Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
7449/2003-4
Relator: RAMALHO PINTO
Descritores: ACIDENTE DE TRABALHO
NULIDADE DE SENTENÇA
CONDENAÇÃO ULTRA PETITUM
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 01/21/2004
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Sumário: I- O artº 74º do C.P.T. permite, e impõe, ao julgador, no domínio das prestações por acidente de trabalho, a condenação em quantidade superior ou em objecto diverso do pedido.
II- Não há, todavia, tal condenação além do pedido, nos termos da referida disposição, se o juiz, tendo sido pedida, em acção especial emergente de acidente de trabalho, a condenação, em termos subsidiários, da seguradora, acaba por condenar esta a título de responsável principal, por considerar não ter havido a invocada violação de regras de segurança.
III- Não se verifica essa violação das regras de segurança se, estabelecendo o DL nº 82/99, de 16/3, a obrigatoriedade de existência de meios de protecção na máquina onde ocorre o acidente, este se dá antes de esgotada a dilação, prevista no mesmo diploma, para adaptação da mesma máquina a esses requisitos de segurança.
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação de Lisboa:

(A) veio, patrocinada pelo MºPº, instaurar, no Tribunal do Trabalho de Caldas da Rainha, contra IRMAL- INDÚSTRIAS REUNIDAS DE MOBILIÁRIO DE AÇO, LDª, e AXA PORTUGAL -COMPANHIA DE SEGUROS, SA, a presente acção especial de acidente de trabalho.
Pediu a condenação, em termos principais, da Ré- Irmal (que se passa a designar por Ré- patronal)e, em termos subsidiários, da Ré- seguradora a pagarem-lhe uma pensão anual e vitalícia no montante de € 6.896,73, devida desde 8/11/2002, as quantias de € 4.010,40, de subsídio de elevada incapacidade, de € 3.411,98, de indemnizações por incapacidades temporárias, e de € 25,00, de despesas de transportes, uma prestação suplementar para assistência de terceira pessoa, no montante de € 341,23, tudo acrescido dos respectivos juros de mora à taxa anual de 7%, e ainda no fornecimento das “ajudas técnicas” que descreve.
Alegou, para tanto, em síntese e de relevante, que no dia 23 de Abril de 2001, quando trabalhava sob as ordens, direcção e fiscalização da Ré- patronal, foi vítima de um acidente de trabalho, que consistiu em ter sido apanhada pelo varão metálico de uma máquina com que trabalhava, máquina essa que não dispunha de protectores ou dispositivos que impedissem o acidente; que do mesmo lhe resultaram lesões determinantes de incapacidades temporárias e de incapacidade permanente para o trabalho habitual, com uma I.P.P. residual de 75%, conforme exame efectuado pelo perito do Tribunal; que auferia, à data do acidente, a remuneração anual total de € 6896,73; que a R.- patronal havia transferido para a Ré- seguradora a sua responsabilidade infortunística com base no salário anual de € 6722,16.
Regularmente citadas, ambas as Rés contestaram.
A Ré- seguradora salientando que ao acidente se deveu a falta de condições de segurança da máquina onde a Autora trabalhava, sendo que esta última comungará da culpa na produção do acidente. Não invoca, contudo, a descaracterização.
Conclui pela improcedência da acção, ou caso assim se não entenda, pela sua responsabilização em termos meramente subsidiários.
Por seu turno, a Ré- patronal considera que a responsabilidade está, por virtude do contrato de seguro em vigor, a cargo da Ré- seguradora, sendo que não houve a violação de qualquer regra de segurança.
Conclui pela improcedência da acção no que a ela diz respeito.
Condensada, instruída e julgada a causa, foi proferida sentença cuja parte dispositiva transcrevemos:
Em conformidade com o exposto, julgo a acção parcialmente procedente e, em consequência:
a) condeno as RR. a pagar à A. uma pensão anual vitalícia no montante de quatro mil quatrocentos e oitenta e dois euros e oitenta e seis cêntimos ( € 4.482,86 ), desde 8/11/02, anualmente actualizável;
b) condeno as RR. a pagar à A. a quantia de quatro mil e dez euros e quarenta cêntimos ( € 4.010,40 );
c) condeno as RR. a pagar à A. a quantia mensal de trezentos e quarenta e um euros e vinte e três cêntimos ( € 341,23 ) desde 8/11/02, actualizável à medida em que o for o salário mínimo nacional para o serviço doméstico e acrescida de duas prestações mensais de igual valor a título de subsídio de férias e de Natal;
d) condeno as RR. a pagar à A. a quantia de vinte e cinco euros ( € 25,00 );
e) condeno as RR. a pagar à A. cadeira de rodas em liga leve, almofadas anti-escara Roho, luvas para condução de cadeira de rodas, cinta de contenção abdominal, triângulo de abdução, meias elásticas, inspirómetro, cadeira de banho, tábua de transferências, afastador com espelho, mesa standframe e cama articulada, os medicamentos Bisacodil, Lactulose, Amitriptilina, Tizanidina, Diazepan 5mg, Urispás, Oxibutinina, Teofilina e Uro-Vaxom e consultas com periodicidade bianual no Centro de Medicina de Reabilitação de Alcoitão;
f) condeno as RR. a pagar à A. juros de mora, á taxa anual de 7%, conforme sobredito.
Condeno a 1ª R. a pagar á A. a quantia de três mil quatrocentos e onze euros e noventa e oito cêntimos ( € 3.411,98 ), acrescida de juros de mora, à taxa anual de 7%, conforme sobredito.
Absolvo a 1ª R. do mais que vem pedido.
Custas por ambas as RR., na proporção de 2,53% para a 1ª 97,47% para a 2ª.
Notifique, registe e cumpra o disposto no Art.º 76º do CPT.
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Inconformada com o decidido, veio a Ré- seguradora interpor recurso, que foi admitido, e onde formulou as seguintes conclusões:
1- Havendo demandado em conjunto a ora Apelante e a sua entidade patronal a Apelada pediu a condenação subsidiária daquela- V. P.i.
2- Na sua contestação, a Apelante sustentou, no pior dos cenários, a sua condenação subsidiária alegando para tanto que o acidente resultou da inobservância das regras de segurança por banda da entidade patronal, 1ª R.
3- Efectuado o julgamento resultou provado que devido á inexistência de protecções que impedissem o acesso á zona de acção do varão da máquina ou de dispositivos que interrompessem o movimento daquele varão antes do acesso da operadora á zona de perigo- V. ponto 5 da sentença.
4 -A Apelada, quando procurava retirar do chão um ferro com a mão, foi a sua camisola apanhada pelo varão que a arrastou, comprimindo-a, violentamente, contra o mesmo - V. ponto 4 da sentença
5- A entidade patronal, 1ª R. não providenciou pela colocação de protecções necessárias por forma a evitar o contacto do varão com a Apelada - V. ponto 6 da sentença.
6- A operação que a Apelada então efectuava no momento do acidente acarretava sérios riscos de contacto mecânico, corte, agarramento, enrolamento, arrastamento, e ejecção de objectos - V. ponto 7 da sentença.
7- Em síntese: ficaram provados a inexistência das necessárias protecções cuja realização constitui obrigação da entidade patronal, 1ª R, e a exposição manifesta ao risco quanto é certo que grande era a perigosidade da operação então desenvolvida pela Apelada no momento do acidente.
8- A sentença, que reconheceu de modo expresso os factos que vêm de ser destacados, remata na fundamentação de Direito " não restam, pois, dúvidas, que o acidente é resultado da inobservância de normas de segurança”.
9- Esperar-se-ia, por conseguinte, a condenação da 1ª R a título principal e a da Apelante a título subsidiário - V. art.º 37º, nº 2 e 18°, nº 1, ambos da Lei nº 100/97, de 13 de Setembro.
10- Ao invés, condenou a Apelante no mesmo plano que a 1ª R.
11- Sob o argumento de que ao tempo do acidente ainda não se havia esgotado o prazo legalmente estabelecido para a adaptação dos equipamentos de trabalho em matéria de segurança, conclui, piedosamente, não poder, por esse facto, responsabilizar em primeira mão a 1ª R. pelas consequências do acidente, antes respondendo ambas as RR., mas pelo risco e em virtude do contrato de seguro que celebraram e que não abarcava todo o salário da A.
12- É de rejeitar um tal entendimento. Em primeiro lugar porque não encontra um mínimo de correspondência na lei. De facto, o legislador ao determinar a data até a qual a adaptação do equipamento poderia ser feita não exonerou de responsabilidade a título de inobservância das normas de segurança as entidades sobre as quais impendia aquela obrigação relativamente aos acidentes ocorridos antes daquele termo.
13- Em segundo lugar, o que releva é que á data do acidente já se achava em vigor legislação estabelecendo mecanismos específicos em matéria de segurança muito embora a dita legislação concedesse um prazo para a sua efectivação. Significa, portanto, que as entidades obrigadas em função da avaliação do risco faziam a adaptação dos seus equipamentos. Fosse no 1°, 2°, 3° ou qualquer outro, dia, semana, quinzena ou mês, o que não poderiam era fazê-lo depois da data indicada como termo.
14- O legislador confiou no critério de cada um para eleger uma oportunidade em vista a proceder á adaptação dos seus equipamentos. A escolha dessa oportunidade passa necessariamente pelo maior ou menor escrúpulo em matéria de medidas de segurança.
15- No caso dos autos a 1ª R não só não trouxe em sua defesa a circunstância de que o prazo para proceder à adaptação do equipamento ainda não expirara ao tempo do acidente nem alegou que se propunha fazê-la.
16- Tão candidamente alegou apenas que" a máquina que esteve na origem do acidente, labora nas instalações da Ré Irmal há cerca de treze anos, sem que alguma entidade tenha imposto ou sugerido, a instalação de qualquer dispositivo de protecção de forma a impedir acidentes. A Ré Irmal desconhecia, sem obrigação de conhecer, tal necessidade - V. artigos 5° e 6° da Contestação da Ré Irmal.
17- Significa, portanto, que de todo ala R. desconhecia a transposição para o nosso ordenamento jurídico da directiva europeia que a tanto a obrigava em matéria de segurança. Logo, estrondosamente, cai erguendo nuvens de poeira o argumento de que o prazo para a adaptação do equipamento não conhecera ainda o seu termo á data do acidente pois que a lrmal desconhecia até pelo menos 20/02/03 ( data da apresentação da contestação) a obrigação que a lei lhe impunha.
18- E se desconhecia a obrigação, conforme confessou, lógico é concluir que não adaptaria nunca o equipamento não fosse a ocorrência do acidente pelo que de nada vale tamanho fervor em torno de argumento que nem sequer é de sua lavra. A este propósito vale recordar a irrelevância da ignorantia juris - V. art.º 6º do Cód. Civil.
19- Fazendo mera alusão do art. 74° do Cód. de Processo do Trabalho e bastando-se com o facto de estar em presença de direitos indisponíveis lestamente decretou a condenação da Apelante além do pedido. Omitindo o necessário dever de fundamentar a decisão quanto é certo que aqui se impunha por razões acrescidas a sua observância, o Tribunal recorrido fez violação da lei - V. art.º 668, nº 1, b), do Cód. de Processo Civil.
20- É certo que o art.º 74° do Cód. de Processo do Trabalho consente a condenação extra vel ultra petitum. Todavia, não exonera o julgador do dever de fundamentação, e do seu texto decorre claramente o contrário, ou seja, a observância do dever de fundamentar a decisão.
21- Por outro lado, a condenação além do pedido apenas é lícita se resultar da aplicação á matéria provada ou de factos que o julgador possa socorrer-se á luz do disposto no art.º 5140 do Cód. de Processo Civil, ou ainda de preceitos inderrogáveis de leis ou instrumentos de regulamentação colectiva do trabalho.
22- Ante a matéria provada não se vislumbra como possa ocorrer a condenação da Apelante além do pedido pelo que neste particular o Tribunal a quo fez, salvo o devido respeito, incorrecta interpretação da lei já que nada o justifica.
23- A condenação da Apelante a título principal configura condenação em objecto diverso do pedido já que a Apelada impetrou a sua condenação a título subsidiário pelo que se verifica que a decisão modificou a qualidade do pedido, ou seja, o objecto da condenação é qualitativamente diferente, na sua essência, do objecto pedido -V. art.º 668° n.o 1, e), do Cód. de Processo Civil.
24- Condenando a Apelante no mesmo plano que a 1ª R a sentença acaba por beneficiar, injustificadamente, esta em detrimento da Apelada por isso que o montante da pensão não contempla o agravamento decorrente do incumprimento das normas de segurança.
25- Pelo facto de a decisão se mostrar em oposição aos fundamentos e maxime que o acidente é resultado da inobservância de normas de segurança enferma ela de nulidade - V. art.º 668° nº l, do Cód. de Processo Civil.
26- Estabelece a lei que resultando o acidente da violação das regras de segurança responde a entidade patronal em 1ª linha sendo a seguradora apenas responsável a titulo subsidiário- V art.º 37º nº 2, e 18,° nº l, da Lei nº 100/97, de 13 de Setembro.
27- Havendo ficado demonstrado que o acidente resultou da inobservância de normas de segurança, forçoso é condenar a 1ª R a título principal e a Apelante apenas a título subsidiário, pelo que
28- A sentença recorrida fez violação do disposto nos artigos 668°, nº l, b), c), e), e 661° do Cód. de Processo Civil, 74° do Cód. de Processo do Trabalho, e 37°, nº 2 e 18° , nº l, da Lei nº 100/97, de 13 de Setembro.
A Autora, nas suas contra-alegações, concluiu pela manutenção da sentença impugnada.
Foram corridos os vistos legais.
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Na 1ª instância considerou-se provada a seguinte factualidade, que assim se considera fixada:
1 - A A. foi admitida ao serviço de IRMAL, LDA., para trabalhar sob a sua autoridade, direcção e fiscalização, exercendo a actividade de soldadora por pontos.
2 - Auferia, ultimamente, € 428,47 * 14 + 2,99 * 22 * 11 + 15,87 * 11.
3 - No dia 23/04/01, pelas 17h45m, a A. encontrava-se ao serviço da 2ª R., nas suas instalações sitas na Zona Industrial de Caldas da Rainha.
4 - Quando a A. procurava retirar, com a mão, um ferro, que se encontrava no chão junto ao varão metálico em rotação, de uma máquina de fazer roscas, foi apanhada pela camisola por esse varão, que a arrastou, acabando por a comprimir com muita violência contra o mesmo.
5 - Tal aconteceu em face da inexistência de protectores que impedissem o acesso à zona de acção daquele varão ou de dispositivos que interrompessem o movimento de tal varão antes do acesso da operadora à zona de perigo.
6 - A 2ª R. não providenciou pela colocação das protecções necessárias para evitar o contacto do varão com a operadora da máquina.
7 - A operação que a A. efectuava no momento do acidente acarretava sérios riscos de contacto mecânico, corte, agarramento, enrolamento, arrastamento e ejecção de objectos.
8 - Em consequência da compressão sofrida a A. ficou com fractura-luxação de D8-D9, com paraplegia completa e hemotorax à direita.
9 - A A. apresenta paraplegia com alteração dos esfíncteres.
10 - As lesões determinaram-lhe ITA entre 23/04/01 e 7/11/02, altura em que ocorreu a alta.
11 - A A. está, desde então, afectada de incapacidade permanente absoluta para o trabalho habitual com incapacidade permanente parcial de 0,75 para as actividades residuais.
12 - A A. carece de assistência de terceira pessoa e de cadeira de rodas em liga leve, almofadas anti-escara Roho, luvas para condução de cadeira de rodas, cinta de contenção abdominal, triângulo de abdução, meias elásticas, inspirómetro, cadeira de banho, tábua de transferências, afastador com espelho, mesa standframe e cama articulada.
13 - A A. carece dos medicamentos Bisacodil, Lactulose, Amitriptilina, Tizanidina, Diazepan 5mg, Urispás, Oxibutinina, Teofilina e Uro-Vaxom.
14 - A A. carece de consultas com periodicidade bianual no Centro de Medicina de Reabilitação de Alcoitão.
15 - A 2ª R. tinha a responsabilidade emergente de acidente de trabalho transferida para a 1ª, por contrato titulado pela apólice n.º 307768, que cobria o salário mensal de € 428,47 * 14 + 2,99 * 22 * 11.
16 - A A. despendeu € 25,00 em transportes obrigatórios a Tribunal.
17 - A A. nasceu em 19/04/63.
18 - A máquina que esteve na origem do acidente labora nas instalações da R. há cerca de 13 anos, sem que alguma entidade tenha imposto ou sugerido a instalação de qualquer dispositivo de protecção de forma a impedir acidentes.
19 - A máquina só trabalha com o pedal accionado.
20 – O IDICT, que em certa altura, anterior ao acidente, impôs protecções a diversas máquinas de corte e prensa, nada impôs relativamente à máquina do acidente.
21 - A 1ª R. nunca fiscalizou as condições de laboração das máquinas ou impôs condições de segurança.
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Cumpre apreciar e decidir.
Sabe-se que é pelas conclusões das alegações que se delimita o âmbito da impugnação - artºs 684º, nº 3, e 690º, nºs 1 e 3, ambos do C.P.C.
Quer isto dizer que as questões postas à apreciação deste Tribunal da Relação se limitam às nulidades invocadas e à questão da entidade responsável pelas consequências do acidente.
A recorrente defende que por a Sr.ª Juíza, ao usar da faculdade do art.º 74º do C.P.T, ter condenado além do pedido, cometeu a nulidade prevista na al. b) do nº 1 do art.º 668º do C.P.C., por não ter fundamentado essa condenação, e, para além disso, tendo sido pedida a condenação da apelante a título subsidiário e a condenação o ter sido a titulo principal, ocorreu uma modificação qualitativa do pedido, incorrendo, assim, a sentença, nas nulidades das alíneas c) e e) do nº 1 do mesmo art.º 668º
No entanto, esta argumentação cai pela base se atentarmos que não houve qualquer condenação extra vel ultra petitum, nos termos do art.º 74º do C.P.T., como mais adiante demonstraremos.
Sem embargo dessa realidade, o que é certo é que a nulidade a que se refere a alínea b) do nº 1 do art. 668 do CPC só existe quando houver uma omissão total dos fundamentos de facto ou de direito, um falta absoluta de fundamentos, e não quando a justificação seja apenas deficiente, visto o tribunal não estar adstrito à obrigação de apreciar todos os argumentos das partes.
No caso concreto, o que se passou foi que a Autora estruturou a sua pretensão com base na responsabilidade da Ré- Patronal na produção do acidente, por violação de regras de segurança. Na sentença, considerou-se que, embora tivesse havido inobservância das regras de segurança por parte de tal Ré, não tinha ainda decorrido o período legal máximo para adaptação da máquina onde ocorreu o acidente.
Assim sendo, e caso existisse a tal condenação além do pedido, ela estava, embora sinteticamente, fundamentada.
Também por isso não se vislumbra onde é que esses fundamentos estão em oposição com a decisão, como pretende a recorrente, pelo que não há que falar da nulidade da al. c) do nº 1 do art.º 668º do C.P.C.
Passando ao último fundamento de nulidade invocada- o da al. e)- temos que, como já avançámos, não houve condenação em quantidade ou objecto diverso do pedido.
A sentença não pode condenar em quantia superior nem em objecto diverso do que se pedir, não ser que a lei expressamente o autorize – art.º 661º, nº 1, do Cod. de Proc. Civil.
E um dos casos em que autoriza é o do art.º 74º do C.P.T., que dispõe:
O juiz deve condenar em quantidade superior ao pedido ou em objecto diverso dele quando isso resulte da aplicação à matéria provada, ou aos factos de que possa servir-se, nos termos do art.º 514º do Código de Processo Civil, de preceitos inderrogáveis de leis ou instrumentos de regulamentação colectiva de trabalho.
Tal artigo corresponde ao art.º 69º do Cod. de Proc. de Trabalho, em anotação ao qual refere Leite Ferreira, no seu Código de Processo do Trabalho Anotado, ed. de 1989, pag. 294, que a limitação dos poderes de condenação contida no citado art.º 661º, nº 1, é a expressão, no campo do direito processual civil, do princípio da autonomia da vontade que caracteriza os direitos subjectivos.
Se, de facto, neste domínio assiste às partes a faculdade de dispor da sua esfera jurídica, compreende-se que, no campo processual, possam circunscrever a actividade do julgador ao conhecimento da pretensão jurídica substantiva tal como é expressa no pedido formulado. Já as normas que visam a protecção do trabalhador e a harmonia social dos factores de produção são de interesse e ordem pública. Ao lado do interesse individual de determinado trabalhador na satisfação efectiva do seu direito, há ainda e também o interesse mais vasto, de natureza social, em que os direitos dos trabalhadores em geral obtenham de facto, uma realização integral. Tratam-se de normas imperativas e indisponíveis.
E um campo em que, por excelência, funciona essa imperatividade e essa indisponibilidade é o da reparação por acidentes de trabalho.
Têm a doutrina e a jurisprudência feito uma distinção básica entre os direitos de existência necessária, mas que não são de exercício necessário, como é o caso do direito ao salário após a cessação do contrato, e os direitos cuja existência e exercício são necessários, como é o caso do direito a indemnização por acidente de trabalho e do direito ao salário na vigência do contrato, considerando que a condenação "extra vel ultra petitum" só se justifica neste segundo tipo de direitos que têm subjacentes interesses de ordem pública, cabendo ao juiz o suprimento dos direitos de exercício necessário imperfeitamente exercidos pelo seu titular (ou seu representante) - vide os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 13/5/98 (in Ac. Doutrinais 444º, p. 1612), e de 10/2/99 (in Ac. Doutrinais 452º, p. 453) e Castro Mendes (in Pedido e Causa de Pedir no Processo do Trabalho, Curso de Direito Processual do Trabalho, Suplemento da Revista da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, pags. 132-133).
Nestes casos, a actividade do julgador não deve confinar-se ao pedido formulado pelo autor no seu aspecto quantitativo e qualitativo, pois tal equivaleria a frustrar o carácter público e a finalidade social daquelas leis pela aceitação tácita e implícita da sua renunciabilidade. Com o dever que impõe ao juiz de definir o direito material fora, ou para além, dos limites constantes do pedido formulado, o legislador pretendeu reduzir ao mínimo aquele risco - vide Leite Ferreira, ob. cit., pags. 293 e ss..
Atenta essa indisponibilidade do direitos dos sinistrados e beneficiários, compreende-se e impõe-se a consagração, em termos processuais, de regras que visem combater que, por razões de ordem formal, se não alcance a completa satisfação das prestações previstas na lei para a reparação infortunística.
Uma dessas regras é precisamente a do art.º 74º do C.P.T. Mas há mais: vejam-se, por exemplo, o art.º 114º, de onde resulta a nítida preocupação de conformidade dos acordos, judiciais ou extrajudiciais, com as normas legais, sujeitando-os à apreciação do juiz, do art.º 130º, para os casos de falta de contestação, em que expressamente se remete para aquele art.º 74º e, para o caso que nos interessa, o art.º 127º, nº 1, que dispõe:
Quando estiver em discussão a determinação da entidade responsável, o juiz pode, até ao encerramento da audiência, mandar intervir na acção qualquer entidade que julgue ser eventual responsável, para o que é citada, sendo-lhe entregue cópia dos articulados
Estamos perante um poder do juiz de mandar intervir na acção qualquer entidade tida como eventual responsável pelas consequências do acidente, o que, aliás, e em termos genéricos, está já previsto no art.º 27º, al. a), do Cod. Proc. Trabalho, como poder-dever, independentemente da iniciativa do réu primitivo ou de terceiro nomeado, por aplicação natural dos poderes oficiosos que detém.
E porque estamos na presença de direitos indisponíveis, e porque a lei processual confere ao juiz a amplitude necessária – e o dever- para fazer adequar o processado à completa observância das regras substantivas sobre reparação de acidente de trabalho, é que se compreende e se impõe que o julgador não possa estar limitado ao que lhe é pedido em termos de responsabilidade, antes deverá fazer funcionar esta em razão daquilo que se vier a apurar no processo.
Se os factos provados e o direito aplicável conduzirem à conclusão que a responsabilidade pelas consequências do acidente deve ser imputada, em termos principais ou subsidiários, a determinada entidade, independentemente do que venha peticionado pelo autor e mesmo que não seja o réu primitivo, como acabámos de ver, impõe-se ao juiz condenar de harmonia com essa imputação.
A acolher a tese da recorrente, chegaríamos ao absurdo de, em casos como o dos autos, tendo sido pedida a responsabilidade em primeira linha da entidade patronal e não se apurando qualquer fundamento para essa responsabilização, e estando o julgador vinculado a esse pedido, se chegar à pura e simples absolvição não só dessa entidade, como essencialmente da seguradora, responsável por virtude do contrato de seguro celebrado. Concluindo, há que, por um lado, considerar que não houve condenação além do pedido e que, por outro, mesmo que ela se tivesse verificado, inexistia a invocada nulidade do art.º 668º, nº 1, al. e), precisamente por o art.º 74º do C..P.T. permitir, e impor, no domínio ds prestações por acidente de trabalho, a condenação em quantidade superior ou em objecto diverso do pedido.
Passando à questão da responsabilidade pelas consequências do acidente, o litígio inter partes reconduz-se à questão de saber se o acidente resultou ou não da violação das regras de segurança no trabalho.
Assim, temos que na sentença se concluiu que por a R.- patronal não ter providenciado pela colocação das protecções necessárias para evitar o contacto do varão com a operadora da máquina, o acidente foi resultado da inobservância de normas de segurança. Para mais à frente referir que, por apenas terminar em data posterior ao do acidente o período para adaptação da referida máquina, a responsabilidade deve ser assacada à Ré- seguradora, em virtude do contrato de seguro celebrado.
Contra esta última asserção reage a recorrente, defendendo que, pese embora esse período de adaptação, mantinha-se a obrigação de a Ré- patronal zelar pelas condições de segurança no funcionamento da máquina.
Salvo o devido respeito, a recorrente não tem razão.
Na anterior lei, a entidade patronal era a primeira responsável pela reparação agravada do acidente, quando o acidente tivesse sido dolosamente provocado por ela ou seu representante ou quando tivesse resultado de culpa dela ou do seu representante (Base XVII da Lei n.º 2.127) e nos termos do art. 54.º do Decreto n.º 360/71, de 21/8, considerava-se ter resultado de culpa da entidade patronal ou do seu representante o acidente devido à inobservância de preceitos legais e regulamentares, assim como de directivas das entidades competentes, que se refiram à higiene e segurança do trabalho.
Entendia-se que o art. 54.º estabelecia apenas uma presunção de culpa da entidade patronal no que diz respeito à inobservância das regras de segurança, sem que isso dispensasse a prova do nexo de causalidade entre essa inobservância e a produção do acidente. Isto é, aquela presunção de culpa não dispensava o sinistrado ou seus beneficiários de alegar e provar que o acidente tinha ocorrido por causa da violação das normas de segurança. Apenas os dispensava de provar que aquela violação tinha sido culposa.
No novo regime, as coisas são algo diferentes. As pensões só são agravadas quando o acidente tenha sido provocado pela entidade patronal ou seu representante e quando tenha resultado de falta de observação das regras de segurança, higiene e saúde no trabalho- cfr. Art.º 18º, nº 1, da LAT (Lei nº 100/97, 13/9). Isso significa que desapareceu o agravamento com base na mera culpa, mas, em contrapartida (?), dispensou-se a culpa (ainda que presumida), quando o acidente resulte da inobservância das regras de segurança.
Como resulta da matéria de facto provada temos:
Quando a A. procurava retirar, com a mão, um ferro, que se encontrava no chão junto ao varão metálico em rotação, de uma máquina de fazer roscas, foi apanhada pela camisola por esse varão, que a arrastou, acabando por a comprimir com muita violência contra o mesmo.
Tal aconteceu em face da inexistência de protectores que impedissem o acesso à zona de acção daquele varão ou de dispositivos que interrompessem o movimento de tal varão antes do acesso da operadora à zona de perigo.
A R. –patronal não providenciou pela colocação das protecções necessárias para evitar o contacto do varão com a operadora da máquina.
A operação que a A. efectuava no momento do acidente acarretava sérios riscos de contacto mecânico, corte, agarramento, enrolamento, arrastamento e ejecção de objectos.
Revogando o Dec.-Lei nº 331/93, de 25/9, e transpondo para a ordem jurídica interna a Directiva nº 95/63/CE, o Dec.-Lei nº 82/99, de 16/3, veio prescrever sobre as prescrições mínimas de segurança e de saúde para a utilização pelos trabalhadores de equipamentos de trabalho.
No seu art.º 18º, nº 1, dispõe-se que os “elementos móveis de um equipamento de trabalho que possam causar acidentes por contacto mecânico devem dispor de protectores que impeçam o acesso às zonas perigosas ou de dispositivos que interrompam o movimento dos elementos móveis antes do acesso a essas zonas”.
No caso que nos ocupa, o acidente ocorreu precisamente por ausência desses protectores e dispositivos.
Todavia, importa ter presente o disposto no art.º 5º, nº 2, do referido Dec.-Lei nº 82/99, segundo o qual, e na parte que nos interessa, os equipamentos de trabalho móveis que sejam colocados à disposição dos trabalhadores antes de 8 Dezembro de 1998 devem satisfazer os requisitos mínimos de segurança constantes do capítulo II (onde se inclui o mencionado art.º 18º) até 8 de Dezembro de 2002.
Ou seja, tal diploma previu um dilação, para cumprimento dos requisitos mínimos de segurança dos equipamentos de trabalho nela descritos, de nada menos de 4 anos, a qual, quer se concorde ou não com tal período de tampo, talvez excessivo, num país onde a preocupação pela segurança é relegada, não raras vezes para segundo plano, é impeditiva de se considerar, antes de decorrido tal lapso temporal, que qualquer não observância dos requisitos mínimos constantes do seu capítulo II possa constituir uma violação a qualquer das suas normas.
Por outras palavras: se o próprio legislador quis conceder aos empregadores um período de tempo considerado necessário e suficiente para adequação do equipamento àquelas regras de segurança mínima, será juridicamente insustentável a consideração de que, na falta de qualquer dos requisitos previstos nas normas em questão, essa omissão lhes deva ser censurada.
Assim sendo, e na situação concreta, estando a máquina em questão a laborar há cerca de 13 anos, e tendo o acidente ocorrido antes do termo do referido prazo, não há que assacar à R.- patronal a violação desse art.º 18º, nº 1, ou de qualquer outra norma do Dec.-Lei 82/99, e como tal, não se pode retirar, como faz a sentença sob recurso, a conclusão de que o acidente foi resultado da inobservância de regras de segurança.
Funcionando, por isso, o regime-regra da responsabilidade por acidentes de trabalho, ou seja, a responsabilidade objectiva, independente de culpa, respondendo a Ré- seguradora em virtude do contrato de seguro celebrado e na exacta proporção do salário transferido.
Improcedem, por isso, as conclusões do recurso, sem embargo de, e por forma a evitar dúvidas, se deva corrigir a condenação das Rés efectuada na sentença, pondo-a de harmonia com a repartição de responsabilidades.
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Nos termos expostos, decide-se negar provimento ao recurso, confirmando-se, embora por fundamentos algo diversos e com a alteração que se passa a referir, a decisão recorrida, e consignando-se que a condenação das Rés na pensão e nas importâncias de € 4.014,40, € 342,23 (mensal), e € 25,00, descritas na parte decisória da sentença de 1ª instância, bem como nas prestações em espécie descritas na al. e) dessa parte decisória é efectuada de harmonia com a proporção das respectivas responsabilidades (2,53% para a Ré- Irmal” e 97,47% para a Ré- “Axa”).
Custas pela apelante.

Lisboa, 21/01/04

Ramalho Pinto
Duro Mateus Cardoso
Guilherme Pires