Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
8834/20.3T8SNT.L1-2
Relator: LAURINDA GEMAS
Descritores: SUSPENSÃO DE DILIGÊNCIAS EXECUTIVAS
SITUAÇÃO DE PANDEMIA
COVID-19
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 02/09/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: NEGAR PROVIMENTO
Sumário: I – Tendo sido proferido acórdão, transitado em julgado, que determinou a suspensão das diligências executivas em ação executiva para entrega de coisa imóvel arrendada, ao abrigo do art.º 6.º-A, n.º 6, da Lei n.º 1-A/2020, de 19-03 (que aprovou medidas excecionais e temporárias de resposta à situação epidemiológica provocada pelo coronavírus SARS-CoV-2 e da doença COVID-19), deverá tal suspensão manter-se enquanto não existir uma alteração do quadro legal no sentido da cessação de tal medida.
II – Apesar do fim do estado de alerta em território continental nacional, a partir das 23h59 de 30 de setembro de 2022, ainda não se pode considerar verificada tal alteração legislativa, uma vez que continua a estar prevista nessa lei, em artigo correspondente (o art.º 6.º-E, n.º 7, artigo aditado pela Lei n.º 13-B/2021, de 05-04) essa mesma medida, enquanto durar a “situação excecional de prevenção, contenção, mitigação e tratamento da infeção epidemiológica por SARS-CoV-2 e da doença COVID-19”, não se podendo considerar que aquele preceito sido revogado ou caducado, perspetivando-se, tão-só, que a sua revogação poderá vir a ocorrer a breve trecho, se vier a ser aprovada pela Assembleia da República a Proposta de Lei n.º 45/XV/1.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, na 2.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa, os Juízes Desembargadores abaixo identificados

I - RELATÓRIO

MF, Exequente na ação executiva para entrega de coisa imóvel arrendada que intentou contra CM, interpôs o presente recurso de apelação do despacho que indeferiu o requerimento de cessação da suspensão da instância.
A presente execução teve início em 02-07-2020, com a apresentação de Requerimento executivo (requerimento de execução de decisão judicial condenatória, a qual foi então junta aos autos) em que a Exequente alegou que:
- Por acordo celebrado em 17 de junho de 2019 entre Exequente e Executada, nos autos …/… do Juízo Central Cível de Sintra - Juiz 4, foi estabelecido que a ora Executada permaneceria a habitar a fração autónoma designada pela letra "D" correspondente ao 1.º andar direito do prédio urbano sito na Rua …, n.º …, freguesia de Algueirão - Mem Martins até ao dia 31 de março de 2020 sem qualquer contrapartida monetária;
- O referido acordo foi homologado por douta sentença de 17 de junho de 2019 já transitada em julgado;
- Atento o estado de emergência determinado pela Lei nº 1 - A/2020 de 19 de março, os prazos judiciais estiveram suspensos no período compreendido entre 14 de março e 3 de junho de 2020;
- A Executada não procedeu, até à presente data, à entrega da fração que habita, sendo que o prazo para o cumprimento de tal obrigação há muito que se encontra ultrapassado.
Em 01-09-2020, a Executada veio requerer a suspensão da entrega peticionada, alegando que a fração arrendada constitui desde há 14 anos a sua casa de habitação e que, apesar de ter diligenciado para o efeito ainda não logrou obter uma solução habitacional alternativa, invocando ser aplicável a Lei n.º 1-A/2020.
A Exequente opôs-se, alegando, em síntese, que a Executada não diligenciou, como se impunha, por encontrar por uma solução habitacional alternativa e que a Exequente necessita de rentabilizar com urgência a sua fração, dada a circunstância de se encontrar internada na Casa de Repouso dos Inválidos do Comércio desde março de 2017, pagando, em média, um valor mensal entre os 389€ e os 424€, e auferir apenas a pensão anual de reforma de 5.501,78€.
Em 23-10-2020, foi proferido despacho que indeferiu tal requerimento (e determinou que o AE comunicasse à câmara municipal e às entidades assistenciais competentes, com a antecedência mínima de 60 dias relativamente ao ato de entrega, e ainda que se comunicasse ao Instituto da Segurança Social, IP-Delegação de Sintra e, se necessário, fosse acionada a Linha de Emergência Social).
Desse despacho foi interposto recurso, ao qual foi concedido provimento por acórdão da Relação de Lisboa de 25-02-2021, que determinou que ficassem suspensas as diligências com vista à entrega da fração, com a seguinte fundamentação (transcreve-se a parte útil, sublinhado nosso):
“À data de introdução do processo em juízo estava em vigor a 6ª versão da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março na redação dada pela Lei n.º 16/2020, de 29 de maio. Dispunha-se no art.º 6.ºA
n.º 6 - Ficam suspensos no decurso do período de vigência do regime excecional e transitório:
(…) b) Os atos a realizar em sede de processo executivo ou de insolvência relacionados com a concretização de diligências de entrega judicial da casa de morada de família;
c) As ações de despejo, os procedimentos especiais de despejo e os processos para entrega de coisa imóvel arrendada, quando o arrendatário, por força da decisão judicial final a proferir, possa ser colocado em situação de fragilidade por falta de habitação própria ou por outra razão social imperiosa;
(…) n.º 7 - Nos casos em que os atos a realizar em sede de processo executivo ou de insolvência referentes a vendas e entregas judiciais de imóveis sejam suscetíveis de causar prejuízo à subsistência do executado ou do declarado insolvente, este pode requerer a suspensão da sua prática, desde que essa suspensão não cause prejuízo grave à subsistência do exequente ou um prejuízo irreparável, devendo o tribunal decidir o incidente no prazo de 10 dias, ouvidas as partes.
Não concordamos com a decisão quando entende que não estamos no âmbito de contrato de arrendamento mas sim perante a execução de sentença homologatória de acordo havido entre as partes e que portanto a situação haverá que subsumir-se ao ponto 7 do art.º 6-A da Lei 1-A/2020.
As situações atinentes à casa de morada de família que é a situação dos autos, encontram-se prevenidas na al. b) do ponto 6.
Determina-se a suspensão no decurso do período de vigência do regime excecional e transitório os “atos a realizar em sede de processo executivo ou de insolvência relacionados com a concretização de diligências de entrega judicial da casa de morada de família”. Não se mostra dúvida que o caso dos autos se enquadra nesta alínea. Trata-se de processo executivo para entrega de casa de morada de família.
O ponto 7 destina-se a prevenir outro tipo de entrega de imóveis que não os relativos à habitação própria, ou seja, que não sejam subsumíveis às alíneas b) e c) do ponto 6.
Assim sendo, não cabe então analisar as necessidades de cada uma das partes como se faz na decisão recorrida.
E não colhe o argumento que o regime extraordinário e transitório de protecção dos arrendatários só esteve em vigor até 30 de Setembro de 2020. Este regime tem vindo a ser sucessivamente renovado; com a redacção dada pela L. 58-A de 30/9 o prazo foi fixado em 31/12/2020 e com a redacção dada pela L. 75/A/2020 de 30/12 o prazo foi fixado em 30/6/2021, prazo que se manteve com a lei actualmente vigente – L. 4-B/2021 de 1/2.
Decorre do exposto que as diligências executivas para entrega da fracção em causa têm que se considerar suspensas no decurso do período de vigência do regime excecional e transitório ao abrigo do art.º 6-A, n.º 6 al. B)”.
Em 01-07-2021, a Exequente veio requerer ao Agente de Execução o prosseguimento dos autos, invocando a cessação da vigência do art.º 8.º da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março, na redação dada pela Lei n.º 75-A/2020, de 30-12.
A Executada opôs-se, mediante requerimento apresentado em 02-07-2021, defendendo que as diligências tendentes à entrega da fração se deviam manter suspensas, ante o determinado no acórdão da Relação de Lisboa.
Em 14-01-2022, foi proferido despacho em que, citando o aludido acórdão, se considerou que “estando em vigor o regime excepcional e transitório” nada havia “a ordenar”.
Em 11-03-2022, a Exequente veio dirigir novo requerimento ao Agente de Execução, para prosseguimento dos autos e cumprimento do despacho de 23-10-2020, invocando a cessão do período de vigência do regime excecional e transitório a que alude o art.º 6.º-E da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março, na redação dada pela Lei n.º 13-B/2021, de 05-04, e a sua substituição por declaração da situação de alerta conforme Resolução do Conselho de Ministros n.º 25-A/2022, de 18-02.
A Executada pronunciou-se a 22-03-2022, no sentido do indeferimento do requerido.
Em 15-06-2022, a Exequente solicitou ao Tribunal pronúncia sobre este requerimento.
Em 22-09-2022, a Exequente veio requerer, de novo, o prosseguimento dos autos e o cumprimento do despacho de 23-10-2020.
A Executada respondeu, em 30-09-2022, continuando a pugnar pelo indeferimento do requerido.
Em 11-10-2022, foi proferido o despacho (recorrido) com o seguinte teor (sublinhado nosso):
“Conforme é consabido, a situação epidemiológica provocada pelo coronavírus conduziu à implementação de medidas excecionais e temporárias com vista a salvaguardar a saúde pública, o funcionamento da economia e o acesso a bens essenciais por todos os cidadãos.
No âmbito do processo executivo, o legislador vem sendo coerente desde a aprovação da Lei n.º 1-A/2020, de 19/3, e subsequentes alterações quanto à protecção do devedor, especialmente nas situações em que esteja em causa a sua habitação própria e permanente e subsistência.
Assim, ficam suspensos os actos a realizar em sede de processo executivo com a concretização de diligências de entrega judicial da casa de morada de família - nº7, al. b) 6ºE- lei 13-B/2021.
Considerando que a supra referida lei, ainda, não foi alterada e está em vigor, e atenta a decisão do tribunal da Relação de Lisboa, proferida nos presentes autos que revogou a decisão de entrega do imóvel, não pode este tribunal ordenar a entrega coerciva, nos moldes requeridos.
Notifique e DN”.
Inconformada com esta decisão, veio a Exequente interpor o presente recurso de apelação, formulando na sua alegação as seguintes conclusões:
A - Vem o presente recurso interposto do despacho proferido em 11 de Outubro findo que indeferiu o pedido de entrega do imóvel objeto dos presentes autos por entender que ainda se encontra em vigor a al. b) do nº 7 do art.º 6 – E da Lei nº 1 – A/2020 de 19 de Março na redação dada pela Lei nº 13-B/2021 de 5 de Abril.
B - Não existem dúvidas de que o citado preceito ainda se encontra em vigor.
C - Entende a Apelante que o referido preceito se encontra tacitamente revogado não podendo ser invocado para impedir a entrega coerciva do imóvel que há muito foi determinada pelo Tribunal.
D - O regime processual excecional e transitório a que alude o referido preceito aplicava-se à situação excecional de prevenção, contenção, mitigação e tratamento da infeção causada por SARs – Cov - 2 e da doença Covid 19 – cfr. nº 1 do art.º 6º - E da referida Lei
E - Já não existem razões que justifiquem a sua permanência em vigor porque há muito que se encontram definitivamente eliminadas as regras que vigoraram durante o estado de emergência que teve o seu início em 18/03/2020 e que cessou no dia 30/04/2021.
F - Decorridos mais de 18 meses sobre a cessação do estado de emergência e sem qualquer restrição legal em vigor, com exceção para as situações de internamento e frequência de estabelecimentos hospitalares ou clínicas médicas, inexiste fundamento válido para que se continue a manter a proibição de entrega coerciva de imóveis a que alude a al. b) do nº 7 do citado art.º 6º - E da Lei nº 13 – B/2021 de 5 de Abril.
G - Devendo tal preceito ser considerado tacitamente revogado por força do disposto no nº 2 do art.º 7º do C.C.
H - Encontra-se demonstrado nos autos que o único rendimento auferido pela Apelante é manifestamente insuficiente para fazer face a todos os seus compromissos e que necessita de recorrer ao apoio financeira de familiares para conseguir solver os mesmos e para fazer face a despesas extraordinárias de saúde e outra.
I - A Apelante precisa, com manifesta urgência, de rentabilizar a fração de que é proprietária mediante a sua colocação no mercado de arrendamento o que lhe permitirá obter um rendimento extra que é essencial à liquidação de todas as suas responsabilidades.
Termina a Apelante pugnando pela revogação do despacho recorrido e pelo prosseguimento da execução com as medidas necessárias para a entrega coerciva do imóvel dos autos.
Foi apresentada alegação de resposta pela Apelada, em que se pronunciou pela inadmissibilidade legal do recurso e pela improcedência do mesmo, concluindo nos seguintes termos:
1 – O despacho em crise é um despacho de mero expediente, pois limita-se a determinar o prosseguimento dos autos de acordo com a tramitação prevista na Lei, ainda que excecional e transitória, e ao abrigo de um acórdão , transitado em julgado, anteriormente proferido que determinou que as diligências executivas para entrega da fracção em causa têm de se considerara suspensas no decurso de período de vigência do regime excecional e transitório ao abrigo do art.º 6º- A , nº 6 al. b) da Lei 1 – A /2020, ou seja, à manutenção de tal situação processual.
2 – Nos termos do art.º 630º nº 1 CPC, tal despacho é irrecorrível, o que deve ser determinado pelo Venerando Tribunal da Relação de Lisboa nos termos do art.º 641º nº 5 e art.º 652º nº 1 al b) e art.º 655º nº 1 CPC, obstando ao conhecimento do mesmo.
3 – Ainda que assim não se considere, sempre o mesmo despacho não comporta recurso de apelação ou, pelo menos, imediato, nos termos do art.º 853º nº 1 e nº 2 CPC a contrario, conquanto, não se subsumindo em nenhuma das espécies de decisão ali previstas, e conquanto se trata de um despacho interlocutório , aplicar-se-á quando muito, o regime previsto no art.º 644º nº 3 e nº 4 , por remissão do art.º 852º CPC.
4 – Que, igualmente, deve ser determinado pelo Venerando Tribunal da Relação de Lisboa nos termos do art.º 641º nº 5 e art.º 652º nº 1 al b) e art.º 655º nº 1 CPC, obstando ao conhecimento do mesmo.
5 – Quando assim não se entenda, sempre o recurso não merecerá provimento, dado inexistir, na ordem jurídica, diploma, acto jurídico, que revogue expressamente o disposto no art.º 6- E nº 7 al. b) da Lei 1-A /2020.
6 – Ou que ocorra a necessária incompatibilidade de conteúdos entre actos jurídicos, por, evidente, inexistência de qualquer nova Lei, novo acto jurídico produzido pelo mesmo autor, contraditória com a Lei existente, essencial para a apreciação da revogação tácita daquela.
7 – O despacho em crise não viola o disposto no art.º 7º nº 2 do CC e, ao invés, acolhe o regime jurídico aplicável ao caso dos autos, mantendo a aplicação do regime excepcional e transitório ínsito naquele art.º 6- E nº 7 al. b) da Lei 1-A /2020, já anteriormente determinado por decisão superior transitada em julgado.
8 – Pelo que não deve ser dado provimento ao o recurso interposto, devendo ser confirmada a decisão em crise.
O recurso foi admitido na 1.ª instância, o que se fundamentou, além do mais, com referência aos artigos 644.º, n.º 1, e 853.º, n.º 3, do CPC.
Notificada a Apelante, nos termos conjugados dos artigos 655.º, n.º 2, e 654.º, n.º 2, ambos do CPC, nada veio dizer.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
***
II - FUNDAMENTAÇÃO
Como é consabido, as conclusões da alegação do recorrente delimitam o objeto do recurso, ressalvadas as questões que sejam do conhecimento oficioso do tribunal, bem como as questões suscitadas em ampliação do âmbito do recurso a requerimento do recorrido (artigos 608.º, n.º 2, parte final, ex vi 663.º, n.º 2, 635.º, n.º 4, 636.º e 639.º, n.º 1, do CPC).
Além da questão prévia da admissibilidade do recurso, a única questão a decidir é a de saber se não devem continuar suspensas as diligências executivas.

Da admissibilidade do recurso

A Apelada defende, em síntese, que o despacho recorrido é irrecorrível, por se tratar de um despacho de mero expediente, nos termos do art.º 630.º, n.º 1, do CPC, limitando-se a determinar o prosseguimento dos autos de acordo com a tramitação prevista na lei e ao abrigo de um acórdão transitado em julgado. E que, a ser recorrível, não poderá ser impugnado autonomamente, nos termos do art.º 853.º n.ºs 1 e 2 do CPC a contrario, tratando-se de um despacho interlocutório ao qual se aplicará o regime previsto no art.º 644.º n.ºs 3 e 4, por remissão do art.º 852.º do CPC.
Vejamos.
É bem certo que, conforme previsto no art.º 630.º, n.º 1, do CPC, não admitem recurso os despachos de mero expediente. E que, nos termos do art.º 152.º, n.º 4, do CPC, “(O)s despachos de mero expediente destinam-se a prover ao andamento regular do processo, sem interferir no conflito de interesses entre as partes”. Como explica Abrantes Geraldes, in “Recursos no Novo Código de Processo Civil”, 5.ª edição, Almedina, pág. 78, “Neles está envolvida a atuação procedimental que encontra correspondência na tramitação legalmente prescrita, daí se afastando, por exemplo, os despachos que não encontrem cobertura em tal tramitação ou os que de algum modo possam interferir no resultado da lide”. Acrescenta este autor, na nota de rodapé 118 e 119, que “Segundo Rodrigues Bastos, Notas ao CPC, vol. III, p. 272, incluem-se os despachos que se limitem a ordenar a prática de atos prescritos pela lei para a tramitação dos processos em que são proferidos. São, no dizer de Alberto dos Reis, citado por Ribeiro Mendes (Recursos em Processo Civil, p. 156), os despachos banais que não põem em causa a situação subjetiva das partes ou que se limitam a fixar datas para a prática de certos atos processuais.” Exemplificando, refere, na nota de rodapé 119, que admitem recurso os despachos que adiam o julgamento fora do condicionalismo legal ou que infringem normas legais, ainda que na aparência se destinem a regular os termos normais do processo.
Ora, assim nos parece suceder com o despacho recorrido, já que importa precisamente sindicar no recurso se foram infringidas as normas legais que, após a prolação do acórdão recorrido, regulam aspetos específicos da tramitação das ações executivas, em virtude da pandemia da doença COVID-19.
De referir ainda que o alcance do caso julgado formal do aludido acórdão nunca poderia obstar à admissibilidade do recurso, podendo, ao invés, a (eventual) ofensa do caso julgado constituir fundamento de recurso - cf. artigos 620.º e 629.º, n.º 2, al. a), ambos do CPC.
Quanto a saber se a decisão é autonomamente recorrível ou apenas admite impugnação diferida, parece-nos evidente que a resposta deverá ser afirmativa, seja por via do disposto no art.º 853.º, n.º 2, al. b), do CPC, seja por via das alíneas c) ou h) do n.º 2 do art.º 644.º ex vi do art.º 853.º, n.º 2, al. a), do CPC. Com efeito, o acórdão antes proferido limitou-se a determinar que as diligências executivas para entrega da fracção em causa têm que se considerar suspensas no decurso do período de vigência do regime excecional e transitório ao abrigo do art.º 6-A, n.º 6 al. B)”, indicando ainda que o prazo de vigência do “regime extraordinário e transitório de protecção dos arrendatários” “foi fixado em 30/6/2021, prazo que se manteve com a lei actualmente vigente – L. 4-B/2021 de 1/2”. O que significa que poderá ser apreciada a questão de saber se já não se verifica um tal status quo fáctico e normativo para que a instância executiva ou as diligências executórias quedassem suspensas, sendo certo que, ante a tramitação da execução para entrega de coisa imóvel arrendada, à qual são aplicáveis as disposições atinentes à execução para entrega de coisa certa (cf. cf. artigos 862.º e ss. do CPC), seria absolutamente inútil uma impugnação diferida do despacho em apreço (nem se descortinando em que momento haveria de ter lugar, ante a suspensão determinada).
 Assim, passa-se a conhecer do mérito do recurso.

Da suspensão das diligências executivas

É sabido, nem a Apelante defende o contrário, que a Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março, veio aprovar medidas excecionais e temporárias de resposta à situação epidemiológica provocada pelo coronavírus SARS-CoV-2, agente causador da doença COVID-19.
No despacho recorrido entendeu-se que o enquadramento jurídico que foi considerado no aludido acórdão, ao fazer aplicação daquele diploma legal, não sofreu alteração com relevo no caso dos autos.
Cumpre, pois, verificar se existiu alguma alteração superveniente de regime que consinta, sem ofensa do caso julgado formal [cf. artigos 620.º e 629.º, n.º 2, al. a), ambos do CPC], o prosseguimento dos autos.
Vejamos.
O art.º 6.º-A citado no aludido acórdão veio a ser revogado pelo art.º 3.º da Lei n.º 4-B/2021, de 01-02, que (no seu art.º 2.º) o “substituiu”, aditando o art.º 6.º-B (com a epígrafe “Prazos e diligências” - cf., no que ora importa, o seu n.º 11). Este último artigo (6.º-B) foi revogado pelo art.º 6.º da Lei n.º 13-B/2021, de 05-04, a qual veio aditar (cf. art.º 3.º) o citado art.º 6.º-E.
Assim, grosso modo, o regime do primitivo art.º 7.º da Lei n.º 1-A/2020 foi sendo substituído por preceitos que lhe correspondem (com alterações mínimas, irrelevantes para o caso), designadamente o art.º 6.º-A (citado no aludido acórdão), depois o art.º 6.º-B e finalmente o art.º 6.º-E, aditado pela Lei n.º 13-B/2021, de 05-04, que, sob a epígrafe “Regime processual excecional e transitório”, dispõe, no que ora importa, que:
“1 - No decurso da situação excecional de prevenção, contenção, mitigação e tratamento da infeção epidemiológica por SARS-CoV-2 e da doença COVID-19, as diligências a realizar no âmbito dos processos e procedimentos que corram termos nos tribunais judiciais, tribunais administrativos e fiscais, Tribunal Constitucional, Tribunal de Contas e demais órgãos jurisdicionais, tribunais arbitrais, Ministério Público, julgados de paz, entidades de resolução alternativa de litígios e órgãos de execução fiscal regem-se pelo regime excecional e transitório previsto no presente artigo.
(…) 4 - Nas demais diligências (isto é, que não sejam audiências de discussão e julgamento) que requeiram a presença física das partes, dos seus mandatários ou de outros intervenientes processuais, a prática de quaisquer outros atos processuais e procedimentais realiza-se:
a) Preferencialmente através de meios de comunicação à distância adequados, nomeadamente teleconferência, videochamada ou outro equivalente; ou
b) Quando tal se revelar necessário, presencialmente.
(…) 7 - Ficam suspensos no decurso do período de vigência do regime excecional e transitório previsto no presente artigo:
(…) b) Os atos a realizar em sede de processo executivo ou de insolvência relacionados com a concretização de diligências de entrega judicial da casa de morada de família;
c) Os atos de execução da entrega do local arrendado, no âmbito das ações de despejo, dos procedimentos especiais de despejo e dos processos para entrega de coisa imóvel arrendada, quando o arrendatário, por força da decisão judicial final a proferir, possa ser colocado em situação de fragilidade por falta de habitação própria ou por outra razão social imperiosa;
(…) 8 - Nos casos em que os atos a realizar em sede de processo executivo ou de insolvência referentes a vendas e entregas judiciais de imóveis sejam suscetíveis de causar prejuízo à subsistência do executado ou do declarado insolvente, este pode requerer a suspensão da sua prática, desde que essa suspensão não cause prejuízo grave à subsistência do exequente ou dos credores do insolvente, ou um prejuízo irreparável, devendo o tribunal decidir o incidente no prazo de 10 dias, ouvida a parte contrária.
(…)”
De referir que a aplicação deste artigo (e dos que o antecederam) tem suscitado controvérsia, em particular no que concerne à conjugação das citadas alíneas b) e c). Enquanto no citado acórdão se considerou que o n.º 7 (que corresponde ao atual n.º 8) se destina a prevenir outro tipo de entrega de imóveis que não os relativos à habitação própria, ou seja, que não sejam subsumíveis às alíneas b) e c) do n.º 6 (atual n.º 7), outra corrente jurisprudencial, ilustrada pelo acórdão da Relação de Lisboa de 11-01-2022, no proc. n.º 16182/20.2T8SNT-A.L1-7, pelo acórdão da Relação de Guimarães de 10-03-2022, no proc. n.º 2822/19.0T8VCT-A.G1, e pelo acórdão da Relação do Porto de 25-10-2022, no proc. n.º 18281/21.0T8PRT.P1, disponíveis em www.dgsi.pt, entendeu que na execução para entrega de coisa imóvel arrendada, no âmbito das ações de despejo, para que o arrendatário possa beneficiar da “suspensão do despejo” prevista na lei [mormente na alínea c) do n.º 7 do art.º 6.º-E da Lei 1-A/2020], mesmo quando se trate da casa de morada de família, tem o ónus de a requerer, bem como de alegar e provar factos de onde resulte que, a concretizar-se a entrega do arrendado, ele ficará numa “situação de fragilidade por falta de habitação própria” ou que há uma “outra razão social imperiosa” que também justifica que, momentaneamente, não se realize tal entrega, o que será apreciado pelo tribunal, não sendo automática uma tal suspensão. Veja-se, pela sua clareza, a seguinte passagem deste acórdão da Relação do Porto:
“III – A suspensão prevista na alínea c) do n.º 7 aplica-se aos actos de execução de entrega de imóveis arrendados, no âmbito das ações de despejo, dos procedimentos especiais de despejo e dos processos para entrega de coisa imóvel arrendada, independentemente de se tratar da casa de morada de família ou não.
IV – A suspensão prevista na al. b) do n.º 7 e a suspensão prevista no n.º 8 dizem respeito a imóveis pertencentes ao executado ou ao insolvente, apreendidos nos respectivos processos de execução ou de insolvência, tendo em vista a sua venda e a subsequente satisfação dos créditos do exequente ou dos credores do insolvente; mas enquanto a al. b) se aplica apenas quando está em questão a casa de morada do executado ou do insolvente e abrange tão somente os actos relacionados com a entrega judicial dessa casa, o n.º 8 aplica-se a quaisquer imóveis e abrange também os actos relacionados com a venda.”
Neste sentido, destacamos ainda, a título exemplificativo, ambos disponíveis em www.dgsi.pt:
- o acórdão da Relação de Lisboa de 17-06-2021, no proc. n.º 1055/20.7YLPRT.L1-6, em cujo sumário se afirma precisamente que a suspensão dos atos de execução da entrega do local arrendado, no âmbito das ações de despejo, dos procedimentos especiais de despejo e dos processos para entrega de coisa imóvel arrendada “não opera ope legis, mas apenas nos casos em que, e na sequência de pertinente alegação dos arrendatários, seja produzida prova que confirme que os actos de execução da entrega do local arrendado sejam susceptíveis de colocar os arrendatários/despejados em situação de fragilidade por falta de habitação própria ou por outra razão social imperiosa”;
- e o acórdão da Relação de Lisboa de 13-10-2022, no proc. n.º 17696/21.2T8LSB.L1-6, conforme se alcança da seguinte passagem do respetivo sumário:
“1.–A Lei n.º 13-B/2021, de 5 de Abril, alterando a Lei n.º 1-A/2020, de 19 de Março, vem determinar a Cessação do regime de suspensão de prazos processuais e procedimentais adoptado no âmbito da pandemia da doença COVID-19;
2.–Por outra banda, e ao revogar os artigos 6.º-B e 6.º-C da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de Março, na sua redacção “actual”, vem-lhe também aditar o Artigo 6.º-E, e cujo nº 7 determina a suspensão - no decurso do período de vigência do regime excepcional e transitório previsto no presente artigo - dos actos de execução da entrega do local arrendado, no âmbito das acções de despejo, dos procedimentos especiais de despejo e dos processos para entrega de coisa imóvel arrendada;
3.–A suspensão indicada em 2., porém, não opera ope legis, mas apenas nos casos em que, e na sequência de pertinente alegação dos arrendatários, seja produzida prova que confirme que os actos de execução da entrega do local arrendado sejam susceptíveis de colocar os arrendatários/despejados em situação de fragilidade por falta de habitação própria ou por outra razão social imperiosa.”
Ora, estamos em crer que este último entendimento é o correto, pois, não obstante a aparente abrangência da expressão atos a realizar em sede de processo executivo” constante da citada alínea b) do n.º 7 (que opera ope legis, isto é, automaticamente, por força da lei), a mesma não inclui a entrega a efetuar no âmbito de execução para entrega de coisa imóvel arrendada, já que contemplada especialmente na alínea c) do n.º 7 (suspensão essa que, tal como a determinada no n.º 8, operam ope judicis, ou seja, depois de confirmada por decisão judicial a verificação dos respetivos requisitos legais).
Talvez se explique esta diferenciação de regime pela circunstância de, mesmo quando o local arrendado seja casa de morada de família, tal não significar que o arrendatário não possa dispor de alternativa de habitação própria. Já quando se trate de execução para pagamento de quantia certa, a circunstância de estar a ser concretizada uma diligência de entrega judicial da casa de morada de família indicia, em regra, uma situação de fragilidade económica do executado-devedor, sobretudo no atual quadro legislativo, pois não terão bastado os diversos mecanismos legais que visam conferir alguma proteção à casa de morada da família, designadamente os previstos no n.º 4 do art.º 751.º do CPC.
Assim, é de concluir que a situação em apreço não se subsume na previsão da citada alínea b) do n.º 7 do art.º 6.º-E, mas antes na da alínea c). O que, todavia, acaba por ser indiferente para a solução a dar ao caso, já que, quer se considere a alínea b), quer se considere a alínea c), não se nos afigura, desde já o adiantamos, que nenhuma destas normas tenha sido, expressa ou mesmo tacitamente, revogada.
Sobre a cessação da vigência da lei, preceitua o art.º 7.º do CC:
“1. Quando se não destine a ter vigência temporária, a lei só deixa de vigorar se for revogada por outra lei.
2. A revogação pode resultar de declaração expressa, da incompatibilidade entre as novas disposições e as regras precedentes ou da circunstância de a nova lei regular toda a matéria da lei anterior.
3. A lei geral não revoga a lei especial, excepto se outra for a intenção inequívoca do legislador.
4. A revogação da lei revogatória não importa o renascimento da lei que esta revogara.”
Ora, não parece que o citado n.º 7 do art.º 6.º-E da Lei n.º 1-A/2020, de 19-03 possa ser qualificado como lei temporária (isto é, limitada a um determinado período de vigência, por estar na mesma prevista a sua vigência durante um período temporal fixado ou enquanto durar um certo acontecimento aí indicado) – neste sentido, veja-se o referido acórdão da Relação de Lisboa de 13-10-2022, proferido no proc. n.º 17696/21.2T8LSB.L1-6.
Ademais, apesar de o legislador ter já vindo reconhecer - no Decreto-Lei n.º 66-A/2022, de 30 de setembro (que entrou em vigor no dia seguinte ao da sua publicação) - a cessação de vigência de diversos artigos de decretos-leis publicados, no âmbito da pandemia da doença COVID-19, tal ainda não sucedeu com a referida Lei n.º 1-A/2020. Isto mesmo foi, aliás, reconhecido pelo acima citado acórdão da Relação de Lisboa de 13-10-2022, referindo-se no ponto 4 do respetivo sumário que «O art.º Artigo 6.º-E, nº 7, da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março, não foi pelo Decreto-Lei 66-A/2022,de 30 de Setembro, visado/atingido, mantendo-se em vigor, o que deverá suceder enquanto permanecer a “situação excecional de prevenção, contenção, mitigação e tratamento da infeção epidemiológica por SARS-CoV-2 e da doença COVID-19”.»
De referir também que, pese embora mencionado no acórdão que foi proferido nos presentes autos, não nos parece que releve para o caso o disposto no art.º 8.º da Lei n.º 1-A/2020, de 19-03, com a epígrafe “Regime extraordinário e transitório de proteção dos arrendatários”, já que a situação em apreço não se reconduz à previsão de nenhuma das alíneas do seu n.º 1, em que se prevê a suspensão até 30-06-2021 da produção de efeitos das denúncias de contratos de arrendamento habitacional e não habitacional efetuadas pelo senhorio; da caducidade dos contratos de arrendamento habitacionais e não habitacionais, salvo se o arrendatário não se opuser à cessação; da produção de efeitos da revogação, da oposição à renovação de contratos de arrendamento habitacional e não habitacional efetuadas pelo senhorio; do prazo indicado no artigo 1053.º do Código Civil, se o término desse prazo ocorrer durante o período de tempo em que vigorarem as referidas medidas; e da execução de hipoteca sobre imóvel que constitua habitação própria e permanente do executado. Na verdade, além de tal pressupor o regular pagamento da renda (ou que o arrendatário beneficiasse do regime excecional para as situações de mora no pagamento da renda devida), o certo é que, no caso dos autos, nunca se discutiu se e quando é que a cessação do contrato de arrendamento teve lugar, sendo, de todo o modo, indiscutível que já produziu os seus efeitos, nada impedindo que possa vir a ser discutida, na sede própria, se a permanência da Executada na fração para além do dia 31 de março de 2020 a fez incorrer na obrigação de pagamento de quantia monetária.
A questão que se coloca é, assim, a de saber se, à data da prolação do despacho recorrido já não era aplicável o regime legal em causa, o que pressupõe a demonstração, posto que não se está perante facto notório [cf. artigos 5.º, n.º 2, al. c), e 412.º, n.º 1, do CPC] da cessação da “situação excecional de prevenção, contenção, mitigação e tratamento da infeção epidemiológica por SARS-CoV-2 e da doença COVID-19”.
No referido acórdão da Relação de Lisboa de 13-10-2022 entendeu-se que «nada permite concluir que a “situação excecional de prevenção, contenção, mitigação e tratamento da infeção epidemiológica por SARS-CoV-2 e da doença COVID-19”, deixou já de existir [antes tudo obriga a considerar que continuamos ainda hoje a viver em estado de prevenção, contenção, mitigação e tratamento da infeção epidemiológica, ainda que, é verdade, já não em período de estado de emergência - a qual se iniciou em Portugal ao abrigo do Decreto do Presidente da República n.º 14-A/2020, de 18 de março, tendo sido objecto de diversas renovações, v.g. operadas pelo Decreto n.º 17-A/2020, de 2 de abril, pelo Decreto n.º 20-A/2020, de 17 de abril e pelo Decreto do Presidente da República n.º 41-A/2021, de 14 de abril, mas já cessado -, de calamidade - estado que foi decretado pelo Governo através da Resolução do Conselho de Ministros n.º 33-A/2020, de 30 de abril, aprovada ao abrigo do artigo 19.º da Lei de Bases da Proteção Civil, aprovada pela Lei n.º 27/2006, de 3 de julho, prorrogada por diversas vezes também, mas já cessado - , ou sequer de alerta - estado v.g. decretado e regulamentado através de Resolução do Conselho de Ministros n.º 73-A/2022, de 30 de Agosto e para vigorar até às 23:59 h do dia 30 de Setembro de 2022], continua portanto a justificar-se o atrás decidido no tocante ao prosseguimento dos autos e dos seus termos, sem prejuízo todavia de, em face do requerido pela apelada, decidir o tribunal a quo que se mostra alegada e provada factualidade que preenche a previsão da parte final da alínea c), do nº 7, do art.º 6º-E, da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de Março , e aditado pela Lei n.º 13-B/2021, de 5 de abril.»
Tendemos a concordar com esta posição.
Efetivamente, importa ter presente que o n.º 2 do art.º 7.º da referida Lei n.º 1-A/2020, de 19-03 (cuja epígrafe era “Prazos e diligências”) dispunha na sua redação primitiva (não tendo sido alterado pela Lei n.º 4-A/2020, de 06-04), que “(O) regime previsto no presente artigo cessa em data a definir por decreto-lei, no qual se declara o termo da situação excecional.”. Este artigo foi expressamente revogado pelo art.º 8.º da Lei n.º 16/2020, de 29-05, tendo essa mesma lei, no seu art.º 2.º, logo aditado à Lei n.º 1-A/2020, de 19-03, o art.º 6.º-A acima citado, com a epígrafe “Regime processual transitório e excecional”, o qual já não aludia à definição de data para cessação a definir por decreto-lei, no qual se declara o termo da situação excecional. Deixou então de estar previsto que o Governo poderia, mediante decreto-lei, vir declarar o termo da situação excecional prevista naquela.
Por outro lado, embora tecnicamente não se confundam tais situações, não há dúvida que o legislador, ao aludir à “situação excecional de prevenção, contenção, mitigação e tratamento da infeção epidemiológica por SARS-CoV-2 e da doença COVID-19” estava a considerar a situação epidemiológica vivida em Portugal na sequência da pandemia da doença COVID-19 que motivou as sucessivas declarações do Estado de Emergência e das Situações de Calamidade e Alerta.
Como é sabido, a declaração do estado de emergência é da competência do Presidente da República [cf. artigos 19.º, 134.º, al. d), e 138.º da CRP], o que já não sucede com a declaração das situações de calamidade, contingência e alerta, matérias reguladas na Lei n.º 27/2006, de 03-07 (Lei de Bases da Proteção Civil).
O Estado de Emergência vigorou em todo o território nacional entre 19 de março e 2 de maio de 2020 (cf. Decretos do Presidente da República n.º 14-A/2020, de 18-03, n.º 17-A/2020, de 02-04, e 20-A/2020, de 17-04) e de 9 de novembro de 2020 a 30 de abril de 2021 (cf. Decretos do Presidente da República n.º 51-U/2020, de 06-11, n.º 59-A/2020, de 20-11, n.º 61-A/2020, de 04-12, º 66-A/2020, de 17-12, n.º 6-A/2021, de 06-01, n.º 6-B/2021, de 13-01, n.º 9-A/2021, de 28-01, n.º 11-A/2021, de 11-02, n.º 21-A/2021, de 25-02, nº 25-A/2021, de 11-03, n.º 31-A/2021, de 25-03, n.º 41-A/2021, de 14-04).
Foram igualmente declaradas as situações de calamidade, contingência e alerta, em moldes que seria fastidioso enumerar, com âmbito territorial diversificado (municipal, nacional, continental nacional), pelo que destacamos a Resolução do Conselho de Ministros n.º 33-C/2020, de 30-04 - que estabeleceu “uma estratégia de levantamento de medidas de confinamento no âmbito do combate à pandemia da doença COVID 19” -, a Resolução do Conselho de Ministros n.º 51-A/2020, de 26-06 - que declarou “a situação de calamidade, contingência e alerta, no âmbito da pandemia da doença COVID-19” tendo em consideração o território, nos termos da Lei de Bases da Proteção Civil, aprovada pela Lei n.º 27/2006, de 3 de julho, na sua redação atual - e a Resolução do Conselho de Ministros n.º 51-A/2022, de 30-06 - que veio prorrogar a declaração da Situação de Alerta, no âmbito da pandemia da doença COVID-19 até 31 de julho de 2022, em todo o território nacional continental.
De referir que esta última Resolução veio a ser considerada expressamente revogada, a partir de 25-10-2022, conforme Resolução do Conselho de Ministros n.º 96/2022, de 24-10-2022, que determina a cessação de vigência de resoluções do Conselho de Ministros publicadas no âmbito da pandemia da doença COVID-19, tendo o respetivo sumário o seguinte teor (sublinhado nosso):
“Desde o início da pandemia da doença COVID-19, o Governo tem vindo a adotar uma série de medidas de combate à pandemia, seja numa perspetiva sanitária, seja nas vertentes de apoio social e económico às famílias e às empresas, com o intuito de mitigar os respetivos efeitos adversos.
Face ao desenvolvimento da situação epidemiológica num sentido positivo, observado nos últimos meses, assistiu-se à redução da necessidade de aprovação de novas medidas e de renovação das já aprovadas.
Concomitantemente, importa ter presente que a legislação relativa à pandemia da doença COVID-19 consubstanciou-se num número significativo de resoluções do Conselho de Ministros com medidas aprovadas com o desidrato de vigorar durante um período justificado de tempo.
Neste contexto, através da presente resolução do Conselho de Ministros, procede-se à clarificação das resoluções do Conselho de Ministros que ainda se encontram em vigor, bem como à eliminação das medidas que atualmente já não se revelam necessárias, através da determinação expressa de cessação de vigência de resoluções do Conselho de Ministros já caducas, anacrónicas ou ultrapassadas pelo evoluir da pandemia.
Desta forma, ganha-se em clareza e certeza jurídica, permitindo aos cidadãos saber - sem qualquer margem para dúvidas - quais as normas relativas à pandemia da doença COVID-19 que se mantêm aplicáveis.”
Em comunicado oficial, disponível em https://www.portugal.gov.pt, o Governo veio, aliás, informar o seguinte (sublinhado nosso):
“Fim do estado de alerta
Atenta a atual situação da pandemia pela Covid-19, o Governo decidiu não prorrogar a situação de alerta no território continental, bem como a cessação de vigência de diversos decretos-leis e resoluções aprovados no âmbito da pandemia.
A não prorrogação do estado de alerta visa adequar a legislação ao estado epidemiológico atual, equiparando, em termos legais e procedimentos daí decorrentes, a infeção Covid-19 às outras doenças.
Ao longo do tempo, para orientar e proteger a população portuguesa perante uma situação de excecional imprevisibilidade e gravidade, foi sendo criado um conjunto de diplomas legais e normas que acompanharam os estados de exceção que o país foi vivendo, nomeadamente o estado de alerta.
Agora, são eliminados do ordenamento jurídico os atos legislativos cuja vigência se mostrou desnecessária ou ultrapassada, mantendo-se em vigor disposições dirigidas à proteção das pessoas mais vulneráveis à Covid-19, bem como salvaguardando-se os efeitos futuros de factos ocorridos durante a vigência das respetivas disposições.”
Mas, como é evidente, a Resolução falha no seu propósito de permitir aos cidadãos saber, sem qualquer margem para dúvidas, quais as normas relativas à pandemia da doença COVID-19 que se mantêm aplicáveis, sendo certo que não poderia ter o alcance, até pelo princípio da hierarquia das leis, de “eliminar do ordenamento jurídico” leis da Assembleia da República, que nem sequer foram contempladas pelo referido Decreto-Lei n.º 66-A/2022, de 30 de setembro.
A Resolução veio, é certo, evidenciar que o território continental de Portugal já não se encontra em situação de alerta no âmbito da pandemia da doença COVID-19.
No entanto, não podemos olvidar que, além de se manterem em vigor no território nacional continental algumas medidas de prevenção, contenção e mitigação como a obrigatoriedade do uso da máscara nas unidades de saúde e nas unidades residenciais para pessoas idosas, o território nacional também abrange as Regiões Autónomas dos Açores e da Madeira, tendo aí sido aprovadas ao longo do tempo um vasto leque de medidas no âmbito da pandemia de COVID-19, destacando-se a Resolução do Conselho do Governo (Regional dos Açores) n.º 173/2022 de 18-10-2022, que “declara que todas as ilhas do arquipélago dos Açores se encontram em situação de alerta - COVID 19”, sendo-lhes aplicáveis as medidas de cumprimento obrigatório previstas no anexo à referida resolução.
Nesta senda, apenas nos parece possível afirmar que, com o fim do estado de alerta em território continental nacional, a partir das 23h59 de 30 de setembro, foi pelo Governo dado um sinal claro de que já seria oportuno que a Assembleia República legislasse sobre a cessação de vigência de leis publicadas no âmbito da pandemia, incluindo naturalmente as citadas normas legais previstas para vigoraram no decurso da situação excecional de prevenção, contenção, mitigação e tratamento da infeção epidemiológica por SARS-CoV-2 e da doença COVID-19.
Aliás, que assim é resulta inequívoco da circunstância de ter sido pelo Governo apresentada na Assembleia da República, em 11-11-2022, a Proposta de Lei n.º 45/XV, aprovada em Conselho de Ministros de 29 de setembro de 2022, em que, além do mais, está previsto o seguinte:
Artigo 1.º
Objeto
A presente lei considera revogadas diversas leis aprovadas no âmbito da pandemia da doença COVID-19, determinando expressamente que as mesmas não se encontram em vigor, em razão de caducidade, revogação tácita anterior ou revogação pela presente lei.
Artigo 2.º
Norma revogatória
Nos termos do artigo anterior consideram-se revogadas:
a) A Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março, na sua redação atual, que estabelece medidas excecionais e temporárias de resposta à situação epidemiológica provocada pelo coronavírus SARS-CoV-2 e da doença COVID-19, com exceção do artigo 5.º;
(…)
Artigo 3.º
Efeitos
1 - Quando incida sobre normas cuja vigência já tenha cessado, a determinação expressa de não vigência de atos legislativos efetuada pela presente lei não altera o momento ou os efeitos daquela cessação de vigência.
2 - A revogação operada pelo artigo anterior não prejudica a produção de efeitos no futuro de factos ocorridos durante o período de vigência dos respetivos atos legislativos.”
O processo legislativo está em curso, conforme pode ser verificado em www.parlamento.pt, merecendo-nos destaque o parecer do conselho Superior da Magistratura que aí se encontra publicado, de que citamos, pelo seu interesse, a seguinte passagem (acrescentando o sublinhado):
4.1| Pela sua relevância concreta para a presente situação, importa recordar, quanto à cessação da vigência da lei, o que estatui o artigo 7.º do Código Civil.
Assim, nos termos do n.º 1, quando não se destine a ter vigência temporária, a lei só deixa de vigorar se for revogada por outra lei, podendo a revogação resultar, conforme prescrito no n.º 2, de declaração expressa, da incompatibilidade entre as novas disposições e as regras procedentes ou da circunstância de a nova lei regular toda a matéria da lei anterior.
Como se vê, o artigo 7.º apenas prevê a caducidade e a revogação como formas de cessação da vigência da lei.
A caducidade ocorre por superveniência de um facto (previsto pela própria lei que se destina a ter vigência temporária) ou pelo desaparecimento, em termos definitivos, da realidade que a lei se destinava regular. Já a revogação pressupõe a entrada em vigor de uma nova lei e pode ser expressa ou tácita, total (ab-rogação) ou parcial (derrogação). A revogação é expressa quando consta de declaração feita na lei posterior e tácita quando resulta da incompatibilidade entre as disposições novas e as antigas ou quando a nova lei regula toda a matéria da lei anterior.
4.2| No preâmbulo da presente proposta de lei, são feitas referências a diversas realidades, nem todas elas coincidentes, nem todas elas formas de cessação da vigência da lei, atento o antes exposto.
E, no artigo 1.º de tal documento, que define o seu objecto, pode resultar de difícil apreensão a real mens legis. Com efeito, de tal artigo decorre que “a presente lei considera revogadas diversas leis aprovadas no âmbito da pandemia da doença COVID-19, determinando expressamente que as mesmas não se encontram em vigor, em razão da caducidade, revogação tácita anterior ou revogação pela presente lei” (sublinhados nossos). Recorde-se que a revogação e a caducidade apenas têm em comum o facto de serem ambas formas de cessação da vigência de diplomas legais, sendo, pois, de questionável acerto técnico a opção consagrada de dizer que se considera um diploma legal revogado em razão da sua caducidade, como é sugerido no artigo 1.º.
Importaria, pois, ter aferido se, e na afirmativa, quais dos vários diplomas legais enunciados no artigo 2.º já se encontram revogados expressa ou tacitamente, total ou parcialmente, quais aqueles que, atenta a sua natureza temporária e face ao evoluir da situação pandémica, já terão cessado a sua vigência por caducidade e quais os outros que, não sendo subsumíveis a nenhuma das referidas situações concretas, ainda mantêm vigência, carecendo, por isso, de uma declaração expressa de revogação como forma de cessação da produção dos seus efeitos na esfera jurídica. Com efeito, apenas uma declaração de revogação será adequada a produzir tal cessação de efeitos e tal declaração, salvo o devido respeito, não é confundível com a expressão “consideram-se revogadas”, lida esta, em termos sistemáticos, como estando inserida num diploma onde o artigo 1.º tem o conteúdo já enunciado e com o preâmbulo também já referenciado. Veja-se que uma “declaração expressa de não vigência” – cf. artigo 3.º da presente proposta de lei - não é, à face do disposto no artigo 7.º, do Código Civil e novamente ressalvado o devido respeito, forma de cessação da vigência da lei.
Tanto assim a presente proposta de lei o reconhece que, no artigo 3.º, n.º 1, salvaguarda – relativamente aos diplomas legais que já tenham cessado efectivamente a sua vigência pelas razões acima referenciadas – que os efeitos daquela cessação de vigência fiquem salvaguardados.
Pese embora, pelas razões que se enunciaram, a formulação do artigo 2.º possa suscitar as dúvidas interpretativas descritas, a verdade é que o n.º 2 do artigo 3.º da presente proposta de lei assume explicitamente que, através do disposto no artigo 2.º, o que se pretende é revogar tais diplomas (ainda que os mesmos já estivessem revogados expressa ou tacitamente ou tivessem caducado). De outro modo, não teria sido utilizada a expressão: “a revogação operada pelo artigo anterior”.
Torna-se, pois, claro que ainda não foi revogado, nem se pode considerar que tenha caducado, o disposto no art.º 6.º-E, n.º 7, da Lei n.º 1-A/2020, de 19-03, que, corresponde ao anterior art.º 6.º-A, n.º 6, perspetivando-se, tão-só, que a sua revogação poderá vir a ocorrer a breve trecho, se vier a ser aprovada pela Assembleia da República a Proposta de Lei n.º 45/XV/1.
Logo, não merece censura o despacho recorrido, improcedendo as conclusões da alegação de recurso, ao qual não pode deixar de ser negado provimento.

Vencida a Exequente-Apelante, é responsável pelo pagamento das custas processuais (artigos 527.º e 529.º, ambos do CPC). Porém, como beneficia do apoio judiciário, na modalidade de dispensa de taxa de justiça e demais encargos com o processo, não será condenada a efetuar o respetivo pagamento (cf. artigos 1.º e 16.º da Lei n.º 34/2004, de 29 de julho, e artigos 20.º, 26.º e 29.º do RCP).
***
III - DECISÃO
Pelo exposto, decide-se negar provimento ao recurso, mantendo-se, em consequência, o despacho recorrido.
Não se condena a Apelante no pagamento das custas do recurso ante o apoio judiciário de que beneficia.

D.N.
Lisboa, 09-02-2023
Laurinda Gemas
António Moreira
Carlos Castelo Branco