Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
208/22.8JELSB.L1-5
Relator: MANUEL ADVÍNCULO SEQUEIRA
Descritores: PODER DE DIRECÇÃO DA AUDIÊNCIA
ADMISSIBILIDADE DE PERGUNTAS EM AUDIÊNCIA
NOMEAÇÃO DE INTÉRPRETE
OBJECTO DO PROCESSO
ESTUPEFACIENTE TRANSPORTADO EM EMBARCAÇÃO
LEI APLICÁVEL E TRIBUNAL COMPETENTE
IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
QUALIFICAÇÃO JURÍDICA
MEDIDA DA PENA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 02/20/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NÃO PROVIDO
Sumário:  (da responsabilidade do relator)
I - A apreciação sobre a admissibilidade de perguntas durante a audiência cabe inteiramente ao tribunal e as respectivas decisões são, por princípio e natureza, orais, informais e irrecorríveis.
II - O inverso equivaleria à subversão da espontaneidade e sinceridade das respostas, para além da abertura ao arrastar intolerável das audiências, incluindo a sua ingovernabilidade.
III - Não é obrigatória a nomeação de intérprete a interveniente estrangeiro que entenda e se exprima na língua portuguesa.
IV - A prova em processo penal, particularmente em audiência, tem como objecto factos que à luz da lei substantiva constituam crime ou o excluam. Como assim, escutas, buscas, revistas, apreensões, etc. são apenas meios de obtenção de prova de crimes que não passam a objecto do processo sujeito a prova, mesmo que constem alegadas como factos nas peças processuais a tanto destinadas, devendo tais menções ser suprimidas na descrição factual.
V - Em caso de tráfico de estupefacientes, a lei penal portuguesa é aplicável a factos cometidos fora do território nacional, quando praticados a bordo de navio sem pavilhão ou contra o qual Portugal tenha sido autorizado pelo correspondente Estado de pavilhão a tomar as medidas previstas no artigo 17.º da Convenção das Nações Unidas contra o Tráfico Ilícito de Estupefacientes e de Substâncias Psicotrópicas de 1988, nos termos da alínea b) do artº 49º do Dec.-Lei nº 15/93 de 22.1, diploma que visou justamente adaptar a lei nacional às exigências da Convenção das Nações Unidas contra o Tráfico Ilícito de Estupefacientes e de Substâncias Psicotrópicas de 1988, de que Portugal é parte, em consonância, de resto, com o que dispõe o nº 2 do artº 5º do Código Penal.
VI - Em conformidade, o nº 1 e a alínea k) do nº 2 do artº 6º do Dec.-Lei nº 43/2002, de 2.3, atribuem à Autoridade Marítima Nacional, dependente de orgão de soberania nacional, competência para a prevenção e repressão do narcotráfico nos espaços marítimos sob jurisdição nacional e no âmbito dos parâmetros permitidos pelo direito internacional, o que conjugado com o artº 4º do mesmo diploma torna clara a pretensão do Estado Português relativamente a tal jurisdição em relação à ZEE.
VII - Assim, em caso de crime de tráfico de estupefacientes cometido na ZEE é aplicável a lei portuguesa e são competentes os tribunais nacionais.
VIII - A nulidade da prova obtida por métodos proibidos tem como finalidade muito clara a protecção de direitos, liberdades e garantias dos cidadãos, particularmente os suspeitos ou acusados em processo criminal.
IX - As normas do artº 7º da Convenção das Nações Unidas contra o Tráfico Ilícito de Estupefacientes e Substâncias Psicotrópicas, no que respeita à autorização a conceder, ou não, para procedimento em navio seu por outro Estado, visa proteger a soberania dos Estados sobre os respectivos navios, ainda que na óptica do combate ao tráfico de estupefacientes, para a afirmar plenamente, por exemplo, na pretensão de ser o Estado de bandeira a exercer a acção penal, ou por se tratar de entrega de droga controlada pelo mesmo.
X - A prova assim obtida nunca será nula. Quando muito, a falta de autorização conduzirá a diferendo entre Estados, a dirimir pelos meios próprios, também previstos na mesma convenção.
XI - Em casos de importação de grandes volumes de cocaína, o lucro visado cifra-se em fortunas, do que bem cientes estão os envolvidos. Logo o crime em causa é agravado, nos temos da alínea c) do artº 24º do Dec.-Lei nº 15/93 de 22.1, independentemente das concretas compensações de cada um daqueles agentes.
XII - E é nesse crime que participam todos os envolvidos, a começar pelo dono da droga, sendo todos co-autores, não passando a terceiros os não constituídos como arguidos, pois o conceito substantivo de agente do crime não equivale ao conceito processual de arguido.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na 5ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa.
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AA e BB foram condenados, respectivamente, nas penas de oito e nove anos e seis meses de prisão, pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes p. e p. pelo nº 1 do artº 21º do Dec.-Lei nº 15/93 de 22.1 e de semelhante crime agravado pela alínea c) do artº 24º do mesmo diploma, quanto ao segundo.
O primeiro arguido foi ainda condenado na pena acessória de expulsão de Portugal por 6 anos.
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Interpuseram os arguidos o presente recurso concluindo, em resumo:
1. A sentença é nula, por ter introduzido alterações dos factos descritos na pronúncia (que remete para a acusação) sem os comunicar previamente aos arguidos, concedendo-lhes o tempo necessário para a preparação da defesa.
2. Da pronúncia constava que os arguidos congeminaram um plano que se traduzia na introdução de cocaína em Portugal, e que agiram com o propósito concretizado de introduzir em Portugal o produto estupefaciente. A sentença deu como provado que os arguidos congeminaram um plano que se traduzia na introdução de cocaína em Espanha (...)
3. O tribunal deu como provado, parte do que figurava no artigo 12º da acusação. Além disso, acrescentou que o apreendido se encontrava junto à mesa de navegação do veleiro, aditou mais três aparelhos de GPS e ainda inseriu características dos equipamentos, com lapsos, referindo marcas comerciais com grafia errada.
4. Nos factos provados, a sentença acrescentou algo que não se encontra na pronúncia: referiu que a cocaína contida nos 47 fardos “apresentava um grau de pureza de 27,50%” (...)
5. Nenhuma destas alterações deriva de factos alegados pela defesa (...)
7. Verifica-se também nulidade da sentença, por omissão de pronúncia.
8. Da acusação (...) consta factualidade que não foi carreada para o elenco de factos demonstrados nem tão-pouco inserida na lista de matéria não provada (...)
9. Por outro lado, tendo os arguidos invocado a invalidade da prova respeitante à obtenção de informações contidas em dispositivos eletrónicos, o tribunal nada decidiu.
10. Em sede de audiência de julgamento, prescindiu-se da utilização da língua portuguesa, ao dispensar ocasionalmente a intervenção do intérprete de idioma italiano (...)
13. A embarcação em que os arguidos seguiam foi abordada pela Marinha em águas internacionais, fora do território nacional, embora na zona económica exclusiva portuguesa.
14. Daí foi conduzida para território português pela Marinha.
15. Tal sucedeu sem que fosse concedida autorização nos termos do artigo 17º da convenção contra o tráfico ilícito de estupefacientes.
16. Nenhum dos tripulantes era português.
17. O veleiro não tinha nacionalidade portuguesa.
18. Não se dirigia a Portugal.
19. Falece a aplicabilidade da lei penal portuguesa e não são competentes os tribunais portugueses.
20. No que toca à substância apreendida, os arguidos invocaram a invalidade da correspondente prova pericial, pois há um relatório de exame pericial datado de 28 de novembro de 2022, que respeita a um teste rápido sem indicação do grau de pureza.
21. Posteriormente, num momento em que já teria ocorrido a destruição da droga, surgiu um segundo relatório datado de 18 de julho de 2023, que já utiliza técnica diferente, indicando um grau de pureza de 27,5%, o que não é verosímil para tráfico entre a América e a Europa (...)
23. A busca é inválida porque seguiu-se a uma abordagem em águas internacionais sem autorização concedida ao abrigo do artigo 17º da convenção contra o tráfico ilícito de estupefacientes.
24. As apreensões não são válidas, atendendo a que nos respetivos autos não consta a indicação do funcionário de justiça ou do depositário responsável pela respetiva guarda.
25. A fundamentação da sentença recorrida enferma do vício de contradição insanável.
26. Dá como provado que os arguidos congeminaram um plano para transportar cocaína da América e introduzi-la em Espanha, mas foram abordados pela Marinha Portuguesa e conduzidos para Portugal.
27. Mas considera também provado que os arguidos concretizaram o seu plano de introduzir a cocaína em Espanha (...)
29. O tribunal deveria ter remetido para o elenco de factualidade não provada o seguinte: 1 (...) 2 (...) 7 (...) 12 (...) 15 (...) 21 (...)
30. Os factos provados não consentem a condenação do arguido BB com a agravação prevista na alínea c) do artigo 24º do decreto-lei nº 15/93, de 22 de janeiro (...)
35. A sentença recorrida limita-se a tecer algumas considerações genéricas (...)
36. Não apresentando antecedentes criminais e estando em causa cocaína com um grau de pureza de 27,5%, aos arguidos apenas poderia ser imposta a pena de quatro anos de prisão, suspensa na sua execução.
37. Por violarem o nº 4 do artigo 20º e os nos 1 e 5 do artigo 32º da lei fundamental, são inconstitucionais as normas ínsitas no nº 1 do artigo 358º e no nº 2 do artigo 374º do CPP, se interpretadas no sentido de que é viável inserir nos factos provados o grau de pureza da substância estupefaciente, apesar de tal elemento não constar da acusação ou da pronúncia, sem antes se proceder a comunicação ao arguido (...)”
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O Ministério Público junto da primeira instância pugnou fosse negado provimento ao recurso e mantido o acórdão recorrido, concluindo a propósito:
IX. Não ocorre nenhuma alteração não substancial dos factos descritos na acusação (...), na medida em que não estamos perante factos novos, pelo contrário, já que o tribunal se limitou a pormenorizar e a concretizar os factos que já constam da acusação.
X. As alterações efectuadas prendem-se com circunstancialismos que em nada alteram o crime, nem, sequer são elemento constitutivo do crime (...)
XI. É certo que o arguido tem que defender-se dos factos que lhe são imputados, não podendo ser surpreendido com factos novos, diferentes daqueles que lhe foram imputados na acusação. Porém a alteração do destino e a maior precisão descrição dos objectos apreendidos, não alarga o objecto do processo (...) aliás foi a própria defesa quem referiu que o destino não era Portugal, resultando da conjugação dos elementos de prova que o destino era Espanha (...)
XXX. E que não se diga que em relação aos dispositivos eletrónicos o Tribunal não tomou posição porque tal não corresponde à verdade, já que no Acórdão expressamente a tal se faz referência conforme se pode verificar nas páginas 19 e 20 (...)
XXXIV. Conforme decorre das inúmeras sessões de julgamento, facilmente se verifica e facilmente podemos concluir que o arguido BB domina muito bem a língua portuguesa, aliás foi o próprio quem afirmou que falava 5 línguas, entre as quais português (...)
XXXVII. Por outro lado, não colhe o entendimento de que o arguido podia escolher interprete porque o artigo apenas permite esta escolha quando se trate de traduzir as conversações com o seu defensor (...)
(...) Insurge-se contra a realização da busca e das apreensões, com elaboração dos correspondentes autos, porque não foi observado o disposto no artigo 178º do CPP, pelo que não se está perante prova válida (artigo 125º do CPP).
L. Valem aqui as considerações expressas no douto Acórdão do Venerando Tribunal da Relação de Lisboa junto aos autos (...)
(...) Já anteriormente os arguidos haviam invocado tal questão, quanto à não determinação do grau de pureza no primeiro exame realizado (...)
LXXV. Cremos que não estamos perante o vicio de contradição insanável, mas tão somente perante um mero erro de escrita, um mero lapso de escrita já que facilmente se percebe que o propósito concretizado se reporta apenas a receber e a ter consigo e não a introduzir em Espanha porque em Espanha não concretizaram o propósito já que não introduziram cocaína em tal País (...)
XCI. Tendo-se dado como provado que o arguido BB iria receber a quantia de €250.000,00 como contrapartida do transporte de tão grande quantidade de estupefaciente, como o próprio o referiu, sendo assim “grandioso” o projecto, a que o arguido BB transportava, juntamente com o arguido AA, 47 fardos que continham cocaína (cloridrato), com o peso líquido de 1.334.759,300 da América do Sul num veleiro com destino a Espanha) quantidade essa de um tal volume que revela incontestavelmente um tráfico de dimensão enorme e excepcional, não vemos como pode o recorrente entender que não procurava uma compensação remuneratória muito avultada, facto que no que respeita à compensação é o próprio que confessa! (...)
CV. As expressões utilizadas pelo Tribunal não são vagas, nem vazias de conteúdo, nem se traduzem em conclusões genéricas (como alegam os recorrentes), antes o que se passa é que os recorrentes discordam da avaliação que foi feita, bem como das penas (individuais e única) que lhes foram aplicadas (...)
(...) a conjugação de todos estes factores, do elevado grau de ilicitude e a intensidade do dolo – directo - do crime praticado permite concluir que a pena aplicada é a única adequada às necessidades de prevenção geral e especial do caso em apreço, mostrando-se as penas aplicadas justas e adequadas à criminalidade praticada pelos arguidos (...)”
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Corridos os vistos, foram os autos à conferência.
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Fundamentação.
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O acórdão recorrido, intitulando o respectivo ponto de factos provados, considerou o seguinte:
“1. Em data não apurada, anterior a 20.05.2022, os arguidos e terceiros cujas identidades se desconhecem congeminaram um plano que se traduzia na introdução de cocaína em Espanha, por via marítima, com vista à sua entrega a terceiros, a troco do recebimento de quantias monetárias.
2. Na prossecução desse plano, os arguidos saíram da Ilha de São Vicente, nas Caraíbas, utilizando a embarcação com a denominação aposta “...”, do tipo veleiro, com motor.
3. Em momento não concretamente apurado a referida embarcação foi carregada com 47 fardos que continham cocaína (cloridrato), com o peso líquido de 1.334.759,300 gramas, produto esse que apresentava um grau de pureza de 27,50 %.
4. Após, os arguidos rumaram em direção a Espanha, com o fito de descarregarem os referidos 47 fardos contendo cocaína.
5. No dia 25.05.2022 os arguidos navegavam nas coordenadas 044° 23’ 36” N, 014° 16´ 42” W, sem ostentar qualquer bandeira.
6. A Marinha Portuguesa abordou a embarcação onde seguiam os arguidos.
7. O arguido BB, “skipper” da embarcação, apresentou à Marinha Portuguesa o documento com o nº de certificado …, referente ao veleiro com o nome “...”, registo nº …, emitido pelos Países Baixos.
8. Sucede que esse veleiro não se encontra registado no aludido país.
9. Nessa sequência o veleiro foi conduzido para um porto nacional pela Marinha Portuguesa.
10. No dia 28.05.2022, pelas 15h20m, encontravam-se no interior do veleiro, no camarote à proa, os mencionados 47 fardos contendo cocaína.
11. Nesse espaço exista também um frasco que continha cocaína (cloridrato) com o peso líquido de 13,960 gramas, que apresentava um grau de pureza de 87,90 %.
12. Nesse mesmo dia e hora, junta à mesa de navegação do veleiro, foram ainda apreendidos:
- um computador portátil da marca Apple, modelo A2337, cor cinzenta, nº de série FVFGH8TQ6L4;
- um GPS da marca “Garmin”, modelo “inReach Mini 2”, de cor preta, com o número de série 78W000601;
- dois equipamentos mensageiros por satélite, da marca “SPOT LLC”, modelo “SPOT X”, de cores preta e laranja, com os números 0-29555200 e 0-2956239;
- um GPS da marca “Garmin”, modelo “GPSmap 86i”, de cores preta e vermelha com o número de série ...;
- um GPS da marca “Garmin”, modelo “GPSmap 78”, de cores preto, cinzento e branco, com o número de série 1WQ010781;
- um GPS da marca “Garmin”, modelo “MONTANA 700 i”, de cor preta, com o número de série 6HV005315;
- um Hotspot TP-LINK M7000(EU); um Hotspot TP-LINK M7200(EU); um Hotspot Vodafone R219z; um Hotspot TIM 4G MW40V (IMEI ...); um Hotspot TIM 4G MW40V (IMEI ...); e um Hotspot ALCATEL MW40V;
- um telemóvel “XIOMI Redmi M2006C3LG”; um telemóvel “CAT S42”; um telemóvel “XIOMI Redmi M1906G7G”; e um telemóvel “Huawei P smart+ 2019 (POT-Lx1T).
13. Também nessas circunstâncias o arguido BB tinha consigo a quantia de 350,00€.
14. E o arguido AA tinha consigo a quantia de 1.200,00€.
15. As referidas quantias monetárias destinavam-se a custear as despesas da viagem dos arguidos para a Europa.
16. Como contrapartida da respetiva atuação, o arguido BB acordou receber um montante global de 250.000,00€.
17. Por conta desse montante, o arguido BB recebeu previamente ao início da viagem um adiantamento no valor de 15.000,00€, com o que adquiriu, para além de alimentos e combustível, o GPS da marca “Garmin”, modelo “GPSmap 86i”, de cores preta e vermelha, com o número de série ..., e o GPS da marca “Garmin”, modelo “MONTANA 700 i”, de cor preta, com o número de série 6HV005315.
20. Os arguidos não têm quaisquer familiares, amigos ou trabalho em Portugal.
21. Os arguidos agiram em conjugação de vontades e esforços e no desenvolvimento de um plano previamente arquitetado, com o propósito concretizado de receber, ter consigo e introduzir em Espanha o supracitado produto estupefaciente, cujas características, natureza e quantidade conheciam e de o entregar a terceiros, a troco do recebimento de quantias monetárias.
22. Os arguidos atuaram sempre de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que todas as suas condutas eram proibidas e punidas por lei.
23. Aos arguidos não são conhecidos antecedentes criminais.
18. O arguido AA nasceu na ... e é cidadão desse Estado.
24. Contando atualmente 52 anos de idade, o arguido é divorciado e pai de seis filhos, três deles ainda menores de idade, fruto de três relacionamentos diferentes, os quais vivem na ... e no ..., com as respetivas progenitoras.
25. É …, fazendo trabalhos como ...
26. À data da factualidade apurada estava há cerca de catorze meses na Ilha de São Vicente, nas Caraíbas, onde residia sozinho e trabalhava como ..., auferindo mensalmente cerca de 3.000,00€.
27. Anteriormente residia sozinho na ..., em casa que era da sua mãe, já falecida, e exercia a profissão descrita.
28. Em meio prisional o arguido tem apresentado um comportamento de acordo com as normas institucionais.
29. Mostra-se laboralmente inativo em virtude de uma hérnia, que não lhe permite fazer esforços, aguardando ser sujeito a uma intervenção cirúrgica.
30. Esteve inscrito e a frequentar aulas de língua portuguesa, durante o anterior ano letivo.
31. Sem quaisquer familiares em Portugal, não recebe visitas, comunicando com aqueles por telefone.
32. É ajudado por alguns desses familiares, designadamente pela irmã e dois dos seus filhos mais velhos, que lhe enviam dinheiro.
33. Uma vez restituído à liberdade pretende regressar ao seu país de origem para tratar da documentação que se encontra caducada e, posteriormente, poder regressar ao seu trabalho nas Caraíbas.
19. O arguido BB nasceu em ... e é cidadão desse Estado.
34. Conta atualmente com 54 anos de idade.
35. Desde cedo esteve sempre ligado ao mar, começando a navegar com 12 anos de idade, apesar de o negócio dos seus pais, já falecidos, ter estado relacionado com a gestão de um salão de jogos.
36. Tem um irmão, atualmente a viver no ..., com o qual não mantém relação próxima.
37. Frequentou o ensino superior na área de …, que não concluiu.
38. Começou a trabalhar com um tio, que … e, aos 33 anos de idade, passou a trabalhar como …, sendo contratado para …, enquanto responsável por ….
39. No plano afetivo o arguido manteve um relacionamento com uma cidadã …, que terminou há cerca de 20 anos e do qual resultou o nascimento de uma filha, atualmente com 25 anos de idade, residindo essa filha em ....
40. Atualmente, o arguido mantém uma relação de namoro com outra cidadã …, que reside em ..., relacionamento descrito como positivo e gratificante.
41. O arguido revela um passado ligado ao consumo de substâncias estupefacientes desde os 19 anos de idade, nomeadamente canábis, cocaína e ecstasy, os quais manteve até à situação de prisão preventiva nos presentes autos.
42. À data da factualidade acima apurada o arguido não tinha morada fixa, permanecendo a maior parte do tempo no barco, encontrando-se embarcado há cerca de um ano, depois de antes ter trabalhado no setor da …, na …, e como ..., quando necessitou de apoiar financeiramente a filha para que frequentasse o ensino superior em ....
43. Em meio prisional encontra-se integrado nas aulas de português para estrangeiros e já formulou pedido para trabalhar.
44. Contacta regularmente via telefone com a namorada e a filha, de quem já recebeu uma visita no estabelecimento prisional.”
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E o seguinte como factos não provados:
“a. Que nas circunstâncias referidas em 1. a introdução de cocaína fosse em Portugal.
b. Sem prejuízo do concretamente apurado em 2., que os arguidos se dirigiram à América do Sul.
c. Que tivessem sido os arguidos a efetuar o carregamento referido em 3.”
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E como motivação do que antecede, discorreu o colectivo:
“ (...) Os arguidos quiseram logo no início da audiência prestar declarações, o que fizeram em conformidade com o que estatui o artigo 343º, nº 4, do Código de Processo Penal, com o afastamento do arguido BB enquanto as declarações do arguido AA foram prestadas, com isso se visando obviar, dentro do possível, à concertação daquelas fossem as declarações a prestar, o que conforme abaixo se verá logrou alcançar-se.
Preliminarmente, diga-se que os arguidos, sendo naturais e nacionais da ... (arguido AA) e de ... (arguido BB) estiveram sempre assistidos por intérpretes, respetivamente na língua espanhola e italiana, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 92º, nº 2, do Código de Processo Penal.
Os intérpretes nomeados prestaram o respetivo compromisso, conforme artigo 91º, nº 2, do Código de Processo Penal, mostrando idoneidade bastante, conquanto revelaram no exercício das respetivas funções conhecimento linguístico da língua estrangeira para a qual foram nomeados e da língua portuguesa e imparcialidade em relação aos sujeitos processuais.
Não se olvida, ainda assim, que pelo arguido BB foi referido que conhece e domina a língua portuguesa, em cuja língua, dentro da imediação da audiência, se chegou a expressar por repetidas vezes, do mesmo modo que frisou, também repetidas vezes, compreender tudo quanto estava a ser dito (em português) por todos os intervenientes processuais.
Mal se compreende, portanto, que esse mesmo arguido, por intermédio do seu Ilustre Defensor, tivesse pretendido questionar, ainda que de forma genérica, o modo como quis expressar-se quando o fazia com recurso à língua portuguesa, naturalmente com o sotaque próprio de quem não o faz na sua língua materna, já que em momento algum foi preterida a utilização da língua portuguesa em audiência, tal como previsto no artigo 92º, nº 1, do Código de Processo Penal.
A qualquer dos arguidos foi, portanto, garantido poder expressar-se na sua língua materna, assim como tiveram conhecimento nessa própria língua, com o labor de cada um dos intérpretes presentes, de tudo quanto era dito na língua portuguesa.
Isto dito e regressando ao objeto dos autos, considerando aquelas que foram declarações prestadas pelos arguidos, torna-se patente que as mesmas apresentaram contradições, o que, em certa medida, comprometeu inelutavelmente a respetiva credibilidade.
Com efeito, começaram os arguidos por concordar quanto à [inegável] presença na embarcação em causa nos autos, ao facto de terem iniciado a viagem na ilha de São Vicente, nas Caraíbas, onde tomaram contacto um com o outro pela primeira vez, já dentro dessa embarcação, cujo destino era Espanha, bem como a circunstância de a dado momento terem sido intercetados pela Marinha Portuguesa e que nessa ocasião já se encontravam a bordo da embarcação os fardos que vieram a ser apreendidos, valendo nesta parte o disposto no artigo 358º, nº 2, do Código de Processo Penal.
No mais, dentro dos contornos da viagem que assumidamente realizaram, as declarações dos arguidos apresentaram-se dissonantes, nomeadamente no que se refere ao momento em que os ditos fardos foram colocados na embarcação, já que de acordo com o arguido AA só se apercebeu dessa presença cerca de dois dias depois da viagem se ter iniciado (no seguimento da forte movimentação marítima que disse ter-se registado e que fez com que a porta da proa se abrisse, expondo a mercadoria que aí era armazenada), altura em que intuiu logo que seria “droga” e com isso confrontando o coarguido BB, o mesmo respondeu-lhe com a pergunta “A ti não te disseram nada?”. Por sua vez, este outro arguido, nas suas declarações, disse que os fardos apenas foram carregados cerca de um dia depois da viagem se ter iniciado, a partir de um barco pesqueiro, quando estavam (ambos os arguidos já dentro da embarcação) a cerca de 60 ou 70 milhas a norte de São Vicente, tendo esse carregamento demorado cerca de 2 a 3 três horas, com a colocação dos fardos num camarote à proa, cuja porta ficou aberta.
Ora, ainda que o arguido BB tenha pretendido fazer crer que só no momento do transbordo dos fardos o coarguido AA se apercebeu do propósito da viagem, altura em que procurou acalmá-lo, dizendo que já não podia voltar atrás, o que o mesmo “teve” de aceitar, torna-se manifesto que a importância daquilo que estava em causa com a realização dessa viagem, por si, é bastante para afastar que o arguido AA não tivesse, ab initio, cabal conhecimento de tudo isso.
Destarte, ditam as mais elementares razões da lógica das coisas que quem está por detrás deste tipo de transportes transcontinentais, altamente lucrativos, obviamente calcula com precisão todos os riscos a isso inerentes e, como tal, nunca iria recorrer a alguém que não tivesse cabal conhecimento do propósito da viagem a realizar, sob pena de poder ser posta em causa a segurança e o sucesso da própria viagem, quando eram apenas dois os ocupantes da embarcação, numa viagem que, destinada a atravessar o Atlântico, consabidamente iria perdurar durante semanas e, enquanto tal, exigiria o comprometimento de ambos durante todo esse período.
É absolutamente inverosímil, pois, que um transporte com a dimensão do que se aprecia nos autos, não fosse cuidadosamente planeado, com recurso a indivíduos experientes – capazes de navegar em alto mar, durante um período de tempo significativo, com recurso a uma tripulação reduzida – cientes da necessidade de absoluto sigilo quer quanto à empreitada em si, quer quanto ao modo de navegação, que se pretendia permanecesse não detetada.
Na verdade, independentemente de ser o arguido BB quem tripulava a embarcação (capitão/“skipper”), sendo as funções do arguido AA ligadas à manutenção do barco ou de “marinheiro”, não se olvida que repartiam funções ligadas à própria navegação, em períodos horários que permitissem, desde logo, repousarem alternadamente.
Não há, deste modo, nenhuma razão para a divergência nas declarações dos arguidos quanto ao momento em que os fardos são carregados para a embarcação, o que só se explica pela falta de credibilidade de ambos, pretendendo o arguido AA reconduzir-se à posição passiva de que só por mero acaso acaba por ser confrontado com os fardos, o que não se aceita, enquanto o arguido BB, de certa forma, ainda que reportando um cenário que estará mais perto da realidade das coisas na parte atinente ao carregamento dos fardos, procure ainda assim encobrir e proteger o coarguido AA, o que também não se aceita.
Por sua vez, das testemunhas inquiridas, CC, DD e EE, todos inspetores da Polícia Judiciária (sendo o primeiro …), assumindo conhecimento do circunstancialismo que rodeou a factualidade sob a apreciação, decorrente do exercício das respetivas funções, diga-se já, foram perentórias e corroborantes na forma lógica e sequencial com que depuseram, sem nada que fizesse desmerecer a respetiva credibilidade.
Neste quadro, CC, reportando ter recebido informação da parte do “MAOC”, que identificou como um centro de partilha e coordenação de informação entre vários países europeus visando o combate ao tráfico de estupefacientes pela via marítima, a dar conta da existência de uma embarcação em navegação no atlântico norte em direção ao norte da europa, sem que levasse qualquer bandeira hasteada e a realizar uma navegação distante da zona económica exclusiva, levou a que, lançando mão dos protocolos de cooperação que nestes casos existem, solicitassem à Força Aérea Portuguesa que realizasse um voo de reconhecimento e mais tarde à Marinha Portuguesa que fizesse a interceção dessa embarcação, seguindo junto com a Marinha dois inspetores da Polícia Judiciária, no caso, as testemunhas DD e EE.
Por sua vez, ouvidas estas em julgamento, não só corroboraram o vindo de expender, como a primeira dessas testemunhas acrescentou ainda ter confirmado que a embarcação em causa seguida com aquilo que identificou como sistema “AIS” desligado, a impedir que fosse detetada por outras embarcações, o que constitui mais um dos elementos que, ponderado, esteve na base da abordagem a que essa embarcação foi sujeita.
No mais, DD e EE relataram a forma como tiveram conhecimento da abordagem que numa primeira fase os elementos da Marinha Portuguesa fizeram após entrados a bordo (os quais estavam em direta comunicação com o navio principal da Marinha, onde aquelas duas testemunhas se encontravam) e que logo comunicaram o nome aposto na embarcação (“...”), assim possibilitando que se efetuassem diligências quando ao apuramento do registo dessa embarcação e ainda comunicaram desde logo a existência de fardos espalhados à proa, o que determinou que fosse posteriormente determinado que a embarcação em causa fosse escoltada até território nacional.
As mesmas testemunhas reportaram, ainda, que nesse trajeto vieram a entrar na embarcação às 12 milhas da costa, sendo logo manifesto a visão que tiveram para os ditos fardos, quer pela claraboia, quer através da entrada pelas escadas.
Nesta medida, e em conjugação, foram considerados os elementos documentais dos autos que, corroborando os depoimentos dos inspetores da Polícia Judiciária, tornam percetíveis as diligências levadas a cabo junto das autoridades dos Países Baixos e aquela que foi a resposta (negativa) dessas autoridades, conforme fls. 17/18 e fls. 19/20, por referência ao documento apreendido a fls. 53, identificado como “Certificado Internacional”, quanto a embarcação de pavilhão dos Países Baixos, de nome “...”, sendo que daqueles mesmos depoimentos resultou, também, que só numa fase posterior, após realizadas as buscas a que abaixo se aludirá (já em território nacional), vem a ser apurado que afinal a embarcação tinha um outro nome (“…”) e é encontrada documentação a isso atinente, nomeadamente por referência à “pasta azul” que aparece referenciada no auto de apreensão de fls. 48/50.
A este respeito, diga-se que as declarações do arguido BB quando referiu que levava uma bandeira dos Países Baixos hasteada não se revelaram minimamente credíveis (contrariadas por todos os demais elementos de prova, incluindo pelas declarações do coarguido AA). Sem prejuízo, sabendo aquele arguido da mudança do nome da embarcação, conforme declarou, lógico é que tivesse apresentado, como apresentou, à Marinha Portuguesa a documentação referente ao nome que vinha aposto a esse momento na embarcação, alusiva ao registo já mencionado a fls. 53 e já não a documentação que constava da dita “pasta azul”, que o próprio admitiu ter-lhe sido entregue por quem lhe encomendou a viagem, até porque aí constava documentação identificativa contraditória, que se crê referente ao arguido BB, o qual, com isso confrontado, deixou transparecer que o documento com o nome “FF” não é verdadeiro.
Porque assim é, em face do todo o expendido, não subsistiram quaisquer dúvidas em dar como demonstrada a factualidade tal como apurada em 1. a 9., sendo o efetivo conteúdo dos fardos melhor aferido abaixo quando forem abordadas as concretas apreensões realizadas (...)
No que tange ao facto dado como provado em 15., considerou-se que os montantes em dinheiro apreendidos aos arguidos, nas circunstâncias em que o foram – enquanto fazem um transporte de cocaína num veleiro, pelo meio do oceano – apenas encontram justificação, tendo em conta regras de experiência e do normal acontecer, caso sejam provenientes da atividade de transporte de cocaína e se destinam a custear as despesas desse mesmo transporte.
Com isso conexo, aliás, temos que das declarações prestadas pelo arguido BB foi revelado o montante que iria receber pelo transporte do produto estupefaciente (250.000,00€ – duzentos e cinquenta mil euros), o que em face das circunstâncias do caso (quantidade e qualidade do produto transportado) se acolheu e se fez verter sob a factualidade apurada em 16., dando evidente nota da dimensão da atividade desenvolvida, valendo nesta parte também o disposto no artigo 358º, nº 2 do Código de Processo Penal.
A este respeito, diga-se que, ao invés, não se logrou apurar a concreta contrapartida monetária que o arguido AA iria receber pela atividade que realizou, afastando-se que se pudesse cifrar em apenas dois mil e quinhentos euros, conforme quis declarar, porque isso pressuporia, até por evidente confronto com aquilo que nesta parte se apura quanto ao coarguido BB, que nenhum conhecimento tivesse aquele do escopo da viagem, o que se entendeu não credível.
Veja-se, inclusive, que se fosse dar como boas as declarações nessa parte prestadas pelo arguido AA, tal significaria que, no limite, iria auferir uma contrapartida monetária inferior àquela que era a remuneração média mensal do seu trabalho (cfr. o relatório social abaixo mencionado, cujo teor confirmou), o que se revela ilógico.
Em relação à factualidade apurada em 12., temos que decorre igualmente do auto de apreensão de fls. 48/50, sendo a concreta descrição de cada um dos equipamentos mediante confronto com os exames periciais que constituem o apeno I e de fls. 450/488.
A este respeito, acrescente-se ter decorrido das declarações do arguido BB que, por conta daquilo que se aludiu acima (enquanto contrapartida pelo transporte que realizava), recebeu um adiantamento de 15.000,00€ e que utilizou para comprar mantimentos para a viagem (combustível, comida e os concretos aparelhos de navegação que identificou), o que, assumindo relevância quanto às apreensões realizadas, permitiu apurar a factualidade elencada em 17.
Por outro lado, em relação aos telemóveis apreendidos, que o arguido BB disse serem seus, assim como disse que iria utilizar um deles para estabelecer contacto com aqueles que, estando em Espanha, viriam receber a mercadoria transportada, a verdade é que, não lograr identificar cabalmente qual fosse esse telemóvel, nem resulta de qualquer outro elemento de prova qual fosse.
Sem embargo, relativamente a todos os aparelhos eletrónicos apreendidos, estribados nas perícias que aos mesmos foram realizadas e acima aludidas, refira-se que o concreto conteúdo dos mesmos não assume qualquer relevância probatória, nem nesse concreto conteúdo o Tribunal funda qualquer dos factos provados (...)
Por sua vez, os factos dados como provados em 18., 19. e 20. assentaram nas declarações confessórias dos próprios arguidos.
No que respeita aos elementos psicológicos e volitivos imputados aos arguidos – factos 21. e 22. – considerou-se que estes factos decorriam de forma segura, por inferência e com apoio nas regras da normalidade, das descritas condutas dos mesmos – aliás, tais factos encontram-se numa relação de quase necessidade com essas condutas.
Por fim, a factualidade que resultou não provada, estribou-se como consequência lógica de todo o exposto e por não ter sido produzida prova bastante no preciso sentido em que vinha descrita, evidenciando-se também que inexistem outros factos provados ou não provados com relevância para a boa decisão da causa, não tendo o Tribunal atendido a juízos conclusivos e/ou matéria de direito ou meramente probatória constantes dos articulados, que deverão ser ponderados em sede própria, nem as alegações manifestamente irrelevantes para a decisão, assim se desconsiderando, nessa medida, o eventual valor médio a que a cocaína é vendida em Portugal e que alegadamente assenta numa sinopse estatística constante de fls. 492.
No que respeita à ausência de antecedentes criminais que são conhecidos aos arguidos, adveio da valoração e exame dos respetivos certificados de registo criminal, constantes de fls. 770/772 e 773 (referências 27713777 e 27713802).
A terminar, na definição das condições sócio-económicas dos arguidos atendeu-se àquilo que resulta dos respetivos relatórios sociais, a fls. 797/798-verso e 800/802 (referências 36944041 e 36945689), em conjugação com as declarações dos próprios arguidos a esse respeito.”
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Os arguidos interpuseram recurso interlocutório de decisão do presidente do tribunal colectivo, tomada durante a audiência na sessão de 20.9.2023 e que não admitiu a formulação de pergunta a um dos arguidos, admissível no seu entender, contra a decisão recorrida, juridicamente não fundamentada.
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O Ministério Público junto da primeira instância pugnou fosse negado provimento ao recurso e mantida a decisão recorrida, por legal.
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Os arguidos interpuseram ainda recurso interlocutório das decisões do presidente do tribunal colectivo, tomadas durante a audiência na sessão de 9.10.2023, a primeira que nomeou intérprete de italiano e a segunda que não deu imediatamente a palavra a um dos arguidos, também para declarações sobre um testemunho e para responder a perguntas formuladas pelo seu defensor, já que o arguido tem o direito de prestar declarações sobre testemunhos logo que findos estes e que o intérprete nomeado apenas estava listado para as línguas alemã, espanhol e inglês, sendo o arguido de nacionalidade italiana.
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Cumpre apreciar.
De acordo com a jurisprudência fixada pelo Acórdão do Plenário das Secções do STJ de 19.10.1995 (D.R., série I-A, de 28.12.1995), o âmbito do recurso define-se pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação, sem prejuízo, contudo, das questões de conhecimento oficioso.
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Atendendo às conclusões apresentadas são questões a apreciar a valia dos recursos interlocutórios, contradição insanável, nulidade do acórdão, língua utilizada na audiência, lei aplicável e tribunais competentes, proibição de prova, erro de julgamento, provas indeferidas, qualificação jurídica, medida das penas, suspensão da execução e inconstitucionalidade.
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Decisões interlocutórias.
Os arguidos interpuseram recurso interlocutório de decisão de 20.9.2023 do presidente do tribunal colectivo, tomada durante a audiência e que não admitiu a formulação de pergunta ao arguido AA - “relativamente a água potável, a combustível, a efetivamente alimentos, isso é da responsabilidade do comandante ou não?” - rematando o tribunal com “Sr. Dr., essa questão não é admitida. Próxima questão. [...] O tribunal já se pronunciou”, depois de imediatamente antes elucidar que “não tratou nada disso. Foi para dentro do barco com uma mala com roupa [...] Terá de perguntar ao comandante [...] Foi para dentro do barco com uma mala com roupa [...] Não vejo relevância na questão [...] Não houve. Já lhe perguntei se pararam, já lhe perguntei se pararam nalgum momento. Não pararam.
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Esta questão releva, claramente, do poder de direcção da audiência, à luz do princípio que se retira do disposto nº 2 do artº 138º do Código de Processo Penal, segundo o qual “às testemunhas não devem ser feitas perguntas sugestivas ou impertinentes, nem quaisquer outras que possam prejudicar a espontaneidade e a sinceridade das respostas” (valendo obviamente o princípio para qualquer das formas de prova por declarações).
Tratam-se de exemplos legais de perguntas proibidas a que se referem depois as alíneas f) e g) do artº 323º do Código de Processo Penal, as quais (sob a epígrafe “Poderes de Disciplina e de direcção”) dispõem que “para disciplina e direcção dos trabalhos cabe ao presidente... impedir a formulação de perguntas legalmente inadmissíveis... dirigir e moderar a discussão, proibindo, em especial, todos os expedientes manifestamente impertinentes ou dilatórios”.
O ritual processual e competência atinentes àquelas disciplina e direcção são tratados no artigo 322º daquele código onde se lê que “a disciplina da audiência e a direcção dos trabalhos competem ao presidente... e as...” respectivas “... decisões... são tomadas sem formalidades, podem ser ditadas para a acta e precedidas de audição contraditória, se o presidente entender que isso não põe em causa a tempestividade e a eficácia das medidas a tomar”.
Trata-se pois de excepção à regra geral da consignação por escrito das decisões orais (nº 4 do artº 96º do Código de Processo Penal - se podem ser ditadas, é porque em princípio não o deverão ser), cuja óbvia razão de ser se prende com a própria natureza e necessária utilidade de tais decisões, claramente aquelas que, ligadas às requestadas celeridade, continuidade e fluidez da audiência e tendo e vista o seu escopo, ordenam actos dependentes da livre resolução do tribunal.
Vale por dizer que a apreciação da admissibilidade de perguntas cabe inteiramente ao tribunal e as respectivas decisões são por princípio e natureza, informais, orais e imediatas, sob pena de, desde logo, não terem qualquer efeito na manutenção da espontaneidade e sinceridade das respostas do declarante, o qual, recorde-se, muito para além de meio de prova, é uma pessoa e está presente, apercebendo-se do que se passa.
A imediata prolação e a informalidade, com a regra de não documentação daquelas decisões, revelam também e necessariamente o seu carácter definitivo, para além da já apontada característica de se tratar de matéria dependente da livre decisão do tribunal (obviamente sem olvidar a correspondente fundamentação, oral, e sem se fechar a possibilidade de audição contraditória, a qual, aliás, normal e naturalmente acontece).
Fácil é de concluir, de resto, que se assim não fosse estaria aberta possibilidade, para além do mais, ao arrastar intolerável das audiências, até à sua ingovernabilidade, mesmo com participação de muito menor número de intervenientes do que a respeitante ao presente processo, para tanto bastando que a um impedimento à formulação de qualquer pergunta coubesse um incidente processual formal, ditado para a acta, com contraditório e decisão (de novo!?), seguida de arguição de nulidade, contraditório, decisão, recurso, etc...
Conclui-se pois que, a decisão é irrecorrível, contra a transcrita opinião do jurisconsulto citado, salvo o devido respeito, despropositada e reveladora de desconhecimento sobre a vivência judiciária e razão de ser dos princípios e regras acima enunciadas.
Harmonicamente, apenas a não permissão de prestação de depoimento, de todo, é passível de ser considerada nulidade dentro dos limites traçados pela parte final da alínea d) do nº 2 do artº 120º do Código de Processo Penal (essencialidade do mesmo).
Sobre o ponto e conexo com a questão, já que esta tem a sua génese na prática diária dos tribunais criminais nacionais, preferimos caminho mais sólido, exposto pelo Prof. Alberto dos Reis, sobre a quem deve caber a formulação de perguntas em audiência e ainda que em processo civil (como sabido, então o tronco do processo penal e ainda hoje código subsidiário, sobrelevando ser processo de partes, contrariamente ao processo penal que tem em vista sobretudo o interesse da comunidade).
O sistema processual liberal foi legalmente arredado dos processos de partes há mais de um século, do que nos deu conta, já vai para um século, Alberto dos Reis (prefácio de “Breve Estudo sobre Reforma do Processo Civil e Comercial”, Coimbra editora, 1927 - 1ª edição - e 1929 - 2ª edição) dando ainda curiosa e interessante nota do violento e persistente inconformismo da advocacia relativamente ao fim da prerrogativa de interrogatório exclusivo, referindo-se-lhe como a “batalha da inquirição”.
Em boas contas, temos em confronto nesta matéria duas concepções fundamentais do processo e cuja tensão tem dominado alterações legislativas essenciais nos últimos 150 anos.
De um lado “a velha concepção francesa de inércia e passividade do juiz”. “O juiz manequim ou o juiz fantoche”. “Este modelo era a consequência natural do conceito individualista do processo e da confusão entre o direito material e a acção judiciária”. “A relação processual considerava-se como um negócio de exclusivo interesse particular, de que as partes podiam dispor como de coisa sua”. “As doutrinas modernas abalaram estes conceitos”. “O Estado tem no desenvolvimento do processo um interesse a defender e uma função a desempenhar: assegurar a realização do direito objectivo, fazer triunfar a Justiça” (A. dos Reis, ob.cit.).
O sistema processual liberal (os advogados interrogavam livremente os depoentes, sendo o juiz o chamado “convidado de pedra”) que claramente é o pretendido estar ainda em vigor por muitos profissionais do foro, foi legalmente arredado dos processos de partes europeus há muito mais de um século.
Ora, o modelo de Estado nacional constitucionalmente desenhado desde 1975 é ainda mais claramente incompatível com aquele sistema liberal, o que não poderia deixar de ser (e é) reflectido pelo Código de Processo Penal.
Contrariamente ao “laissez faire” (com tradução processual no juiz fantoche e estabelecimento de verdade formal) o Estado obriga-se a intervir por forma a garantir a lisura de procedimentos, essencial à promoção do progresso e o bem-estar de todos (com correspondência processual na condução do processo pelo tribunal, em ordem à descoberta da verdade material).
A Constituição da República Portuguesa afasta claramente o modelo liberal do século XIX (artos 1º, 2º, alínea d) do artº 9º e artos 58º a 106º daquela).
E não se vislumbra retorno legal nesta matéria, ao menos com a amplitude pretendida, que claramente releva de tenaz postura obsoleta e retrógrada, que teve o seu ponto alto há mais de duzentos anos. De resto, sem duvidar por um instante que deve ser dada a mais ampla possibilidade de explorar a prova (justamente para que se possa alcançar a verdade dos factos), tal prerrogativa tem de ceder precisamente antes do ponto de desvirtuação daquela (posto que aí, ao invés, já se estará a destruir a possibilidade de obtenção da mesma).
Nesta conformidade, facilmente se surpreende princípio processual penal segundo o qual as questões que os intervenientes pretendem sejam colocadas a pessoas interrogadas pelo tribunal, são‑no por intermédio deste (nº 2 do artº 345º, nº 2 do artº 346º, nº 2 do artº 347º, artº 349º e nº 1 do artº 350º, todos do Código de Processo Penal), pois que quanto a todos os meios orais de prova (e são vários) apenas as testemunhas maiores de 16 anos são inquiridas directamente por quem as arrolou.
Ou seja, a regra é que na prova por declarações as perguntas são formuladas pelo tribunal.
A excepção é feita às testemunhas maiores de 16 anos.
E, acrescente-se, mesmo estas testemunhas, se assim for decidido, podem ser interrogadas (apenas) pelo tribunal, com posterior exercício do princípio do contraditório, naturalmente já por intermédio daquele. É o que resulta com clareza da alínea a) daquele artº 323º, segundo o qual e “para disciplina e direcção dos trabalhos cabe ao presidente... proceder a interrogatórios, inquirições, exames e quaisquer outros actos de produção da prova, mesmo que com prejuízo da ordem legalmente fixada para eles, sempre que o entender necessário à descoberta da verdade”.
E nenhum outro motivo poderá ser descortinado para todo o complexo normativo que antecede, senão o de que apenas o tribunal assegura as garantias de imparcialidade necessárias àquela descoberta, pois que os demais, estatutariamente, não têm semelhante obrigação (ao Ministério Público e ainda que com objectividade, compete em audiência pugnar pela acusação e aos advogados cabe a defesa dos interesses dos seus constituintes, arguidos, assistentes ou partes civis).
Destarte, conclui-se que a confiança do interrogatório ao tribunal no que respeita à citada prova por declarações, tem como objectivo primeiro justamente o dever de seleccionar as perguntas que deverão ser feitas e a sua forma, assim, com muito maior facilidade e fluidez.
Ao ceder à incessante “batalha da inquirição”, o tribunal acaba nem tanto por fazer os deploráveis papéis de tempos idos, mas por arriscar o desvirtuamento daquele desiderato de justiça, o qual, não se duvide, é a porta que se deseja abrir com a correspondente pretensão, para além de potenciar os incidentes com a mesma relacionados, levantados também como forma de pressão adicional para que tal atropelo tenha consecução nas audiências.
No mínimo, tal anseio é manifestamente incompatível com a legal e boa e sã condução da audiência e revela-se como insistência obstinada no desejo de desistência do tribunal relativamente à direcção da audiência, em particular no que respeita à apreciação da admissibilidade de perguntas.
Tem, pois de ser como foi no caso, peremptoriamente atalhado, já que nestas circunstâncias a habitual tolerância forense, disso não temos dúvidas, ditaria, no mínimo e desde então o penhor da audiência tanto aos desígnios dos diversos intervenientes, como ainda à respectiva propensão e empenho para maior ou menor capacidade de desenvoltura.
A postura referida toma ainda erradamente o processo penal como mais do que puro processo de partes, algo análogo a peça de teatro perante espectadores preferencialmente abúlicos, apto a fazer do Direito um oco jogo de palavras.
Como bem se vê do sucedido, entende-se do relatado pelos próprios recorrentes que a pergunta pretendida visava eventual paragem que os arguidos tivessem efectuado na viagem referida nos factos apurados.
Esta questão já tinha sido efectuada pelo tribunal e respondida.
Sequer a defesa formulou pergunta sobre o facto, pois visando contornar a resposta dada, tenta começar por solicitar a opinião do arguido quanto à responsabilidade sobre os mantimentos a bordo.
Logo, por visar repetição e ser pedido de opinião - totalmente impertinente, portanto - só tinha de ser vedada, como muito bem foi e a respectiva razão de ser devidamente fundamentada.
Obviamente que de nenhuma inconstitucionalidade se reveste a norma de tal acusada, mais a mais com interpretação que apenas o recurso consegue vislumbrar e que, de todo, foi sequer equacionada pelo tribunal recorrido.
Cabe, pois, julgar tal recurso manifestamente improcedente.
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No que respeita ao recurso interlocutório sobre a decisão que indeferiu a nulidade arguida acerca da nomeação de intérprete, por inidoneidade deste - “... não tendo o Tribunal, nos termos do art.º 92.º, n.º 2, do C. P. Penal, razões para duvidar da idoneidade do intérprete aqui presente, que aliás conhece no âmbito de outras diligências já realizadas neste mesmo Tribunal, a que acresce a circunstância do arguido BB, durante as sessões que tiveram já lugar e em que prestou declarações, ter conseguido e logrado expressar-se de forma fluente em língua portuguesa, entende-se que a nomeação cumpre os requisitos necessários para que o arguido se considere devidamente assistido por intérprete na sua respetiva língua materna, assim se indeferindo o requerido pelo Ilustre Defensor do mesmo” - em suma se dirá que tendo-se o tribunal colectivo apercebido que o arguido se expressava fluentemente em português (o que também este tribunal notou, tendo sido o arguido, logo nas suas primeiras declarações, quem pediu ao tribunal para falar em português...) sequer seria necessária a nomeação, pelo que nesta parte o recurso claudica, por flagrante e maliciosa ineptidão.
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No que respeita às restantes questões deste recurso interlocutório, logo se alcança também a respectiva improcedência, já que a primeira delas tem a ver com a circunstância de não ter sido permitido ao arguido BB a prestação de declarações antes do depoimento da testemunha DD,
Como consta da respectiva acta, a decisão em causa, cuja nulidade vem depois arguida, é a seguinte “…quanto à audição do arguido BB antes das demais testemunhas, considerando a calendarização da presente sessão da audiência de julgamento e uma vez que oportunamente sempre poderá esse arguido voltar a prestar declarações, se assim o desejar, ao presente momento será de imediato inquirida a testemunha DD, presente neste Tribunal.”
Uma vez mais, a relevar do citado complexo normativo atinente ao dever de condução da audiência, o qual e como se alcança de todo o teor daquela acta (de 9.10.2023), estava a ser declaradamente posto em causa pelo defensor dos arguidos, desafiando e provocando o tribunal colectivo, ainda pretendendo ser o próprio a conduzir os trabalhos quanto a esta matéria.
O que tinha de ser imediata e implacavelmente vedado.
De resto, tal como a pretensão do arguido, naquele momento, de prestar declarações que teriam como objecto testemunho prestado na sessão anterior.
É evidente que o tribunal não pretendeu vedar o direito do arguido falar sobre os factos mencionados por aquele testemunho e ainda que logo o pudesse atalhar se, como é prática forense usual, apenas se pretendesse repetir o já declarado.
Tanto assim, que aquele arguido voltou normalmente a usar da palavra.
Atendendo logo à forma como a “pergunta” foi sugerida pelo defensor, (“relativamente ao depoimento da testemunha CC, prestado na última sessão, que incorreções é que foram declaradas?”) e a tudo o que já então tinha sucedido naquela sessão da audiência e em anteriores, é óbvio que era muito elevado o grau de probabilidade de imediatamente se seguirem diatribes dirigidas ao tribunal e não só, quando esse já era claramente e naquele momento o objectivo da defesa.
Muito bem, esteve portanto o tribunal a atalhar, como deve ser sempre feito em face de qualquer tipo de chicana processual, até porque o arguido sempre poderia usar da palavra sobre a matéria e desde que limitada ao objecto do processo, noutra altura e com a audiência serenada, como de resto aconteceu e ainda na mesma sessão.
E tanto assim foi que de todo o alegado relativamente à condução da audiência, nada de substancial é dito quanto a concretas consequências danosas para a defesa dos arguidos e estas é que seriam as eventuais invalidades a poder influenciar a decisão e a revelar nesta sede.
As alegadas inconstitucionalidades nestes recursos interlocutórios são dirigidas a normas cuja aplicação não teve correspondência com aquela alegação.
Improcedem, pois, os recursos interlocutórios.
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Contradição insanável.
Na sua versão, tal contradição ocorreria porque «a sentença dá como provado que “os arguidos saíram da Ilha de São Vicente, nas Caraíbas” numa “embarcação [...] carregada com 47 fardos de cocaína”. Fizeram-no “na prossecução” de “um plano que se traduzia na introdução de cocaína em Espanha”. Porém, “a Marinha Portuguesa abordou a embarcação onde seguiam os arguidos” quando estes “navegavam nas coordenadas 44°23'36''N 14°16'42''W” e “nessa sequência o veleiro foi conduzido para um porto nacional pela Marinha Portuguesa”.
Simultaneamente considera demonstrado que “os arguidos agiram em conjugação de vontades e esforços e no desenvolvimento de um plano previamente arquitetado, com o propósito concretizado de [...] introduzir em Espanha o supracitado produto estupefaciente”.
Por um lado, diz-se que os arguidos concretizaram o seu plano de introduzir cocaína em Espanha.
Por outro, afirma-se que, no percurso, foram abordados pela Marinha Portuguesa e, pela mesma, conduzidos a um porto nacional.»
Ora, a convocada contradição, para que exista terá de ser insanável, nas palavras da lei, o que no caso, manifestamente, não sucede - alínea b) do nº 2 do artº 410º do Código de Processo Penal.
Como se verifica pela leitura de todo o texto em causa (logo, sem ser truncado, como fez o subscritor do recurso...) a contradição é meramente aparente, pois entende-se perfeitamente que “…o propósito concretizado de receber, ter consigo e introduzir em Espanha o supracitado estupefaciente…” objecto da acção dos arguidos, apenas se frustrou quanto à introdução. Como assim, também se entende perfeitamente que apenas foi concretizado relativamente ao demais (“... receber, ter consigo”).
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Nulidade do acórdão.
A este propósito, o recurso traz à liça partes do que consta como factualidade provada na decisão recorrida.
Entrando agora na correspondente apreciação, logo se verifica que o teor das conclusões apresentadas, paralelas ao constante das peças processuais destinadas a fixar o objecto do processo, fazem intuir que alguma entorse se verificou nos presentes autos.
E na verdade assim sucede.
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O crime em causa, sem qualquer dissenção nos autos e independentemente do que se venha a concluir quanto à prova dos respectivos factos constitutivos, é o de tráfico de estupefacientes, agravado.
“Quem, sem para tal se encontrar autorizado... transportar... ilicitamente detiver, fora dos casos previstos no artigo 40º, plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas I a III é punido com pena de prisão de 4 a 12 anos” tal como dispõe o nº 1 do art.º 21º do Dec.- Lei nº 15/93 de 22.1.
O artigo 40º daquele diploma prevê o consumo ou a detenção para consumo próprio de estupefacientes.
A cocaína consta da tabela I-B, anexa àquele diploma.
Por seu turno, “as penas previstas nos artigos 21.º... são aumentadas de um quarto nos seus limites mínimo e máximo se... o agente obteve ou procurava obter avultada compensação remuneratória”, tal como resulta do disposto na alínea c) do artº 24º do mesmo diploma legal.
Desde o primeiro momento processual que em causa esteve o transporte marítimo intercontinental de mais de uma tonelada de cocaína.
Logo, os factos penalmente relevantes seriam tão-somente aqueles que, trazidos aos autos, serviriam para preencher ou infirmar aquela conduta típica, na sua multiplicidade.
É certo ser aquele dos tipos penais mais abrangentes, mas que ainda assim se contem em proposições apreensíveis e o mais sintéticas possível, como é característica das normas penais e não só, por razões que de tão evidentes e conhecidas dispensam outro género de explanação.
Como assim e por regra, os factos a tanto ajustados não hão-de constituir um longo acervo, apto, desde logo, a penosa tramitação, julgamento e mal entendidos.
E não é por constarem de peças processuais, que circunstâncias várias, ainda que conexas com os factos bastantes para a integração da conduta no tipo penal, passam a ser objecto do processo.
Sobre o ponto a jurisprudência está firmada há muito tempo.
“... Não existe violação do artigo 374º, nº 2, do Código de Processo Penal por nem todos os factos constantes da acusação/pronúncia e da contestação terem sido enumerados como provados ou não provados. Só os factos essenciais para a decisão da causa têm de constar dessa enumeração”, Ac. S.T.J. de 11.2.1998 em B.M.J. 474, 151.
E o que sejam tais factos essenciais foi, já há muito, alvo de doutrina do S.T.J. no seu Ac. de 15.1.1997, em C.J., tomo I, pág. 181:
“A obrigação legal de na sentença se fazer a descrição dos factos provados e não provados refere-se aos que são essenciais à caracterização do crime e suas circunstâncias juridicamente relevantes, o que exclui os factos inócuos, irrelevantes para a qualificação do crime ou para a graduação da responsabilidade do arguido, mesmo que descritos na acusação ou na contestação”.
Em acórdão de 2.6.2005 (procº 05P1441-DGSI) o S.T.J, pela pena do Colendo Conselheiro Pereira Madeira, à margem do “thema decidendum”, tratou da matéria dos requisitos formais da sentença em termos que nos deveriam então encorajar a retomar caminho interrompido há muito por sobressaltos processuais, impensáveis quando a economia e brevidade, a par com a sua celeridade e utilidade, constituíam referências habituais na discussão forense, vindo a desaparecer paulatinamente e a dar lugar a discussões sobre descrição e prova acerca dos próprios meios de prova, da sua obtenção, ou de meios de convicção de intervenientes processuais, quantas vezes seguidas de retrocessos na marcha do processo, o qual acabava assim por ser o objecto de si mesmo, correndo ainda o risco de olvidar o crime cuja notícia lhe deu origem e única razão de ser.
“É ilegal a prática de a acusação, e subsequentemente a pronúncia e a sentença, em vez de se cingirem à enunciação de factos que a lei exige (...) e “confundindo o que deve ser inconfundível: meios de prova com factos...”
Importando “(...) afirmar com a frontalidade exigida na “jurisdictio” de um Supremo Tribunal, que o elenco da matéria de facto, tal como foi levado avante pelas instâncias, mormente pelo tribunal recorrido, não deixa de ser tecnicamente censurável, ao misturar factos com simples meios de prova, confundindo uns com outros. Com efeito, não se vê onde buscar assento legal para, em vez de se cingir à enunciação de factos que a lei exige – artº 374º, nº 2, do Código de Processo Penal - se haver adoptado uma postura algo próxima do floreado relato jornalístico, com a transcrição inútil do resultado de algumas escolhidas conversas objecto de escuta telefónica, em vez, como seria mister, desses elementos de prova se extraírem os factos e apenas os factos com relevo para a decisão da causa. São esses - e só esses - que a lei manda enunciar, procedendo-se, se necessário e na extensão tida por necessária, ao aparo ou corte do que porventura em contrário e com carácter supérfluo provenha da acusação ou mesmo da pronúncia, de que a sentença não é nem pode ser fiel serventuária. De resto, sempre ao juiz se impõe, sob pena de ilegalidade que se abstenha da prática de actos inúteis, como esse a que se acaba de fazer menção – art.º 137º do diploma adjectivo subsidiário.”
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Como logo se constata, o crime em causa nos autos estava perfeitamente consumado muito antes de qualquer notícia do mesmo, quanto mais no momento da actuação das autoridades portuguesas.
Como assim, as circunstâncias relativas à abordagem e todas as posteriores, se se constituem em pressupostos e balizas da acção penal, não passam por isso a objecto do processo.
Devem constar e constam dos autos nessa conformidade e com grande relevo procedimental, como motivo da acção policial e de investigação, bem como da respectiva legalidade, mas, por definição, não constituem aquele objecto.
A prova, em processo penal, tem como objecto, por definição elementar e primeira, factos que à luz da lei penal substantiva constituam crime, ou o excluam.
Como assim, escutas, buscas, revistas, apreensões, etc. são apenas meios de obtenção de prova de crimes, processualmente fulcrais e a analisar com todo o rigor, mas não passando por isso a objecto do processo, nem mesmo que constem das peças processuais a tanto destinadas, como vem sendo prática enraizada e perniciosa, apta apenas a proporcionar exponencialmente o arrastar dos processos e audiências, bem assim a morosidade da justiça.
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Vejamos então qual a factualidade que, neste caso, constitui o verdadeiro e próprio objecto do processo, à luz das normas penais incriminadoras.
Com alguma latitude, delineado pela acusação, já que inexiste pedido de indemnização civil nem contestação, pode ser assim descrita:
Em data não apurada, anterior a 20.5.2022, os arguidos e desconhecidos congeminaram um plano que se traduzia na introdução de cocaína em Portugal, por via marítima e na sua entrega a terceiros, a troco do recebimento de dinheiro.
Na prossecução do apontado projecto, na América do Sul, os arguidos AA e BB (o skipper da embarcação “...”) e outros carregaram para a embarcação 47 fardos que continham cocaína com o peso líquido de 1.334.759,300g, cuja venda proporcionaria a obtenção de cerca de €42.712.288,00.
Após, os arguidos rumaram a Portugal, com o fito de descarregarem o estupefaciente em território nacional.
No dia 25.5.2022 os arguidos navegavam nas coordenadas 044º23’36” N, 014º16´42”W;
Os arguidos traziam também consigo cocaína com o peso líquido de 13,960g e 1.550 euros destinados a custear as despesas da viagem para a Europa.
Os arguidos agiram em conjugação de vontades e esforços e no desenvolvimento de um plano previamente arquitectado, com o propósito concretizado de receber, ter consigo e introduzir em território nacional o supracitado produto estupefaciente, cujas características, natureza e quantidade conheciam e de o entregar a terceiros, a troco do recebimento de quantias monetárias, sabendo que a quantidade de cocaína transportada e o seu valor tornavam as suas condutas particularmente sérias.
Os arguidos actuaram sempre de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que todas as suas condutas eram proibidas e punidas por lei.
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Em caso de condenação, como sucedeu, haveria de acrescentar a factualidade atinente às condições dos arguidos com vista ao encontro das penas justas, para além de factos conexos, resultantes da discussão. Tudo o mais, para além do que se encontra repetido são descrições de meios de prova e da sua obtenção, que como se disse, não fazem parte do objecto do processo, devendo contudo ser indicados, mas na parte a tanto dedicada na acusação e pronúncia, justamente sob a epígrafe Prova.
Ou seja, a esmagadora maioria do que consta dos art.ºs 2º, 4º, 6º a 20º da acusação (equivalente à pronúncia) e bem assim o que não foi seleccionado acima, são descrições de meios de prova (10º a 15º, com as ressalvas feitas), factos sem relevância criminal (2º, 4º, 6º, 7º, 8º, 9º e 18º, com as ressalvas acima feitas), repetições (nacionalidades dos arguidos que resultam das identificações) e até operações aritméticas, no caso, de multiplicação.
E é a esta luz que se terá de apreciar o recurso no que respeita à validade formal do acórdão.
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A primeira circunstância a fundar a arguição de nulidade do acórdão prende-se com a alteração do destino final da carga, de Portugal, como consta da pronúncia, para Espanha, como ficou no acórdão recorrido.
E como deste resulta, tal alteração ficou a dever-se às declarações de um dos arguidos, prestadas em audiência.
Como assim, nenhuma alteração haveria a comunicar, tal como resulta do disposto no nº 2 do artº 358º do Código de Processo Penal, resultando ainda e desde logo do seu nº 1 que para ser alvo de comunicação, a alteração tem de ter relevo para a decisão. Manifestamente, a que ora se discute não o tem.
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A circunstância seguinte a fundar a arguição de nulidade do acórdão, prende-se com a alteração de redacção de descrição de alguns meios de prova apreendidos na embarcação.
Descrição ilegal, como vimos, sendo por isso irrelevante qualquer tipo de alteração.
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Segue-se o acrescento, no acórdão recorrido, do grau de pureza da cocaína.
Trata-se de matéria que em nada altera a decisão, estabelecido que seja ser cocaína a carga transportada.
O seu grau de pureza é, nesta conformidade, atendendo ao volume em causa e à sua finalidade, pormenor sem qualquer relevância.
Recorde-se que aquela medição apenas se começou a introduzir nos feitos judiciais em caso de consumo de estupefacientes e para cálculo das correspondentes doses em abstracto, em tanto se esgotando a sua utilidade.
Quando muito e para o resto, serviria para ter uma ideia da gravidade da conduta. No caso e como os próprios recorrentes denotam saber, em seu benefício, o que à partida lhes retira qualquer interesse em agir no que ao recurso respeita.
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Alegam os recorrentes a nulidade do acórdão por omissão de pronúncia.
Esta seria equivalente a omissão acerca do alegado seguinte: “Nesse continente” (América ou América do Sul), a embarcação foi carregada com 47 fardos (artigo 3º da acusação), “Os arguidos rumaram a Portugal” (artigo 4º da acusação), “No dia 28.05.2022, pelas 15h20m, a PJ procedeu a uma busca à referida embarcação” (artigo 10º), “Os 47 fardos de cocaína” encontravam-se “no interior do camarote, à proa” (artigo 10º), “Os arguidos tinham também um frasco que continha cocaína” (artigo 11º da acusação) e “Os arguidos tinham aí também [...] três aparelhos de telecomunicações de satélite” (artigo 12º da acusação.»
Mas não há omissão alguma, apenas precisões ou alterações lógicas de redacção advinda de alterações irrelevantes (como por exemplo, do destino da carga).
Assim, indica o local de saída da embarcação (numa Ilha das Caraíbas, América do Sul, como é sabido), deixa de mencionar Portugal como destino, já que incompatível com o apurado e sem ser necessário pronúncia para afirmar o óbvio nas circunstâncias e os demais são, de novo, descrições de meios de prova, ilegais portanto, para além de desnecessários e ainda assim se referindo ao frasco (outra inutilidade – até podia ser uma caixa, ou um embrulho, ou o que fosse, se o que interessa é o conteúdo e sobre esse perplexidade alguma resta, já agora, nem importância, em face do total transportado).
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A derradeira causa de nulidade do acórdão prende-se com a invocada “invalidade da prova respeitante à obtenção de informações contidas em dispositivos eletrónicos, o tribunal nada decidiu.
Mas esta última afirmação não corresponde à verdade, já que o tribunal colectivo, na motivação de facto, esclareceu que “sem embargo, relativamente a todos os aparelhos eletrónicos apreendidos, estribados nas perícias que aos mesmos foram realizadas e acima aludidas, refira-se que o concreto conteúdo dos mesmos não assume qualquer relevância probatória, nem nesse concreto conteúdo o Tribunal funda qualquer dos factos provados”.
Mais uma improficuidade, portanto.
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Já de mistura tardia com alegação sobre a pouca extensão da fundamentação do acórdão, rematam os recorrentes com mais uma arguição de nulidade do acórdão, pois que “… não dá cumprimento cabal ao dever de fundamentar a aplicação das concretas penas…”
Isto quando o acórdão recorrido faz a esse propósito um percurso minucioso e cuidado ao longo de três páginas, tratando todos os pontos legalmente especificados para o fim em causa.
Como assim, a haver nulidade quanto a este ponto não é a mesma proveniente da decisão recorrida.
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Língua usada na audiência.
Tal como consta das respectivas actas e actos processuais documentados, foi usada a língua portuguesa.
A questão é uma reminiscência da arguida nulidade com a nomeação de intérprete, acima já decidida.
De qualquer forma, se durante a comunicação com o arguido BB algum vocábulo escapou à pureza linguística, recorde-se que a utilização do português foi a seu pedido e nada de concreto foi adiantado quanto a qualquer falta de entendimento, obviamente porque não sucedeu, desde logo porque ainda assim o tribunal continuou a assegurar a assistência de intérprete.
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Lei aplicável e tribunais competentes.
Todos os intervenientes aceitam que o local da abordagem da embarcação se situa na Zona Económica Exclusiva portuguesa, logo, fora do mar territorial nacional, sequer na zona contígua (“grosso modo” a 12 e 24 milhas náuticas da costa, respectivamente).
Semelhante circunstância equivale a afirmar, na verdade e salvo o elevado respeito por posição adversa, que tal abordagem ocorreu fora do território nacional.
Simplesmente e perante o mais que consta dos autos, a conclusão a tirar é inversa à dos recorrentes.
Em causa está um crime de tráfico de estupefacientes e sobre a matéria rege a alínea b) do artº 49º do Dec.-Lei nº 15/93 de 22.1, segundo o qual “para efeitos do presente diploma, a lei penal portuguesa é ainda aplicável a factos cometidos fora do território nacional...
quando praticados a bordo de navio contra o qual Portugal tenha sido autorizado a tomar as medidas previstas no artigo 17.º da Convenção das Nações Unidas contra o Tráfico Ilícito de Estupefacientes e de Substâncias Psicotrópicas de 1988
”.
Alegam os recorrentes que não foi concedida autorização ao Estado Português para adotar as medidas adequadas relativamente ao navio em que seguiam os arguidos, designadamente aceder ao mesmo, inspecioná-lo e ordenar a sua navegação para território português após se descobrirem provas de envolvimento no tráfico ilícito (nos 2 e 4 do artigo 17º daquela convenção).
Mas nem era necessário, pois que como consta dos autos, a embarcação não exibia pavilhão e quando abordada foi exibido documento falso quanto a tal circunstância, num momento em que era claramente indiciado que procedia ao transporte de droga, como efectivamente sucedia.
De resto, as normas daquele artº 17º da Convenção das Nações Unidas contra o Tráfico Ilícito de Estupefacientes e Substâncias Psicotrópicas, no que respeita à autorização a conceder, ou não, para procedimento em navio seu por outro estado, visam proteger a soberania dos estados de pavilhão sobre os respectivos navios, ainda que na óptica do combate ao tráfico de estupefacientes, para a afirmar plenamente, por exemplo, na pretensão de ser o estado de bandeira a exercer a acção penal, ou por se tratar de entrega de droga controlada pelo mesmo.
A prova assim obtida nunca seria nula. Quando muito, a falta de autorização conduziria a diferendo entre estados, a dirimir pelos meios próprios, também previstos na mesma convenção.
Por outro lado, nem os recorrentes indicam como lei aplicável e jurisdição competente a do então desconhecido pavilhão, nenhuma, portanto, pretensão que do recurso perpassa claramente, de rejeitar em absoluto.
Como resulta claro do preâmbulo daquele Dec.-Lei nº 15/93, visou-se justamente adaptar a lei nacional às exigências dos tratados internacionais de que Portugal é parte. “A aprovação da Convenção das Nações Unidas contra o Tráfico Ilícito de Estupefacientes e de Substâncias Psicotrópicas de 1988, oportunamente assinada por Portugal e ora ratificada - Resolução da Assembleia da República n.º 29/91 e Decreto do Presidente da República n.º 45/91, publicados no Diário da República, de 6 de Setembro de 1991- é a razão determinante do presente diploma.
Tal instrumento de direito internacional público visa prosseguir três objectivos fundamentais.
Em primeiro lugar, privar aqueles que se dedicam ao tráfico de estupefacientes do produto das suas actividades criminosas, suprimindo, deste modo, o seu móbil ou incentivo principal e evitando, do mesmo passo, que a utilização de fortunas ilicitamente acumuladas permita a organizações criminosas transnacionais invadir, contaminar e corromper as estruturas do Estado, as actividades comerciais e financeiras legítimas e a sociedade a todos os seus níveis.
Em segundo lugar, adoptar medidas adequadas ao controlo e fiscalização dos precursores, produtos químicos e solventes, substâncias utilizáveis no fabrico de estupefacientes e de psicotrópicos e que, pela facilidade de obtenção e disponibilidade no mercado corrente, têm conduzido ao aumento do fabrico clandestino de estupefacientes e de substâncias psicotrópicas.
Em terceiro lugar, reforçar e complementar as medidas previstas na Convenção sobre Estupefacientes de 1961, modificada pelo Protocolo de 1972, e na Convenção sobre Substâncias Psicotrópicas de 1971, colmatando brechas e potenciando os meios jurídicos de cooperação internacional em matéria penal.
A transposição para o direito interno dos objectivos e regras que, num processo evolutivo, vão sendo adquiridos pela comunidade internacional mostra-se necessária ao seu funcionamento prático, acontecendo que as disposições mais significativas daquela Convenção das Nações Unidas não são exequíveis sem mediação legislativa.
Perfeitamente consonante se mostra ainda aquela norma do artº 49º do Dec.-Lei nº 15/93 de 22.1 com a que resulta do disposto no nº 2 do artº 5º do Código Penal, segundo o qual “a lei penal portuguesa é ainda aplicável a factos cometidos fora do território nacional que o Estado Português se tenha obrigado a julgar por tratado ou convenção internacional”.
Acresce ainda o que dispõe a alínea k) do nº 2 do artº 6º do Dec.-Lei nº 43/2002, de 2.3, do qual resulta atribuição a autoridade nacional, dependente do órgão de soberania Governo e como sabido exercida no quadro da Marinha Portuguesa, para “prevenção e repressão da criminalidade, nomeadamente no que concerne ao combate ao narcotráfico” por forma a “garantir o cumprimento da lei nos espaços marítimos sob jurisdição nacional, no âmbito dos parâmetros de actuação permitidos pelo direito internacional e demais legislação em vigor”, tal como resulta do nº 1 do mesmo artigo legal.
E o normativo que antecede, conjugado com o que o dispõe o artº 4º do mesmo diploma, que define quais sejam os espaços marítimos sob soberania ou jurisdição nacional, não deixa margem para dúvidas sobre a pretensão do Estado Português relativamente a tal jurisdição, expressamente, em relação à Zona Económica Exclusiva.
O que conjugado com o princípio revelado pelo disposto no nº 1 do artº 6º do Código Penal (pretensão de punição criminal, ainda que a título subsidiário), implica inelutavelmente a competência jurisdicional nacional, logo dos correspondentes tribunais (por todos e neste sentido, acórdão desta R.L. - em DGSI - de 8.6.2021 - procº 206/18.6JELSB.L2).
Quanto à competência interna e tal como sucedeu, foi a mesma deferida nos termos do artº 20º do Código de Processo Penal, já que a embarcação foi apreendida na área da comarca de Lisboa.
Ou seja, a lei aplicável é a portuguesa e são nacionais os tribunais competentes.
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Proibição de prova.
Refere-se de novo ao exame pericial à droga ordenado pelo tribunal recorrido, visando apurar o grau de pureza daquela.
Nem se vê como semelhante meio de prova possa ser tido como proibido, nem os recorrentes o explicam.
De qualquer forma, dele tiveram conhecimento bastante antes do início da audiência, sem qualquer reacção.
Qualquer invalidade, (que inexiste) estaria sanada, como bem referido no acórdão recorrido, retomando-se aqui e agora reforçado, o argumento de falta de interesse em agir quanto a esta matéria.
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O recurso ainda menciona, indirectamente, a invalidade das buscas e apreensões, mas a questão está mais do que decidida, quer pelo acórdão desta Relação de 11.10.2022, quer pela decisão instrutória de 1.2.2023, ambos transitados.
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Erro de julgamento.
Os recorrentes indicam como mal julgados os pontos constantes de 1, 7, 12, 15 e 21, que se deviam ter por indemonstrados.
Quanto às descrições de meios de prova constantes de 7 e 12, fastidioso seria repetir o que já foi afirmado.
Quanto ao mais e em abono da sua tese, indica o recurso meios de prova testemunhal que, por aos mesmos não terem assistido, não demonstram os depoentes qualquer conhecimento directo dos factos, quanto mais aptos a impor a inversão da factualidade essencial (um exemplo claro da inutilidade do tempo perdido, já que foram inquiridos sobre a obtenção dos meios de prova “alegada”).
Recorde-se que aqueles factos são, agora em apertada síntese, o transporte marítimo daquela quantidade de cocaína de S. Vicente, Caraíbas, para Espanha.
Ora, quem demonstrou conhecimento directo e eloquente no sentido da factualidade apurada (1, 15 e 21) foram, naturalmente, os arguidos, os quais a reconheceram no que tem de incontornável e como resulta da motivação de facto do acórdão recorrido, obtendo o tribunal o demais à luz de elementares regras de experiência comum, retirando presunções absolutamente correctas, com base na restante prova directa disponível, como resulta daquela fundamentação e das gravações.
Improcede pois esta parte do recurso.
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Provas indeferidas.
Por requerimento de 6.10.2023, os arguidos requereram diligências probatórias, consistentes em oficiar o Estado Maior da Armada, para que faculte a identificação do navio que abordou o veleiro e faculte cópia do correspondente diário de bordo (logbook) relativo aos dias 20 a 28 de maio de 2022 inclusive, inquirir como testemunhas os membros da respetiva tripulação e a prestação de esclarecimentos pelos peritos GG, HH e II identificados nos relatórios do Laboratório de Polícia Científica.
Por decisão de 23.10.2023, o tribunal recorrido indeferiu tal pretensão.
A esta decisão só reagiram os arguidos no recurso que interpuseram do acórdão final, o que fizeram em 11.12.2023, quando aquela decisão já havia transitado.
E sempre se dirá que atendendo ao objecto do requerimento (prova sobre meios de prova) muito bem andou o tribunal recorrido.
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Qualificação jurídica.
Neste ponto o recurso é limitado à qualificação jurídica dos factos apurados relativamente ao arguido BB, já que não consentiriam a subsunção da correspondente conduta na previsão constante da alínea c) do artigo 24° do Decreto-lei n° 15/93, de 22.1.
Trazendo de novo e agora nesta sede, o supracitado acórdão desta Relação e Secção, dir‑se-á que “em casos de importação de grandes volumes de cocaína, o lucro visado cifra-se em fortunas, do que bem cientes estão os envolvidos. Logo o crime em causa é agravado, nos termos da alínea c) do artigo 24º do Dec.-Lei nº 15/93, de 22.1, independentemente das concretas compensações de cada um daqueles agentes.”
“(...) No que respeita à prática do crime de tráfico de estupefacientes pelos arguidos, não há qualquer dissenção, pois esta apenas surge relativamente à correspondente agravação, designadamente pela alínea c) do artº 24º do Dec.-Lei nº 15/93 de 22.1, que tem como previsão o agente ter obtido ou procurar «obter avultada compensação remuneratória».
Ora quanto às características da retribuição visada com a operação de transporte daquela cocaína, o que se apurou é, de largo, apto ao preenchimento da correspondente previsão.
Trata-se de um transporte intercontinental, por via marítima, de mais de uma tonelada de cocaína, justamente do continente da sua produção e obviamente para a Europa (onde actualmente ainda se regista um dos mais elevados níveis de vida mundial).
Na escala da traficância a que respeita esta operação, o lucro cifra-se na casa dos milhões de euros.
Sublinhe-se pois a tal propósito, que a quantidade de estupefaciente em causa, os meios envolvidos para a respectiva introdução e transporte, bem como o carácter internacional da operação não deixam qualquer margem para dúvidas sobre os lucros brutais visados. Neste sentido veja-se a evolução persistente da jurisprudência do S.T.J. (por todos Ac. de 28.11.2018, procº 36/16.0PEPDL.L1.S1-DGSI).
Estamos perante uma operação situada logo de seguida à produção do estupefaciente em causa, ou seja, no primeiro ou segundo grau da rede em questão e ainda muito longe do consumidor final, envolvendo transporte marítimo por embarcação apropriada para a Europa, denunciando-se ainda claras ligações internacionais.
À fortuna que valia o estupefaciente transportado, equivaleria, como é evidente à luz do mais elementar senso comum, elevadíssima compensação a caber ao importador e principal responsável pelo crime, mesmo que se viesse sem custo a admitir que aquela seria apenas percentual relativamente ao enorme diferencial entre o custo junto da fonte de produção e aquele que já fica perto dos consumidores.
É assim seguro que os arguidos participaram em crime correspondente a actividade que envolvia avultada compensação económica tirada até como claríssima ilação jurídica do conjunto dos factos provados, pelo que o tipo em causa é o agravado por tal circunstância, independentemente da concreta compensação de cada um deles (...) (e poderia até nem sequer haver remuneração, por exemplo, para alguém que participasse no transporte como forma de entrar para a organização, por qualquer outro motivo ou militância, que não deixaria de ser co‑autor do crime, que é agravado atendendo ao lucro visado, designadamente e desde logo pelo dono ou donos daquela droga).
Ou seja, da análise crítica dos factos resultaria sempre, insofismavelmente e neste caso, a inferência retirada, mais ainda com o que se apurou.
De resto, ou visto o problema por outro prisma, qualquer cidadão do mundo sabe que o tráfico de estupefacientes visa justamente a obtenção de lucro.
Ao nível do tráfico intercontinental, qualquer pessoa sabe que esse lucro se cifra em fortunas.
Por outro lado, ainda estamos perante operação que se desenrola junto da produção da droga e que não vai até perto dos seus consumidores, isto é, em lugar cimeiro na cadeia do tráfico de estupefacientes mundial.
Os arguidos ingressaram no clube dos principais responsáveis pelo tráfico de estupefacientes, indubitavelmente e ainda que sejam apenas operacionais da plena confiança do dono da droga, já que se existe alvo para a agravação do tráfico de estupefacientes é justamente ao nível do tipo de traficância a que se dedicaram ( o artº 24º está reservado precisamente para o tráfico maior, como incessantes vezes referia o saudoso Exmo. Conselheiro do S.T.J. Carmona da Mota).
Não se desconhece, respeitando-a, jurisprudência que entende ser a compensação relevante para este efeito a visada pelo concreto agente e não por terceiros.
Simplesmente, os demais comparticipantes do crime não são, por definição, terceiros e ainda que se não tenha apurado a respectiva identificação, participaram no cometimento do crime, neste estando sempre tão presentes, como, por regra e por razões consabidas, processualmente ausentes.
Agente, ou agentes do crime (conceito de direito penal substantivo) não corresponde, por variadas razões, a arguido ou arguidos em processo penal (apenas tendencial tradução processual penal daquele primeiro).
Todos os envolvidos no cometimento do crime, são pois, seus co-autores e é por tal via que tem de ser analisada a participação de todos e qualquer um dos agentes.”
Ou seja, ambos os arguidos, sem qualquer margem para hesitações, cometeram o crime de que vinham acusados, tendo o tribunal recorrido enveredado pela interpretação acima criticada, quanto a um dos arguidos, sem reacção do Ministério Público, pelo que não merece sequer a correspondente alteração.
*
Medida das penas.
Sobre o ponto explanou o acórdão recorrido, depois de enquadrar legal e doutrinariamente a questão:
“i) o grau de ilicitude do facto, ou seja, o modo de execução deste e a gravidade das suas consequências, bem como o grau de violação de deveres impostos ao agente. Aqui releva, essencialmente, o peso muitíssimo relevante do produto estupefaciente, de mais de uma tonelada (1.334.759,300 gramas), a natureza do mesmo – cocaína (com uma danosidade acrescida comparativamente a outros estupefacientes) e o grau de pureza apresentado (27,50 %, sendo o equivalente a 1.835.294,00 doses de consumo, calculado de acordo com a Portaria nº 94/96, de 26 de março), a par da circunstância de os arguidos atuarem em comunhão de esforços conjuntamente com outros indivíduos, numa operação de transporte marítimo internacional (em que seguiam sozinhos em embarcação do tipo veleiro, atravessando o oceano atlântico, das Caraíbas em direção à Europa).
A violação dos deveres impostos foi, pois, frontal por parte de ambos os arguidos.
ii) A intensidade do dolo ou negligência.
A intensidade do dolo é, como se viu, na modalidade de dolo direto, de alta intensidade,
por ser a forma mais gravosa do dolo.
iii) Os sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que os determinaram.
Ressalta, da imagem global dos factos pelos quais os arguidos vão condenados uma natural indiferença pelo bem jurídico protegido pela incriminação, centrada naquilo que sempre está na origem da prática dos crimes de tráfico de estupefacientes e que assente na realização fácil de quantias monetárias.
iv) As condições pessoais do agente e a sua situação económica.
Olhando ao apurado acima, temos que os arguidos apresentam situações pessoais aparentemente estáveis e normalizadas nos demais aspetos das suas vidas, anotando-se em relação ao arguido BB que no período contemporâneo da prática dos factos atravessava dificuldades em proceder ao sustento académico da filha.
v) A conduta anterior ao facto e a posterior a este.
Os arguidos não registam quaisquer condenações criminais, o que é de valorar a seu favor, embora tal seja o exigível de qualquer cidadão.
Ademais, olhando ainda à postura dos arguidos, temos que o arguido BB não deixou de admitir, em certa medida, alguns dos factos que se apuraram, contribuindo para esse apuramento, enquanto que o arguido AA, negando a atuação que quanto ao mesmo se apurou, evidenciou uma indisfarçável ausência de consciência crítica e capacidade de autocensura…”
Pugna o recurso pela aplicação de penas pelo mínimo das molduras em causa, respectivamente 4 e 5 anos de prisão.
Regressando ao acórdão supra citado desta Relação e em caso semelhante, dir-se-á que “dentro das múltiplas possibilidade de preenchimento do tipo penal agravado de tráfico de estupefacientes em causa, pela natureza cimeira do crime relativamente à demais traficância que se lhe seguiria, ao que acresce a fortuna envolvida na operação, verifica-se que a ilicitude é elevadíssima.
É deste tipo de traficância que depende toda a demais que enxameia as vilas e cidades da Europa e que vai alimentando o exército dos demais traficantes e fornecendo os consumidores, alimentando-se por sua vez perniciosa e repugnantemente destes e do que os mesmos conseguem tirar à sociedade.
Tudo para dizer que os factos em questão ultrapassam, de muito largo, o estritamente necessário para o preenchimento do tipo já agravado.
A quantidade de estupefaciente em causa, os meios envolvidos para a respectiva introdução e transporte, bem como o carácter internacional da operação que com toda a segurança se afirmou, não deixam qualquer margem para dúvidas.
Estamos, como se disse, perante uma operação situada muito próximo da produção do estupefaciente em causa, ou seja, no segundo grau da rede em questão e ainda muito longe do consumidor final.
O dolo é directo, intenso e persistente durante toda a necessária preparação e execução da operação.
Repare-se como em audiência os arguidos se mastrearam em vítimas das autoridades, principal e decididamente porque pretendem haver direito à sua actividade criminosa sem serem incomodados, numa clara manifestação de inconformismo pelo impedimento daquele crime, a denunciar total falta de real e sincero arrependimento.
Os arguidos foram operacionais da inteira confiança de quem leva a cabo o primeiro transporte intercontinental de monta, reconhecendo-se todavia que não ocupam lugares cimeiros da organização, pois não se pode perder de vista as suas concretas e apuradas actividades.
No mesmo sentido, os motivos primeiros que os levaram ao crime e as capacidades de inserção social demonstradas, constituem circunstância atenuante.
Sem nunca perder de vista a medida da culpa de cada um dos arguidos, que é muito elevada, ainda que diferenciada, teremos de considerar, neste caso e pelo que acima se referiu, como particularmente alto o limite inferior da moldura de prevenção geral positiva, revelado pelas exigências mínimas de defesa do ordenamento jurídico, neste particular, até internacional, atendendo às obrigações assumidas por Portugal no concerto das Nações no que respeita ao tráfico de estupefacientes (…)”
Destarte, levando em conta o adiantado pela factualidade apurada e o que antecede, nos termos das disposições legais convocados no recurso, as penas aplicadas devem ser mantidas e se critica lhes pode ser dirigida, não é seguramente por severidade, bem pelo contrário.
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Suspensão das penas.
À luz das disposições legais convocadas a propósito pelo recurso quanto a esta matéria, é impossível a suspensão da execução das penas, atendendo à correspondente dimensão.
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Inconstitucionalidade.
Nos dizeres do recurso, por “as normas ínsitas no nº 1 do artigo 358º e no nº 2 do artigo 374º do CPP, se interpretadas no sentido de que é viável inserir nos factos provados o grau de pureza da substância estupefaciente, apesar de tal elemento não constar da acusação ou da pronúncia, sem antes se proceder a comunicação ao arguido.”
Como se viu, não houve aplicação da nosma com essa dimensão, pelo que improcede a arguição.
Consequentemente, improcede o recurso do acórdão.
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Pelo exposto, acordam em negar provimento aos recursos, confirmando na íntegra as decisões recorridas.
Custas pelos recorrentes, fixando-se a taxa de justiça em três UC.
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Lisboa, 20 de Fevereiro de 2024
Manuel Advínculo Sequeira
Luísa Oliveira Alvoeiro
Alda Tomé Casimiro