Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
11735/2005-6
Relator: ARLINDO ROCHA
Descritores: ARBITRAGEM
CONSUMIDOR
LEGITIMIDADE
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 12/15/2005
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Sumário: 1. A legitimidade é um pressuposto processual que, doutrinariamente, se pode definir como o poder de dirigir a pretensão deduzida em juizo ou a defesa contra ela oponível; no lado activo supõe a titularidade de uma pretensão, admitindo que esta exista; no passivo, que seja directamente atingido pela providência requerida.
2. A Lei nº 24/96 e o DL. nº 67/2003, que transpôs para o ordenamento jurídico português a Directiva nº 1999/44/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 25 de Maio, integram legislação específica atinente aos direitos dos consumidores do Centro de Arbitragem do Sector Automóvel.
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da relação de lisboa

1.(E) e (C), ao abrigo do art. 24º do Regulamento do Centro de Arbitragem do Sector Automóvel ( CASA), adoptado pelas partes, conforme convenção arbitral apropriada, autorizaram o julgamento do presente litígio pelo tribunal arbitral.
Neste litígio,(E) pede a resolução do contrato de compra e venda de um veículo automóvel.
Para tanto, alega que comprou à (C) o veículo automóvel Ford Mondeo, com a matrícula 64-88-VM, em 22.9.2003.
Contudo, logo em 23.10.2003, teve de depositar o referido veículo na oficina da vendedora para reparação de diversas avarias.
Passados alguns meses, o veículo voltou a sofrer as mesmas avarias.
Em 5.5.2004, o automóvel foi recolhido pela (C) para reparação, tendo-lhe esta dito que a avaria estava reparada.
Porém, passadas duas horas, o carro voltou a ter a mesma avaria.
Um mês depois da avaria anterior, que a (C) dissera ter sido reparada, o veículo voltou a sofrer as mesmas avarias.
A (C) é concessionária da Ford Lusitana, a quem a Eduarda endereçou diversas cartas.
A C.A.M. – Camiões, Automóveis e Motores, outra concessionária da Ford Lusitana, recebeu a viatura para a revisão dos 20.000 Kms, tendo sido detectada uma fuga de óleo.
A mesma viatura regressou às instalações da CAM, em 17 de Setembro de 2004, onde permaneceu para reparação até 23 do mesmo mês, com as mesmas avarias.
Todavia, em 31.1.2005, o veículo continuava com os mesmos problemas.
A (C) contestou, dizendo que, quando a viatura foi depositada na sua oficina, em 27.4.2004, foi feito o teste WDS que deu o código de erro PO200PCM, o que implica a substituição da válvula EGR e a reprogramação dos injectores, operação que foi realizada, como foi ainda substituída a embraiagem com a colocação de um novo Kit e também a correia do alternador e o sensor de folga, já que estes não se encontravam em perfeitas condições. O ruído proveniente do cabo encostado a uma parte metálica do chassis foi também devidamente acondicionado.
Após aquelas intervenções, foi efectuado o teste de estrada, tendo-se concluído que a viatura estava em perfeitas condições.

Procedeu-se a julgamento com observância das legais formalidades.
Foi proferida sentença que declarou resolvido o contrato e condenou a (C) a devolver à (E) a quantia de € 34.203,77, correspondente ao valor pago pelo veículo.

A (C) não se conformou com esta decisão, recorrendo da mesma para este Tribunal.
Formulou as seguintes conclusões:
A sentença carece de factos que a fundamentem;
O Tribunal não tem qualquer facto, para além da alegação da reclamada e do depoimento do seu filho, de onde retire, por exemplo, que o veículo foi reparado nas oficinas da EXPOFOR;
E mesmo que o veículo tivesse efectivamente dado entrada nas oficinas da EXPOFOR ou da CAM., nada resulta destes autos quanto às efectivas reparações e problemas apresentados pelo veículo;
Pelo que é impossível dizer que as avarias que a reclamada enumera eram reiteradas e que não foram solucionadas;
É impossível saber que tipo de reparações terão sido eventualmente feitas noutras oficinas, pois pode-se ter tratado de obras que nada têm a ver com os motivos da presente reclamação - o que é normal, num veículo que apresenta 40.000 km em 18 meses;
Pelo que foi violado o disposto no art. art. 653º, nº2, do C.P.C., visto que o Tribunal não analisou criticamente as provas;
Por outro lado, nada foi provado quanto ao tipo de vício que a reclamada alega, designadamente, quanto à sua importância, essencialidade e interferência;
Nem foi provado que o veículo não possa ser reparado;
O Tribunal estava obrigado, nos termos do art. 913º do Código Civi1, a apurar se o eventual vício em causa desvalorizava ou impedia a realização do fim - e nada se apurou quanto a esta matéria;
Posto isto, teria de apreciar, nos termos do art. 914º do Código Civil, se a reparação da coisa era exigível, só podendo determinar a sua substituição se o vício não fosse passível de reparação - e nada curou ou provou quanto a isto:
É absolutamente falso que o Tribunal tenha apurado que a reclamada foi interpelada pela reclamante para reparar a coisa - só se provou que nunca mais voltou à oficina após Abril de 2004, apesar de advertida para voltar assim que registasse qualquer problema;
Acresce que o Tribunal nem sequer tomou em consideração que o veículo tem uma quilometragem de 40.000 Kms, em I8 meses, o que dá uma média muito razoável de 1.818 km/mês - pelo que, havendo resolução, a reclamante tem de restituir o valor correspondente ao uso do veículo (art. 289º, nº1, aplicável ex vie art. 433º, ambos do Código Civil);
A única prova feita pela reclamada foi de que esteve nas oficinas da reclamante duas únicas vezes: em 23/10/2003 e seis meses depois, em 26.4.2004, volvidas 15.000 kms;
Acresce que a reclamada é parte ilegítima, uma vez que a garantia é prestada pela FORD LUSITANA , que é quem tem poder e competência para verificar quais as eventuais reparações efectuadas no veiculo;
A reclamada desconhece em absoluto tudo o que foi feito na carro após aquelas duas visitas à oficina - só a FORD LUSITANA, que é quem presta garantia, podia saber disto;
A ilegitimidade é de conhecimento oficioso, pelo que o Tribunal violou o disposto no art. 495º C.P.C.;
O carro não tem qualquer vício que impeça a realização do seu fim;
É muito estranho que, após duas idas à oficina da reclamada, espaçadas em mais de seis meses, e que culminaram com um teste de estrada com a cliente, em que a mesma foi advertida de que deveria voltar lá se verificasse algum barulho, esta não o tenha feito e tenha ido a outro concessionário, para intervenções que não especificou nestes autos;
A douta sentença viola várias normas jurídicas, designadamente o disposto nos amigos 913º e 914º, 289º, nº 1 do Código Civil, e os arts. 495º e 653º, nº 2, do Código de Processo Civil.

Nas contra-alegações a apelada sustenta que a decisão deverá ser mantida.

2. Foram dados como assentes os seguintes factos:
A - A reclamante é dona e legítima possuidora do automóvel marca Ford, modelo Mondeo, com a matrícula 64-88-VM .
B - " Que adquiriu à reclamada, em 22 de Setembro de 2003, por 34.203,77 €.
C - Em 23 de Outubro de 2003, o automóvel da reclamante, com cerca de 3.000 Km de uso, foi depositado na oficina da reclamada para reparação de diversas avarias, onde permaneceu até 3 de Novembro seguinte.
D - As avarias detectadas pela reclamante eram as seguintes:
Barulho na parte do lado esquerdo do motor, que deixava de funcionar quando a embraiagem era accionada;
Emissão de muito fumo pelo tubo de escape ao acelerar e reduzir a velocidade do automóvel;
Barulho forte junto ao para brisas que parecia vir do tablier.
E - Durante o período de tempo referido na anterior alínea C, a reclamada não forneceu um veículo de substituição à reclamante.
F - A reclamada entregou o automóvel à reclamante, considerando-o reparado, sem que tivesse exibido qualquer ordem de reparação nem entregue as peças eventualmente substituidas.
G - A reparação teve como objecto, essencialmente, a substituição do Kit da embraiagem.
H - O automóvel vendido à reclamante pela reclamada foi um dos primeiros do modelo Mondeo de 6 velocidades comercializado em Portugal.
I - Modelo este cuja embraiagem apresentava deficiências por virtude de ter sido fabricado para pisos macios, designadamente em Inglaterra.
J - O que levou o fabricante Ford a substituir o Kit de Embraiagem de todos os modelos Mondeo comercializados e a circular em Portugal por o piso deste País ter características de dureza diferentes das da Inglaterra.
K - Decorridos alguns meses após a reparação efectuada e descrita nas anteriores alíneas, a reclamante voltou a depositar o automóvel na oficina da reclamada por os problemas anteriormente detectados continuarem a persistir.
L - O que sucedeu em 26 de Abril de 2004, e quando o automóvel já tinha 15.000 Km de uso.
M - A reclamada voltou a substituir o Kit de embraiagem do automóvel da reclamante, entretanto lançado pelo fabricante, com fundamento nos factos referidos nas anteriores alíneas H a J.
N - Para além da substituição do Kit de embraiagem nesta segunda reparação, a reclamada substituiu também a válvula EGR, que tem por finalidade reciclar os gases emitidos pelo tubo de escape.
O - Bem como programou os injectores do automóvel da reclamante, tendo em conta a substituição da válvula EGR.
P - Também o tubo que estava encostado ao chassis do automóvel dos autos, junto do lado direito dos pés do condutor, foi fixado, deixando assim de se produzir o ruído detectado.
Q - Durante esta nova intervenção mecânica, que findou em 5 de Maio seguinte, o automóvel foi entregue à reclamante pela reclamada, já que esta o considerou reparado.
R - No período de 26 de Abril a 6 de Maio de 2004, a reclamada colocou ao serviço da reclamante um veículo de substituição.
S - Não tendo, porém, aquando da entrega da viatura supostamente reparada, entregue à reclamante qualquer documento indicativo do tipo de reparação efectuada nem entregue as peças substituídas.
T - Decorridos apenas trinta dias sobre a alegada reparação identificada nas anteriores alíneas M a Q , o automóvel da reclamante voltou a sofrer a mesma avaria ao nível da embraiagem.
U - A reclamante, face a todos os factos ocorridos, perdeu a confiança na reclamada.
V – A reclamada é concessionária da Ford Lusitana, sendo esta a representante em Portugal dos automóveis de marca Ford.
X – Dada a nova avaria referida na anterior alínea T e tendo a reclamante perdido a confiança nos bens e serviços fornecidos e prestados pela reclamada, a reclamante à C.A.M. - Camiões Automóveis e Motores, também ela concessionária da Ford, para reparação do seu automóvel.
Z – E também para proceder à revisão dos 20.000 Kms, data na qual foi detectada uma fuga de óleo que a C.A.M. reparou.
AA – Empresa aquela que reconheceu, em 31 de Janeiro de 2005, que o problema da avaria da embraiagem se mantinha.
BB – O automóvel da reclamante foi de novo intervencionado entre 6 de Abril de 2005 e e 22 do mesmo mês e ano, agora na Expofor, outro concessionário da Ford Lusitana.
CC – Com vista à inspecção da embraiagem.
DD – Não obstante o que continua a ouvir-se o mesmo barulho, embora com menos intensidade.
EE – Ruído esse relacionado com o deficiente funcionamento da embraiagem do automóvel da reclamante.
FF – Atento o comportamento do seu automóvel, a reclamante evita fazer viagens longas com receio de sofrer uma avaria que o imobilize.

3. O Direito.
Vejamos, agora, as questões suscitadas no recurso.
Alega, desde logo, a apelante que é parte ilegítima, uma vez que a garantia é prestada pela FORD LUSITANA, que é quem tem poder e competência para verificar quais as eventuais reparações efectuadas no veiculo.
A ilegitimidade ad causam, tanto activa como passiva, integra uma excepção dilatória, que é de conhecimento oficioso e que determina a absolvição da instância relativamente ao réu que tenha sido accionado - arts. 288º, nº1, 493º, nº 2, 494º, al. e) e 495º, todos do CPC.
A legitimidade é também um pressuposto processual que, doutrinariamente, se pode definir como o poder de dirigir a pretensão deduzida em juizo ou a defesa contra ela oponível; no lado activo supõe a titularidade de uma pretensão, admitindo que esta exista; no passivo, que seja directamente atingido pela providência requerida ( A. Varela, Manual de Processo Civil, 2ª ed., pag. 129).
A definição legal da legitimidade não se fasta da doutrinária.
O autor é parte legítima quando tem interesse directo em demandar; o réu é parte legítima quando tem interesse directo em contradizer, exprimindo-se aquele interesse pela utilidade derivada da procedência da acção e o interesse em contradizer pelo prejuizo que dessa providência advenha -art. 26º, nºs 1 e 2 do CPC.
Visando remover dúvidas no que tange à compreensão do que seja o interesse directo, esclarece o nº 3 do mesmo normativo que, na falta de indicação da lei em contrário, são considerados titulares do interesse relevante para efeito de legitimidade, os sujeitos da relação material controvertida, tal como o autor a configura.
Este preceito resolveu definitivamente a velha querela que, como é sabido, se travou em torno do conteúdo da expressão «relação controvertida», no anterior diploma processual, ficando assente, como a jurisprudência já entendia maioritariamente, que é a relação configurada pelo autor – tese do Prof. Barbosa de Magalhães – e não a relação jurídica que se venha a desenhar por via da produção de prova – tese do Prof. Alberto dos Reis.
No presente caso, está em causa um contrato de compra e venda de um veículo automóvel celebrado entre a apelante e a apelada. A Ford Lusitana é uma entidade totalmente estranha à apelada e que não interveio, de qualquer forma, no negócio.
Portanto, quem tem interesse em contradizer é a (C), sujeito da relação material controvertida, tal como a configura a apelada.

A apelante põe também em causa a decisão sobre a matéria de facto.
Sabe-se que as decisões da 1ª instância sobre a matéria de facto são passíveis de reclamação perante o próprio tribunal, sucedendo, porém, que a decisão respectiva não consente novas reclamações, nem pode ser objecto de recurso autónomo (art. 653º, nº5, do CPC).
No entanto, se vier a ser interposto recurso da decisão final, o seu objecto poderá ser alargado à reapreciação da matéria de facto no que concerne à parte dessa matéria concretamente questionada.
São conhecidas as profundas alterações introduzidas pela reforma de 1996 - e também pela intercalar de 1995 - nos princípios informadores da decisão atinente à matéria de facto e nos poderes da Relação no que tange à modificabilidade e à anulação dessa decisão.
Como pontos mais salientes dessa reforma, encontram-se os seguintes: enquanto o sistema anterior circunscrevia a decisão à matéria de facto alegada pelas partes (princípio consagrado no art. 664º e que apenas consentia, para além dessa matéria, a atendibilidade dos factos notórios e daqueles que indiciassem utilização abusiva do processo para fins ilegítimos - arts. 514º e 665º -, o actual regime passou a admitir também - art. 264º - que sejam atendidos os factos instrumentais ou circunstanciais resultantes da discussão da causa e até - se isso for requerido pelas partes e servir para concretizar factos já alegados - os próprios factos essenciais que resultem dessa mesma discussão;
enquanto o dever de fundamentar a decisão sobre a matéria de facto apenas incidia sobre as respostas afirmativas e restritivas dadas aos quesitos, esse dever também abarca, agora, as respostas negativas - nº2 do art. 653º;
enquanto o regime actualmente em vigor consagra, como regra geral, o princípio da modificabilidade, pela Relação, da decisão proferida sobre a matéria de facto, o anterior sistema previa essa modificabilidade apenas a título excepcional - art. 712º.


Alega a recorrente que a sentença carece de absoluta fundamentação sobre a matéria de facto.
O dever de fundamentação diz respeito não só aos factos que o tribunal considera provados, mas também aos que o tribunal considera como não provados. Para isso, não basta indicar os concretos meios de prova que estiveram na base da formação da convicção do julgador. O tribunal deve ir mais além, especificando os meios de prova, as razões por que lhes foi atribuída certa relevância ou credibilidade e o peso que tiveram na formação da convicção.
Esta exigência destina-se a possibilitar, de certo modo, o controlo da decisão.
Na fundamentação lavrada, ainda que de uma forma bastante sintética, o tribunal “ a quo” não se limitou a apontar os meios de prova que conduziram à factualidade provada. Esclareceu também a razão pela qual as testemunhas tomaram conhecimento dos factos, a relevância dos mesmos, a par de outros meios de prova carreados para o processo.
Por outro lado, se a apelante entendia, como parece entender, que a decisão sobre algum ou alguns ou mesmo todos os factos essenciais para o julgamento da causa não estavam devidamente fundamentados, podia ter requerido ao Tribunal da Relação que o tribunal arbitral os fundamentasse, nos termos do disposto no nº 5 do art. 712º do CPC, mas não o fez.

Também não é possível a modificação da decisão sobre a matéria de facto.
Neste domínio, a nossa lei consagra o princípio da prova livre -art. 655º do CPC - nos termos do qual o tribunal aprecia livremente as provas e responde segundo a prudente convicção que tenha formado acerca de cada facto quesitado.
Só assim não será quando a lei exigir, para a existência ou prova do facto jurídico, qualquer formalidade especial que, nesse caso, não pode ser preterida.
Conforme ensina o Prof. A. Varela, “...as provas são apreciadas livremente, sem nenhuma escala de hierarquização, de acordo com a convicção que gerem realmente no espírito do julgador acerca da existência do facto (Manual, 1984, pag. 455).
Assim, como regra geral, não pode o Tribunal da Relação alterar a decisão da 1ª instância sobre a matéria de facto, a menos que decorra algum dos casos excepcionais que vêm numerados no art. 712º do CPC.
Contudo, esses casos não se verificam.
Embora seja permitida a reapreciação dos elementos de prova constantes do processo, podendo a 2ª instância adquirir uma convicção diferente daquela a que chegou a 1ª instância, e expressá-1a em concreto, alterando a decisão do tribunal inferior nos pontos questionados, quanto a nós, semelhante ampliação de poderes, como se diz no sumário do Acórdão da Relação do Porto de 19.9.00, não se impõe a realização de novo e integral julgamento nem admite recurso genérico contra a errada decisão da matéria de facto.
Na verdade, mantendo-se em pleno vigor os princípios da oralidade, da imediação, da concentração e da livre apreciação das provas, e orientando-se o julgamento humano por padrões de probabilidade e nunca de absoluta certeza, o uso pela Relação dos poderes de alterar a decisão da 1ª instância acerca da matéria de facto deve restringir-se aos casos de flagrante desconformidade entre os elementos de prova disponíveis e aquela decisão nos concretos pontos questionados.
A acrescer a isto, há que ter em conta que o julgador não pode apenas ter em linha de conta este ou aquele depoimento, este ou aquele documento. Deve formular um juízo de valor sobre todos os meios de prova apresentados em juízo e, depois, ponderadamente, responder aos factos que compõem a matéria da base instrutória.

Também a sentença não padece de qualquer nulidade, designadamente a prevista no art. 668º, nº1, al. b), do CPC, a qual só é operante quando haja omissão total dos fundamentos de facto e de direito em que assenta a decisão e já não quando essa fundamentação seja deficiente ou incompleta.
A sentença indicou os fundamentos de facto, fez a sua análise crítica e aplicou o direito.

Sustenta, ainda, a apelante que não seria possível a resolução do contrato porque o tribunal não apurou, nos termos do art. 913º do Código Civi1, se o eventual vício em causa desvalorizava ou impedia a realização do fim, como não apreciou, nos termos do art. 914º do Código Civil, se a reparação da coisa era exigível.

A sentença impugnada encontra a sua fundamentação nos arts. 60º da CRP, aplicável por força dos arts. 17º e 18º, nº1 e no art. 12º da Lei nº 24/96, de 31 de Julho, alterada pelo DL. nº 67/2003, de 8 de Abril.
Como ficou referido no relatório, a apelante aderiu ao Centro de Arbitragem do Sector Automóvel, que, para além do mais, possui legislação específica atinente aos direitos dos consumidores.
A Lei nº 24/96 e o DL. nº 67/2003, que transpôs para o ordenamento jurídico português a Directiva nº 1999/44/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 25 de Maio, integram essa legislação específica.
Ora, o referido art. 12º, nº1, na sua redacção original, como o art. 4º, nº1, do DL. nº 67/2003 prescrevem que, em caso de falta de conformidade do bem com o contrato, o consumidor tem direito a que esta seja reposta sem encargos, por meio de reparação ou de substituição, à redução adequada do preço ou à resolução do contrato.
Por outro lado, como decorre do último diploma citado ( art. 4º, nº5), o consumidor pode exercer qualquer dos direitos referidos nos números anteriores, salvo se tal se manifestar impossível ou constituir abuso de direito, nos termos gerais.
No caso ajuizado, face à prova produzida, a actuação da apelada não merece qualquer censura.
Na verdade, a apelada comprou à apelante o veículo automóvel identificado e, dentro do prazo da garantia, detectou vários defeitos, que logo denunciou à apelante.
Manifestamente que este veículo não estava em conformidade com o contrato.
Apesar disso, a apelada tentou que os defeitos fossem reparados pela recorrente e, perdida a confiança nesta, por outros concessionários da Ford Lusitana.
Porém, após as sucessivas reparações, as mesmas avarias reapareciam e ainda hoje persistem.
Perante os defeitos detectados, ninguém poderá por em causa que o veículo não corresponde às legítimas expectativas da apelada, desde logo porque não se mostra apto a satisfazer os fins a que se destina. Não é normal que um veículo novo tenha de ser reparado com tanta frequência e sempre pelos mesmos motivos e sem que os defeitos sejam definitivamente eliminados, pelo que a resolução é o meio adequado a restabelecer o equilíbrio entre as prestações negociais.
A resolução é a destruição da relação contratual, operada por acto posterior de vontade de um dos contraentes, que pretende fazer regressar as partes à situação em que elas se encontrariam, se o contrato não tivesse sido celebrado ( Prof. Antunes Varela, Obrigações, 3ª ed., 2º-242).
Na falta de disposição em especial, a resolução é equiparada, quanto aos seus efeitos, à nulidade ou anulabilidade do negócio jurídico ( art. 433ºCC).
Deste modo, a restituição do preço do veículo é ordenada com base no art. 289º do CC e não no enriquecimento sem causa, dado o seu carácter subsidiário. Daí que não seja de restituir o valor correspondente ao uso do veículo, como pretende a apelante.
4. Face ao exposto, acorda-se, na improcedência da apelação, em confirmar a sentença recorrida.
Custas pela apelante.

Lisboa, 15 de Dezembro 2005
Arlindo Rocha
Carlos Valverde
Granja da Fonseca