Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
3317/14.3JFLSB.L1-5
Relator: ESTER PACHECO DOS SANTOS
Descritores: CRIMES DE PECULATO E ABUSO DE PODER
BENS JURÍDICOS PROTEGIDOS
CONCURSO APARENTE
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 02/20/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: N
Texto Parcial: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PARCIALMENTE PROVIDO
Sumário: (da responsabilidade da relatora)
1 – Os bens jurídicos protegidos pelas incriminações respeitantes ao peculato e ao abuso de poder são essencialmente os mesmos, ou seja, a integridade do exercício das funções públicas pelo funcionário e, acessoriamente, o património alheio, sendo, no caso do último ilícito, ainda os interesses não patrimoniais de outra pessoa.
2 – Existe uma relação de concurso aparente – subsidiariedade - entre o tipo legal de peculato - art.º 375.º- e o tipo legal de abuso de poder - art.º 382.º, apenas tendo lugar a punição por aquele crime mais grave, porquanto prevê um maior conteúdo de ilícito.
3 – Os crimes de peculato, branqueamento, falsificação de documento e de falsidade informática autonomizam-se nos específicos bens jurídicos que protegem, não se verificando, entre eles, qualquer relação de especialidade, subsidiariedade ou consumpção nem se configurando nenhum dos crimes em relação ao outro como facto posterior não punível.
Decisão Texto Parcial:Em conferência, acordam os Juízes na 5ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:
I – Relatório
1. No processo comum coletivo n.º 3317/14.3JFLSB do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, Juízo Central Criminal de Lisboa – Juiz 5, em que é arguido AA (e também “F. BB”, entretanto absolvida), melhor identificado nos autos, foi proferido acórdão, em 18.11.2022, que decidiu, para o que importa, nos seguintes termos (transcrição):
a) condenar o arguido AA na pena de 2 (dois) anos pela prática de 1 (um) crime de abuso de poder, previsto e punido pelo artigo 382, com referência artigos 26 e 386, n.º 1, alínea d), todos do Código Penal;
b) condenar o arguido AA na pena de prisão de 4 (quatro) anos e 6 (seis) meses pela prática de 1 (um) crime de peculato, previsto e punido pelo artigo 375, n.º 1, com referência aos artigos 26 e 386, n.º 1, alínea d), todos do Código Penal;
c) condenar o arguido AA na pena de prisão de 3 (três) anos pela prática de 1 (um) crime de branqueamento, previsto e punido pelo artigo 368-A, n.ºs 1, 2, 3, 5 e 12, do Código Penal;
d) condenar o arguido AA na pena de prisão de 2 (dois) anos pela prática de 1 (um) crime de falsificação de documentos, previsto e punido pelo artigo 256 n.º 1, alíneas a), e) e f) e n.º 4, com referência aos artigos 26 e 386, n.º 1, alínea d), todos do Código Penal;
e) condenar o arguido AA na pena de prisão de 3 (três) anos pela prática de 1 (um) crime de falsidade informática, previsto e punido pelo artigo 3º, n.ºs 1, 3 e 5, da Lei n.º 109/2009, de 15 de setembro, com referência aos artigos 26 e 386, n.º 1, alínea d), ambos do Código Penal;
f) condenar o arguido AA, em cúmulo jurídico das aludidas penas, na pena única de 7 (sete) anos de prisão.
g) condenar o arguido AA na pena acessória de proibição do exercício de funções de agente de execução, por um período de 5 (cinco) anos, nos termos do disposto no artigo 66, n.º 1, alínea a), do Código Penal.
(…)
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2. Recurso Intercalar
A 9.03.2022 foi proferido despacho judicial com o seguinte teor (transcrição):
Fls. 18 590, 18 591 a 18 594, 18599 e 18 600, 18 618 a 18 624, 18 637:
Conforme decorre da decisão de fls. 17.345 a 17.348, que determinou a realização da perícia, o Tribunal reputou a mesma como a diligência necessária para que pudessem ser apreciadas e decididas diversas questões que constituem objeto processual.
Contrariando os prazos fixados nesta mesma decisão, ocorreram uma série de obstáculos, de diversas ordens: burocráticas (autorização de consulta dos diversos processos executivos solicitada por ofício dirigido aos Excelentíssimos Senhores Juizes Presidentes das Comarcas), processuais, práticas, informáticas (com as limitações assinaladas pelo Senhor Perito e imputáveis também à assistente CC e finalmente de ordem pessoal e profissional (referenciadas pelos Senhores Peritos nomeados — cfr. Fls. 18 637), que arrastaram no tempo o início e realização da perícia.
Os diversos intervenientes processuais foram ouvidos e pronunciaram-se em diversos sentidos, cujos argumentos e fundamentos foram ponderados pelo Tribunal Coletivo.
Ora, compatibilizando os diversos direitos e interesses processuais e constitucionalmente consagrados, entende o Tribunal Coletivo que se encontram esgotadas as diligências reputadas de admissíveis e possíveis, que justifiquem maior dilação temporal no reinício da audiência de julgamento.
Concomitantemente, o Tribunal Coletivo entende que o relatório pericial parcial apresentado responde a diversos quesitos formulados (constituindo um contributo para a descoberta da verdade material), devendo, por isso, os intervenientes, no prazo de 10 (dez) dias, pronunciar-se quanto ao mesmo (suscitando esclarecimentos e demonstrando inconsistências já assinaladas), reduzindo-se o objeto pericial apenas ao objeto do relatório.
Consequentemente, o Tribunal Coletivo não determinará nem a realização de qualquer nova perícia, nem a conclusão da anteriormente determinada, procedendo à apreciação crítica da prova nos termos processuais penais.
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Inconformado com o despacho judicial de 9.03.2022, que acima foi transcrito, o arguido AA interpôs recurso, pugnando pela revogação do despacho recorrido e decidindo-se pela realização (conclusão) da perícia, nos precisos termos, e com âmbito inicialmente determinado pelo tribunal.
Apresentou as seguintes conclusões (transcrição):
1.º Vem o presente recurso interposto do Despacho proferido em 09-03-2022, que determinou a não conclusão da perícia cuja realização havia sido determinada e a, consequente, redução do objecto pericial.
2.º Tal despacho viola as normas dos arts. 151º e 340º do Código do Processo Penal bem como os mais básicos princípios constitucionais de garantias de defesa em processo criminal, consagrados nos art.º 20º e 32º da CRP, e também os n.ºs 1 e 3, al. b) do art.º 6º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem.
3.º O despacho ora impugnado está ferido de nulidade também por omissão de diligências essenciais à descoberta da verdade, nos termos do disposto no art.º 120º, n.º 2, al. d) do CPP, uma vez que como se demonstrou no requerimento probatório a perícia é indispensável ao apuramento dos factos e à descoberta da verdade material.
4.º Na verdade, na sequência da apresentação de um requerimento probatório para realização de perícia, o Tribunal por despacho de 07-12-2017 veio pronunciar-se determinando a realização da perícia ao abrigo do disposto nos art.ºs 151º a 154º do CPP.
5.º Donde resulta que o Tribunal a quo considerou a referida diligência de prova necessária à descoberta da verdade e à boa decisão da causa, não a tendo reputado impertinente, desnecessária, dilatória nem dispensável.
6.º Porém, surpreendentemente, volvidos quase 5 anos desde a data em que foi determinada a realização da perícia, vem agora este mesmo Tribunal, determinar, através do despacho ora impugnado:
iii) a não conclusão da perícia determinada;
ii) a não realização de nova perícia;
iii) e a redução do objecto pericial apenas ao objecto do relatório.
7.º O Tribunal a quo justifica, em suma, tal decisão com o atraso na realização da mesma!
8.º Contudo, jamais se poderá admitir, num Estado de Direito Democrático, que os direitos de defesa do Arguido e os princípios constitucionais de garantias de defesa sejam coartados e frontalmente atropelados em virtude do surgimento de uma série de obstáculos e dificuldades de ordem burocrática, processual, informática, pessoal e profissional invocados pelos senhores peritos, etc., etc…
9.º É certo que o Tribunal podia ter indeferido o requerimento de prova pericial apresentado pelos Arguidos em setembro de 2017, em caso de impertinência ou desnecessidade ou cariz dilatório.
10.º Porém, não o tendo feito, e tendo determinado a realização da perícia, não pode agora impedir o acesso àquela prova.
11.º Não pode o Tribunal impedir, com fundamento em obtenção difícil ou morosa a realização e a produção integral de tal prova, requerida ao abrigo do art.º 340º do CPP pelos Arguidos e determinada pelo Tribunal.
12.º O despacho impugnado põe em causa o direito constitucionalmente garantido de acesso ao direito e aos tribunais, com tutela jurisdicional efectiva, designadamente na vertente da proibição da indefesa, e como manifestação da exigência de um processo justo e equitativo, consagrado no art.º 20º da CRP.
13.º Acresce que o referido despacho, com uma fundamentação manifestamente inapta, viola ostensivamente as normas dos art.ºs 151º e 340º do Código do Processo Penal bem como os mais básicos princípios constitucionais de garantias de defesa em processo criminal, consagrados nos art.ºs 20º, n.º 5 e 32º da CRP, e também os n.ºs 1 e 3, al. b) do art.º 6º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem.
14.º O despacho ora impugnado, ao decidir como decidiu, violou todas as normas acima referidas.
15.º Na verdade, negar ao Arguido a possibilidade de ver produzida a prova perícia requerida e determinada, ofende os direitos e as garantias que lhe estão constitucionalmente consagrados sendo, por isso, absolutamente inadmissível.
16.º Acresce que o referido despacho está ferido de nulidade também por omissão de diligências essenciais à descoberta da verdade, nos termos do disposto no art.º 120º, n.º 2, al. d) do CPP.
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Respondeu o Ministério Público ao recurso intercalar interposto pelo arguido, pugnando pela respetiva improcedência, mas sem formular conclusões.
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O arguido AA, no recurso que interpôs do acórdão condenatório, declarou, nos termos e para os efeitos do disposto no art.º 412.º, n.º 5 do CPP, que mantém o interesse na apreciação do “recurso retido”.
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3. Recurso do Acórdão do Tribunal Coletivo
Inconformado com o acórdão condenatório, veio o arguido AA interpor recurso, formulando as seguintes conclusões (transcrição):
1.º Vem o presente recurso interposto do Acórdão proferido pelo Tribunal "a quo" que condenou o Arguido como autor material, na forma consumada e em concurso efectivo, pela prática dos crimes de abuso de poder, peculato, branqueamento, falsificação de documentos, e falsidade informática.
2.º Como procurará demonstrar, entende o Arguido que não se provou a prática dos crimes de falsificação de documento, falsidade informática e de branqueamento, pelos quais foi condenado.
3.º Considera também que, ainda que se tivessem provado a prática de tais crimes, a relação entre eles seria de concurso aparente e não de concurso real, como erradamente qualificou o Tribunal.
4.º Finalmente considera o Arguido que quer as penas parcelares fixadas quer a pena única aplicada, se revelam manifestamente excessivas, violando os princípios da necessidade, adequação e proporcionalidade consagrados no art.ºs 70º e 71º do, bem como os art.ºs 40º e 50º todos do Código Penal.
5.º Assim, no que se refere à alegada prática dos crimes de falsificação de documento, falsidade informática e branqueamento não foi produzida prova da prática dos mesmos.
6.º Apesar de não ter sido produzida prova da autoria do crime de falsificação de documento, e de o Arguido ter negado a autoria do mesmo, o Tribunal imputou a sua prática ao Arguido.
7.º O Tribunal entendeu ainda assim dar como provado o crime, apenas e só fazendo alusão às regras da experiência comum e da normalidade das coisas.
8.º Face à total ausência de prova, impunha-se a absolvição do Arguido.
9.º O mesmo se diga quanto ao crime de falsidade informática.
10.º Refere-se na fundamentação da sentença que a prova destes factos resulta das declarações do Arguido.
11.º Porém o Arguido negou a autoria do procedimento descrito, revelando que nem sequer domina o dito procedimento nem as plataformas informáticas, sendo certo que o domínio destas ferramentas seria indispensável a realizar das referidas operações.
12.º Assim, e face à total ausência de prova a este respeito, impunha-se de igual modo a absolvição do Arguido.
13.º No que respeita à prática do crime de branqueamento, o mesmo pressupõe que o seu autor tenha praticado pelo menos uma das condutas previstas no n.º2 do artigo 368.º - A do Código Penal: "converter, transferir, auxiliar ou facilitar alguma operação de conversão ou transferência de vantagens, obtidas por si ou por terceiro, directa ou indirectamente, com o fim de dissimular a sua origem ilícita, ou de evitar que o autor ou participante dessas infracções seja criminalmente perseguido ou submetido a uma reacção criminal."
14.º Quanto a este ilícito penal o que se provou foi que o Arguido com o intuito de fazer seus, indevidamente, montantes que se encontravam nas contas-cliente, decidiu não associar parte dos mesmos a processos de execução e de seguida transferi-los para contas tituladas por si, pela sua sogra e por sociedades por si controladas.
15.º O Arguido nada fez que visasse ocultar a origem e a proveniência daqueles movimentos.
16.º Os factos provados (elencados nos pontos 52, 57, 135, 137, 152, 153, 155, 173, 185, 186, 261, 266, 267 e 272 da sentença, que ora se dão por integralmente reproduzidos) revelam que não houve por parte do Arguido qualquer intenção de ocultar ou dissimular a origem das referidas transferências.
17.º O que houve foi apenas uma preocupação de se financiar e de se proteger em relação à actuação da máquina tributária, designadamente face à existência de dívidas e de execuções que movidas contra si.
18.º No mesmo sentido militam também os factos provados, de que o Arguido estava falido, sem dinheiro. E que com as ditas transferências apenas pretendia travar a acção das finanças, evitando a penhora — que receava - dos saldos das contas banoórias.
19.º Importa concluir que dos factos considerados provados não resulta provada a prática de qualquer operação capaz de ocultar ou dissimular a origem das quantias em causa ou de evitar a punição do Arguido pela prática dos factos descritos no número 2 do artigo 368.º - A do Código Penal.
20.º De facto, verifica-se que as movimentações bancárias imputadas ao Arguido são feitas pelo Arguido, ou por funcionários seus a seu mando, e nesse sentido nada ocultam.
21.º Verifica-se também que ele próprio é o destinatário e o beneficiário dessas operações/transferências cujos montantes se encontram totalmente identificados.
22.º Também não é "reintroduzida" em circulação qualquer quantia ilícita, disfarçando-a (quanto à sua origem, proveniência ou natureza) ou ocultando a sua proveniência ilícita.
23.º As transferências e as operações em causa nos presentes autos foram todas elas realizadas pelo Arguido enquanto actos de disposição das quantias em causa.
24.º Na verdade, inexiste qualquer operação capaz de ocultar ou dissimular a origem das quantias em causa ou evitar a punição do Arguidos, ou de terceiros pela prática destes factos.
25.º Por outro lado, inexiste qualquer operação de "branqueamento" no sentido de reintroduzir na circulação lícita quantias de origem ilícita, disfarçando-as (quanto à sua origem, proveniência ou natureza) ou ocultando a sua proveniência ilícita.
26.º Do exposto, resulta que não se produziu qualquer prova relativamente aos elementos objetivos e subjetivos do tipo de ilícito pela qual prática do qual o Arguido foi condenado.
27.º Pelo que deve o Arguido ser absolvido do crime de branqueamento por não se terem provado os factos de que depende o preenchimento do tipo de ilícito em causa.
28.º Ainda que se entendesse que os crimes acima mencionados tinham resultado provados, o que se pondera sem conceder e por mero dever de patrocínio, sempre se dirá que contrariamente à qualificação jurídico-penal feita pelo Tribunal "a quo", verifica-se um concurso aparente e não efectivo de crimes.
29.º Sendo que o único crime pelo qual o Arguido poderá ser condenado será o crime de peculato, porquanto todos os demais se encontram numa relação de subsidiariedade, especialidade e consumação com o crime de peculato.
30.º O Tribunal a quo não considerou a verificação dessas relações, e considerou preenchida uma multiplicidade de tipos legais de crime, quando o comportamento do Arguido, embora em abstrato possa preencher vários tipos, é absorvido globalmente por um único tipo — o peculato.
31.º Todos os outros são crimes-meio, pré-direcionados à preparação, facilitação e à execução do crime de peculato, não podendo por isso ser considerados autonomamente.
32.º Assim, é evidente que a punição por todos estes crimes redundaria na punição da mesma conduta várias vezes, em frontal violação do princípio non bis in idem plasmado no art.º 29º, n.º 5 da Constituição da República Portuguesa.
33.º O crime de peculato, previsto pelas disposições conjugadas dos arts. 375º, nº 1, e 386º, nº 1, al. c) do Código Penal, é preenchido pela conduta do funcionário que ilegitimamente se apropriar, em proveito próprio ou de outra pessoa de dinheiro ou outra coisa móvel, pública ou particular, que lhe tenha sido entregue, esteja na sua posse ou lhe seja acessível em razão das suas funções.
34.º Considerando-se funcionário quem, mesmo provisória ou temporariamente, mediante remuneração ou a título gratuito, voluntária ou obrigatoriamente, tiver sido chamado a desempenhar ou a participar no desempenho de uma atividade compreendida na função pública administrativa ou jurisdicional, ou, nas mesmas circunstâncias, desempenhar funções em organismos de utilidade pública ou nelas participar.
35.º Com efeito, o bem jurídico protegido pela incriminação do peculato consiste na integridade do exercício das funções públicas pelo funcionário
36.º O crime de abuso de poder, p. e p. pelo artigo 382º é um tipo penal "supletivo" relativamente aos restantes crimes que envolvem, implicam ou supõe abuso de autoridade, tendo sido definido pelo autor do projeto de Código Penal como um tipo que continha a "punição de um abuso de funções para obter benefícios ou causar prejuízos".
37.º O crime de peculato é afinal, um abuso de poder em razão da qualidade especial do agente, da função especial que desempenha em certo momento.
38.º O tipo legal de crime de peculato e o tipo legal de abuso de poder são coincidentes nos respetivos elementos objetivos - subjetivos.
39.º Entre o peculato e o abuso de poder estabelece-se, pois, uma relação de subsidiariedade ou de especialidade (concurso aparente), devendo ser punido apenas o crime de peculato.
40.º A relação de subsidiariedade significa que determinadas normas penais "intervêm só de forma auxiliar ou subsidiária, quando o facto não seja punido por uma outra norma mais grave".
41.º É o que acontece, designadamente, nas hipóteses em que a própria lei é expressa "em condicionar a aplicação de um preceito à não aplicação de um preceito mais grave ou de uma pena mais pesada".
42.º Atendendo à prova produzida, e à orientação da Jurisprudência dominante, forçoso será concluir que mal andou o Tribunal "a quo" ao condenar o Arguido pela prática, em concurso real, destes dois tipos legais.
43.º Impõe-se, pois, corrigir este entendimento plasmado no Acórdão ora recorrido, e declarar que se verifica um concurso meramente aparente entre aqueles dois ilícitos.
44.º O mesmo se diga relativamente aos crimes de falsidade informática e falsificação de documento.
45.º Sem prejuízo do que se expôs a propósito da ausência de prova da verificação destes ilícitos, ainda que se entenda que os mesmos resultaramprovados, ainda assim dever-se-á considerar que os crimes de falsidade informática e de falsificação de documento foram o meio para o cometimento do crime de peculato, pois apenas com o fim de cometer este último, é que aqueles terão sido praticados.
46.º Com efeito, entre o crime de peculato e os crimes de falsidade informática e de falsificação de documento, pelo quais o Arguido também foi condenado em concurso efectivo, verifica-se uma relação de consunção e, por conseguinte, também um concurso meramente aparente.
47.º Sendo que a punição dessas condutas pela aplicação do regime de concurso efectivo de crimes previsto no artigo 77º do Código Penal consubstancia também uma violação do princípio constitucional da proibição de dupla valoração consagrado no art.º 29º nº 5 da CRP.
48.º Por último, no que se refere à medida das penas parcelares fixadas e à pena única aplicada, entende também o Arguido que as mesmas se revelam excessivas, desnecessárias e desproporcionais, devendo ser reduzidas de modo a permitirem a suspensão da execução da pena de prisão.
49.º Não foram enunciados os critérios presidiram à determinação das penas parcelares aplicadas, revelando-se a decisão que as fixou manifestamente infundamentada.
50.º Não obstante a falta de fundamentação, o certo é que as mesmas se revelam excessivas.
51.º Desde logo porque o Tribunal "a quo", na determinação da medida das penas parcelares, não apreciou devidamente as circunstâncias que depuseram a favor do Arguido.
52.º Designadamente a sua situação pessoal, o seu comportamento anterior e posterior à prática do crime, a avançada idade do Arguido, a doença do foro psiquiátrico de que padece, e o facto de ter confessado os factos e ter colaborado com o Tribunal.
53.º Por outro lado, também não foi considerado o enorme período de tempo já decorrido desde a prática dos factos (mais de 10 anos).
54.º A favor do Arguido militam ainda os factos provados, e elencados nos pontos 331, 337, 338, 342, 346, 347, 349, 350 e 351 do Acórdão, que aqui se dão por integralmente reproduzidos, no que respeita às suas condições sociais e pessoais.
55.º O Arguido tem 69 anos, e padece de problemas de saúde do foro psiquiátrico que determinaram já vários períodos de internamento psiquiátrico, e que se agravaram exponencial e irreversivelmente nos últimos 4 anos.
56.º À data da prática dos factos, o Arguido não tinha quaisquer antecedentes criminais, tendo mantido ao longo de toda a sua vida uma boa conduta pessoal, profissional e cívica.
57.º Um outro factor que o Tribunal não tomou em devida conta prende-se com os motivos que determinam a prática do crime e que se relacionam com a situação de colapso financeiro em que se viu enredado (veja-se os factos provados elencados nos pontos 173, 186, 261, 266, 267 e 272, que se dão por integralmente reproduzidos).
58.º Todos estes fatores deviam ter sido apreciados a favor do Arguido, na determinação da medida da pena, impondo-se, por tudo o que se vem alegando, que a pena a aplicar seja consideravelmente mais baixa, quer por razões de prevenção especial, que também por razões de prevenção geral.
59.º Neste contexto específico, o Tribunal "a quo" ao condenar o Arguido numa pena de sete anos e meio de prisão efectiva, não observou os princípios da necessidade, adequação e proporcionalidade consagrados no art.ºs 70º e 71º do Código Penal, bem como as exigências do art.º 40 do C.P.
60.º Importa ter presente que as sanções penais, para além de estarem subordinadas à prevenção geral, têm como objectivo a prevenção especial e a reinserção do delinquente na sociedade.
61.º Note-se que ao Arguido foram aplicadas, no âmbito do presente processo, e ao longo de vários anos medidas de coacção, inclusivamente, privativas da liberdade.
62.º Medidas essas que o Arguido cumpriu escrupulosamente ao longo de vários anos.
63.º Assim, e no que respeita à análise das exigências de prevenção especial não se afigura que as mesmas sejam de especial importância. Não só face à ausência de antecedentes criminais, mas também porque o crime praticado é um crime próprio que exige uma determinada qualidade do agente e dessa — a de agente de execução — está o Arguido afastado.
64.º A inserção familiar do Arguido, que vive com a mulher há cerca de 20 anos, também mitiga as exigências de prevenção especial.
65.º De facto, no âmbito do presente processo, o Arguido já passou um longo período de tempo em prisão preventiva e passou um longo período sujeito a apresentações periódicas diárias, o que nos parece ser claramente suficiente para o fazer sentir o efeito pretendido com uma condenação, afastando-o do domínio da criminalidade e do cometimento de novos crimes.
66.º pena única de sete anos e meio de prisão aplicada ao Arguido, primário à data dos factos, social e familiarmente integrado, apenas tem a virtualidade de lhe fechar as portas da reintegração.
67.º Com efeito, e atendendo aos fundamentos expostos, deverá o Tribunal reduzir substancialmente a pena aplicada, concluindo pela suspensão de execução da mesma, já que é possível a formulação de um prognóstico favorável relativamente ao comportamento futuro do Arguido em sociedade.
68.º Assim, em face de tudo o que se expôs, e sem prescindir do que alegou neste recurso, entende o Arguido que a pena que lhe for aplicada não deverá nunca ser superior a cinco anos, devendo ser suspensa na sua execução, nos termos do disposto nos artigos 40º, 50º e 71º do Código Penal.
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O Ministério Publico apresentou resposta ao recurso interposto pelo arguido, no sentido de que o acórdão recorrido não merece censura, concluindo nos seguintes termos (transcrição):
1. O douto acórdão explana sobre o processo lógico com que o tribunal formou a sua convicção na conclusão da factualidade provada, não se limita a considerações genéricas sobre as provas produzidas, mas de forma assaz especificada e concreta enuncia as suas razões de convicção.
2. Motivo pelo qual não padece da douta de sentença de qualquer vício plasmado art.º 410º nº 2 als. a) a c) do Código de Processo Penal.
3. A prova dos factos relativos ao crime de falsificação (art.ºs 162 a 164) resulta de um juízo lógico e de inferência em relação quer por um lado da vantagem decorrente de tal falsificação tendo o arguido como inequívoco beneficiário e bem assim a sua posição de autoridade e de domínio sobre o escritório e todas as ocorrências do mesmo que partiam sempre do arguido. Nesse sentido não vemos como se pode argumentar que apenas seria por via da confissão do arguido que o tribunal poderia alcançar a conclusão da prova dos factos em causa, mal estaríamos sobretudo no caso dos autos em que a conjugação dos depoimentos e prova documental e pericial permitem alcançar todo o “modus operandi” do arguido.
4. Quanto ao crime de falsidade informática, quanto à factualidade provada vertida no facto 165 entende o recorrente que a negação do arguido obstaria à sua prova. Ora está em causa a forma como eram registados no SISSAE as operações que resultaram provadas e que o arguido não impugna e permitiram emitir os IUPS e movimentar os dinheiros de que o arguido se apropriou ilicitamente, nesse sentido toda a factualidade provada e que preenche o crime em causa decorre que as movimentações e registos eram ou feitos pelo arguido ou a seu mando, o que resulta do depoimento das testemunhas que na qualidade de funcionários do escritório do arguido prestaram aqui declarações.
5. Acresce não colhe o argumento que o recorrente pretende que seja atendido de que o arguido não pretendia branquear, mas sim impedir que o dinheiro em causa fosse penhorado pela autoridade tributária, quando o procedimento incluía que o dinheiro desse entrada por transferência quer em contas nacionais de terceiros, quer fora de Portugal conforme decorre dos factos provados.
6. Na senda do entendimento decorrente designadamente do Ac do STJ de 13.10.2004 in www.dgsi.pt:
I - O concurso efectivo de crimes é real quando o agente pratica vários actos que preenchem autonomamente vários crimes ou várias vezes o mesmo crime (pluralidade de acções) e é ideal quando através de uma mesma acção se violam normas penais ou a mesma norma, repetidas vezes (unidade de acção).
7. O tribunal “a quo” demonstrou a verificação dos ilícitos imputados ao arguido em concurso real e efectivo.
8. Entre o crime de peculato e o crime de abuso de poder não podemos deixar de ressaltar a denominador comum relativo à qualidade de funcionário todavia tratam-se de condutas autonomizáveis como bem explicou o tribunal, no caso do abuso de poder , o arguido valendo-se da sua condição de agente de execução movimentou quantias sem que estivessem reunidos os pressupostos legais e regulamentares subjacentes à realização do movimento e no caso do crime de peculato apropriou-se de quantias que estavam entregues mas não lhe eram destinadas, invertendo o título da posse o que assim se afasta do primeiro ilícito e pressupõe a possibilidade do seu concurso real conforme doutamente decidido no acórdão sob recurso.
9. Da análise dos factos relativos ao crime de falsificação de documento, o crime de falsidade informática e contrariamente ao defendido pelo recorrente não se tratam apenas de crimes fins para a prossecução do crime de peculato e o crime de abuso de poder, pois que se autonomizam no bem jurídico, na verdade não se verifica entre eles, qualquer relação de especialidade, subsidiariedade ou consunção nem se configurando nenhum dos crimes em relação ao outro como facto posterior não punível
10. O Tribunal a quo teve em consideração todos os factores a que se deve atender na ponderação e determinação concreta da medida da pena.
11. Face aos factores concretos e supra enunciados concluímos no sentido de que mesmo que a pena fosse até cinco anos de prisão temos uma impossibilidade de fazer um juízo de prognose favorável no sentido de que ameaça com a execução de uma pena de prisão afasta o arguido da prática de novos ilícitos, tendo em conta que tais factores revelam uma personalidade desconforme ao direito, com óbvia tendência para a prática deste tipo de ilícito, não se verificando os pressupostos inerentes ao art 50º do Código Penal.
12. Por todo o exposto, improcedem todas as alegações do aqui recorrente, não padecendo assim o acórdão sob recurso qualquer reparo.
*
A assistente .... apresentou resposta ao recurso interposto pelo arguido, pugnando pela sua improcedência e pela manutenção integral do acórdão recorrido, concluindo nos seguintes termos (transcrição):
A. O Recurso do Arguido deve ser considerado improcedente, devendo o Acórdão recorrido ser integralmente mantido, uma vez que nenhum dos vícios invocados no Recurso do Arguido se verifica.
B. Um, não existe qualquer insuficiência de prova para a decisão da matéria de facto dada como provada relativamente à prática dos crimes de falsificação de documento, falsidade informática e branqueamento de capitais, nos termos do artigo 410.º, n.º 2, alínea a), do CPP.
C. O Tribunal a quo logrou fundamentar tal decisão, apreciando os factos alegados e bem assim os que resultaram da discussão da causa em audiência de julgamento em conjugação com a prova produzida, não decorrendo da mesma qualquer salto conclusivo ou dúvida que fosse resolvida em desfavor do Arguido.
D. A prática do crime de falsificação de documento e o respectivo modus operandi do Arguido resulta da análise integrada da prova testemunhal, em concreto do depoimento de DD, e da prova documental e pericial.
E. A práctica do crime de falsidade informática, isto é, que as movimentações e registos informáticos no SISSAE – matéria que o Arguido não nega nem impugna – eram feitos pelo Arguido ou por ordens suas, decorre da prova testemunhal, em concreto de funcionários do escritório do Arguido, das declarações do Arguido e da prova documental e pericial.
F. A práctica do crime de branqueamento de capitais ficou igualmente provada através da conduta do Arguido que fazia circular dinheiro ilícito por diversas contas bancárias.
G. Não foi violado qualquer princípio probatório no âmbito da decisão proferida, devendo, nessa medida, ser mantida a condenação nos seus exactos termos.
H. Dois, não procede a invocação do Arguido quanto ao suposto erro de Direito na qualificação jurídico-penal dos factos considerados provados, na medida em que o Arguido praticou vários actos que preenchem autonomamente vários crimes através dos quais são protegidos no ordenamento jurídico distintos bens jurídicos, devendo a condenação manter-se em concurso real que não em concurso aparente.
I. Relativamente aos crimes de peculato e de abuso de poder, acompanha-se a posição do Ministério Público na sua Resposta ao Recurso: “tratam-se de condutas autonomizáveis como bem explicou o tribunal, no caso do abuso de poder, o arguido valendo-se da sua condição de agente de execução movimentou quantias sem que estivessem reunidos os pressupostos legais e regulamentares subjacentes à realização do movimento e no caso do crime de peculato apropriou-se de quantias que estavam entregues mas não lhe eram destinadas, invertendo o título da posse o que assim se afasta do primeiro ilícito e pressupõe a possibilidade do seu concurso real conforme doutamente decidido no acórdão sob recurso”.
J. Relativamente aos crimes de falsificação de documento e falsidade informática, não estão apenas em causa, como defende o Arguido, crimes fins com o intuito de levar a cabo única e exclusivamente o crime de peculato ou abuso de poder, já que ambos se autonomizam nos específicos bens jurídicos que protegem.
K. Três, a medida da pena aplicada pelo Tribunal a quo mostra-se adequada tendo em consideração as necessidades preventivas do caso concreto, as quais o Tribunal a quo logrou fundamentar no Acórdão recorrido.
L. Bem vistas as coisas, entre os 4 anos e 6 meses e os 14 anos e 6 meses, o Tribunal a quo optou por fixar uma pena de 7 anos de prisão, estando esta longe de ultrapassar a medida da culpa do Arguido.
M. Por fim, quanto à possibilidade de aplicação da suspensão da execução da pena de prisão – e considerando a personalidade do Arguido – não é viável formular um juízo de prognose favorável ao Arguido, do qual se possa retirar que a simples censura do facto e ameaça de prisão bastarão para assegurar, de uma forma adequada e suficiente, as exigências de prevenção.
*
4. Parecer do Ministério Público
Nesta Relação, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer, no sentido da improcedência do recurso.
*
5. Cumprido o disposto no art.º 417.º, n.º 2 do Código de Processo Penal, não foi apresentada resposta.
*
6. Colhidos os vistos, foram os autos à conferência.
***
Cumpre apreciar e decidir.
II – Fundamentação
1. Objeto do recurso
De acordo com o estatuído no art.º 412.º do CPP e com a jurisprudência fixada pelo Acórdão do Plenário da Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça n.º 7/95, de 19 de outubro de 1995, o âmbito do recurso é definido pelas conclusões que o recorrente extrai da respetiva motivação, que delimitam as questões que o tribunal ad quem deve apreciar, sem prejuízo das que sejam conhecimento oficioso, mormente os vícios enunciados no art.º 410.º n.º 2 CPP.
No caso concreto, conforme as conclusões das respetivas motivações, cumpre apreciar as seguintes questões:
Relativamente ao recurso intercalar:
• Da não conclusão da perícia ordenada e consequente violação das normas contidas nos arts. 151.º e 340.º do CPP e princípios constitucionais de garantia de defesa;
• Da nulidade do despacho recorrido por omissão de diligências essenciais à descoberta da verdade, nos termos do disposto no art.º 120.º, n.º 2, al. d) do CPP.
Relativamente ao recurso do acórdão condenatório:
• Impugnação da decisão sobre a matéria de facto: insuficiência de prova relativamente à prática dos crimes de falsificação de documento e de falsidade informática;
• Do preenchimento dos elementos objetivo e subjetivo do crime de branqueamento;
• Do concurso aparente versus concurso efetivo de crimes;
• Do quantum da pena e suspensão da execução.
*
(…)
3. Apreciando
A. DO RECURSO INTERCALAR
Inconformado com o despacho proferido a 9.03.2022, que determinou a não conclusão da perícia ordenada, veio o arguido AA dele interpor recurso por o mesmo, no seu entender, violar as normas contidas nos art.º 151.º e 340.º do CPP e os princípios constitucionais de garantia de defesa, invocando ainda que o mesmo se encontra ferido de nulidade, por omissão de diligências essenciais à descoberta da verdade, nos termos do disposto no art.º 120.º n.º 2 al. d) do CPP.
De facto, o tribunal recorrido determinou, por despacho datado de 07.12.2017, a realização de uma perícia, o que fez ao abrigo do disposto nos arts. 151.º a 154.º do CPP e de modo a responder aos seguintes quesitos (transcrição do despacho):
a) os movimentos referidos no quadro integrado no ponto 55 da acusação representam movimentos financeiros associados a qualquer processo de execução tramitados pelos arguidos AA e/ou F. ...?
b) na afirmativa, quais os movimentos?
c) e quais os processos a que se encontram associados?
*
d) quais os valores movimentados no âmbito dos processos executivos n.ºs:
d1) 43216/04.5YYLSB (factos 164. e 211.);
d2) 210/13.0TBCTB (facto 168.);
d3) 2273/09.4TBCSC (facto 201);
d4) 30631/04.3YYLSB (facto 204.);
d5) 684/10.1TBPSR (facto 206.);
d6) 8970/07.1TBCSC (facto 212.);
d7) 1147/03.7TMLSB-A (facto 213.);
d8) 22377/04.9YYLSB (facto 219. e 325.);
d9) 4061/13.4TCLRS (facto 220.);
d10) 27610/04.4YYLSB (facto 241., 245., 267. e 316.);
d11) 18633/04.4YYLSB (facto 242. e 325);
d12) 343/13.3TBETZ (facto 243.);
d13) 6671/12.8TBSXL (facto 244.);
d14) 18633/04.4YYLSB (facto 247.);
d15) 10309/03.6TBCSC (facto 254. e 321.);
d16) 20016/13.6YYLSB (facto 256.);
d17) 4428/12.5TBOER (facto 257.);
d18) 389/11.6YBTNV (facto 258.);
d19) 8722/09.4TBCSC (facto 259.);
d20) 12801/13.5T2SNT (facto 260.);
d21) 5407/13.0TBBRG (facto 261.);
d22) 2162/10.0TBLRA (facto 262.);
d23) 10412/12.1YYLSB (facto 263. e 285.);
d24) 10369/12.9T2SNT (facto 268.);
d25) 970/10.0TYLSB-E (facto 274.);
d26) 1004/13.9TBPBL (facto 278.);
d27) 115/08.7TBPDL (facto 282. e 319.);
d28) 2514/11.8TBPDL (facto 283.);
d29) 10095/12.9T2SNT (facto 283., 321. e 322.);
d30) 20027/13.1YYLSB (facto 286. e 338.);
d31) 4061/13.4TCLRS (facto 291.);
d32) 46371/04.0YYLSB (facto 292.);
d33) 3200/05.3TBCSC (facto 295.);
d34) 22377/04.9YYLSB (facto 304., 328., 335. e 337.);
d35) 27964/04.2YYLSB (facto 305. e 317.);
d36) 6603/06.2TBCSC (facto 306. e 321.);
d37) 41934/04.7YYLSB (facto 310. e 321.);
d38) 1057/14.2T8OER (facto 320. e 325);
d39) 10129/12.7T2SNT (facto 325. e 328.);
d40) 373/12.2TBENT (facto 330.);
d41) 1408/11.1TBGRD (facto 338.);
d42) 21453/12.9YYLSB (facto 339.);
d43) 224/14.3TBVFR (facto 340.);
d44) 32/12.6TBSRP (facto 341.);
d45) 644/13.0TBGMR (facto 342.);
d46) 4115/13.7TBVNG (facto 343.);
d47) 19996/13.6T2SNT (facto 344.);
d48) 3794/13.0TCLRS (facto 345.)?
e) os valores movimentos no âmbito dos processos executivos supra referidos têm correspondência exacta com os movimentos processuais, despesas realizadas e honorários cobrados?
f) na negativa que diferença(s) é(são) assinalada(s), a título de despesas, honorários e entregas a exequentes e executados?
g) e a favor / prejuízo de quem?
h) qual o montante de indevido locupletamento dos arguidos, caso se apure existir?
Nessa sequência, o julgamento ficou suspenso desde 27.11.2017, sendo que, decorridos mais de quatro anos sobre a data do despacho que ordenou a realização da perícia, apenas foi apresentado um relatório pericial parcial, o que se ficou a dever a “uma série de obstáculos, de diversas ordens: burocráticas (autorização de consulta dos diversos processos executivos solicitada por ofício dirigido aos Excelentíssimos Senhores Juízes Presidentes das Comarcas), processuais, práticas, informáticas (com as limitações assinaladas pelo Senhor Perito e imputáveis também à assistente CC) e finalmente de ordem pessoal e profissional (referenciadas pelos Senhores Peritos nomeados — cfr. Fls. 18 637), que arrastaram no tempo o início e realização da perícia”.
Sem prejuízo, entendeu o tribunal recorrido “que o relatório pericial parcial apresentado responde a diversos quesitos formulados (constituindo um contributo para a descoberta da verdade material) (…), reduzindo-se o objeto pericial apenas ao objeto do relatório.
Ora, não obstante o recorrente, em sede de recurso que igualmente interpôs da decisão condenatória, não colocar em crise os movimentos financeiros tidos como assentes, declarou manter interesse na apreciação do “recurso retido”, o que, no rigor, se traduz numa inutilidade superveniente.
Pese embora, e mesmo que assim não fosse, não lhe assiste qualquer razão.
Com efeito, em nome do princípio da boa administração da justiça, é desde logo inconcebível que se tivesse persistido na conclusão de uma perícia cuja realização em tempo útil e admissível se revelou inviável, ainda mais na presença de um relatório pericial, que embora parcial, responde a diversos quesitos formulados (constituindo um contributo para a descoberta da verdade material).
Tanto foi ponderado pelo tribunal recorrido, de modo a compatibilizar os diversos direitos e interesses processuais e constitucionalmente consagrados. Nessa medida, não se vislumbra de que modo foi violado qualquer princípio constitucional de garantia de defesa, quando é certo ter ainda o tribunal a quo ordenado a notificação dos intervenientes processuais para se pronunciarem quanto ao relatório pericial, estando o mais dependente do princípio da livre apreciação da prova, a que alude o art.º 127.º do CPP.
Por outro lado, e ao contrário do alegado pelo arguido, não se mostra violado pelo despacho recorrido qualquer norma processual penal, designadamente a prevista no art.º 340.º do CPP, porquanto está demonstrado nos autos que a conclusão da perícia em tempo útil e admissível, se revelou inviável.
Finalmente, também se considera que o despacho recorrido não se encontra ferido de qualquer nulidade, designadamente, a prevista no art.º 120.º n.º 2 al .d) do CPP, desde logo porque contém as razões pelas quais a conclusão da perícia não assumiu caráter essencial, ao entender, como entendeu, que o relatório pericial parcial apresentado responde a diversos quesitos formulados, constituindo, como de facto constituiu, um contributo para a descoberta da verdade material.
Assim, e para além da inutilidade superveniente a que “supra” se aludiu, certo é que o despacho recorrido não violou nenhuma das normas apontadas pelo recorrente, designadamente as previstas nos arts. 151.º e 340.º do CPP, bem como qualquer princípio constitucional de garantias de defesa em processo criminal, designadamente, os consagrados nos arts. 20.º e 32.º da CRP, e também os n.ºs 1 e 3, al. b) do art.º 6.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem.
Na mesma linha, não se mostra ferido de qualquer nulidade, designadamente, por omissão de diligências essenciais à descoberta da verdade, nos termos do disposto no art.º 120.º, n.º 2, al. d) do CPP.
Em consequência, improcede o recurso.
(…)
C) DO ERRO DE DIREITO
b.1) Do preenchimento dos elementos objetivo e subjetivo do crime de branqueamento
O recorrente alega que da prova produzida e tendo presente os factos provados 52, 57, 135, 152, 153, 155, 173, 185, 186, 261, 266, 267 e 272, não resulta ter havido da sua parte qualquer intenção de ocultar ou dissimular a origem das transferências dos montantes que realizou, e que as mesmas visavam apenas obstar à atuação da autoridade tributária (evitando a penhora – que receava- dos saldos das contas bancárias), até porque as transferências ocorridas estão perfeitamente identificadas.
Em suma, na sua perspetiva, “dos factos considerados provados relativamente ao Arguido não resulta provada a prática de qualquer operação capaz de ocultar ou dissimular a origem das quantias em causa ou de evitar a punição do Arguido pela prática dos factos descritos no número 2 do art.º 368.º-A do Código Penal”.
Vejamos pois, sendo certo que nos termos da disposição legal em apreço - art.º 368.º-A – dúvidas inexistem de que comete o crime em questão “quem converter, transferir, auxiliar ou facilitar alguma operação de conversão ou transferência de vantagens, obtidas por si ou por terceiro, direta ou indiretamente, com o fim de dissimular a sua origem ilícita, ou de evitar que o autor ou participante dessas infrações seja criminalmente perseguido ou submetido a uma reação criminal”.
Trata-se de um crime de conexão, ou seja, pressupõe um ilícito típico precedente de onde devem provir os bens que constituem o objeto da ação típica.
O crime em apreço é necessariamente um crime doloso, sendo o dolo referido à ação típica configurável em qualquer das modalidades, exigindo, porém, o tipo subjetivo o conhecimento efetivo da origem ilícita das vantagens a ocultar ou dissimular, ainda que não seja exigível que o agente conheça o concreto facto típico ilícito que esteve na origem da vantagem, nomeadamente o local onde foi cometido ou os seus autores.
Ora, no caso concreto, e conforme consignado no acórdão recorrido, “o arguido tinha conhecimento que os fundos pertenciam aos ofendidos e que tinham sido obtidos mediante uma apropriação indevida e uma manipulação dos dados do sistema informático, através de ações de conciliação/desconciliação, alteração dos NIB dos destinatários, cobrança indevida de honorários, etc”, sendo totalmente injustificável a alegação de que a antecipação dos honorários (“movimentos bancários (…) realizados previamente à emissão da nota de honorários e despesas e/ou ao decurso do prazo de oposição no âmbito do processo de execução a que diziam respeito, o que obstava à realização dos mesmos, como o arguido bem sabia”) não constitui qualquer “desvio”, uma vez que a eles sempre teria direito.
Nessa medida, a entrada de fundos, impulsionada pelo arguido, por diversas contas bancárias, inclusive da sua sogra e sociedades detidas por si em território estrangeiro, com manifesta dissimulação desses valores e origem, de modo a não serem detetados, mesmo que apenas pela Autoridade Tributária, conforme agora pretende fazer valer, constitui prova positiva dos elementos típicos objetivos e subjetivos do referido crime, permitindo imputar-lhe a respetiva prática, nos termos em que precisamente se mostra condenado.
Efetivamente, as transferências bancárias de montantes ilícitos, constitui uma forma indubitável de branqueamento de capitais, sendo certo que no caso dos autos e nos termos considerados assentes, o procedimento incluía que o dinheiro desse entrada por transferência quer em contas nacionais de terceiros, quer fora de Portugal.
Na inexistência de quaisquer causas de exclusão da ilicitude ou da culpa, naturalmente que não assiste qualquer razão ao recorrente, sendo tanto na medida em que a factualidade tida como assente, e que o recorrente pretende não ser reveladora de que houve da sua parte qualquer intenção de ocultar ou dissimular a origem das referidas transferências, é, ao invés, de molde a concluir pelo efetivo preenchimento dos elementos objetivo e subjetivo do crime de branqueamento.
b.2) Do concurso aparente versus concurso efetivo de crimes
Para além do crime de branqueamento e das considerações “supra” expostas, mostra- -se o recorrente ainda condenado pela prática, em concurso real e efetivo, de um crime de abuso de poder, um crime de peculato, um crime de falsificação de documentos e um crime de falsidade informática.
Considera, porém, que o único crime pelo qual poderá ser condenado será o crime de peculato, porquanto todos os demais se encontram numa relação de subsidiariedade, especialidade e consumpção com o crime de peculato, ou seja, estamos, segundo ele, perante um concurso aparente e não efetivo de crimes.
Vejamos.
Existe concurso de crimes, na aceção de verdadeiro ou efetivo, quando não há uma mútua exclusão entre as normas nas quais é subsumível um comportamento, sendo tal concurso real quando existe uma pluralidade de ações que preenchem vários tipos de crimes.
Paralelamente, falamos em concurso aparente de crimes quando várias previsões legais são preenchidas, mas uma delas basta para esgotar o conteúdo ilícito do facto, segundo regras de especialidade (quando um crime qualificado contem em si todos os elementos de um tipo geral, acrescentando-lhe um ou alguns elementos especializadores), subsidiariedade (quando um crime se apaga perante outro, como forma menos intensa de agressão), ou consumpção (quando a realização de um crime implicou a realização de um outro).
Assim considerando, não poderíamos estar mais de acordo com a resposta do Ministério Público a esta mesma questão (acompanhada pela assistente), ao considerar, no seguimento do Ac. do STJ de 13.10.2004 (disponível em http://www.dgsi.), que o critério da efetividade do concurso de crimes (“crimes efetivamente cometidos”) do artigo 30.º do CP remete essencialmente ao critério do bem jurídico protegido em cada crime, do seu sentido e alcance.
Nesse pressuposto, temos que os bens jurídicos protegidos pelas incriminações respeitantes ao peculato e ao abuso de poder são essencialmente os mesmos, ou seja, a integridade do exercício das funções públicas pelo funcionário e, acessoriamente, o património alheio, sendo, no caso do último ilícito, ainda os interesses não patrimoniais de outra pessoa.
A propósito do crime de peculato, e conforme consignado no acórdão recorrido, “resultou provado que o arguido, revestido da qualidade de funcionário e neste contexto de atuação, de forma manifestamente ilegítima, porque à margem de todas as normas que regem a atividade de agente de execução, se apropriou, em proveito próprio direito e indireto (ou seja, para si mesmo ou através de outros entes com personalidade jurídica – caso das sociedades, familiar e amiga), mas também em proveito de terceiros (seus filhos), de dinheiro que lhe estava confiado e acessível exclusivamente em razão das funções que desempenhava, dissipando-o em proveito próprio e de terceiros.
Por seu turno, e no que respeita ao crime de abuso de poder, e conforme se passa a transcrever, “resultou provado que o arguido, claramente no exercício das funções que legalmente lhe foram conferidas, ultrapassando os limites dos poderes conferidos e violando as normas acima referidas que regulam estas mesmas funções, quis apropriar-se de dinheiro que sabia não lhe pertencer, com reiterada e deliberada intenção de obter um beneficio que sabia não ter direito (as vantagens que tal dinheiro lhe trouxeram), em prejuízo recíproco, conhecido e aceite de terceiros – seus clientes (exequentes), executados e do Estado.
O arguido agiu em benefício indevido próprio, das sociedades e pessoas próximas, fazendo um uso absolutamente reprovável do acesso que tinha sobre dinheiro alheio e um sistema informático colocado ao seu dispor.
Desse modo, e atendendo a que ambas as condutas consubstanciam violação de deveres funcionais, identificamos, à semelhança do recorrente e contrariamente ao acórdão recorrido, uma relação de concurso aparente – subsidiariedade - entre o tipo legal de peculato - art.º 375.º- e o tipo legal de abuso de poder - art.º 382.º (neste sentido Conceição Ferreira da Cunha, in Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo III, Coimbra Editora, 2001, pág. 702, e Paulo Pinto de Albuquerque, in Comentário do Código Penal, Universidade Católica Editora, 2008, pág. 891).
À vista disso, e na medida em que se mostram preenchidos os elementos do crime de peculato, apenas tem lugar a punição por este crime mais grave, porquanto prevê um maior conteúdo de ilícito.
Já no que se refere ao crime de branqueamento, - em que o bem jurídico protegido é a pretensão estadual de confiscar os bens de origem ilícita -, ao crime de falsificação de documento, - em que o bem jurídico protegido é a segurança e a credibilidade do tráfego jurídico, na perspetiva da verdade corporizada em documento -, e ao crime de falsidade informática, - em que o bem jurídico protegido é a integridade dos sistemas de informação, enquanto interesse público na proteção da confidencialidade, integridade e disponibilidade de sistemas informáticos, de redes ou de dados informáticos -, não se acompanha a tese do recorrente, mas antes o acórdão recorrido.
Efetivamente, sendo claro que os crimes em questão se autonomizam nos específicos bens jurídicos que protegem, não assiste qualquer razão ao recorrente, antes se verificando a ocorrência de uma pluralidade de ações que preenchem autonomamente vários crimes.
Em suma, sendo distintos os bens jurídicos tutelados pelos tipos legais de crime de peculato, branqueamento, de falsificação de documentos e de falsidade informática e não se verificando, entre eles, qualquer relação de especialidade, subsidiariedade ou consumpção nem se configurando nenhum dos crimes em relação ao outro como facto posterior não punível, nenhum reparo cumpre realizar ao acórdão recorrido ao concluir pela respetiva punição em concurso efetivo.
Por conseguinte, improcede nesta parte o recurso, sendo infundada a alegação de “que a punição por todos estes crimes redundaria na punição da mesma conduta várias vezes, em frontal violação do princípio non bis in idem plasmado no art.º 29.º, n.º 5 da Constituição da República Portuguesa”.
(…)
*
III – Decisão
Pelo exposto, acordam os Juízes desta Relação em:
A) Julgar improcedente o recurso interposto do despacho interlocutório, mantendo-se na íntegra a decisão do tribunal a quo.
B) Julgar parcialmente procedente o recurso interposto do acórdão condenatório e, em consequência,
a. revogar a decisão no que se refere à condenação do arguido, em concurso real, pela prática de 1 (um) crime de abuso de poder, previsto e punido pelo artigo 382.º, com referência aos artigos 26.º e 386.º, n.º 1, alínea d), todos do Código Penal;
b. manter a condenação do arguido pela prática de 1 (um) crime de peculato, previsto e punido pelo artigo 375.º, n.º 1, com referência aos artigos 26.º e 386.º, n.º 1, alínea d), todos do Código Penal (em concurso aparente com um crime de abuso de poder, previsto e punido pelo artigo 382.º, com referência aos artigos 26.º e 386.º, n.º 1, alínea d), todos do Código Penal); de 1 (um) crime de branqueamento, previsto e punido pelo artigo 368.º-A, n.ºs 1, 2, 3, 5 e 12, do Código Penal; de 1 (um) crime de falsificação de documentos, previsto e punido pelo artigo 256.º n.º 1, alíneas a), e) e f) e n.º 4, com referência aos artigos 26.º e 386.º, n.º 1, alínea d), todos do Código Penal; de 1 (um) crime de falsidade informática, previsto e punido pelo artigo 3.º, n.ºs 1, 3 e 5, da Lei n.º 109/2009, de 15 de setembro, com referência aos artigos 26.º e 386.º, n.º 1, alínea d), ambos do Código Penal, bem como as respetivas penas parcelares de 4 (quatro) anos e 6 (seis) meses, 3 (três) anos, 2 (dois) anos e 3 (três) anos;
c. em cúmulo de todas aquelas penas parcelares condenar o arguido AA na pena única de 6 (seis) anos de prisão.
No mais, confirmam o acórdão recorrido.
Sem custas (art.º 513.º, n.º 1 do CPP)
Notifique.
*
Lisboa, 6 de fevereiro de 2024
(texto processado e integralmente revisto pela relatora – artigo 94.º, n.º 2 do Código de Processo Penal)
Ester Pacheco dos Santos
Luísa Oliveira Alvoeiro
Manuel José Ramos da Fonseca
______________________________________________________
1. NIB ..., adiante e nos autos também identificada por 662.
2. NIB ... adiante apenas também identificada por 920.
3 NIB ..., adiante apenas também identificada por 381.
4. adiante e nos autos também designada por ..., ADMNISTRAÇÃO ... ou ... COMERCIAL.
5. Adiante e nos autos também designada por GERAL FD.
6. Informação da PJ de fls. 74.
7. IBAN BR1...550c1.
8. Destaque nosso.
9. Destaque nosso.
10. Destaque nosso.
11. Destaque nosso.
12. Destaque nosso.
13. Destaque nosso.
14. Destaque nosso.
15. Destaque nosso.
16. Abrange agora dois factos da acusação.
17. Destaque nosso.
18. Destaque nosso
19. Destaque nosso
20. Destaque nosso
21. Nos termos do artigo 541º do CPC, os honorários dos agentes de execução saem precípuos das penhoras que são creditadas na CC Executados
Decisão Texto Integral: