Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1407/20.2T8ALM.L1-2
Relator: PEDRO MARTINS
Descritores: NULIDADE
SIMULAÇÃO ABSOLUTA
ABUSO DE DIREITO
ADQUIRENTE
CANCELAMENTO DE REGISTO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 02/22/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE PROCEDENTE
Sumário: I – A nulidade por simulação absoluta não deve ser declarada inoponível aos credores exequentes com base no abuso de direito se (i) o que se justificava, por esta via, era apenas a responsabilização dos autores e do gerente da ré pelos danos causados ao terceiro pela confiança violada; nem quando (ii) existe um regime jurídico específico que resolve o problema.
II – A nulidade proveniente da simulação (art.º 240/2 do CC) não pode ser arguida pelo simulador contra o credor exequente do adquirente simulado que penhorou um imóvel que estava inscrito na matriz em nome deste (art.º 243 do CC e ac. do STJ de 30/04/2002).
III – Os simuladores não podem, através de uma acção não contestada, obter uma sentença que ordene o cancelamento de registos efectuados por terceiros; de qualquer modo, no caso, não se justifica o cancelamento de quaisquer registos.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa os juízes abaixo assinados:

AP, que anteriormente usou o nome de AP e mulher, MP,  intentaram a presente acção declarativa comum, contra J-Lda, pedindo que (a) nos termos do artigo 240 do Código Civil, se declare a nulidade, por simulação absoluta, do contrato de compra e venda celebrado, entre autores e ré, pela escritura pública a que aludem os presentes autos; (b) em consequência da declaração de nulidade e nos termos do art.º 13 do CRP, seja ordenado o cancelamento dos registos relativos ao identificado lote de terreno, correspondentes (i) à penhora no processo de execução fiscal e (ii) à inscrição da aquisição a favor da ré, e ainda (iii) o cancelamento de todos os registos posteriores, que tenham sido ou venham a ser feitos com base na aquisição a favor da ré, e que sejam incompatíveis com a declaração de nulidade do contrato de compra e venda; e ainda que (c), nos termos do artigo 243/3 do CC, seja declarada a oponibilidade da nulidade peticionada a terceiros que venham a adquirir o lote de terreno após o registo da presente acção, designadamente no processo de execução fiscal identificado na petição inicial, ordenando-se o cancelamento dos registos a favor dos mesmos.
Regularmente citada, a ré não contestou.
Por se entender que nos autos se estava perante uma situação de preterição de litisconsórcio necessário passivo, foi proferido convite com vista ao suprimento da excepção dilatória de ilegitimidade passiva.
Na sequência do convite, vieram os autores deduzir incidente de intervenção principal passiva do Estado Português, o qual foi admitido e foi ordenada a citação do Estado Português.
O Ministério Público, em representação do Estado Português (Autoridade Aduaneira – Fazenda Nacional) contestou, deduzindo a excepção peremptória do abuso de direito (art.º 334 do Código Civil) por parte dos autores, na modalidade de venire contra factum proprium, porque primeiro terão simulado um contrato de compra e venda para evitar que o imóvel fosse penhorado e executado por uma dívida antiga e depois, perante a iminência do referido imóvel ter de responder pela satisfação de dívidas da ré à Fazenda Nacional, o que a suceder comprometeria irremediavelmente a finalidade que presidiu à simulada venda, vêm agora invocar a nulidade do negócio, por simulação, porquanto tal situação aparente por eles motivada deixou de lhes convir e é prejudicial aos seus ilegítimos interesses, pretendendo fazer valer os efeitos da nulidade dos negócios jurídicos, de modo a que o imóvel seja excluído do processo executivo fiscal e lhes seja restituído; e impugnando, no essencial por desconhecimento sem obrigação de conhecer, os factos que não estão provados por documentos; acrescenta que não é certo que as partes não tenham querido, realmente, o negócio, tanto que o gerente da ré se veio aproveitar dele, indicando o imóvel para penhora numa execução contra a sociedade e não contestando a execução fiscal, e os autores não deduziram embargos de terceiro na execução fiscal; por fim, considera que o pedido de cancelamento do registo da penhora efectuada no processo de execução fiscal, não pode proceder porque a penhora da Fazenda Nacional foi feita antes da propositura da presente acção; acrescenta que um pedido de condenação referente a uma obrigação dependente de terceiro, não pode proceder (acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 16/06/2016, proc. 3071/13.6TJVNF.G1) e lembra, quanto à prova indicada pelos autores, a limitação estabelecida no art.º 394/2 do CC.
Os autores replicaram pugnando pela improcedência da excepção.
Depois de realizada a audiência final, foi proferida sentença, julgando a acção improcedente e absolvendo a ré e o Estado dos pedidos formulados pelos autores.
Os autores recorrem desta sentença – para que seja revogada e substituída por outra que julgue a acção procedente e, em consequência, condene a ré e o Estado Português nos pedidos formulados -, terminando as suas alegações com as seguintes conclusões:
1\ Da factualidade dada como provada, não resulta que os autores, ao arguirem a simulação do contrato de compra e venda, actuaram com abuso de direito, nomeadamente na modalidade do venire contra factum proprium.
2\ A questão essencial que se coloca consiste em saber se, à luz da correcta interpretação do artigo 334 do CC, a pretensão dos autores (vendedores/simuladores) - no sentido de verem declarada a nulidade, por simulação absoluta, do contrato de compra e venda em causa – é juridicamente inadmissível, em virtude daqueles terem instaurado a acção após terem tido conhecimento da penhora do lote de terreno - efectuada numa execução fiscal instaurada contra a ré (compradora/simuladora) - e de terem, entretanto, decorrido mais de 10 anos, em que o terreno se manteve na esfera jurídica da ré, que até o ofereceu à AT, em pagamento de uma dívida fiscal.
3\ Os autores consideram que, contrariamente à decisão da sentença recorrida, o decurso do prazo de mais de 10 anos não tem a relevância jurídica que a mesma lhe atribui, relativamente ao abuso de direito, desde logo, porque, nos termos do artigo 286 do CC, a nulidade do negócio jurídico pode ser arguida, a todo o tempo, por qualquer interessado, podendo a nulidade do negócio simulado ser arguida pelos próprios simuladores, ainda que a simulação seja fraudulenta, nos termos previstos no artigo 242/1 do CC.
4\ Acresce que, durante esses mais de 10 anos, os autores nada fizeram no sentido de esconder que continuavam a ser, na realidade, os proprietários do lote de terreno.
5\ Pelo contrário, conforme consta em J dos factos provados.
6\ Aliás, nem a ré nem os autores requereram o registo da aquisição, a favor daquela, emergente do contrato de compra e venda simulado, pelo que, durante mais de 10 anos, a propriedade do lote de terreno manteve-se registada em nome dos autores.
7\ Assim, dos factos provados não pode concluir-se que a conduta anterior dos autores foi no sentido de que nunca viriam a invocar a nulidade do contrato, por simulação.
8\ Os autores propuseram a acção depois de terem tido conhecimento que o lote de terreno tinha sido penhorado no processo de execução fiscal, instaurado contra a ré, porque foi, evidentemente, nesse momento que assumiram que deviam, pelos meios judiciais adequados, defender o seu direito de propriedade.
9\ Porem, tal facto não torna ilegítimo e inadmissível o exercício, pelos autores, do direito de arguir a simulação do negócio.
10\ Na verdade, no caso em apreço, a pretensão dos autores no sentido de verem declarada a nulidade do negócio simulado, não poderá ser considerada ilegítima e inadmissível, não prejudicando a contraparte no negócio (a ré, simuladora/compradora) e não retirando os autores, para si, qualquer lucro patrimonial dessa nulidade, que terá apenas o efeito de repor a verdade material, relativamente à propriedade do lote de terreno, no interesse dos autores, mas também no interesse dos seus credores, que voltarão a dispor do lote de terreno para garantia e satisfação de eventuais créditos, vencidos e não pagos.
11\ Por outro lado, o eventual não reconhecimento aos autores do direito a obter a declaração de nulidade, nos termos formulados na pi, iria permitir à ré, simuladora/compradora (que nada pagou nem tinha de pagar, aos autores, pela venda), tirar proveito material do negócio simulado, em consequência da inevitável futura venda do lote de terreno, na execução fiscal pendente contra a ré, o que, acontecer, seria imoral e reprovável , e constituiria um injusto locupletamento da ré, à custa dos autores, que implicaria para estes um grave prejuízo patrimonial irreparável (o valor patrimonial do lote de terreno, indicado na escritura de compra e venda, em causa, era de 59.328€, e é actualmente de 82.489,05€ (cf. caderneta predial junta com a pi).
12\ Acresce que o Estado Português, não provou, nem sequer alegou, quaisquer factos susceptíveis de demonstrar que os autores procederam no sentido criar na Fazenda Nacional – Autoridade Tributária a expectativa de que não arguiriam a simulação do negócio, nem se provou que a penhora do lote de terreno seja imprescindível para assegurar a cobrança da dívida fiscal da ré.
13\ Assim, não pode concluir-se que os autores, ao peticionarem nos presentes autos a nulidade do contrato, com base na simulação que eles e a ré deram causa, estejam a exercer um direito em termos, clamorosa e intoleravelmente, ofensivos da justiça, da lealdade ou do sentimento jurídico socialmente dominante. Pelo que não pode considerar-se que a pretensão dos autores excede, manifestamente, os limites previstos no art.º 334 do CC.
O Estado Português respondeu ao recurso, concluindo no sentido da sua improcedência e sintetizou assim as suas razões para tal:
1\ A compra e venda celebrada em 30/12/2008 teve por única finalidade evitar que o lote de terreno fosse penhorado e executado por uma dívida antiga (F dos factos provados).
2\ Passados vários anos, perante a iminência do referido imóvel ter de responder pela satisfação de dívidas à Fazenda Nacional da ré, os mesmos invocam a nulidade do negócio, por simulação, porquanto tal situação aparente por eles motivada deixou de lhes convir e é prejudicial aos seus ilegítimos interesses, pretendendo fazer valer os efeitos da nulidade dos negócios jurídicos, de modo a que o imóvel seja excluído do processo executivo fiscal e lhes seja restituído.
3\ O abuso do direito é uma excepção peremptória inominada de conhecimento oficioso que importa a absolvição do pedido (art.º 334 do CC e artigos 571/2, 576/3 e 579 do CPC).
4\ Atente-se na manifesta violação dos deveres de lealdade e dos limites impostos pelo princípio da boa fé, em períodos temporais distintos, o imóvel muda da esfera jurídica de uns para outros ao sabor dos problemas de cada um, não pagando aos credores, assim salvaguardando o imóvel.
5\ A situação evidenciada nos autos consubstancia uma grosseira violação da confiança, na modalidade de venire contra factum proprium, com a qual o sistema não pode contemporizar.
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Questões que importa decidir: se não se verifica o abuso de direito por parte dos autores; neste caso, fica por saber se os vários pedidos deduzidos pelos autores deviam ter procedido, contra a ré e contra o Estado.

Estão dados como provados os seguintes factos (este TRL acrescentou os factos C1 a C4 e as partes em parenteses rectos do facto I, este colocado agora por ordem cronológica, ao abrigo dos artigos 663/2 e 607/4 do CPC, tendo em conta que os documentos ali referidos não foram impugnados):
A\ Por escritura pública outorgada em 30/12/2008, num Cartório Notarial, os autores declararam vender à ré, no acto representada pelo seu gerente J, pelo preço de 60.000€, o lote de terreno para construção, com a área de 720 m2, descrito na Conservatória do Registo Predial, sob o número x, e inscrito na matriz sob o artigo y.
B\ A Autoridade Tributária e Aduaneira instaurou contra a ré o processo de execução fiscal n.º z, pendente no Serviço de Finanças de Almada – 2 / Direcção de Finanças de Setúbal, cuja dívida exequenda ascende a 294.335,05€.
C\ Nesse processo de execução fiscal foi penhorado o lote de terreno referido em A\, tendo a penhora sido registada na ficha desse prédio naquela CRP sob a ap. n.º 10 de 08/Abril/2019.
C1\ Na caderneta predial o titular do prédio é a ré e nela o valor patrimonial do prédio é de 82.489,05€ (conforme cópia junta pelos autores como doc.2).
C2\ Por carta de 29/04/2019, a Conservatória notificou a autora para declarar se o prédio lhe pertence, nos termos e para os efeitos do art.º 119/3 do CRP – visto que a penhora tinha sido registada provisoriamente porque na ficha do prédio, a titular era ela, casada com o autor no regime de comunhão de adquiridos (doc. 7 junto pelos autores – notificação por ofício do serviço da AT referido em B).
C3\ Por carta de 13/05/2019, a autora, em resposta, diz simplesmente que o prédio lhe pertence pelo que não pode responder pela dívida objecto da execução.
I\ O gerente da ré, invocando a qualidade de sócio gerente da ré (ou melhor: a qualidade de responsável subsidiário do processo de execução fiscal referido acima), em requerimento datado de 29/09/2019 (ou melhor, segundo o documento em causa, 13/09/2019) dirigido à AT informou que a sociedade era proprietária do terreno referido em A\ (“como se pode alcançar de cópia de escritura e caderneta predial urbana como documentos 4 e 5” que “junta”, “razão pela qual procede à entrega do sobredito (…) propriedade (…)”) e não deduziu qualquer contestação em sede de execução fiscal.
C4\ A 23/09/2019, a aquisição do prédio, por compra, foi registada a favor da ré por compra aos autores e nesse mesmo dia a penhora feita pela AT foi convertida em definitiva (documento 6, informação predial, junto pelos autores).
D\ A presente acção foi registada na ficha desse prédio naquela CRP sob a ap. n.º 1509 de 06/Março/2020.
E\ Contrariamente ao que declararam na escritura, nem os autores quiseram vender, nem o representante da ré quis comprar para a sociedade sua representada o lote de terreno objecto do contrato referido em A\.
F\ A outorga da escritura de compra e venda aludida em A\ teve por única finalidade, pretendida quer pelos autores, quer pela ré e por ambos previamente acordada, obstar a que o lote de terreno fosse penhorado e executado judicialmente para satisfação de créditos dos credores dos autores, entre outros de um crédito devido a advogado.
G\ Nem os autores, nem a ré quiseram fazer tal negócio de compra e venda, nem qualquer outro, motivo pelo qual a ré não pagou nem tinha de pagar aos autores o preço de 60.000€.
H\ Ao tempo da realização da referida escritura de compra e venda (30/12/2008), existia entre os autores e aquele gerente da ré uma relação de amizade e confiança, e os autores consideravam a ré uma sociedade com uma boa situação económica e financeira.
J\ Os autores desde a data da escritura – 30/12/2008 - para cá, sempre exerceram sobre o lote de terreno, de forma continuada e ininterrupta, todos os poderes próprios de um proprietário, na convicção de que o terreno lhes pertence plenamente, gozando, disfrutando e dispondo do mesmo como coisa sua, à vista de toda a gente, sem qualquer oposição da ré e de quem quer que seja.
L\ A ré nunca utilizou o lote de terreno em causa e nunca reclamou nem exerceu qualquer direito sobre o terreno.
M\ No dia 30/12/2008, data da escritura de compra e venda, o gerente da ré subscreveu o documento junto a folha 12 dos autos, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais, denominado de “Declaração” e do qual consta:
“Eu, abaixo assinado, (…), na qualidade de sócio gerente da (ré…), declaro, para todos os efeitos e sob compromisso de honra, relativamente à escritura de compra e venda do lote de terreno referida em A\ (…), hoje celebrada no Cartório da Notária (…), o seguinte:
Em nome da referida sociedade, que represento, comprometo-me a não exercer qualquer direito sobre o mencionado lote de terreno, porque se tratou de uma venda puramente fictícia, realizada de comum acordo entre mim e os vendedores (autores), sendo a propriedade do terreno formalmente retirada do património dos vendedores e transferida para a minha sociedade, em boa verdade, com o único fim de ocultar o terreno aos credores daqueles impedindo-os de penhorarem esse lote de terreno para cobrança judicial de dívidas de forma a que os vendedores tenham mais tempo para negociar com os seus credores um acordo de pagamento.
Mais me comprometo em nome da sociedade a transferir de novo a propriedade do lote de terreno para o nome dos vendedores (…), seus verdadeiros proprietários, repondo a situação anterior, porque não se quis fazer negócio nenhum, e comprometo-me ainda a passar procuração a favor de A, ou outra pessoa da sua confiança que eles me indicarem, com poderes para vender o lote de terreno, não podendo eu exigir daqueles vendedores qualquer quantia pela transferência da propriedade porque a sociedade que represento também nada lhes pagou por conta da venda hoje celebrada no notário, apesar de na escritura se referir que foi pago o preço de 60.000€, o que não é verdade, já que a venda é fictícia.
(…)”.
N\ No documento M\ encontra-se aposta a assinatura daquele gerente, na qualidade de gerente, assinatura essa aposta pelo seu próprio punho.
O\ Aquele gerente, na qualidade de sócio gerente da ré, por documento autenticado em 24/04/2009 naquele Cartório, constituiu procuradora da ré A, conferindo-lhe os poderes para, designadamente, vender o lote de terreno, e outorgar e assinar as necessárias escrituras, tudo conforme documento junto a folhas 13 a 14 verso dos autos e cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais.
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A fundamentação da sentença recorrida foi, em síntese, a seguinte:
Prova-se a simulação absoluta (art.º 240/1 do CC) da compra e venda em causa: autores e ré, em conluio entre si e com a intenção de prejudicar terceiros – os credores dos autores -, fingiram vender e comprar um prédio (retirando do seu património um prédio que servia de garantia daqueles), quando afinal só formalmente o fizeram, pois que nem os autores receberam o preço nem a ré o pagou e o prédio nunca saiu da mão dos autores. Tal simulação acarreta a nulidade do negócio (art.º 240/2 do CC), o que se declara(ria), com as consequências previstas nos artigos 286 e 289 do CC.
Todavia, autores e ré agiram em claro abuso de direito (art.º 334 do CC), o qual corresponde a uma excepção peremptória, porquanto impeditiva do direito dos autores a que o terreno regresse à sua esfera jurídica.
Abuso de direito na modalidade de venire contra factum proprium, porquanto os autores, em acordo com a ré, venderam e esta comprou o terreno de modo a que aqueles impedissem os credores de verem ressarcidos os seus créditos através do terreno. Nem os autores receberam o preço da venda, nem a ré procedeu ao pagamento desse preço aos autores. Esse terreno, de facto e na realidade, nunca saiu da mão dos autores. A escritura de compra e venda foi outorgada em 2008 e a situação jurídica resultante dessa “compra e venda” perdurou no tempo. Decorridos mais de 10 anos, mantendo-se o terreno como propriedade da ré, e porque essa situação beneficiava o legal representante da ré num processo de reversão, veio este afirmar perante a AT que a sociedade era proprietária do terreno e que, por essa razão, a AT poderia fazer-se pagar, em parte e entre outros bens, pelo terreno. Tendo os autores conhecimento que a AT havia penhorado o terreno com vista à venda em sede de processo de execução fiscal, o que não lhes interessava, vieram propor a presente acção com fundamento na existência de uma situação de simulação absoluta, de modo a lograrem que a propriedade do dito terreno regressasse à sua esfera jurídica. Por seu lado, a ré, na pessoa do seu legal representante, de acordo com os autores, aceitou simular a compra e venda do imóvel de modo a obstar a que os, à data, credores dos autores satisfizessem os seus créditos através da penhora e venda do terreno, manteve essa situação e quando lhe foi benéfico afirmou perante a AT que o terreno era seu, ocultando a verdade. Posteriormente, perante a propositura da presente acção, veio o legal representante da ré aceitar a existência de um negócio simulado de modo a obstar à venda do terreno em sede de execução fiscal e de modo a facultar o regresso do imóvel à esfera jurídica dos autores. Em conclusão, quer os autores, quer a ré, em momentos distintos, usam o imóvel que transita da esfera jurídica de uns para a outra, logrando não pagar aos credores e salvaguardando o imóvel. Termos em que existindo o direito por parte dos autores, face à existência de uma situação de simulação absoluta, a que o imóvel regresse à sua esfera jurídica, este direito não pode por eles ser exercido nos moldes em que o fazem nos presentes autos, de uma forma não admitida pela boa-fé que deve reger a conduta das partes na celebração e cumprimento dos contratos, ficando esse direito “paralisado”, pois, caso contrário, estaria a permitir-se o exercício inadmissível de uma posição jurídica.
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Apreciação
Menezes Cordeiro (CC comentado I, CIDP/Almedina, 2020, páginas 926, 933 e 934-935) diz que “O artigo 334 não é aplicável à luz do que nele se lê: antes implica uma remissão para uma Ciência do Direito evoluída, actual e sensível às questões que, na base, exigem a sua intervenção”,
Depois, acrescenta que “O venire contra factum proprium exprime o exercício de uma posição jurídica em contradição com uma conduta antes assumida ou proclamada pelo agente. (…). O Direito proíbe condutas contraditórias: mas apenas em certas circunstâncias, historicamente reunidas em torno da boa-fé e do abuso de direito. (…).”
Por fim, explica, ainda a propósito do venire contra factum proprium, que:
“A concretização da confiança assenta num modelo que joga com quatro proposições: (1) uma situação de confiança conforme com o sistema e traduzida na boa-fé subjectiva e ética, própria da pessoa que, sem violar os deveres de cuidado que ao caso caibam, ignore estar a lesar posições alheias; (2) uma justificação para essa confiança, expressa na presença de elementos objectivos capazes de, em abstracto, provocar uma crença plausível; (3) um investimento de confiança consistente em, da parte do sujeito, ter havido um assentar efectivo de actividades jurídicas sobre a crença consubstanciada; (4) a imputação da situação de confiança criada à pessoa que vai ser atingida pela protecção dada ao confiante: tal pessoa, por acção ou omissão, terá dado lugar à entrega do confiante em causa ou ao factor objectivo que a tanto conduziu.
As quatro proposições apontadas articulam-se de acordo com um sistema móvel: não há uma hierarquia entre elas e a presença de alguma ou algumas pode, no concreto, ser dispensada desde que as restantes assumam um peso suficiente para suportar a decisão.”
Esta construção também é feita, no essencial, por Carneiro da Frada, quando (na Teoria da Confiança e Responsabilidade Civil, Almedina, Janeiro 2004) fala nos vários pressupostos da responsabilidade pela confiança (também acrescentando que estes pressupostos se articulam entre si em sistema móvel – pág. 586) e a forma como descreve as quatro proposições contribui para se perceber melhor o alcance deles:
Confiança – uma atitude de confiança alicerçada num facto apto a produzi-la – facto indutor de expectativas = tatbestand de confiança (págs. 632/633);
Justificação de confiança – uma justificação objectiva para essa confiança (pois de ordinário a ligeireza ou a falta de cuidado não merecem ser atendidas);
Investimento – um investimento de confiança, traduzido numa atitude ou actuação que o confiante tenha desenvolvido com base na sua convicção;
Imputação da confiança – uma imputação de confiança a outrem, em termos que justifiquem no plano ético-jurídico a sua responsabilidade – págs. 585/586 e notas 617 e 618 – a imputação exigível para fazer alguém responder pela confiança tem de se ancorar simultaneamente na criação da situação de confiança e a na sua frustração – pág. 661.
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Antes de continuar, consigne-se que se aditaram os factos C1 a C4 e precisou-se o que constava de I, de modo a ter uma melhor descrição do sucedido, tendo-se em consideração todos os factos que os autores e o Estado alegaram e que dão melhor conta do que se passou.
Posto isto,
No caso dos autos não há dúvida de que a conduta actual dos autores, concretizada nesta acção, com a qual, grosso modo, estão a dizer que são eles os proprietários de um imóvel, é contraditória com o facto de, antes disso, terem declarado, em escritura pública, vender esse mesmo prédio à ré. Ou seja, primeiro, fazem uma declaração negocial externa (o contrato simulado) da qual resulta que o prédio não é dos autores, mas da ré; mais tarde, usam uma declaração negocial interna (o pacto simulatório) para dizer que o prédio é dos autores, não da ré.  
Os autores contrapõem que “dos factos provados não pode concluir-se que a conduta anterior dos autores foi no sentido de que nunca viriam a invocar a nulidade do contrato, por simulação”, mas o facto anterior não é esse, sim o declarar, numa escritura pública, a venda do imóvel, passando a propriedade dos autores para a ré.
Cabe agora ver se o Direito proíbe este comportamento contraditório, utilizando-se, para o efeito, aquelas quatro proposições:
- em relação a (1), verifica-se a situação de confiança do Estado em que a ré era a proprietária do imóvel penhorado e não se pode dizer que o Estado tenha violado deveres de cuidado, já que, depois da penhora provisória, promovida pela AT logicamente com base na inscrição matricial do prédio em nome da ré, foi observado o procedimento legal para a conversão do registo provisório em definitivo e o imóvel veio a ser registado em nome da ré com base numa escritura pública de compra e venda fornecida pelo gerente da ré, que o Estado não tinha razões para pôr em dúvida;
- em relação a (2), a justificação para essa confiança, já decorre do que antecede: é a inscrição matricial do prédio em nome da ré, o registo do imóvel em nome da ré e a possibilidade do registo definitivo da penhora, tudo realizado nos termos legais, sem que houvesse razões para, no caso, pôr em dúvida o que se tinha passado;
- em relação a (3), o Estado, por ter confiado que o prédio era da ré, investiu tempo de trabalho nos registos e na parte subsequente do processo executivo pelos seus serviços;
- em relação a (4), os autores, dizendo-o de outro modo, defendem que a confiança não lhes pode ser imputada: é certo que eles participaram na escritura que permitiu a inscrição matricial do prédio em nome da ré e, mais tarde, ao gerente da ré indicar o imóvel como sendo da ré juntando a escritura; mas não estava na lógica dos acordos entre autores e ré que esta indicasse o prédio como sendo seu para efeitos da penhora, o que se demonstra com o facto de nem os autores nem a ré terem promovido, até então, o registo do imóvel a favor da ré e os autores terem exercido a posse do prédio à vista de toda a gente (facto J). Mas, entende-se que o correcto é o contrário (e, portanto, a imputação pode ser feita aos autores): foi a existência daquela escritura (dado objectivo também criado pelos autores) que permitiu a inscrição matricial do prédio em nome da ré, a penhora do mesmo, e depois ao gerente da ré indicar o imóvel como sendo da ré e que o registo da aquisição do prédio fosse feito a favor da ré, e os autores não podiam deixar de saber disso e tinham mesmo predisposto as coisas para esse efeito, embora, naturalmente, sem pensar que a ré se pudesse aproveitar da situação. Ou seja, as coisas estavam predispostas (por autores e ré) de modo a que, se os credores dos autores penhorassem o prédio, a ré pudesse vir dizer (normalmente em embargos de terceiro) que o prédio era dela. E a escritura permitia que a ré fizesse a inscrição matricial e o registo do prédio a seu favor e os autores não podiam deixar de saber disso.
Para além do já considerado no que antecede, diga-se, ainda, quanto a outras objecções dos autores:
Os autores contrapõem que a lei lhes confere a faculdade que estão a exercer (artigos 286 e 242/1 do CC). Mas o abuso de direito pressupõe isso mesmo: reconhece-se que a parte tem a faculdade em causa, mas paralisam-se, neutralizam-se ou destroem-se os efeitos normais da actuação da mesma (parafraseia-se a exposição de Tatiana Guerra de Almeida na anotação XI ao art.º 334 do CC, no Comentário ao CC, Parte Geral, 2014, UCP/FD/UCE, pág. 788).
Os autores dizem que a invocação da nulidade não prejudica a ré nem beneficia os autores, mas a questão, no venire, é se é causado prejuízo a um terceiro confiante, não um prejuízo ou um benefício a uma ou a outra das partes de uma simulação.
Os autores dizem que o Estado não provou que a penhora do lote de terreno seja imprescindível para assegurar a cobrança da dívida fiscal da ré. Mas não dão qualquer razão para que se exija tal requisito para que as soluções do abuso de direito se possam aplicar.
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Apesar disto, a solução correcta do caso não passa pela impossibilidade de os autores arguirem a nulidade por simulação. Seria desproporcionado estar a fazer perder aos autores um imóvel que tem um valor patrimonial de 82.489,05€ para proteger o investimento do Estado que está em causa nos autos: o tempo de trabalho perdido nos registos e na parte subsequente do processo executivo, que ficaria sem efeito. Bastaria impor aos autores e à ré (ou ao gerente da ré) uma indemnização a título da responsabilidade pela confiança que ressarcisse o Estado do valor daquele tempo de trabalho perdido pelos seus serviços.
Parafraseando agora Antunes Varela, CC anotado, vol. I, 3.ª edição, Coimbra Editora, 1982, pág. 298, trata-se de requerer o exercício moderado, equilibrado, lógico e racional do direito, não de fazer com que o titular seja totalmente despojado dele. Pelo que, como diz a Tatiana Guerra de Almeida, obra e local citado, “na maior parte dos casos (…) tal paralisação dos efeitos reconduzir-se-á (e bastar-se-á) no reconhecimento de uma pretensão indemnizatória e respectiva obrigação de indemnizar pelos danos decorrentes da actuação abusiva.”
Neste mesmo sentido, pode-se lembrar o argumento dos autores de que a declaração da nulidade por simulação seria “no interesse dos seus (dos autores) credores, que voltarão a dispor do lote de terreno para garantia e satisfação de eventuais créditos, vencidos e não pagos.” Ou, dito de outro modo, a não permissão do exercício do direito contra o Estado poderá beneficiar este, sem real fundamento substancial (afinal o prédio não é da ré), em detrimento dos credores dos autores (que, esses sim, teriam direito a serem pagos pelo valor do prédio que afinal é dos autores). É certo que os credores dos autores até poderão não existir ou já não existir, mas não deixa de ser verdade que aquele resultado se pode verificar, o que serve para demonstrar que a solução não é correcta. De qualquer modo, isto não seria fundamento suficiente para afastar a solução, pois que não haveria qualquer garantia de que os autores, como já o fizeram uma vez, não arranjassem outra maneira de prejudicar os credores (ou seja, de voltarem a pôr o prédio fora do alcance dos mesmos).
Ainda no mesmo sentido, pode usar-se o argumento dos autores de que a solução da impossibilidade do exercício iria permitir, à ré (e/ou ao gerente da ré), um enriquecimento sem causa, à custa dos autores. De qualquer modo, isto não seria só por si fundamento da rejeição da solução, já que sempre se poderia responder que restaria a solução dos autores responsabilizaram o gerente da ré ou a ré pela prejuízo causado, pedindo-lhe a ele ou a ela a restituição do enriquecimento sem causa (o eventual risco de insolvência de um ou de outra correria por conta deles por terem simulado o negócio).
Por fim, ainda se pode dizer, para afastar as soluções do abuso de direito, que este só deve actuar depois de se apurar que o sistema jurídico não tem uma solução específica para o problema, como é o caso, como se verá de seguida.
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Afastada a excepção do abuso de direito, cabe agora ver se os pedidos dos autores devem ser considerados procedentes.
Em relação ao pedido (a), ele deve ser considerado procedente, tendo a sentença recorrido demonstrado que se verifica a nulidade em causa por simulação absoluta, o que não pode ser negado tendo em conta os factos provados.
Quanto ao pedido (b):
O art.º 243 do CC dispõe o seguinte, sob a epígrafe ‘Inoponibilidade da simulação a terceiros de boa fé’: 1. A nulidade proveniente da simulação não pode ser arguida pelo simulador contra terceiro de boa fé. 2. A boa fé consiste na ignorância da simulação ao tempo em que foram constituídos os respectivos direitos. 3. Considera-se sempre de má fé o terceiro que adquiriu o direito posteriormente ao registo da acção de simulação, quando a este haja lugar.
Decorre destas normas que os autores, vendedores simulados, não podem opor a nulidade ao Estado, dado que quando a AT penhorou o prédio (antes de 08/04/2019 – facto C) não havia quaisquer razões para que ela soubesse da simulação da venda do prédio à ré (esta acção, em que os autores vêm dar conhecimento do acordo simulatório, só foi registada em 06/03/2020 facto D) e o facto de ter sido feita a penhora pressupõe que o prédio estava inscrito na matriz a favor da ré.
Isto tendo só em conta os factos que vinham dados como provados na decisão recorrida e que seriam suficientes para os efeitos do art.º 243 do CC.
A solução não deixa de ser a mesma face aos factos aditados que esclarecem melhor o que se passou:
Desde logo, como já foi dito acima, a penhora foi logicamente feita pela AT com base na inscrição do prédio na matriz a favor da ré (como está comprovado em C1 – os serviços de finanças averiguam a existência de bens através dos artigos matriciais). É certo, depois, que a penhora foi primeiro registada provisoriamente porque a aquisição do prédio estava registado em nome da autora (como decorre do facto C2) e mais tarde, em Maio2019, a autora, na sequência da notificação nos termos do art.º 119 do CRP (facto C2), informou a Conservatória que o imóvel lhe pertencia (facto C3), mas a situação foi ultrapassada pela Conservatória com base na escritura notarial de venda do imóvel pelos autores à ré (facto I), o que levou à inscrição de tal facto na ficha do prédio e subsequente definitividade do registo da penhora, em 23/09/2019 (facto C4) que, evidentemente, quer o Estado, quer a Conservatória, não tinham qualquer razão para pôr em causa: a autora dizia que era proprietária, mas não fazia invocação de qualquer simulação e tinha vendido o prédio por escritura pública e aquele que era o gerente da ré veio dizer que o prédio pertencia à ré e disse-o com o apoio naquela escritura que juntou.
Portanto, estes factos não afastam a conclusão, já tirada antes do aditamento deles, do preenchimento da previsão do art.º 243 do CC, com a consequência da aplicação da sua estatuição: os autores não podem opor a simulação ao terceiro, no caso o Estado (AT), porque este procedeu à penhora de um prédio que, à data (antes de 08/Abril/2019 – facto C), estava inscrito na matriz a favor da ré (facto C1) e tal penhora ocorreu antes do registo da acção da simulação (em 06/Março/2020 – facto D). Mesmo a conversão da penhora provisória em definitiva ocorreu antes deste registo (facto C4).
Tendo o Estado/AT razões para crer que o prédio pertencia à ré (por causa do que consta de C1, inscrição do prédio na matriz em nome da ré – mas a lógica das coisas já implicava que a AT só com base nessa inscrição podia ter penhorado o prédio), eram os autores que tinham que demonstrar que o Estado/AT tinha razões para conhecer a simulação já que esta, naturalmente, é um facto dissimulado que não é do conhecimento de terceiros (aqueles que, como a AT, não participaram na simulação) e que, por isso, se presume que não é do conhecimento deles.
O que implica a improcedência do pedido (b), incluindo o relativo ao registo da aquisição do prédio a favor da ré, pois que é esse registo que permite o registo definitivo da penhora a favor do Estado, sendo, pois, a forma como na prática se garante a inoponibilidade da nulidade do Estado.
No mesmo sentido, vejam-se as anotações de Ana Filipa Morais Antunes, no referido Comentário ao CC, agora na anotação ao art.º 243 do CC, páginas 567 a 572 (e todos os autores e acórdãos que a autora vai citando), a obra de Carlos Ferreira de Almeida, Contratos V, Invalidade, Almedina, 2017, páginas 258 a 260 (para além das páginas 106-107 em que a situação em causa nos autos é considerada típica das simulações fraudulentas), e especialmente o ac. do STJ de 30/04/2002, publicado na CJSTJ2002, tomo II, páginas 40 a 42 (lembrado por Ana Filipa Morais Antunes), precisamente para um caso do Estado como credor exequente de um bem registado a favor do simulado comprador, a quem os simulados vendedores queriam opor uma sentença igual à que seria obtida no caso dos autos, o que não foi admitido pelo STJ (com ampla invocação de doutrina - no sítio do STJ foi feito o seguinte sumário, mais sucinto do que aquele que consta na CJ: I - Terceiros, a quem a simulação é inoponível, são todos aqueles que, não sendo partes no conluio simulatório e ignorando a simulação ao tempo em que foram constituídos os respectivos direitos, tenham interesse em que não actue, quanto a eles, a eficácia da declaração de nulidade do negócio simulado. II - Devem ser considerados terceiros, para os fins do art.º 243 do CC, os credores do adquirente fictício, que estejam de boa fé).
Logicamente, esta inoponibilidade ao Estado, mais precisamente à penhora por ele constituída na execução fiscal, tem o sentido, para não frustrar o fim da penhora na execução fiscal, de permitir que a execução prossiga com a venda do prédio a terceiros, que irão adquirir o prédio numa execução promovida por um terceiro de boa fé e que, por isso, terão que ser tratados como este, sob pena de não ter sentido a prossecução da execução, na base da validade da penhora, pelo que, também a eles, terceiros que adquiram o prédio nessa execução, não lhes pode ser oposta a simulação (é o regime paralelo do art.º 819 do CC). Dizer que a simulação não pode ser oposta ao Estado, exequente na execução fiscal, e depois dizer que os terceiros que adquirissem os bens na execução seriam terceiros de má-fé, seria um contra-senso, pois que tiraria qualquer utilidade à declarada, pela lei (art.º 243 do CC), inoponibilidade da simulação a terceiros de boa fé (o Estado, no caso).
O que, logicamente – pois é a única forma de dar eficácia à inoponibilidade da nulidade ao Estado -, conduz também à improcedência do pedido (c). Pedido que, de qualquer modo, seria improcedente por força da improcedência do pedido (b): se nem o registo da penhora nem o da aquisição da propriedade a favor da ré devem ser cancelados, não se poderia determinar o cancelamento de registos que estão legitimados pela subsistência daqueles.
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De resto, é a inoponibilidade da nulidade a terreiros de boa fé que, objectivamente, justifica o facto de os autores não terem deduzido embargos de terceiro na execução fiscal, apesar de se dizerem proprietários do prédio, nem terem intentado esta acção comum contra o Estado, pois que os autores não podiam deixar de saber que o Estado era um terceiro de boa fé.
Objectivamente, o destino desta acção era o mesmo que os autores da acção discutida no caso do acórdão do STJ de 2002 quiseram fazer (intentarem a seguir, com base na sentença, uma acção contra o Estado a pedir o levantamento da penhora e o cancelamento do registo da mesma), o que, no caso dos autos, não conseguiram devido à actuação do tribunal recorrido, mas mesmo que tivessem conseguido não teria qualquer efeito útil (como o demonstra aquele caso do acórdão do STJ).
Terceiros que não tivessem intervindo nesta acção, não poderiam ser prejudicados com o resultado nela obtido sem que antes lhes fosse dado o direito de contradizer a pretensão dos autores face a eles. O que, por fim, aponta para que, nestes casos, mesmo que os réus compradores simulados não contestem a acção, nunca os pedidos (b) e (c) deveriam ser considerados procedentes, pois que se está (potencialmente) a atingir terceiros sem se lhes dar oportunidade de se defenderem. Em suma: a nulidade proveniente da simulação, obtida numa sentença apenas entre os simuladores, tem os efeitos contra terceiros que a lei substantiva lhe der, mas a serem discutidos, caso a caso, perante estes terceiros.
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Note-se, entretanto, que o facto de se considerar que a solução jurídica do caso pela via do abuso de direito não podia implicar a inoponibilidade da nulidade ao Estado (em termos práticos é nisso que se traduziu a sentença recorrida), não afasta a solução jurídica do caso dada pelo legislador que pode optar, como optou (art.º 243 do CC) para o tipo de casos em causa, por tal inoponibilidade a terceiros de boa fé, sem dependência de outros requisitos, nem consideração pelo eventual “excesso” da solução, tendo em vista outros interesses (a preferência abstracta pelos terceiros de boa-fé em relação a simuladores necessariamente de má fé).
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Pelo exposto, julga-se o recurso parcialmente procedente, revogando-se a sentença recorrida ao julgar a nulidade por simulação inoponível aos Estado por via do abuso de direito; em substituição da sentença, julga-se procedente o pedido (a) da acção, declarando-se a nulidade, por simulação absoluta, do contrato de compra e venda celebrado entre autores e ré, pela escritura pública a que aludem os presentes autos, ao mesmo tempo que se julgam improcedentes os restantes pedidos (b) e (c).
Custas do recurso e da acção, na vertente de custas de parte, pelos autores em 2/3 e pelo Estado em 1/3.
Esta decisão, se e quando transitar, deve ser registada.

Lisboa, 22/02/2024
Pedro Martins
Carlos Castelo Branco
António Moreira