) ou não relevam para a decisão da causa.”.
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Da impugnação da decisão de matéria de facto:
No âmbito da impugnação da matéria de facto estabelece o art. 640.º do C.P.C.:«(…), deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição: a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados; b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida; c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas. E nos termos do nº 2 no caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte: a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respectiva parte, indicar com exactidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes; b) Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exactidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes.
Refere Abrantes Geraldes ( in, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 4ª Ed., Almedina, 2017, pp. 158-159): «A rejeição total ou parcial do recurso respeitante à impugnação da decisão da matéria de facto deve verificar-se em algumas das seguintes situações: a) Falta de conclusão sobre a impugnação da decisão da matéria de facto (arts. 635.º, n.º 4, e 641.º, n.º 2, al. b)); b)   Falta de especificação, nas conclusões, dos concretos pontos de facto que o recorrente considera incorrectamente julgados (art. 640.º, n.º 1, al. a));c) Falta de especificação, na motivação, dos concretos meios probatórios constantes do processo ou nele registados (v.g. documentos, relatórios periciais, registo escrito, etc.); d) Falta de indicação exacta, na motivação, das passagens da gravação em que o recorrente se funda; e) Falta de posição expressa, na motivação, sobre o resultado pretendido relativamente a cada segmento da impugnação».
Salienta-se que o S.T.J. “tem vindo a sedimentar como predominante o entendimento de que as conclusões não têm que reproduzir (obviamente) todos os elementos do corpo das alegações e, mais concretamente, que a especificação dos meios de prova, a indicação das passagens das gravações e mesmo as respostas pretendidas não têm de constar das conclusões, diversamente do que sucede, por razões de objectividade e de certeza, com os concretos de facto sobre que incide a impugnação.”( Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Sousa, Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, Almedina, 2018, p. 771; cfr. ainda os Acs. do S.T.J. citados pelos Autores).
Assim, se o recorrente impugna determinados pontos da matéria de facto, mas não impugna outros pontos da mesma matéria, estes não poderão ser alterados, sob pena de a decisão da Relação ficar a padecer de nulidade, nos termos do art. 615.º, n.º 1, al. d), 2ª parte, do C.P.C. É, assim, dentro destes limites objetivos que o art. 662.º do C.P.C. atribui à Relação competências vinculadas de exercício oficioso quanto aos termos em que pode ser feita a alteração da matéria de facto, o mesmo é dizer, quanto ao modus operandi de tal alteração.
Feito este enquadramento, haverá que aferir quais os pontos concretos que devem ser apreciados por este tribunal, tendo por base a alegação da recorrente.
Acresce que no que concerne à apreciação haverá que considerar que no nosso ordenamento jurídico vigora o princípio da liberdade de julgamento ou da livre convicção, face ao qual o tribunal aprecia livremente as provas, sem qualquer grau de hierarquização e fixa a matéria de facto em sintonia com a convicção firmada acerca de cada facto controvertido, tendo porém presente o princípio a observar em casos de dúvida, consagrado no artigo 414º do C.P.C., de que a «dúvida sobre a realidade de um facto e sobre a repartição do ónus da prova resolve-se contra a parte a quem o facto aproveita». Conforme é realçado por Ana Luísa Geraldes («Impugnação», in Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor José Lebre de Freitas, Vol. I. Coimbra, 2013, pág. 609 e 610), em «caso de dúvida, face a depoimentos contraditórios entre si e à fragilidade da prova produzida, deverá prevalecer a decisão proferida pela 1ª instância, em observância dos princípios da imediação, da oralidade e da livre apreciação da prova, com a consequente improcedência do recurso nesta parte». E mais à frente remata: «O que o controlo de facto em sede de recurso não pode fazer é, sem mais, e infundadamente, aniquilar a livre apreciação da prova do julgador construída dialecticamente na base dos referidos princípios da imediação e da oralidade.»
Assim, apesar de se garantir um duplo grau de jurisdição, tal deve ser enquadrado com o princípio da livre apreciação da prova pelo julgador, previsto no artº 607 nº 5 do C. P. Civil, sendo certo que decorrendo a produção de prova perante o juiz de 1ª instância, este beneficia dos princípios da oralidade e da mediação, a que o tribunal de recurso não pode já recorrer.
De acordo com Miguel Teixeira de Sousa, in “Estudos Sobre o Novo Processo Civil”, pág. 347, “Algumas das provas que permitem o julgamento da matéria de facto controvertida e a generalidade daquelas que são produzidas na audiência final (…) estão sujeitas à livre apreciação do Tribunal (…) Esta apreciação baseia-se na prudente convicção do Tribunal sobre a prova produzida (art.º 655.º, n.º1), ou seja, as regras da ciência e do raciocínio e em máximas da experiência”.
 Assim, para que a decisão da 1ª instância seja alterada haverá que averiguar se algo de “anormal” se passou na formação dessa apontada “convicção”, ou seja, ter-se-á que demonstrar que na formação da convicção do julgador de 1ª instância, retratada nas respostas que se deram aos factos, foram violadas regras que lhe deviam ter estado subjacentes, nomeadamente face às regras da experiência, da ciência e da lógica, da sua conformidade com os meios probatórios produzidos, ou com outros factos que deu como assentes.
Porém, e apesar da apreciação em primeira instância construída com recurso à imediação e oralidade, tal não impede a «Relação de formar a sua própria convicção, no gozo pleno do princípio da livre apreciação das provas, tal como a 1ª instância, sem estar de modo algum limitada pela convicção que serviu de base à decisão recorrida(…) Dito de outra forma, impõe-se à Relação que analise criticamente as provas indicadas em fundamento da impugnação, de modo a apreciar a sua convicção autónoma, que deve ser devidamente fundamentada» (Luís Filipe Sousa, Prova Testemunhal, Alm. 2013, pág. 389).
Importa referir que a recorrente depois de enunciar o depoimento da testemunha R…, reproduzindo no corpo das alegações parte do seu depoimento, bem como de parte das declarações do réu J…, no que concerne à almejada alteração factual alegadamente assente em tal prova gravada apenas conclui que, “ambos os depoimentos provam que:
- existiu divergência entre a vontade real e a declarada
- existiu acordo simulatório.”
Ora, não transpõe em que medida tal conclusão altera a matéria factual considerada pelo tribunal a quo e em que termos, limitando-se a afirmar tal em termos de subsunção ao direito considerando preenchidos os pressupostos da simulação.
Importa ter presente que os AA. assentavam a acção no seguinte que tanto os AA. como os RR. nunca quiseram vender, nem comprar o imóvel, quiseram sim, salvaguardar o património daqueles, de eventuais créditos que existiam, ficando a propriedade dos imóveis supra identificados, temporariamente, em nome da Ré, até que os AA liquidassem as suas dívidas ( artº 15º e 16º da pi).
O que resulta provado nos autos e que a recorrente não põe em causa é que:
4. Porque os Autores passavam dificuldades económicas à data os Réus ofereceram-se para os ajudar financeiramente, efectuando a transmissão da propriedade para a Ré como garantia da ajuda financeira proposta, comprometendo-se a Ré a transmiti-los novamente para os Autores logo que liquidado o valor financiado.
6. Os Autores atravessaram dificuldades económicas e por diversas vezes a 1.ª Ré e o 2.º Réu emprestaram dinheiro aqueles.
7. Os Autores não procederam ao pagamento da quantia emprestada pela Ré G…
Com efeito, o facto contido no ponto 4. aliado aos pontos 6. e 7. resulta da conjugação do igualmente alegado pelos RR., ao admitirem que efectivamente os A.A. atravessaram dificuldades económicas, mas que a venda em causa servia de garantia em relação ao valor emprestado pelo réu aos AA., e ainda que não tenha ficado provado o valor que os RR. indicavam, resultou provado o empréstimo. A recorrente não faz menção à alteração de tais factos, não podendo o tribunal de recurso alterar os mesmos. Aliás, não faz qualquer menção, com base nos factos provados ou não provados, o que efectivamente pretende que se altere com esta impugnação e recurso, mormente a alínea e) dos factos não provados, salvo quanto ao não provado em d), que abordaremos de seguida.
Acresce que em momento algum a recorrente alega a eventual nulidade da sentença, a qual não é de conhecimento oficioso, nomeadamente face ao provado em 6. e 7. e o não provado em f), face ao que se exporá infra quanto à resposta em d) dos factos não provados.
Todavia, já lhe assiste razão no que concerne d) que a Ré tenha emitido a favor do Autor o cheque número … no valor de € 170 000,00 e que em 12-06-2007 C… tenha emitido a favor da Ré … no valor de € 170 000,00.
Com efeito, a recorrente alega em sede recursória e com acerto, que foram juntos pela A. através de Requerimento datado de 15.02.2022 (Ref.ª 20453722) os seguintes documentos: - cópia do cheque emitido pela R. a favor do A. após a celebração da escritura de compra e venda no valor de 170.000,00€; - O cópia do cheque emitido pelo A. a favor da R. no valor de 170.000,00, devolvendo assim a quantia transferida ano dia anterior e, - um extracto da conta da A. que reflecte precisamente esta movimentação pecuniária. Documentos esses nem sequer impugnados pelos réus.
Ora, incompreensivelmente o Tribunal dá como não provado tal matéria factual, fundamentando que “No que tange à al.d) dos factos não provados nenhuma prova foi feita nos autos, sendo certo que apenas a prova documental- cópia dos referidos cheques ou extracto de conta – relevaria para este efeito. E a falta deste elemento documental sempre seria determinante no desfecho da matéria de facto quanto à factualidade atinente à simulação.”. E em consonância com tal raciocínio inquinado, dada a existência manifesta de tais documentos nos autos, prossegue-se na decisão sob recurso “Na presente acção pedem os Autores a nulidade do contrato de compra e venda de apresentando como causa de pedir a existência de simulação na celebração desses contratos.
Acontece que partes nesta acção, na perspectiva que os Autores têm da mesma, são exactamente os eventuais simuladores: autores (embora representados pela 1.ª Ré) e a própria 1.ª Ré.. Ou seja, não estamos perante a situação mais comum de terceiros a invocar a simulação, mas sim perante o próprio simulador a assumir-se enquanto tal e a intentar a presente acção contra o outro, que – em conluio consigo, na sua versão dos factos – consigo celebrou o contrato.
Assim sendo não poderemos considerar o Autor como “terceiro” para efeitos de arguição de nulidade do negócio, na medida em que o autor interveio e participou (embora representado por procuração), na forma como alega os factos, nos mesmos. Considerando-se os Autores como simuladores que arguem a nulidade do negócio, está o mesmo abrangido pelas limitações de prova dos n.ºs 1 e 2 do art. 394.º do CC.
Dispõe o art. 394.º do CC que “1. É inadmissível a prova por testemunhas, se tiver por objecto quaisquer convenções contrárias ou adicionais ao conteúdo de documento autêntico ou dos documentos particulares mencionados nos arts. 373.º a 379.º quer as convenções sejam anteriores à formação do documento ou contemporâneas dele, quer sejam posteriores.”, acrescentando o n.º 2 que “A proibição do número anterior aplica-se ao acordo simulatório e ao negócio dissimulado, quando invocados pelos simuladores”.
Tem entendido a jurisprudência que esta proibição não é absoluta e que nestas concretas situações o recurso à prova testemunhal ou até às presunções judiciais apenas é admissível nas situações em que existe um início de prova documental a indiciar essa mesma simulação. Esta é jurisprudência maioritária do STJ de que são exemplo, entre muitos outros, os Acs. de 04-02-2003, Revista n.º 4033/02, Relator Pinto Monteiro, de 10-04-2003, Revista n.º 544/03, Relator Eduardo Baptista, de 17-06-2003, Revista n.º 1565/03, Relator Ribeiro de Almeida, 12-01-2010, Revista n.º 122/1998.S1, Relator Moreira Alves, 02-03-2010, Revista n.º 1700/06TBFLG.G1.S1, Relator Cardoso de Albuquerque, 11-11-2010, Revista n.º 743/04.0TBAVR.C1.S1, Relator Orlando Afonso, 06-02-2014, Revista n.º 353/07.0TBARC.P1.S1, Relator Serra Baptista e de 17-06-2014, Revista n.º 2563/10.3TBCSC.L1.S1, Relator Hélder Roque.
Conforme se refere neste último acórdão citado, “A existência de um princípio de prova por escrito pode permitir o recurso à prova testemunhal, a título complementar, também, quando a prova documental iniciada é insuficiente para demonstrar a simulação ou formar a convicção da verificação de facto alegado, quando se trate de interpretar o conteúdo de documentos ou completar prova documental e sempre que o julgador possa formular uma primeira convicção relativa à simulação, com vista a conformar ou infirmar essa mesma convicção”.
Ora, transpondo esta unanimidade de entendimentos, no que respeita às limitações de prova, para os presentes autos podemos afirmar que não existe nos presentes autos um princípio de prova escrita.
É certo que os Autores referem juntar cheques de pagamento do preço e devolução desse mesmo preço mas nunca o fizeram! Esses documentos não constam dos autos.
Assim, face à ausência desse início de prova escrita sempre teria de ser desconsiderada qualquer prova testemunhal que tivesse sido produzida a esse respeito, posto que por si só e desacompanhada, de nada vale face às referidas limitações do art. 394.º do CC.”.
Os documentos existem e provam efectivamente o alegado pelos AA. e a prova de tal pagamento e retorno nos termos constantes da alínea d) dos factos que foram considerados não provados.
Deste modo, manifestamente tendo por base a documentação junta no requerimento supra aludido, o contido não provado em d) passará a transitar para os factos provados do seguinte modo: “A Ré emitiu a favor do Autor o cheque número … no valor de € 170 000,00 e em 12-06-2007 C… emitiu a favor da Ré …. no valor de € 170 000,00”.
No mais, inexistindo pretensão da recorrente na alteração de outro(s) facto(s) o tribunal de recurso não pode de motu próprio proceder à mesma, por não se verificar nem o previsto no artº 662º nº 1, nem sequer o enunciado no artº 640º do Código de Processo Civil devidamente explicitado supra.
*
III. O Direito:
No âmbito da acção pedem os AA. a nulidade da compra e venda por simulação, não solicitam a devolução de qualquer valor, mas apenas que se considere nula a venda e logo, que a propriedade dos imóveis em causa a favor da ré seja declarada nula com o consequente cancelamento do registo, considerando-se transferida a propriedade, de novo, para os AA.
Na contestação apresentada os RR. referem que ao contrário do alegado pelos AA. arguem que tal acto negocial não visava dificultar a vida dos credores, dizendo sim que tal compra e venda destinava-se a garantir o valor mutuado pelo réu aos AA., no valor correspondente ao atribuído aos imóveis – 70.000€- destinando-se tal “venda” a garantir o valor mutuado. Na sua alegação acaba por ainda dizer que “caso o douto Tribunal assim não o entenda e anule a escritura e o respectivo registo transmitindo os dois prédios para os A.A., desde que estes devolvam a quantia de 70.000,006 (setenta mil euros), acrescida de juros” e ainda “Caso o douto Tribunal decida pela anulabilidade da escritura pública de compra e venda, tem as consequências previstas no artigo 289.° e seguintes do Código Civil, nomeadamente a restituição das quantias recebidas pelos A.A.”. Concluem por fim pela improcedência da acção, ou “b) caso assim não se entenda e se proceda à anulação da escritura de compra e venda e consequentemente anulando-se as inscrições registais a favor da Ré G…, Lda, a anulação só se pode executar por comunicação à Conservatória, após os A.A. fazerem prova da restituição do valor recebido”.
Ora, tal como se expõe na decisão recorrida “dispõe o art. 240.º do CC que “1. Se, por acordo entre declarante e declaratário, e no intuito de enganar terceiros, houver divergência entre a declaração negocial e a vontade real do declarante, o negócio diz-se simulado. (…)”, acrescentando o art. 241.º do mesmo código que “1. Quando sob o negócio simulado exista um outro que as partes quiseram realizar, é aplicável a este o regime que lhe corresponderia se fosse concluído sem dissimulação, não sendo a sua validade prejudicada pela nulidade do negócio simulado.
Por seu turno, acrescentam os arts. 242.º e 243.º do CC que “…a nulidade do negócio pode ser arguida pelos próprios simuladores entre si, ainda que a simulação seja fraudulenta.”
Tem sido comumente aceite que para que um negócio se possa considerar simulado, e como tal nulo, nos termos do artigo 240.º, n.º 2, do Código Civil, é necessário que se verifiquem determinados requisitos. A saber: que haja uma divergência entre a vontade e a declaração; que essa divergência seja intencional; que tenha como intenção enganar (e já não prejudicar, sendo, portanto, admissíveis formas de simulação inocente) terceiros; e que a falta de concordância entre o que se declara e o que se quer resulte de um acordo (pactum simulationis) entre o declarante e o declaratário (ver por todos A. Barreto Menezes Cordeiro, in “Da simulação no direito civil”, Coimbra, Almedina, 2014).
Também tem sido entendido que para apresentar conceito capaz de compreender a simulação admite-se, à partida, a conexão da problemática a um exercício irregular da autonomia privada. Nesse sentido, «tal como a mentira e a falsidade no campo social, a simulação seria a não conformidade, quase que como fenómeno indesejado – e, talvez, inevitável – do mau uso dos meios colocados à disposição dos particulares para a regulação de seus interesses. Se o estabelecimento de regras de conduta é o caminho por qual trilham os indivíduos para a satisfação de suas necessidades e conveniências, a simulação é o atalho deturpado por qual sempre vagam os que não admitem ou não querem os rumos socialmente propostos. Para tanto, lançam mão de ajustes públicos que não valem, ao menos não em sua inteireza, porque antecipadamente contrariados por outros, internos.» (André Barbosa Guanaes in “Os efeitos da simulação” pág. 55 – FDUL Mestrado científico em ciências jurídicas).
Ferreira de Almeida ainda que entenda que a doutrina e a jurisprudência convirjam na caracterização dos três requisitos aludidos, quanto ao primeiro – a divergência intencional entre a vontade e a declaração – refere que este «é preconceituoso, porque impelido pela necessidade de se referir à vontade, e por isso irrealista, no sentido de que não reproduz correctamente a realidade que pretende descrever» (in “Contratos” V, Invalidade, pág. 103 ). Prosseguindo que «o que efectivamente se observa na simulação, e a caracteriza, é a divergência, a incompatibilidade e a contradição entre declarações negociais, uma ostensiva ou externa (“para inglês ver”) e outra oculta ou interna, que as partes guardam para si». Quanto à simulação absoluta ou relativa refere o mesmo autor que «a declaração oculta pode ter um de dois conteúdos: ou diz apenas que o contrato ostensivo não vale (simulação absoluta) ou indica quais são os elementos da declaração externa que são substituídos pela declaração interna (simulação relativa). Em qualquer caso, o contrato referido na declaração ostensiva é nulo.» ( in ob. e loc. cit. ).
A alteração factual operada por esta decisão apenas determina que, não obstante o contrato ter sido de compra e venda, negócio necessariamente oneroso, o que resulta é que perante a entrega, ou o pagamento, e o retorno, a devolução, do mesmo valor, tal elemento essencial à venda deixou de estar presente, descaracterizando o contrato. Porém, tal facto por si só não determina que se possa concluir pela existência de um negócio simulado relevante para a respectiva nulidade nos termos pretendidos pela recorrente.
Com efeito, o que determina a cominação de nulidade é por um lado a falta (intencional) de vontade negocial, pelo que se compreende no quadro de formação do negócio jurídico, mas tal é predisposta para salvaguarda dos interesses dos terceiros que são enganados com o negócio fictício. Donde, tal como aduz Pedro Pais de Vasconcelos “sem a intenção de enganar terceiros, a simulação poderia encontrar solução em tema de interpretação do negócio jurídico. A divergência bilateral e consensual entre a vontade e a declaração é uma questão que encontra solução jurídica no artigo 236.º, n.º 2, do Código Civil, (…): se ambas as partes declararam algo diferente do que verdadeiramente queriam e se estão de acordo quanto ao conteúdo negocial verdadeiramente querido, o negócio vale de acordo com a sua vontade real. (…) Assim, (…) na simulação absoluta concluir-se-ia (…) que nenhum negócio existia”( in “Teoria Geral do Direito Civil” pág. 521. O Autor sustenta, além disso, que a mesma ideia explicaria a possível validade do negócio dissimulado. Na verdade, se as partes estivessem de acordo quanto ao conteúdo do negócio, conhecendo a vontade real de ambas, seria de acordo com esta que o negócio valeria. Portanto, valeria de acordo com a vontade de celebrar um negócio de tipo ou conteúdo diferente. Nos termos do artigo 241.º, n.º 1, do Código Civil, o negócio dissimulado poderá ser válido ou inválido consoante o tratamento que lhe seria dispensado se não tivesse ficado encoberto.)
Donde, a disciplina que o legislador dispensa à simulação só se compreenderia, portanto, à luz do intuito de enganar terceiros, núcleo essencial desta explicitação é a ideia de que, porque cada um dos contraentes conhece a vontade real do outro, não há uma confiança digna de tutela que urja ser tutelada. Assim sendo, a nulidade do negócio simulado só se justifica sem que seja ponderada a posição da contraparte, porque esta, participando no pacto simulatório, não titula nenhuma posição de confiança digna de tutela.
Frise-se que a propósito dos elementos exigidos para que se possa falar em simulação, Barreto Menezes Cordeiro refere que o mero conluio entre as partes sem o intuito de enganar terceiros deixa de ser simulatório ( in ob. Cit. Pág. 67).
Logo, resulta apenas provada a celebração de um contrato de compra e venda entre as partes, cuja particularidade ocorre com a ausência ora provada de pagamento do preço, mas ainda que resulte igualmente que a intenção das partes não foi a celebração de tal contrato  mas sim dar de garantia os imóveis objecto do contrato face à ajuda financeira dada pelos réus aos AA., comprometendo-se a Ré a transmitir os mesmos novamente para os Autores logo que liquidado o valor financiado, claramente não se provou o elemento que se discute – a intenção de enganar terceiros- pois tal facto resultou como não provado sob a alínea e).
Daqui resulta que os factos a considerar não são de molde a preencher os requisitos do vício da vontade invocado nos autos e que nos permita concluir pela invalidade do negócio. 
Improcede deste modo, a apelação, mantendo-se, na íntegra, a decisão recorrida.
*
IV. Decisão:
Por todo o exposto, Acorda-se em julgar improcedente o recurso de apelação interposto pela autora e, consequentemente mantém-se a decisão recorrida nos seus precisos termos.
 Custas pela apelante.
Registe e notifique.

Lisboa, 22 de Fevereiro de 2024
Gabriela de Fátima Marques
Anabela Calafate
Eduardo Petersen Silva