Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
2042/04.8YYLSB-C.L1-6
Relator: ANABELA CALAFATE
Descritores: TÍTULO EXECUTIVO
LIVRANÇA
DIREITO DE REGRESSO
RELAÇÃO ENTRE CO-AVALISTAS
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 02/22/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: I – As relações entre os co-avalistas na letra ou livrança não são de direito cambiário, mas sim de direito comum.
II – Por isso, a letra ou livrança não é título executivo para o avalista exercer o seu direito de regresso contra os co-avalistas.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam na 6ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa

I - Relatório
Por apenso à execução comum para pagamento de quantia certa instaurada  por AH em 22/01/2004 contra B, SA, APH, SFH, e RSH veio este deduzir embargos de executado, peticionando:
«a) que a presente execução seja liminarmente rejeitada por inexistência do título executivo, com as necessárias consequências legais; ou
b) que seja julgada procedente a excepção peremptória de prescrição, com as necessárias consequências legais; ou
c) que seja julgada procedente a excepção dilatória de ilegitimidade activa, com as necessárias consequências legais; ou
d) que seja julgada procedente a excepção dilatória de ilegitimidade passiva, com as necessárias consequências legais; ou caso assim não se entenda,
e) que sejam os presentes embargos de executado julgados procedentes, por provados, com as necessárias consequências legais.
f) Que seja decretada a suspensão do prosseguimento da presente execução.
g) Que seja aberto incidente de falsidade para comprovação da genuinidade da assinatura do ora executado, oposta alegadamente no aval.».
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O exequente contestou, pugnando pela improcedência da oposição.
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Foi proferido saneador-sentença com este dispositivo:
«Pelo exposto, por via da procedência da exceção de inexistência/falta de titulo executivo invocada pelo embargante, julgam-se procedentes os presentes embargos de executado, e, consequentemente, determina-se, no que ao executado embargante respeita, a extinção da execução de que os prestes autos são apenso.
Custas pelo exequente.».
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Inconformado, apelou o exequente, terminando a alegação com estas conclusões:
«1. A economia do presente litígio impõe uma cuidadosa análise da matéria de facto provada na instância recorrida e a necessária relevância á provada sub-rogação contratual do exequente pelo banco tomador da livrança em todos os seus direitos substantivos e adjectivos.
2. Efectivamente, foi devidamente alegado e provado que o exequente e o executado embargante foram avalistas de determinada livrança dada à execução pelo banco tomado.
3. Perante a execução promovida pelo banco tomador, apenas o avalista aqui exequente honrou a sua palavra e pagou a totalidade da quantia exequenda.
4. Agora, pretende o avalista que honrou a sua assinatura que cada um idos executados pague a parte que lhe compete.
5. Ao pagar ao Banco tomador da livrança, o exequente ficou expressamente e contratualmente sub-rogado em todos os direitos do Banco face aos demais obrigados na livrança, incluindo o embargante. Direitos substantivos e adjectivos.
6. Estamos face a um caso de sub-rogação contratual.
7. Por isso o exequente alegou:
8. E provou:
Onde primeira outorgante é o banco tomador e segundo outorgante o exequente.
9. Expressamente o banco tomador da livrança transmitiu ao segundo outorgante a sua posição processual no âmbito da acção executiva oportunamente movida.
10. Assim, o exequente que pagou a totalidade da dívida ao tomador da livrança, logo em quantia superior à que lhe competia, por força do regime
da solidariedade passiva, no âmbito das relações externas, perante o credor, tem direito de reaver dos restantes avalistas, no domínio das relações internas, com base no direito de regresso, a parte que a cada um destes compete, que se presume ser igual para todos, nas relações entre os devedores solidários; in casu 1/6 porque seis eram os avalistas.
11. Por ter ocorrido expressa sub-rogação por parte do banco o exequente tem exactamente os mesmos meios de tutela processual que o primitivo credor.
12. E, à mesma conclusão se chegaria pela melhor interpretação das normas dos Artigos 32 e 47 da LULL, mas, sublinha-se in casu ocorreu expressa sub-rogação por instrumento contratual de todos os direitos do tomador, incluindo no processo e nas garantias.
13. Em tudo o mais, deve-se aplicar a doutrina que resulta do Acórdão do Venerando Supremo Tribunal de Justiça 7/2012 datado de 05 de Junho de 2012 que Uniformiza a jurisprudência nos seguintes termos: sem
embargo de convenção em contrário, há direito de regresso entre os avalistas do mesmo avalizado numa livrança, o qual segue o regime previsto para as obrigações solidárias.
14. Face a isto e do exposto resulta que, contradizendo a douta sentença recorrida, o exequente dispõe de título executivo contra o embargante, e existe o necessário e competente nexo cambiário entre ambos, constituindo a livrança dada à execução título válido para alicerçar a execução.
15. Ao julgar de outro modo, o Digníssimo Juiz a quo fez uma má aplicação do direito aos factos, violando não só as boas regras de julgamento previstas nos Artigos 607 e segts do CPC, como também os Artigos 32 e 47 da LULL e a regra de Uniformização de jurisprudência resultante do Acórdão do Venerando Supremo Tribunal de Justiça 7/2012 datado de 05 de Junho de 2012 e ainda as demais normas de direito que o Venerando Tribunal da Relação de Lisboa com o seu douto suprimento queira indicar.
Nestes termos e nos demais de Direito que o Venerando Tribunal da Relação de Lisboa queira suprir deve ser julgado procedente o presente recurso, revogando-se a sentença recorrida e substituída por douto acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa que declare a existência de título executivo e o competente nexo cambiário entre as partes e a validade dos mesmos e, consequentemente, julgue improcedente por não provado os embargos de executado, ordenado a prossecução da execução até final para cobrança executiva unicamente da parte que competir ao embargante e executado, i.e., 1/6 do total pago pelo exequente ao banco tomador (24.242,89 Euros e juros).
Assim se fazendo a necessária Justiça, como é o Estilo do Venerando Tribunal, mas V. Exªs Senhores
Doutores Juízes Desembargadores superiormente melhor decidirão.».
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O embargante contra-alegou, defendendo a confirmação da sentença recorrida.
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Colhidos os vistos, cumpre decidir.
II – Questões a decidir
O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do apelante, sem prejuízo de questões de conhecimento oficioso, pelo que a questão a decidir é:
- se o exequente dispõe de título executivo contra o embargante
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III – Fundamentação
A) Na sentença recorrida vem dado como provado:
1 – AH intentou em 22.01.2004 execução para pagamento de quantia certa contra B, sa, APH, SFH, e RSH, peticionando o pagamento da quantia de €145.956,32, e indicando como titulo executivo “livrança”.
2- Na parte referente à exposição dos factos e à liquidação da obrigação, fez constar o seguinte:
(…)
3 – Anexou cópia de livrança emitida em Lisboa, em 2002-04-23, a ordem do Banco Efisa, sa no valor de 29.261.615$, com vencimento “à vista”, subscrita por B, SA, a qual contém no verso, seis assinaturas por baixo, cada uma, da respetiva menção “Bom por aval a firma subscritora”, entre as quais a assinatura imputada ao ora embargante- cf doc. 1 do requerimento executivo cujo original conta de fls 38 do processo de execução 96/2002 que correu termos na 2ª Vara Cível de Lisboa, 1ª secção (processo em apenso), documento cujo teor se dá aqui por reproduzido.
4 - Anexa também “Acordo de Pagamento” celebrado entre o Banco Efisa, SA e
AH em 14.10.2002 com o seguinte teor:
(…)
 (…) – cf doc 2 junto ao requerimento executivo, cujo teor se dá por integralmente reproduzido.
5 – O executado embargante foi citado nos termos e para os efeitos do art 728º do CPC no passado dia 02.10.2020.
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B) O Direito
O art. 703º do Código de Processo Civil estabelece:
«1 - À execução apenas podem servir de base:
a) As sentenças condenatórias;
b) Os documentos exarados ou autenticados, por notário ou por outras entidades ou profissionais com competência para tal, que importem constituição ou reconhecimento de qualquer obrigação;
c) Os títulos de crédito, ainda que meros quirógrafos, desde que, neste caso, os factos constitutivos da relação subjacente constem do próprio documento ou sejam alegados no requerimento executivo;
d) Os documentos a que, por disposição especial, seja atribuída força executiva.
2 - Consideram-se abrangidos pelo título executivo os juros de mora, à taxa legal, da obrigação dele constante.».
A 1ª instância expôs, além do mais:
«(…)
Em causa nos autos está uma livrança em que o exequente figura como avalista e na qual consta também, na qualidade de avalista, uma assinatura que é imputada ao executado embargante. A tal livrança acresce um documento intitulado acordo de pagamento subscrito pela beneficiaria da livrança e pelo ora exequente, no qual, em síntese, a beneficiária da livrança declara que o ora exequente procedeu à liquidação da quantia de €149.636,37 referente à ação executiva que então corria termos com base na livrança contra a subscritora e avalistas, e nessa sequencia sub-roga o ora exequente no direito de credito e todos os deveres e obrigações que detém sobre a sociedade subscritora e respetivos avalistas.
Assim, a questão que nos ocupa é a de saber se o avalista que paga o valor da livrança ao beneficiário daquela pode intentar contra os demais avalistas ação executiva baseada na livrança e na declaração de sub-rogação do beneficiário da livrança; ou seja, se dispõe de titulo executivo contra os mesmos.
(…)
Assim, relativamente aos demais avalistas, o avalista que pagou a livrança dispõe de direito de regresso, conforme reconhecido no AC UJ 7/2012 do STJ, o que não se pode confundir com a questão da sua sub-rogação na posição do credor cambiário, que como vimos, não existe.
(…)
Sendo o direito de regresso um direito próprio e nascido ex novo, com natureza e regime específicos regulados pelo direito comum, e não um direito cambiário que tenha sido transmitido, não pode o mesmo direito de regresso ser exercido por via de ação executiva suportada na livrança paga.
Do exposto resulta que o exequente não dispõe de titulo executivo contra o embargante, por inexistir nexo cambiário entre ambos, não constituindo a livrança dada à execução titulo válido para alicerçar a execução.
(…)».
Mas, sustenta o apelante que a referida livrança é título válido para alicerçar a execução com vista a exercer o seu direito de regresso, invocando o AUJ (acórdão uniformizador de jurisprudência) nº 7/2012.
Vejamos.
No AUJ nº 7/2012 (publicado no DR I, de 17/07/2012) lê-se, designadamente:
«Porém, sendo pacífico o entendimento de que a L. U. não regula as relações internas entre os diversos avalistas do mesmo avalizado, a resposta relativamente ao eventual direito de regresso entre eles deve encontrar-se nos quadros do direito comum. Asserção que se encontra em diversos arestos deste Supremo Tribunal, sendo sustentada, além do mais, no facto de na Consideração n.º 75 do Congresso de Genebra, que preparou a Convenção de Genebra de 1930 sobre a L. U., se ter consignado que «não há entre co-avalistas relações cambiárias, mas somente de direito comum que uma Lei Uniforme sobre Letras não tem que regular» (3).
2.4 - O direito comparado não constitui, por si, elemento decisivo para identificar o regime que emerge do direito comum interno. Porém, tratando-se de questão suscitada em face da falta de regulamentação naquele instrumento de Direito Internacional, não pode negar-se relevo ao modo como a mesma é resolvida em ordenamentos jurídicos congéneres.
O entendimento de que entre avalistas do mesmo avalizado não existem relações cambiárias é comum quer nos países, como Portugal, que acolheram no respectivo direito interno a lei Uniforme, quer naqueles cuja opção passou pela aprovação de legislação própria (v. g., em Espanha, a Lei n.º 9/1985, de 16 de Julho) (4).
No ordenamento jurídico italiano, a admissibilidade do direito de regresso encontra previsão expressa no artigo 66.º da Lei Cambiária, de 14 de Dezembro de 1933 (5), com referência directa às regras previstas para as obrigações solidárias.
Já na França ou na Alemanha, a afirmação e definição de tal direito não decorre de normas expressas, sendo fruto da discussão doutrinal ou jurisprudencial (6).
O mesmo se verifica em Espanha onde predomina a tese segundo a qual, sem prejuízo de convenção, existe direito de regresso entre os diversos avalistas, respondendo internamente em igual proporção, nos termos do artigo 1844.º do Código Civil (que regula o direito de regresso entre diversos fiadores), com remissão para as regras do artigo 1145.º sobre as obrigações solidárias (7).
2.5 - Relegados para o domínio do direito comum, nada obsta a que, mediante livre convenção, os diversos avalistas regulem os aspectos respeitantes à distribuição interna das respectivas responsabilidades para a eventualidade de apenas algum ou alguns deles vir a satisfazer o pagamento da quantia avalizada, faculdade que tanto pode revelar uma vontade no sentido da repartição igualitária da responsabilidade como a sua distribuição em função da titularidade do capital investido (v. g. quando os avalistas sejam sócios de uma mesma sociedade avalizada) ou até a exclusão de algum ou alguns avalistas, designadamente daquele cuja intervenção tenha sido determinada unicamente por factores de ordem externa.
Nestes e noutros casos semelhantes, o regime do direito de regresso pautar-se-á pelo acordo que tiver sido outorgado.
Mais difícil é a resposta quando se constata que os avalistas nada convencionaram a respeito do eventual exercício do direito de regresso.
Num significativo número de arestos deste Supremo Tribunal de Justiça (8), advoga-se a admissibilidade do direito de regresso mediante a aplicação do regime que, para a pluralidade de fiadores, está previsto no artigo 650.º do Código Civil que, por seu lado, remete para as regras dos artigos 524.º e 516.º (9). Solução semelhante à que era maioritariamente defendida no âmbito do Código de Seabra (10).
Em doutrina mais recente, é sustentada a aplicação directa dos mencionados artigos 524.º e 516.º, sem intermediação das regras da fiança, no pressuposto de que existe uma verdadeira relação de solidariedade entre os diversos avalistas do mesmo avalizado.
Segundo Cassiano Santos, em Direito Comercial Português, vol. i, pp. 266 e 267, «as obrigações dos co-avalistas são indiscutivelmente solidárias» e, uma vez que «as relações internas entre co-avalistas estão fora do regime especial cambiário, regendo-se, na medida em que emergem de acto de comércio, pelo direito comercial e, na omissão deste, pelo direito civil comum», «presume-se que os co-avalistas participam, nas relações entre si, em partes iguais da dívida», nos termos previstos também para a fiança.
Mais incisiva é Carolina Cunha, em Letras e Livranças - Paradigmas Actuais e Recompreensão do Regime, pp. 309 e 310, para quem importa afastar «o risco de equívocos graves» emergentes da passagem pela norma do artigo 650.º do Código Civil, de modo que, «sendo os co-avalistas obrigados solidários», não existem motivos para «a disciplina das respectivas relações internas se afastar do regime traçado no Código Civil para a solidariedade passiva». Assevera ainda que «do ponto de vista da construção jurídica, tal não impede que continue a preferir-se a linha recta que conduz do artigo 47.º L. U. ao regime das obrigações solidárias plasmados nos artigos 512.º e seguintes do Código Civil» (p. 307).
Remetidos para o direito comum no que concerne às relações internas entre os diversos avalistas, por falta de regulamentação do direito de regresso na L. U., não se descortinam motivos que, por uma ou outra das vias, afastem a aplicabilidade do regime estabelecido para as obrigações solidárias, o que, em regra, se traduzirá na admissibilidade do direito de regresso e na distribuição da responsabilidade de acordo com a presunção que decorre do artigo 516.º do Código Civil, sem prejuízo do funcionamento da liberdade contratual que pode levar a que, ao abrigo do disposto no artigo 405.º do Código Civil, se estabeleçam acordos quer sobre a existência e condicionalismo do direito de regresso, quer sobre a repartição da responsabilidade.
 É este o resultado que se extrai do já citado Acórdão deste Supremo Tribunal, de 13 de Julho de 2010, onde se concluiu que «o avalista que pagou ao tomador da livrança, em quantia superior à que lhe competia, por força do regime da solidariedade passiva, no âmbito das relações externas, perante o credor, tem direito de reaver dos restantes avalistas, no domínio das relações internas, com base no direito de regresso, a parte que a cada um destes compete, que se presume ser igual para todos, nas relações entre os devedores solidários».
Sustentada também em razões de justiça, esta mesma solução assoma no Acórdão do Tribunal Constitucional, de 24 de Março de 2004, proferido no âmbito do processo n.º 643/2003 (www.tribunalconstitucional.pt), em cuja fundamentação se refere que, «sendo vários os co-avalistas, todos eles garantindo o pagamento da dívida, não se explicaria que, a final, só um ou alguns viessem a ter de suportar a totalidade da dívida e que aos outros co-avalistas nenhum pagamento pudesse ser exigido. Razões de justiça relativa sempre militariam na distribuição do encargo entre todos os co-avalistas».
Em suma, na ausência de regulamentação da matéria na L. U. e sem embargo de convenção mediante a qual os avalistas regulem o exercício do direito de regresso (11), este segue o regime prescrito para as obrigações solidárias.
2.6 - Não se desconhecem as características típicas do aval e bem assim as diferenças entre o aval e a fiança, aliás, bem evidenciadas pela jurisprudência e pela doutrina (12), sobrelevando a literalidade, a autonomia e a abstracção que caracterizam as relações cartulares, por oposição aos negócios jurídicos extracambiários como a fiança.
 Porém, tais diferenças não podem desviar-nos da percepção dos pontos de contacto que também existem, merecendo destaque o facto de ambas se destinarem a reforçar a garantia dos credores mediante a multiplicação dos patrimónios susceptíveis de serem objecto de execução coerciva.
Ora, a aceitação, como regra geral, da existência de direito de regresso entre avalistas não coloca em crise qualquer aspecto específico do aval, deixando intactos todos os motivos que justificaram o tratamento desta garantia pessoal na L. U., maxime o privilégio conferido ao credor cambiário de accionar directa, imediata e solidariamente os avalistas e outros devedores, sem qualquer limitação.
Além disso, operando o direito de regresso a posteriori, ou seja, apenas depois de algum dos avalistas ter cumprido a obrigação de forma espontânea ou coerciva, não se observa qualquer inconveniente resultante da posterior distribuição do sacrifício pelos demais avalistas. Pelo contrário, a comparticipação efectiva de todos eles no esforço financeiro que tenha sido exigido apenas de algum ou alguns, além de corresponder à percepção generalizada dos efeitos que derivam da prestação de aval, integra de forma mais coerente e justa a repartição das responsabilidades e secundariza efeitos que podem ser mera decorrência de factores subjectivos ou imponderáveis (v. g. iniciativa do credor cambiário dirigida apenas a algum ou alguns dos avalistas, interesse de algum dos avalistas de assumir o pagamento, citação dos avalistas ou penhora de bens em momentos diferenciados, natureza dos bens de uns ou de outros dos avalistas, maior ou menor facilidade na penhora ou na liquidação de alguns bens, etc.).
2.7 - Neste contexto, não se descortinam motivos de ordem racional para que, nos casos em que o pagamento da dívida tenha sido feito apenas à custa de algum ou de alguns dos avalistas, o exercício do direito de regresso contra os demais avalistas fique dependente da alegação e prova da existência de uma convenção que o legitime e que defina o seu conteúdo. Um regime jurídico que em abstracto assim fosse configurado caucionaria resultados que, longe dos padrões de objectividade, poderiam ser pura decorrência de factores aleatórios ou de índole subjectiva, sem qualquer conexão com os motivos que levaram à prestação de aval por uma pluralidade de indivíduos. Alijando, por essa via, um princípio de justiça distributiva, seriam susceptíveis de tutela eventuais estratégias de outros avalistas orientados apenas pelo objectivo de se furtarem ao compromisso assumido. Argumentos que ganham especial relevância em situações, como a dos autos, em que o aval foi prestado por cada um dos sócios (e respectivos cônjuges) de uma sociedade que interveio como subscritora da livrança.
Foi decerto a ponderação de riscos desta natureza que levou a que, no âmbito do Código Civil de Seabra, a jurisprudência maioritária tivesse afirmado, como regra, a existência de direito de regresso (13), opção que não pode deixar de ser considerada, tanto mais que o ordenamento jurídico não foi submetido, neste campo específico, a modificações substanciais que justifiquem uma inversão do resultado.
Por outro lado, não se encontrando arreigada nos circuitos empresariais, em que é mais frequente a prestação de avales, a percepção da necessidade de uma convenção destinada a assegurar e a definir a posterior repartição da responsabilidade pelos diversos avalistas, tal exigência acabaria por penalizar o avalista ou avalistas que cumprissem ou fossem compelidos a cumprir a obrigação, mediante a liquidação de bens de mais fácil apreensão (v. g. depósitos bancários, salários), com definitivo e injustificado benefício para os demais.
Ora, não nos parece aceitável que, na ausência de uma clara vontade do legislador nesse sentido, por via meramente interpretativa (jurisprudencial ou doutrinal), mediante a mera formulação de juízos de natureza formal, se criem condições para que se concretize um desequilíbrio patrimonial entre sujeitos que ab initio se colocaram no mesmo plano de responsabilidade perante os credores cambiários.
Sem dúvida que, como refere Pais de Vasconcelos, ob. cit., p. 971, os avalistas, ao prestarem o aval, «não podem deixar de contar com a possibilidade de virem a ter de o pagar» e que, por outro lado, nas relações externas, a prestação de aval implica a responsabilidade solidária dos avalistas entre si e com outros devedores cambiários.
Todavia, sendo claro que este regime de solidariedade encontra justificação em motivos ligados à circulação cambiária, não implica, por si, a exigência de uma convenção extracartular como condição para se assegurar a futura repartição interna da responsabilidade entre os diversos avalistas, a qual, não sendo socialmente tida como obrigatória, se revelaria totalmente inadequada quando aplicada a situações de avales prestados por sócios da mesma sociedade.
A não ser que os interessados tenham prevenido um tal resultado, não deve ser negada ao avalista que tenha suportado o pagamento da quantia avalizada (ou que tenha suportado uma parte mais elevada do que aquela que lhe competia) o direito de regresso relativamente aos demais avalistas, considerando mais ajustada uma solução em que se assuma, como regra, a distribuição interna da responsabilidade patrimonial nos termos que vigoram para as obrigações solidárias (artigos 524.º e 516.º do Código Civil), à semelhança do que especificamente está previsto no artigo 650.º do Código Civil para a pluralidade de fiadores.
(…)».
Portanto, neste AUJ reconhece-se que há direito de regresso entre os co-avalistas, mas afirma-se o entendimento pacífico de que as relações entre estes não são de direito cambiário, mas sim de direito comum.
Não vemos razão para discordar, pelo que se impõe concluir que o apelante não dispõe de título executivo.
*
IV – Decisão
Pelo exposto, julga-se improcedente a apelação, confirmando-se a sentença recorrida.
Custas pelo apelante.

Lisboa, 22 de Fevereiro de 2024
Anabela Calafate
Adeodato Brotas
Maria de Deus Correia