Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa | |||
Processo: |
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Relator: | MANUEL ADVÍNCULO SEQUEIRA | ||
Descritores: | PESSOA PARTICULARMENTE INDEFESA VÍTIMA ESPECIALMENTE VULNERÁVEL | ||
Nº do Documento: | RL | ||
Data do Acordão: | 03/19/2024 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Texto Parcial: | N | ||
Meio Processual: | RECURSO PENAL | ||
Decisão: | PARCIALMENTE PROVIDO | ||
Sumário: | (da responsabilidade do relator) I - Para a maioria da jurisprudência, pessoa particularmente indefesa em razão da idade é a que está impossibilitada de se proteger, por completa ou total ausência de defesa, devido a especial vulnerabilidade ou fragilidade da vítima, sem capacidade de movimentos, destreza ou discernimento para esboçar uma defesa. II - Não basta a vítima ser indefesa, tem de o ser especial ou particularmente. III - O caso claro e típico será assim o de criança de tenra idade ou de idoso paralisado em elevada medida. | ||
Decisão Texto Parcial: | |||
Decisão Texto Integral: | Acordam, em conferência, na 5ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa. * AA foi condenado na pena única de oito anos e seis meses de prisão, resultante de cúmulo de três penas na ocasião aplicadas: Duas penas de cinco anos cada pela prática de dois crimes de homicídio qualificado, tentado, pp. e pp. pelos artos 131º e 132º, nos 1 e 2, alínea c), 22º, nº 1, alíneas a) e b) e 23º do Código Penal; e Uma pena de 3 anos de prisão pela prática de crime de detenção de arma proibida, p. e p. pela conjugação dos artigos 2º, nº 1, alínea m), 3º, nº 2, alínea ab) e 86º, nº 1, alínea d) da Lei nº 5/2006, de 23.2. Foi ainda condenado a pagar a BB sete mil seiscentos e dez euros, a CC cinco mil euros e ao ... trezentos e quinze euros e trinta e dois cêntimos (acrescido de juros vencidos e vincendos, à taxa legal e desde a data da notificação do pedido). * Interpôs o arguido o presente recurso concluindo, em resumo: (...) “os pontos 19, 21, 22, 25 e 28 da matéria de facto dada como provada (...) deveriam ter sido julgados como não provados; (...) da prova pericial em que se estriba o douto acórdão recorrido, resulta inequivocamente que a catana que supostamente teria causado as lesões com sangramento na pessoa da assistente CC descritas no ponto nº 23 da decisão recorrida apresenta vestígios de sangue do próprio Recorrente, sem, contudo, conter quaisquer vestígios de sangue da assistente CC, o que demonstra cabalmente que as lesões (designadamente na região parietal direita) não resultaram da catana examinada, pelo que nunca poderia o Tribunal a quo ter julgado provado o ponto nº 19 da matéria de facto dada por provada; (...) analisada a prova no seu conjunto e a globalidade dos factos, tudo indica que a CC sofreu a lesão com 2.5 cm na região parietal direita em consequência da queda que sofreu e do embate desta, uma vez que ficou “aturdida no chão”, tal como aliás resulta claro do seu depoimento, do qual não resulta, qualquer menção direta ou referência indirecta de ter sido atingida pela catana e muito menos de a lesão na região parietal ter sido causada pela dita catana; (...) o Tribunal recorrido violou as regras da experiência comum e incorreu em erro notório na apreciação da prova ao ter dado como provado o facto em apreço (19) especialmente na parte em que refere que a ofendida CC teria ficado em consequência a sangrar e que a mencionada ferida teria sido provocada pela catana (...) (...) não resulta minimamente demonstrado “que Ato contínuo, o arguido dirigiu-se a CC, ergueu a catana acima da sua cabeça e desferiu uma pancada, de cima para baixo, que atingiu CC na parte lateral direita da cabeça, deixando-a aturdida no chão e a sangrar da ferida provocada pela catana” (...) existe uma manifesta contradição entre os pontos 19, 22 e e 28 da matéria de facto dada como provada e os pontos 8 e 23 da matéria de facto dada como provada, bem como entre aquele ponto 19 e a fundamentação da matéria de facto; (...) é manifesta a contradição lógica em que o Tribunal incorre ao dar ao mesmo tempo como provado que o arguido, ora Recorrente, dirigiu-se a CC, ergueu a catana acima da sua cabeça e desferiu uma pancada, de cima para baixo, que atingiu CC na parte lateral direita da cabeça, deixando-a aturdida no chão e a sangrar da ferida provocada pela catana, com o facto provado em 23. da douta decisão em recurso, ou seja, que “em consequência das descritas agressões, CC sofreu uma ferida incisa de cerca de 2.5 cm na região parietal direita e uma ferida incisa de pequenas dimensões no lábio superior direito (...) uma vez que não há qualquer compatibilidade ou relação aceitável (ou lógica) entre a conduta do arguido dada como provada no facto 19, aliada às características e potencialidade danosa do instrumento supostamente usado para causar as referidas lesões (uma “catana”) (...) (...) jamais poderia o Tribunal recorrido, de acordo com as mais simples regras da experiência comum, ter julgado como provada a conduta do Recorrente descrita em 19 da matéria de facto provada, sem incorrer em contradição insanável, como resulta do mero confronto com os pontos nºs 8 e 23 da matéria de facto provada e da fundamentação de facto. (cfr. fls… 133, 38 e 39 e exame pericial medico legal da assistente CC de fls. 277 a 279); (...) ao não ter determinado com o rigor mínimo exigido o que causou na pessoa da assistente CC “uma ferida incisa de cerca de 2.5 cm na região parietal direita … e uma ferida incisa de pequenas dimensões no lábio superior direito, lesões que demandaram sete dias de cura, sem afetação da capacidade de trabalho geral e um dia com afetação da capacidade de trabalho profissional” (cfr. ponto nº 23 da matéria de facto provada), a decisão recorrida não se pronunciou sobre questões sobre as quais devia tomar conhecimento para poder decidir e (eventualmente) condenar o Recorrente, pelo que é nula, nos termos do disposto na alínea c) do nº 1 do artigo 379º do Código de Processo Penal; (...) a decisão recorrida incorreu em erro de direito ao ter condenado o recorrente pela prática de um crime de detenção de arma proibida, previsto e punido pela conjugação dos artigos 2º, nº 1, alínea m), 3º, nº 2, alínea b) e 86º, nº 1, alínea d) da Lei nº 5/2006, de 23 de Fevereiro, na pena de três anos de prisão, efetiva, quando se impunha concretamente a alternativa da aplicação da pena de multa em substituição da pena de prisão (...) e do facto de o Recorrente ter como único antecedente criminal a prática, em 31/03/2022, de um crime de condução em estado de embriaguez, bem como” (...) as suas demais condições pessoais. (...) “considerou incorretamente o Tribunal recorrido que é suscetível só por si de revelar a especial censurabilidade ou perversidade do agente a mera circunstância de os ofendidos terem hoje respetivamente 73 e 76 anos de idade, para o efeito de considerar ter o arguido praticado os factos contra pessoa(s) particularmente indefesa (s) (artigo 132º, nº 2, alínea c), do CP (...) (...) não resultando do elenco de toda a matéria de facto provada qualquer debilidade especial ou relevante dos assistentes, não é o facto de terem as idades que tinham à data dos factos – as quais aliás se desconhece quais eram - que implica que os mesmos fossem para os efeitos do citado normativo legal “pessoa particularmente indefesa”, não resultando, pois, a qualificativa necessariamente da (s) respetiva (s) idade (s), pelo que é também errada a “automática” aplicação da qualificativa estabelecida no artigo 132º, nº 2, alínea c) do Código Penal à conduta do Recorrente, com efeitos diretos na medida quer das penas parcelares quer da pena única, a qual peca por ser manifestamente excessiva (...) (...) não é suficiente para fundamentar as tentativas as meras intenções, exigindo-se que essas intenções se exteriorizem em actos de execução. Ora; 24-Segundo as regras da experiência comum, expressamente invocadas pelo Acórdão recorrido, não se alcança, como alguém (neste caso o ora recorrente) que teve as duas vítimas sob o seu domínio total, num quarto fechado na posse de uma catana e um martelo, e com tempo mais que suficiente (nunca menos de 15/20 minutos) para poder facilmente concretizar a morte de qualquer delas, não o tendo feito, possa ser punido pela prática de dois crimes de homicídio qualificado na forma tentada, quando não se vislumbra sequer do texto da decisão recorrida o que o teria impedido de causar as mortes de ambos os ofendidos, para além exclusivamente da sua falta de vontade (...) (...) Deve assim ser revogada a decisão recorrida na parte em que condenou o recorrente pela prática de dois crimes de homicídio qualificado na forma tentada, absolvendo-se o Recorrente da prática destes crimes (...) (...) a pena concreta a aplicar ao recorrente será necessariamente inferior a 5 (cinco) anos de prisão, qual deverá ser suspensa nos termos do nº 1 artigo 50º do Código Penal.” * O Ministério Público junto da primeira instância pugnou fosse negado provimento ao recurso e mantida a sentença recorrida, concluindo a propósito: “O recorrente não respeitou, pois, os requisitos impostos pela disposição legal supra referida. Estes requisitos são exigidos pelo Código de Processo Penal sob a cominação de rejeição liminar do recurso (artigo 412.º, n.ºs 1, 2 e 3), o que não tem levantado quaisquer dúvidas à nossa jurisprudência superior, que assim sempre tem entendido (...) 7- Em consequência, é por demais evidente a manifesta improcedência do recurso interposto (...) Mas será a pena demasiado elevada, como pretende o arguido? Pensamos que não (...) Tendo presente a moldura penal, a matéria de facto dada como provada e as circunstâncias a que alude o artº 71º do Cód. Penal e a que é feita referência ao douto acórdão condenatório, consideramos a medida (concreta) da pena aplicada ao arguido adequada, equilibrada e justa e se pecar, será por defeito” (...) * Neste Tribunal da Relação, o Ministério Público emitiu douto parecer no sentido da improcedência do recurso adiantando que «nenhum vício endógeno é discernível no acórdão em crise. Outrossim se chamaria a atenção para o facto de que o Gabinete Médico-Legal e Forense dos Açores Oriental afirmou o nexo de causalidade entre o traumatismo e o dano corporal observado em CC (auto de laudo médico, Referência Citius 5154674) e que tais lesões resultaram de traumatismo corto-contundente, “o que é compatível com a informação” disponível: “agressão com catana”. Uma vez que o acórdão, na sua fundamentação, invoca a documentação dos autos, sem propriamente descrever o seu conteúdo e recordando o exame negativo para vestígios hemáticos na lâmina da arma branca usada, em que o arguido deposita tanto ênfase - parece oportuno reafirmar que as lesões na vítima são pericialmente compatíveis com agressão com “catana”, o que afasta de vez eventual vício de apreciação da prova feita pelo tribunal a quo.» * Corridos os vistos, foram os autos à conferência. -- // -- // -- Fundamentação. * O acórdão recorrido estabeleceu os seguintes factos provados: «1. O arguido viveu maritalmente com DD, partilhando mesa, cama e habitação até maio de 2021, na .... 2. Desta relação nasceu EE, em ... de ... de 2012, FF, em ... de ... de 2017 e GG, em ... de ... de 2020. 3. O término definitivo da relação do arguido com DD, deu-se em 26 de maio de 2021, altura em que DD abandonou, com os filhos, a residência que partilhava com o arguido. 4. CC, nascida a ... de ... de 1949, e BB, nascido a ... de ... de 1946, são os progenitores de DD. 5. Em 19 de Maio de 2023, foi deduzida acusação contra o arguido AA, no inquérito n.º 336/22.0JAPDL, da Secção de Ponta Delgada, do DIAP dos Açores, onde lhe foi imputada a prática, entre 26 de Maio de 2021 e 5 de Abril de 2022, contra DD, de factos ali qualificados como crime de violência doméstica agravado, previsto e punido pelo artigo 152.º, n.º 1, al. b), n.º 2, al. a), e n.ºs 4 e 5, do Código Penal; e, como crime de violação, previsto e punido pelo artigo 164.º, n.º 2, al. a), do Código Penal. 6. Nunca aceitando o fim da sua relação com DD, o arguido convenceu-se de terem sido os progenitores dela a prejudicar e a provocar do fim dessa relação e a instigar DD a denunciar, contra ele, os factos que levaram a que tivesse sido acusado no inquérito n.º 336/22.0JAPDL. 7. Desde então, que se foi apoderando do arguido um sentimento de rancor, ressentimento, revolta e vingança contra as vítimas CC e BB, pais de DD, e contra ela própria, que se foi agudizando no tempo pelo facto de eles evitarem o contacto com ele. 8. Imbuído desses sentimentos e propondo-se a ter a sua vingança contra eles, muniu-se de uma “catana" (instrumentos que as pessoas em geral representam pela simples enunciação desse nome, ou seja, o instrumento de aço usado na agricultura, usualmente com cerca de 62 cm de comprimento, dotada de um cabo com cerca de 13 cm de comprimento, e de lâmina com 49 cm de comprimento, que se alarga a partir do cabo até atingir a largura máxima de 7 cm, no terço final, adelgaçando-se, a partir daí, em arco, no sentido das “costas”, terminando em bico que se projeta cerca de 5cms acima das “costas”) e de um martelo de pedreiro, com cabo de madeira, que guardou no interior do seu automóvel de matrícula XX-XX-XX. 9. Nessa sequência, no dia 7 de março de 2023, antes das 6h, dirigiu-se à residência de CC e de BB, na ..., consigo levava a catana e do martelo. 10. Aí chegado o arguido arremessou o martelo contra o portão de acesso à entrada da residência, partiu a fechadura e entrou no logradouro. 11. Ato contínuo, o arguido dirigiu-se à porta de entrada, e contra ela dirigiu, por diversas vezes, o martelo, procurando partir a madeira de que era feita a porta, ou fazê-la saltar dos seus encaixes, para a abrir, enquanto gritava para o interior da residência abre essa porta, burro. Vocês desgraçaram-me a vida, afastaram‑me dos meus filhos. 12. Mais partiu o vidro lateral da porta da entrada. 13. As vítimas BB e CC foram acordadas e alertadas pelo barulho das pancadas do martelo na porta e dos berros do arguido, e procurando saber a razão de tal barulho, BB foi até à entrada da sua casa. 14. Apesar de instado por BB a ir-se embora, o arguido, após, ter conseguido forçar a porta de entrada, entrou na casa das vítimas. 15. Surpreendido com o arguido dentro da sua casa, fugiu a abrigar-se no quarto de dormir, junto a CC, fechando a porta logo que entrou. 16. Atrás dele seguiu o arguido que, ao deparar-se com a porta do quarto fechada, desferiu, com o martelo, várias pancadas na porta até a partir, e entrou no quarto das vítimas. 17. Enquanto dava as pancadas na porta gritava vocês estragaram-me a vida, sou o pai do EE, do FF e da GG. 18. Já no interior do quarto, o arguido, abeirou-se das vítimas e dizendo-lhes repetidamente vocês arruinaram a minha vida e a dos meus filhos. Eu degolo-vos, seus velhos, seus grandessíssimos filhos da puta, eu sou o pai do EE, do FF e da GG”, empurrou BB, pelas costas, contra a parede, fazendo com que batesse com a cabeça na parede e caísse ao solo e, logo de seguida. 19. Ato contínuo, o arguido dirigiu-se a CC, ergueu a catana acima da sua cabeça e desferiu uma pancada, de cima para baixo, que atingiu CC na parte lateral direita da cabeça, deixando-a aturdida no chão e a sangrar da ferida provocada pela catana. 20. Depois, e já no exterior da habitação, o arguido agarrou BB, pelo pescoço, apontando-lhe a catana, e dizia, várias vezes, Eu vou-te matar. Vocês vão morrer hoje. Desgraçaram a minha vida. Eu amo a minha mulher e os meus filhos. 21. Já no exterior da habitação, o arguido foi surpreendido pela presença de HH, vizinho das vítimas, que alertado pelo barulho provocado pela atuação do arguido, veio em socorro das vítimas, e que, vendo o arguido a dirigia a catana à parte de trás da cabeça de BB, agarrou-o pelo braço e atirou-o ao chão, debruçando-se sobre o seu corpo e segurando-o até à chegada das autoridades. 22. Só por esse motivo não logrou o arguido, como era sua intenção, tirar a vida às vítimas CC e BB. 23. Em consequência das descritas agressões, CC sofreu uma ferida incisa de cerca de 2,5 cm na região parietal direita, sem perda de conhecimento, e uma ferida incisa de pequenas dimensões no lábio superior direito, lesões que demandaram sete dias de cura, sem afetação da capacidade de trabalho geral e um dia com afetação da capacidade de trabalho profissional. 24. Por sua vez, BB sofreu traumatismo no maxilar inferior, com perda de dois dentes, um hematoma no antebraço direito e uma equimose no terço distal da perna esquerda, lesões que demandaram sete dias para cura, sem afetação da capacidade de trabalho geral e um dia com afetação da capacidade de trabalho profissional. 25. Os ofendidos CC e BB, contam hoje, respetivamente, 73 e 76 anos de idade, e apresentam a debilidade física própria das suas idades e o facto de serem avós dos filhos do arguido e a convivência que o arguido teve com eles teve ao longo dos anos, permitiu-lhe tomar consciência de que se tratavam de pessoas que não lhe ofereciam grande resistência ou que seriam incapazes de, só por si, se defenderem. 26. O arguido conhecia as características da catana que empunhava e da sua capacidade para provocar ferimentos no corpo de outra pessoa capazes de lhe provocar a morte. 27. Não obstante este conhecimento que tinha, a sua atuação foi, assim, ponderada, predeterminada, livre, deliberada e consciente. 28. E movida pelo rancor que tinha por CC e BB, pelo desejo de vingança, pela insensibilidade e indiferença que tinha pela vida deles e pela irredutível intenção e vontade de os matar, o que não logrou alcançar por motivos alheios à sua vontade. 29. Também sabia não ter motivo que legitimasse o uso e o porte da referida catana, e que, por isso, não lhe era legítimo que as detivesse fora dos locais do seu normal emprego e que lhe desse outro uso que não àquele a que se destinava, não obstante, fê-lo, também, porque assim livremente o deliberou e o queria fazer. 30. Consciente estava que as suas condutas eram proibidas e punidas pela lei penal. 31. BB e mulher CC, contam hoje, respetivamente, 76 e 73 anos de idade, e apresentam a debilidade física própria das suas idades e o facto de serem avós dos filhos do demandado e a convivência que este teve com eles ao longo dos anos, permitiu-lhe tomar consciência de que se tratavam de pessoa que não lhe ofereciam grande resistência ou que seriam incapazes de, só por si, se defenderem. 32. Não obstante este conhecimento que tinha, a sua atuação foi, assim ponderada, predeterminada, livre, deliberada e consciente, movida pelo rancor que tinha por CC e pelo Demandante BB, pelo desejo de vingança, pela insensibilidade e indiferença que tinha pela vida deles e pela irredutível intenção e vontade de os matar, o que não logrou alcançar por motivos alheios à sua vontade. 33. Durante a recuperação, o demandante BB continuou a sentir muitas dores tendo passado por consultas externas no Hospital, e no presente ainda sente muita ansiedade e inquietação, o que o afeta em muito a sua saúde uma vez que possui de uma incapacidade de 70% na sequência de anterior enfarte do Miocárdio. 34. Durante a recuperação, a demandante continuou a sentir muitas dores tendo passado por consultas externas no Hospital, e no presente ainda sente muitas dores na cabeça. 35. O demandante como doente cardíaco, devido ao episodio das agressões a que foi sujeito pelo demandado, agravou a sua situação médica, passando a ter vários ataques de ansiedade e dores no peito, mais do que antes tinha. 36. Os demandantes ainda nos dias de hoje sentem muito medo e receio de estarem em casa onde ocorreram os factos. 37. Desde as agressões sofridas os demandantes ficaram com medo de sair de casa sozinho, bem como quando está em casa está sempre apavorado e em temor pela sua integridade física tal foi o momento marcante das referidas agressões. 38. Os demandantes encontram-se em acompanhamento de uma psicóloga para a ajudar a ultrapassar a situação traumatizante a que foi sujeito. 39. Os demandantes ficaram convencidos que iriam ser mortos no dia que foram agredidos pelo demandado o que lhes causou muito sofrimento e temor. 40. O demandante sofreu danos nas portas da sua moradia, no vidro de uma das portas e fechadura, tudo quantificável em 1960€ euros. 41. Com a perda de dois dentes o demandante teve que substituir os mesmos por uma prótese, tendo despendido 650€. 42. Na sequência dos ferimentos sofridos, CC e BB deram entrada no serviço de Urgência do ..., em Ponta Delgada, onde lhe ministraram cuidados de saúde, no valor de 315,32€. 43. À data dos factos, AA, de 38 anos, habilitado com o 9.º ano, distribuidor de produtos farmacêuticos e hospitalares, residia, sozinho, em apartamento de habitação social, situado no concelho de ..., que se havia constituído como a casa morada da família até maio de 2021, altura em que a companheira do arguido (filha das vítimas identificadas nos presentes autos), DD, abandona a casa levando os 3 filhos menores, procurando refúgio em casa abrigo para vítimas de crimes de violência doméstica. 44. Presentemente, e desde 08-03-2023, encontra-se preso preventivamente no Estabelecimento Prisional de Ponta Delgada. 45. Não se encontra integrado em programa terapêutico, nem foi, ainda, submetido a testes de despiste toxicológico. Regista uma infração disciplinar, e tem beneficiado de visitas de um amigo, concretamente de II, que também se faz, por vezes, acompanhar do filho mais velho do arguido. Encontra-se com ocupação laboral desde junho. Está a beneficiar de acompanhamento psicológico. 46. Proveniente de agregado de baixa condição social, o arguido é o quarto de uma fratria de 9 (3 dos quais uterinos), tendo experienciado uma infância traumática, com a presença de um pai alcoólico que exercia violência doméstica sobre a mãe, com carências a vários níveis, desde alimentar a afetiva, culminando, quando contava 6 anos, com o choque de se deparar com o corpo do pai, que se suicidou por enforcamento. A inexistência de coesão familiar e a falta de suporte materno (que iniciou novo relacionamento amoroso), conduziram-no a um acolhimento, em conjunto com um dos irmãos, em ..., mormente a ... em ..., onde frequentou, internamento, o 1.º ciclo do ensino básico. Referiu que a circunstância de nunca ter ficado retido neste ciclo escolar, fez com que a Instituição o enviasse para outra Casa de Acolhimento no continente com o propósito de frequentar o 2.º ciclo, descrevendo esta experiência como gratificante. Regressou aos Açores com 14 anos e habilitado com o 6.º ano, possibilitando-lhe prosseguir estudos na ..., onde veio a concluir o 3.º ciclo sem reprovações, segundo o próprio. 47. Relatou uma infância e adolescência centrada na ..., dividindo o tempo entre os estudos e as tarefas que lhe eram atribuídas pelos responsáveis, essencialmente na agropecuária e organização doméstica, informando que também existia tempo para brincar e jogar à bola com os pares ali acolhidos. Descreveu um percurso positivo na ..., e afirmou ter encontrado, ali, um relacionamento quase paternal com as figuras de autoridade. 48. Com 17 anos, e contra a vontade dos responsáveis pela ..., abandona a Instituição e procurou reatar laços com a figura materna, chegando a residir com esta durante alguns meses, mas a desilusão em relação às expectativas que tinha alimentado, levaram-no a procurar autonomizar-se, tinha, entretanto, 18 anos. Começou por arrendar um quarto na cidade de Ponta Delgada em conjunto com um dos irmãos, iniciando atividade laboral como ..., altura em que, reconhece, iniciou consumos abusivos de álcool, problemática que o tem acompanhado até ao presente. 49. Teve uma breve experiência profissional como talhante numa grande superfície comercial em Ponta Delgada, vindo, posteriormente, e por intermédio da ..., a ser selecionado para empregado de mesa na restauração, atividade na qual permaneceu durante cerca de 3/4 anos. 50. Há cerca de 15 anos (teria à data 22/23 anos) integrou uma empresa na área ..., ali se mantendo a trabalhar até ao presente. Informou que os tempos livres eram passados no convívio com amigos, frequentando Cafés e Pubs, apreciando idas à praia e o visionamento de filmes. Veio a conhecer a mãe dos seus filhos, DD, no âmbito de uma saída noturna, declarando que a afinidade entre ambos conduziu ao início do relacionamento amoroso, teria na altura cerca de 25 anos. O casal passou a partilhar uma casa arrendada pouco tempo depois de iniciarem o relacionamento amoroso, tendo, posteriormente, concorrido a programas de apoio à habitação na ..., sendo-lhes atribuído um apartamento no concelho de ..., habitação na qual o casal e os filhos residiram até à rutura da relação conjugal ocorrida em maio de 2021, levando a mãe dos seus filhos a procurar apoio junto de estrutura de acolhimento para vítimas de violência doméstica, transitando, posteriormente, para uma casa arrendada com os três filhos do casal. 51. Ainda que assuma hábitos de consumo em excesso de bebidas alcoólicas, não se aproximou de estruturas de reabilitação e tratamento às dependências, situação confirmada junto da ... e da ... da .... Referiu que, na sequência de um período depressivo, procurou ajuda junto do médico de família na ..., tendo o médico colocado o arguido de baixa médica, pelo menos, a partir de agosto de 2022, mantendo-se nesta condição até março de 2023, mês no qual deu entrada no Estabelecimento Prisional como preso preventivo à ordem do presente inquérito. Reconhece que manteve consumos de álcool em excesso ao mesmo tempo que tomava a medicação que lhe foi receitada pelo clínico, apurando-se que se terá aproximado de uma ... por se sentir afetado psicologicamente com a separação da esposa e como forma de cessar os consumos de álcool. 52. AA foi acompanhado por esta equipa, no âmbito do processo 107/15.0PGPDL onde se encontrava indiciado por crime de violência doméstica, tendo beneficiado de uma suspensão provisória do processo, que veio a cumprir, ainda que, da avaliação realizada na altura, se tenha concluído que AA não reunia os critérios para integrar o Programa “CONTIGO” por apresentar um padrão de funcionamento, estilo interpessoal, rigidez e falta de motivação que poderiam comprometer a coesão do grupo já existente. 53. A par deste contacto com o Sistema de Justiça, o arguido foi condenado no processo 205/22.3PGPDL por um crime de condução em estado de embriaguez e por uma contraordenação grave, tendo solicitado a substituição da multa por trabalho, mas a circunstância de ter sido preso preventivamente à ordem dos presentes autos impossibilitou o inicio da prestação do trabalho comunitário que havia requerido. 54. É visto na comunidade como indivíduo trabalhador, tendencialmente calmo e responsável, apegado aos filhos e de trato fácil. 55. Trata-se de um indivíduo com um historial de consumos abusivos de bebidas alcoólicas, que aparenta alguma rigidez de pensamento, com reduzido sentido crítico e dificuldades quanto à capacidade de descentração, agindo tendencialmente no sentido da satisfação imediata das suas necessidades, autocentrado e sem mediar a ação pelo pensamento, tendendo a justificar as suas ações com fatores externos. A existência de hábitos de trabalho, o suporte familiar e a rede de amizades, a par de casa própria, constituem-se como fatores de proteção. 56. Já foi julgado e condenado por sentença de 19/04/2022 pela prática de um crime de condução em estado de embriaguez a 31/03/2022, na pena de 90 dias de multa, substituída por 90 horas de trabalho.» * E os seguintes factos não provados: «a) Como não conseguiu abrir a porta dessa forma, partiu o vidro lateral da porta da entrada, colocou o braço pela abertura para o interior da habitação até alcançar a fechadura da porta e com a mão abriu a fechadura e entrou na casa das vítimas. b) As vítimas surpreenderam-se com a presença do arguido já no seu interior. c) Logo de seguida a empurrar BB, o arguido empurrou CC contra a janela, enquanto lhe dizia você foi ao tribunal falar de mim. d) Depois, o arguido virou-se a BB, agarrou-o pelo pescoço, levantando-o do chão e, segurando-o pelo pescoço e apontando-lhe a “catana”, dirigiu-o ao exterior da habitação.» * E como motivação da factualidade que antecede, explanou o tribunal colectivo pela seguinte forma: « (...) Foram, assim, valoradas as declarações prestadas pelo arguido, pelos assistentes e os depoimentos das testemunhas HH e JJ (vizinhos dos assistentes, que os socorreram), DD (ex-companheira do arguido e filha dos assistentes), KK e LL (filhos dos assistentes), MM e NN (psicólogas que acompanham os assistentes), OO (amigo do arguido), II (amigo do arguido e legítimo dono e proprietário da catana e do martelo), PP (irmã do arguido) e QQ (ex‑companheira do arguido, relacionamento a seguir ao da DD). Quanto à prova documental o Tribunal teve em consideração o auto de inspeção judiciária (fls. 6 a 21), o auto de apreensão de fls. 37 (peças de vestuário) e 133 (martelo e catana), o auto de exame direto da catana (fls. 38 e 39), o auto de notícia por detenção e aditamento (fls. 128 a 129 e 135), os fotogramas (fls. 136 a 138), a informação clínica (fls. 149-152), os assentos de nascimento (fls. 155 a 161), o atestado médico de incapacidade do assistente (fls. 362), o orçamento para arranjo da porta (fls. 363), a fatura do dentista (fls. 364) e as faturas hospitalares (fls. 371/372). Por fim, e quanto à prova pericial, o Tribunal analisou o relatório de perícia forense de fls. 40 a 83, o exame pericial médico legal (fls. 277 a 279 e 282 a 285) e o exame pericial genético (fls. 232 a 237 e 379 a 376). Concretizando, o arguido, repetindo por diversas vezes que “não foi lá para os matar”, confessou parcialmente os factos, conforme resultavam já evidentes da abundante prova documental e pericial junta aos autos. Explicou que tinha tomado medicação em excesso e que estava embriagado, motivo pelo qual pegou no carro para ir comprar tabaco na bomba da ... (cometendo, então, mais um crime: condução sob o efeito de álcool) e, de seguida, decidiu ir a casa dos pais da ex-companheira para lhes pregar um susto. Contudo, e apesar de até aí mostrar uma vívida memória dos acontecimentos, demonstrou diversos lapsos de memória a partir do momento em que chegou a casa dos assistentes, ficando as suas declarações marcadas por uma total falta de coerência lógica. Desde logo, e quanto aos instrumentos de que se muniu para “pregar o susto”, afirmou que já estavam no seu carro, sendo o martelo seu e a catana do seu amigo “RR”, mas, confrontado com as suas declarações em sede de primeiro interrogatório judicial, onde disse explicitamente que foi buscar tais objetos a um anexo da casa do seu amigo antes de se dirigir para a casa dos assistentes, a sua explicação foi que, quando foi presente ao Juiz de Instrução Criminal, ainda estava embriagado, motivo pelo qual disse aquilo. Alertado para a data em que ocorreu o interrogatório, mais de vinte e quatro horas após a sua detenção, mudou de discurso e disse que estava a tentar tirar a culpa de cima de si. No entanto, II (Toni), num discurso marcadamente genuíno e espontâneo, disse-nos que tais objetos são seus (ambos) e que estariam no seu anexo, sendo que, tendo o arguido lhe dado boleia diversas vezes, nunca viu tais objetos no interior do veículo, pelo que não temos dúvidas que a versão apresentada pelo arguido em sede de primeiro interrogatório judicial, próximo da prática dos factos, numa altura em que ainda não tinha ponderado uma eventual defesa, é a verdadeira, tanto mais que II confirmou que o arguido dormiu na sua casa, tendo livre acesso ao anexo, sendo que, quando acordou, aquele já não se encontrava no interior da sua habitação. Relativamente ao que passou dentro de casa dos assistentes, o Tribunal atribuiu total credibilidade às declarações do assistente BB, porquanto se mostraram coerentes, lógicas e espontâneas, tendo descrito detalhadamente toda a sequência e encadeamento de factos, explicando que acordou com barulho do lado de fora de casa e, tendo-se dirigido ao corredor da casa, percebeu que alguém se encontrava do lado de fora, tendo-lhe pedido, por diversas vezes, para se ir embora. No entanto, o arguido gritava do lado de fora que o ia matar, enquanto o chamava de velho e filho da puta, e bateu tanto na porta que acabou por a conseguir abrir (explicando que não foi pelo vidro lateral, embora o tenha partido, já que a porta estava trancada, motivo pelo qual se deu tal facto como não provado). Como aquele entrou dentro da sua casa, refugiou-se imediatamente dentro do quarto de cama, com a sua esposa, trancando a porta, sendo que, até esse momento, ainda não tinha descortinado a identidade do arguido. Só quando está com um objeto a destruir a porta do quarto (e que depois se apercebe ser uma catana) é que descobre que é o AA, pois este diz que é o pai do EE, do FF e da GG e que os irá matar. Estas declarações do assistente mostram-se corroboradas pelas da sua esposa CC, que afirma que acordou com barulhos no exterior da casa e que foi atrás do seu marido até ao corredor ver o que se passava e que ele dizia para a pessoa que estava a bater na sua para se ir embora e, quando a porta cedeu, fugiram logo para dentro do quarto. Inexistem assim dúvidas que o arguido entrou dentro da casa dos assistentes após partir a porta de entrada (conforme confessou), que os assistentes se refugiaram dentro do quarto (conforme nos disseram o arguido e os assistentes), que o arguido partiu a porta do quarto (conforme confessou), que o arguido deu um empurrão ao assistente e que aquele caiu (conforme confessou) e que os assistentes lhe disseram várias vezes para se ir embora (conforme nos disse o arguido e o assistente BB). Relativamente ao golpe na cabeça da assistente, o arguido refere não se lembrar. No entanto, BB e CC foram claros ao descrevê-lo, sendo que do relatório pericial resulta que tal ferimento resulta de um instrumento corto contundente, sendo compatível com o instrumento em causa. As demais lesões que os assistentes sofreram encontram-se documentadas pelo serviço de urgência, foram objeto de exame médico-legal e não oferecem dúvidas. É certo que a assistente CC se mostrou um pouco confusa, com o esquecimento próprio da idade que já carrega, não podendo, contudo, o Tribunal ignorar a situação que passou e as repercussões que sofreu a nível mental, tão bem detalhadas pela sua psicóloga NN, sendo que JJ, a vizinha que socorreu a assistente, nos disse que a encontrou num estado de choque, totalmente apática. Foi questionado durante o julgamento o motivo pelo qual o arguido, se os queria matar, porque é que não o fez no quarto? A resposta veio da parte do assistente BB, tendo este explicado, com a coerência que marcou todo o seu discurso, que, após a sua esposa ter sido atingida na cabeça, tentou fugir para pedir ajuda, tendo sido agarrado posteriormente pelo arguido, o que foi detalhadamente explicado pelos vizinhos HH e JJ, que, quando chegaram à entrada da propriedade dos assistentes, viram o arguido a vir atrás do assistente, que já estava no seu logradouro (motivo pelo qual se deu como não provado que o arguido arrastou o assistente para o exterior), a fazer-lhe um garrote no pescoço e, quando JJ visualizou a catana no ar gritou “ele tem uma catana”, pelo que o seu marido HH agiu, agarrando tal instrumento e pondo a sua própria mão na lâmina, tendo conseguido, após derrubar o arguido, e de lhe bater por diversas vezes na mão, tirar-lhe a catana. E nem se diga que o arguido teve tempo suficiente para matar os assistentes quando esteve dentro do quarto. Bem sabendo que o tempo é relativo, especialmente numa situação destas, a vizinha JJ disse-nos que entre ter saído de casa e o seu marido ter tirado a catana das mãos do arguido terão passado entre 15 a 20 minutos, sendo que, quando saíram de casa, foram-se aproximando lentamente da casa do vizinho, de modo a se tentarem perceber da situação. No entanto, não esqueçamos que o arguido rebentou, antes, com o portão que dá acesso ao logradouro (como bem mostram as fotos), que esteve algum tempo a tentar abrir a porta de entrada da casa dos assistentes (e o assistente do lado de dentro a mandá-lo embora) e que depois ainda teve algum tempo a destruir a porta do quarto com a catana (conforme bem mostra a foto), pelo que, dentro do quarto a situação desenrolou-se rapidamente, resultando claro que o arguido não contava que o assistente BB, na sua debilidade, conseguisse fugir, o que este fez quando aquele estava distraído com a sua esposa, sendo que o que se seguiu foi, explicado, de forma assertiva e objetiva, pelos vizinhos CC e HH. Quer JJ quer HH prestaram depoimentos marcadamente genuínos, encadeados e lógicos, tendo afirmado ser sua convicção de que, caso não tivessem intervindo, o seu vizinho teria sido morto, até porque o arguido não parava de dizer que os iria matar (aliás, assim que conseguiu, JJ correu para dentro da residência dos assistentes a pensar que a sua vizinha já estivesse morta, sendo que, quando lá chegou, a encontrou naquilo que lhe pareceu um estado de choque/apatia). A reforçar tal conclusão temos as declarações do assistente, o qual nos disse, tal como a sua esposa, que o arguido lhes disse várias vezes que os matava e que depois mataria a sua filha PP. Quanto ao motivo, ficou claro que o arguido culpa os pais da sua companheira pela rutura do relacionamento, pois foi o próprio que nos disse que queria dar um susto naqueles e DD referiu-nos, na simplicidade do seu depoimento, que o seu ex-companheiro disse muitas vezes que a culpa dela ter saído de casa era dos pais. Também a assistente CC e a sua filha PP confirmaram ter ido testemunhar contra o arguido no Tribunal de Família e Menores, pelo que acreditam que o rancor virá daí. Quanto ao elemento subjetivo, e tendo em atenção a forma de rompante como entrou na habitação, o cenário de destruição que provocou, as expressões repetidamente proferidas a dizer que os matava, os instrumentos de que se muniu e, ainda, ter apanhado o assistente BB quando este fugiu para o quintal e empunhado a catana em sua direção, não nos deixam nenhuma dúvida quanto à ideação homicida, pelo que se tornou claro que, quem atua como o arguido atuou, sem qualquer interferência de elemento perturbador da capacidade intelectual e volitiva, não pode deixar de querer atuar como o descrito, de ter consciência da proibição da sua conduta e de conformar-se com as consequências legais das mesmas. Realce-se que, tal como acreditam as testemunhas CC e HH, também o Tribunal acredita se estes dois vizinhos não tivessem, de forma exemplar, intervindo e arriscado a sua própria integridade física, estaríamos perante não uma tentativa, mas um crime consumado: o “susto” que o arguido queria pregar já estava mais que concretizado, pois se não fosse para matar qual o motivo pelo qual perseguiu o assistente BB com a catana na mão pronta a desferir o golpe? Depois do cenário de terror que provocou, o arguido poderia ter ido embora, mas não o fez e não o fez precisamente porque a sua intenção era matar aqueles, conforme não parou de anunciar. Quanto à situação pessoal e económica do arguido o Tribunal relevou o relatório social, conjugado com as declarações da sua irmã PP, dos seus amigos II e OO e ainda da ex-companheira QQ (sendo que esta focou o seu discurso na questão de o arguido ser ciumento e controlador). Por fim, atendeu-se ao certificado de registo criminal junto aos autos. (...) os danos patrimoniais sofridos pelo assistente BB encontram-se provados documentalmente, tendo sido ainda confirmados pelo próprio e pelo seu filho LL. Já os danos não patrimoniais dos assistentes resultaram notórios das suas declarações, devidamente conjugadas com aquilo que nos foi dito pelas duas psicólogas que os acompanham (MM descreveu um quadro de stress pós-traumático do assistente BB e NN um elevado quadro de ansiedade da assistente CC) e pelos seus filhos DD, KK e LL, que descreveram as mudanças nas rotinas dos seus pais e o medo que passou a dominar as suas vidas.» -- // -- // -- Cumpre apreciar. De acordo com a jurisprudência fixada pelo Acórdão do Plenário das Secções do STJ de 19.10.1995 (D.R., série I-A, de 28.12.1995), o âmbito do recurso define-se pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação, sem prejuízo, contudo, das questões de conhecimento oficioso. Atendendo às conclusões apresentadas as questões a apreciar são o alegado erro de julgamento, as contradições, erro notório, nulidade do acórdão, integração jurídica e medida das penas de prisão, escolha de pena e suspensão da execução da pena de prisão. * Erro de julgamento. Conforme resulta do nº 1 do artº 428º do Código de Processo Penal “as relações conhecem de facto e de direito”. A decisão sobre a matéria de facto pode ser impugnada por duas vias: Com fundamento no próprio texto da decisão, por ocorrência dos vícios a que alude o nº 2 do artº 410º do Código de Processo Penal (impugnação em sentido estrito, no que se denomina de “revista alargada” equivalente a “error in procedendo”); ou Mediante a impugnação ampla da matéria de facto, a que se referem os nos 3, 4 e 6 do artigo 412º do Código de Processo Penal (impugnação em sentido lato, ou ampla, equivalente a “error in judicando” na sua vertente “error facti”). Quanto aos vícios (impugnação em sentido estrito) - insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão e o erro notório na apreciação da prova - sendo de conhecimento oficioso, devem resultar do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência, sem recurso a quaisquer provas documentadas, limitando-se a actuação do tribunal de recurso à sua verificação na sentença e não podendo saná-los, à determinação do reenvio, total ou parcial, do processo para novo julgamento, nos termos do nº 1 do artº 426º do Código de Processo Penal. Quanto à segunda modalidade (impugnação ampla), impõe-se, conforme resulta dos nos 3 e 4 daquela artº 412º, que o recorrente especifique os pontos de facto que considera incorrectamente julgados, bem como que indique as provas que, no seu entendimento, impõem decisão diversa da recorrida, e não apenas a permitam, assim como que especifique, com referência aos suportes técnicos, a prova gravada. Tal delitimação decorre da circunstância de a reapreciação da matéria de facto não se traduzir num novo julgamento, mas antes num “remédio jurídico”, destinado a colmatar erros de julgamento. Se a decisão proferida for uma das soluções plausíveis segundo o princípio da livre apreciação e as regras de experiência, a mesma será inatacável, pelo que importa que o recorrente na indicação das concretas provas torne perceptível a razão da divergência quanto aos factos, dando a conhecer a razão pela qual as provas que indica impõem decisão diversa da recorrida (neste sentido e por todos, Ac. da R.L. de 9.1.2024 - procº nº 762/21.1PCAMD.L1). Ao enveredar por exposição que, desde logo, mistura a impugnação ampla (colocando em crise a demonstração dos factos provados em 19, 21, 22, 25 e 28) com a impugnação em sentido estrito (referindo‑se no essencial à mesma factualidade, atacada por erro notório e/ou contradição), para além de com base na mesma circunstância alegar ainda nulidade da sentença, põe o recurso em causa a sua efectividade, como logo ressalta da resposta do Ministério Público, a pugnar pela rejeição do recurso amplo. Isto porque acabaria por não observar os correspondentes requisitos, designadamente não indicando as provas que impõem decisão diversa da recorrida e bem assim sem que especifique, com referência aos suportes técnicos, a prova gravada. E tanto assim é que torna patente a pretensão de segundo julgamento por este tribunal de recurso, ao referir que tendo em atenção “a prova no seu conjunto e a globalidade dos factos, tudo indica que (...) CC sofreu a lesão com 2.5 cm na região parietal direita em consequência da queda que sofreu e do embate desta, uma vez que ficou “aturdida no chão”, tal como aliás resulta claro do seu depoimento, do qual não resulta, qualquer menção direta ou referência indirecta de ter sido atingida pela catana e muito menos de a lesão na região parietal ter sido causada pela dita catana.” Aqui é manifesto o endosso a este tribunal para que na totalidade daquela prova por declarações prestada pela assistente (e só por ela...) busque a parte conveniente. Muito longe, portanto, da que devidamente especificada e com passagens gravadas, imponha a inversão da decisão. Contudo, prova há que, nos termos do próprio recurso e nas explicações que adianta, em abstrato e atendendo à sua natureza, pode ser apta a semelhante modificação, posto que quanto à mesma foram observados aqueles ditames. É a mesma constituída pela prova pericial indicada, da qual resulta que a catana apresenta vestígios de sangue do arguido sem conter qualquer vestígio de sangue da assistente CC, pelo que, na visão do recurso, as lesões na região parietal direita não resultaram daquela arma, não podendo ainda o tribunal ter dado por provado o ponto 19 da correspondente matéria de facto, atendendo às características da ferida sofrida, incompatíveis com o uso de semelhante instrumento e pela forma como teria sido brandido. Mas como não concretiza e identifica com a necessária precisão qualquer excerto da demais prova efectuada relativamente à factualidade em causa e que, sabemos nós pelo teor da motivação do acórdão recorrido, foi prova por declarações produzida pelos assistentes, vejamos então se aquela especificada prova pericial, por si mesma, impõe a visada alteração. Para afirmar que não, desde logo porque a sua leitura exacta e precisa não corresponde à efectuada pelo recorrente. Trata-se do exame pericial documentado na refª Citius 5309734, do qual se retira que o único vestígio hemático identificado na catana (mais precisamente no seu cabo) pertence ao arguido. Mas não exclui peremptoriamente outros vestígios, pelo contrário, pois refere que “nos restantes itens não se obtiveram resultados ou estes não foram concludentes”, revelando que outros haveria, naquele e/ou noutros objectos, mas que foram impossíveis de identificar. Muito provavelmente pelo mesmo motivo que levou à ausência de resultados no exame lofoscópico (refª 5244718) da mesma catana (e ainda do martelo), ainda que saibamos que o arguido os empunhou, pelo que igualmente absurdo seria afirmar que assim não sucedeu e apontando como prova essa mesma ausência paralela de impressões digitais. Ou seja, se a prova em causa torna possível a conclusão do recorrente, já não a impõe. A discussão decorre e tem como segundo ponto fulcral de controvérsia a circunstância de ser de pequena extensão e gravidade a ferida sofrida pela assistente em consequência do golpe com a catana. Mas certo é também «que o Gabinete Médico-Legal e Forense dos Açores Oriental afirmou o nexo de causalidade entre o traumatismo e o dano corporal observado em CC (auto de laudo médico, Referência Citius 5154674) e que tais lesões resultaram de traumatismo corto-contundente, “o que é compatível com a informação” disponível: “agressão com catana» como refere o Ministério Público junto desta Relação no parecer oferecido. Não obstante e como é evidente, aquela arma e a forma da sua empunhadura eram aptas a causar ferida de muito maior dimensão, pelo que a explicação lógica para o facto passa necessariamente pela forma tangente ou menos enérgica do golpe, ainda assim suficiente para deixar a vítima atordoada no chão e ainda a requerer três pontos de sutura para estancar a hemorragia, como claramente se retira da nota de alta hospitalar de fls. 98. Os motivos para assim ter sucedido, de uma miríade possível (desde desvio involuntário a embate em obstáculo, passando por esquiva da vítima) não se conhecem, o que em nada altera o sucedido e bem assim o decidido a esse propósito, para o que foi essencial o depoimento do assistente, que estava presente como resulta da motivação da matéria de facto, mesmo que se admita poder de alguma forma desvalorizar o depoimento da assistente, já que na mesma fundamentação se adianta ter-se mostrado um pouco confusa e com o esquecimento próprio da sua idade. Certo é assim se mantém que aquela prova não é, em concreto e por si só, apta a impôr a falta de prova do facto apontado, já que deriva de meio de prova pessoal não impugnado e dentro das soluções plausíveis segundo o princípio da livre apreciação e as regras de experiência, pelo que a respectiva decisão é inatacável. O mesmo se diga quanto aos demais factos contestados (21, 22, 25 e 28), nenhum deles validamente impugnado, como já se teve oportunidade de referir. Uma última e breve nota relativamente às idades e debilidade dos assistentes. Aquelas derivam das correspondentes certidões de nascimento, das quais resultam as suas idades na data dos factos, da audiência, da leitura do acordão recorrido e até de hoje, nem se entendendo a que propósito se traz semelhante improficuidade ao recurso. Quanto ao mais e para além do que consta dos autos sobre a respectiva condição de saúde, resulta ainda de factor já não controlável neste momento e nesta instância, pois como da respectiva redacção se alcança, deriva da mediação directa do tribunal recorrido, que pode observar os assistentes em pessoa. * Contradições, erro notório e nulidade do acórdão. Como se intui, nesta parte do recurso, porque de mistura com a impugnação ampla, acaba por tudo se resumir às mesmas circunstâncias, já analisadas. Ora e para além do que acima se plasmou sobre a revista alargada, “os fundamentos de recurso consagrados no artigo 410.º, n.º 2, do CPP, constituem deficiências da decisão e não do julgamento, assumindo-se como vícios de lógica jurídica ao nível da matéria de facto, que tornam impossível uma decisão logicamente correcta e conforme à lei” (Ac. STJ de 22.6.2011 publicado no sítio da DGSI). Sendo certo que os únicos motivos possíveis de perplexidade já foram analisados, temos que da leitura do acórdão recorrido nenhuma contradição se vislumbra (sequer as apontadas) ou erro notório pelo que se disse e é de tal leitura que os correspondentes vícios têm de resultar. A alegada nulidade do acórdão, derivando também da mesma circunstância, improcede igualmente e pelo mesmo motivo, desde logo porque aquele determinou claramente o que causou a ferida na cabeça da assistente. * Integração jurídica e medida das penas. Não foi colocado em crise o cometimento do crime de detenção de arma proibida, apenas a escolha da pena relativamente ao mesmo, o que adiante será apreciado. * No que respeita à qualificação dos crimes de homicídio e partindo obviamente do facto provado sob o nº 31 (BB e mulher CC, contam hoje, respetivamente, 76 e 73 anos de idade, e apresentam a debilidade física própria das suas idades e o facto de serem avós dos filhos do demandado e a convivência que este teve com eles ao longo dos anos, permitiu-lhe tomar consciência de que se tratavam de pessoa que não lhe ofereciam grande resistência ou que seriam incapazes de, só por si, se defenderem), o colectivo fundamentou o enquadramento efectuado como segue: “Dispõe a referida alínea c) que é suscetível de revelar a especial censurabilidade ou perversidade a circunstância do agente praticar o facto contra pessoa particularmente indefesa, o que não nos levanta quaisquer dúvidas no caso em análise: os ofendidos apresentam debilidade física própria da idade e não poderiam oferecer grande resistência física, conforme o arguido bem sabia. Repare-se que, mesmo após os ver, e constatar como se encontravam naquela noite, não desistiu e manteve a sua conduta, pelo que a especial censurabilidade e perversidade revelou-se no comportamento daquele.” Façamos um excurso jurisprudencial sobre este ponto fulcral de discussão. «A este respeito, pode dizer-se que constitui aquisição pacífica na doutrina e na jurisprudência a afirmação de que as diversas situações elencadas no n.º 2 do art. 132.º do Cód. Penal, não são de preenchimento automático (…) Relativamente à imputação ao arguido de prática de facto contra pessoa particularmente indefesa em razão da idade (al. c) do nº 2 do art. 132º), (...) este, nascido a .../.../1979, tinha então (3.1.22), 42 anos de idade e a vítima 79 anos (...) Nada se apurou, porém, sobre o estado de saúde da vítima à data dos factos ou sobre eventual aproveitamento, por parte do arguido, de especiais fragilidades que a afetassem, sendo certo que não pode afirmar-se, com a certeza exigível face aos princípios da culpa e da presunção de inocência, que a circunstância de o agressor, ora arguido, ter menos 37 anos que a vítima o coloca, necessariamente, em posição de se aproveitar de eventual fragilidade daquela em razão da idade, dada a diversidade de situações que se verificam na realidade prática, quer relativamente a pessoas com a idade da vítima, quer no que respeita a eventuais efeitos da diferença de idades entre a vítima e o arguido. Por outro lado, a acusação não inclui factos que permitissem concluir pela verificação de alguma dessas situações, nem resulta do acórdão que hipóteses factuais nesse sentido pudessem ter sido objeto da discussão da causa, de modo que o tribunal recorrido tivesse de pronunciar-se sobre as mesmas ao decidir da factualidade provada, em face dos especiais deveres de instrução impostos ao tribunal de julgamento pelo particular peso do princípio da investigação nesta fase – cf. artigos 340º e 410º nº2 a), CPP.» (Ac. STJ de 2.2.2023, procº 22/22.0JAPRT.S1). Jurisprudência que encontra eco mais longínquo. «A especial censurabilidade a que alude o art. 132.º, n.ºs 1 e 2 do CPP, é uma censurabilidade ou perversidade acrescida em relação à perversidade ou censurabilidade que já tem de estar presente no homicídio simples. É nessa diferença de grau, nessa especial maior culpa, que encontra fundamento a qualificação do homicídio. A verificação de qualquer das circunstâncias exemplificadas no n.º 2 constitui só um indício da existência da especial censurabilidade ou perversidade, podendo negar-se este maior grau de culpa, apesar da presença de uma das referidas circunstâncias, e concluir-se pela especial censurabilidade ou perversidade, ou seja, pela qualificação do homicídio, apesar de se negar a presença de qualquer dessas circunstâncias, se ocorrer outra valorativamente análoga. Pessoa particularmente indefesa, no contexto da al. c) do n.º 2 do art. 132.º do CPP, é aquela que se encontra à mercê do agente, incapaz de esboçar uma defesa minimamente eficaz, em função de qualquer das qualidades previstas na norma. Estará nessa situação a pessoa que, em razão da idade, doença ou deficiência física ou psíquica, não tem capacidade de movimentos, destreza ou discernimento para tomar conta de si e, logo, para verdadeiramente se defender de uma agressão, encontrando-se numa situação de completa ausência de defesa. Não preenche a circunstância da al. c) do n.º 2 do art. 132.º do CP, a vítima de homicídio que apesar de possuir 75 anos de idade e sofrer de diabetes (tendo tido nesse âmbito uma crise grave cerca de meio ano antes), vivia sozinha, era autónoma e até ofereceu resistência ao arguido, com quem lutou denodadamente, acabando por ser vencida, porque o agressor revelou ser mais forte, certamente pela vantagem que a sua juventude lhe dava no confronto com a idade avançada da vítima. O exemplo-padrão em discussão não se preenche com a simples superioridade em razão da idade, que não vai além de uma agravante de carácter geral. A especial maior culpa subjacente a esta circunstância qualificativa exige uma atitude bem mais distanciada dos valores» (Ac. STJ de 26.11.2015, procº 119/14.0JAPRT.P1.S1). Ou ainda o que a este respeito se publicou no sítio da DGSI, Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 18.01.2012. «Como tivemos ocasião de afirmar em Acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça de 27 de Maio de 2010 a qualificação do homicídio tem como fundamento a culpa agravada que o agente revela com a sua actuação sendo um tipo de culpa. Refere Silva Dias, a verificação do exemplo padrão do n.º 2 do art. 132.º não implica, apenas indicia, a presença de um caso de especial censurabilidade ou perversidade. Tal indício não mais do que isso e tem de ser confirmado através de uma ponderação global das circunstâncias de facto e da atitude do agente nele expressas. Indubitavelmente que o apelo a exemplos padrão, como exemplificadores de uma intensidade qualitativa da culpa, reflecte uma técnica de tipos abertos que apenas pode ser compreendida dentro dos limites por alguma forma propostos pelo princípio da legalidade. Assim, o julgador deverá subsumir à qualificação do artigo em causa apenas as condutas que, embora não abrangidas pelo perfil especificado, normativamente correspondem á estrutura de sentido e ao conteúdo de desvalor de cada exemplo padrão. Outro entendimento não podia decorrer do pressuposto de que nos encontramos perante uma qualificação assente no tipo de culpa. O que determina a agravação é sempre um acentuado desvalor da atitude do agente, quer o mesmo se exprima numa maior intensidade do desvalor da acção, quer numa motivação especialmente desprezível. Nas palavras de Margarida Silva Pereira, a caracterização do art. 132.º do CP passa pela intersecção de três eixos fundamentais, a saber: a exclusão da aplicação automática; a aferição da qualificação por um critério de culpa no sentido de que se utilize os parâmetros consagrados e tipificados para aquilatar se no caso concreto existe de igual forma uma culpa especial e a permissão do recurso á analogia pois que ao juiz cabe sempre a possibilidade de construir em concreto os pressupostos da afirmação de uma especial censurabilidade, ou perversidade, os quais, embora não subsumíveis aos exemplos padrão, constituem, ainda assim, a demonstração de uma especial intensidade da culpa. Todavia, importa salientar que a valoração da culpa operada pelo art. 132.º do CP não aparece desligada de uma ilicitude qualitativamente mais intensa. Como refere a Autora citada o que o legislador comanda não é que se considere uma culpa sem suporte de ilicitude aumentada, mas sim que de tal ilicitude maior não se retirem quaisquer efeitos a menos que se acompanhe de um acréscimo de culpa. A ilicitude superior é aqui um pressuposto de culpa. O artigo 132 do Código Penal define o tipo de crime de homicídio qualificado constituindo uma forma agravada de crime em relação em relação ao tipo do artigo 131 do mesmo diploma. Objectivamente o tipo de crime assenta nos mesmos factos dos que estão previstos no artigo 131 funcionando a qualificação assente na combinação de um critério de culpa com a técnica dos exemplos padrão. O critério da qualificação está definido no n.º 1 do artigo 132 e consiste em tirar a vida a outrem em circunstâncias que revelem uma especial censurabilidade ou perversidade. Algumas das circunstâncias que são susceptíveis de revelar especial censurabilidade, ou perversidade, estão enumeradas no n.º 1 do mesmo normativo. A qualificação do homicídio tem como fundamento a culpa agravada que o agente revela com a sua actuação sendo um tipo de culpa. Seguindo Roxin, por tipo de culpa entende-se aquele que, na descrição típica da conduta, contem elementos da culpa que integra factores relativos à actuação do agente que estão relacionados com a culpa mais grave ou mais atenuada. A culpa consiste no juízo de censura dirigido ao agente pelo facto deste ter actuado em desconformidade com a ordem jurídica quando podia, e devia, ter actuado em conformidade com esta, sendo uma desaprovação sobe a conduta do agente. O juízo de censura, ou desaprovação, é susceptível de se revelar maior ou menor sendo, por natureza, graduável e dependendo sempre das circunstâncias concretas em que o agente desenvolveu a sua conduta, traduzindo igualmente um juízo de exigibilidade determinado pela vinculação de cada um a conformar-se pela actuação de acordo com as regras estipuladas pela ordem jurídica superando as proibições impostas. Em suma, o agente actua culposamente quando realiza um facto ilícito podendo captar o efeito de chamada de atenção da norma na situação concreta em que desenvolveu a sua conduta e, possuindo uma capacidade suficiente de auto controlo, e poderia optar por uma alternativa de comportamento. O especial tipo de culpa do homicídio qualificado é conformado através da especial censurabilidade ou perversidade do agente. Como refere Figueiredo Dias a lei pretende imputar à especial censurabilidade aquelas condutas em que o especial juízo de culpa se fundamenta na refracção ao nível da atitude do agente de formas de realização do acto especialmente desvaliosas e à especial perversidade aquelas em que o juízo de culpa se fundamenta directamente na documentação no facto de qualidades do agente especialmente desvaliosas. Enumera o normativo em análise um catálogo dos exemplos padrão e o seu significado orientador como demonstrativo do especial tipo de culpa que está associado à qualificação”. No mesmo sentido, escreve Teresa Serra, in Homicídio Qualificado – Tipo de Culpa e Medida da Pena, Almedina, 2000, pp. 63/65 que “Como se sabe, a ideia de censurabilidade constitui o conceito nuclear sobre o qual se funda a concepção normativa da culpa. Culpa é censurabilidade do facto ao agente, isto é, censura-se ao agente o ter podido determinar-se de acordo com a norma e não o ter feito. No artigo 132.º, trata-se de uma censurabilidade especial: as circunstâncias em que a morte foi causada são de tal modo graves que reflectem uma atitude profundamente distanciada do agente em relação a uma determinação normal de acordo com os valores (...) Com a referência à especial perversidade, tem-se em vista uma atitude profundamente rejeitável, no sentido de ter sido determinada e constituir indício de motivos e sentimentos que são absolutamente rejeitados pela sociedade. Significa isto pois, um recurso a uma concepção emocional da culpa e que pode reconduzir-se «à atitude má, eticamente falando, de crasso e primitivo egoísmo do autor, de que fala BINDER. Assim, poder-se-ia caracterizar uma atitude rejeitável como sendo aquela em que prevalecem as tendências egoístas do autor. Especialmente perversa, especialmente rejeitável, será então a atitude na qual as tendências egoístas ganharam um predomínio quase total e determinaram quase exclusivamente a conduta do agente (...). Importa salientar que a qualificação de especial se refere tanto à censurabilidade como à perversidade. A razão da qualificação do homicídio reside exactamente nessa especial censurabilidade ou perversidade revelada pelas circunstâncias em que a morte foi causada. Com efeito, qualquer homicídio simples, enquanto lesão do bem jurídico fundamental que é a vida humana, revela já a censurabilidade ou perversidade do agente que o comete. No homicídio qualificado, o que está em causa é uma diferença essencial de grau que permite ao juiz concluir pela aplicação do artigo 132.º, ao caso concreto, após a ponderação da circunstância indiciadora presentou ou e outra circunstância susceptível de preencher o chamado Leitbild dos exemplos‑padrão que, de alguma maneira, faz com que o caso deva ainda ser considerado como pertencente a um grupo de valoração (…) estratificado a partir do tipo fundamental”.» Ainda e também com particular enfoque na análise típica em causa e tendo em vista também a sua forma tentada: «Particular atenção tem merecido a questão de saber se existirá uma tentativa de homicídio qualificado no Código Penal, pois que o conceito de tentativa (artigo 22.º) não se relaciona com os elementos dos exemplos‑padrão e não é possível considera-los, para este efeito, como se de elementos do tipo se tratasse (assim, Teresa Serra, ob. cit. p. 79ss). A questão, salienta esta autora, “só se coloca após a afirmação da existência de uma tentativa de homicídio simples. (…) para se afirmar a existência de uma tentativa de homicídio há-de ter-se verificado a prática pelo agente de actos de execução do homicídio, designadamente de actos idóneos a produzir o resultado morte. (…) Digamos que, nestes casos, uma vez que o modo e meios de execução são descritos, como que nos encontramos perante homicídios cuja execução deixa de ser livre para passar a ser vinculada”. Assim sendo, nada se oporá à produção do efeito do exemplo padrão desde o início da execução. Como afirma o Prof. Figueiredo Dias (ob. cit., §54 e §55, p. 76), “Se o tipo objectivo de ilícito do homicídio qualificado é exactamente o tipo objectivo do homicídio simples, nenhum problema especial há a assinalar quando, ocorrendo actos de execução de homicídio, não se verifica a morte da pessoa contra quem o agente pretende atentar e se mostra integralmente verificado um exemplo-padrão ou situação análoga qualificadores de homicídio. (…) Assim, questão será só saber se, tendo em conta a factualidade representada pelo agente, os actos de execução integram já por si um exemplo padrão ou situação equiparável e, para além disso, revelam já a especial censurabilidade do agente.» Continua com a análise da circunstância qualificativa em causa: «Consiste a circunstância da alínea c) em o agente “praticar o facto contra pessoa particularmente indefesa, em razão da idade, deficiência, doença ou gravidez”. Esta circunstância foi introduzida no artigo 132.º pela Lei n.º 65/98, de 2 de Setembro, que teve origem na Proposta de Lei 160/VII, em cuja exposição de motivos se pode ler (DAR II-A, n.º 27, de 29.1.1998, p. 527): “No âmbito dos crimes contra a vida, as alterações respeitam aos crimes de homicídio (artigo 132.º) e de exploração ou abandono (artigo 138.º). Na previsão do homicídio qualificado são acrescentadas três novas circunstâncias, contemplando as hipóteses de o crime ser cometido contra vítima especialmente indefesa, por funcionário com grave abuso de autoridade ou através de meio particularmente perigoso. O acrescentamento de novas circunstâncias referentes a pessoas especialmente indefesas e a graves abusos de autoridade visa reforçar a tutela da vítima perante formas de exercício ilegítimo de poder. A agravação da responsabilidade penal, nestas hipóteses, estende-se a crimes contra a integridade física, contra a liberdade e contra a honra”. Esta proposta, como nota o Prof. Figueiredo Dias (ob. cit. §21, p. 60) reproduz, no essencial, a que havia sido apresentada na sequência do requerimento de ratificação do Decreto-Lei n.º 48/95, de 15 de Março, que aprovou o Código Penal (Ratificação 138/VI, DAR II-B, 26, de 8.4.1995, p. 126), rejeitada pela Assembleia da República (DAR II-B, 34, de 14.6.1995, p. 199), da autoria do Prof. Sousa e Brito (sobre isto, cfr. Teresa Serra, Homicídios em Série, Jornadas de Direito Criminal, Revisão do Código Penal, CEJ, 1998, p. 151ss), embora se deva notar a adição de uma especificidade de sentido traduzida na ligação da acção a “formas de exercício ilegítimo de poder”. Nem a doutrina nem a jurisprudência conhecidas têm, porém, dado particular ênfase a este elemento de interpretação proveniente dos trabalhos preparatórios, “de grande valia para definir a opção do legislador” (Batista Machado, Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, Almedina, 2012, p. 185), antes se centrando em sublinhar, no essencial, o propósito de protecção da vítima em situação de “desamparo” e na “exploração” ou “aproveitamento” da situação da vítima “indefesa”, conhecida pelo agente (assim, Prof. Figueiredo Dias, loc. cit. e autores cit. infra, bem como, por exemplo, acórdãos deste Tribunal de 18.6.2008, Proc. 1414/08, Sumários Anuais, Criminal, 2008, www.stj.pt, e de 26.11.2015, Proc. 119/14.0JAPRT.P1.S1, em www.dgsi.pt). Lê-se neste último acórdão: “Pessoa particularmente indefesa neste contexto é aquela que se encontra à mercê do agente, incapaz de esboçar uma defesa minimamente eficaz, em função de qualquer das qualidades previstas na norma. De situação de desamparo fala Figueiredo Dias (Comentário, Tomo I, página 31). Estará nessa situação a pessoa que, em razão da idade, doença ou deficiência física ou psíquica, não tem capacidade de movimentos, destreza ou discernimento para tomar conta de si e, logo, para verdadeiramente se defender de uma agressão. Certamente não por acaso Figueiredo Dias, no mesmo local, referindo uma situação susceptível de preencher este exemplo-padrão, fala de “uma ausência total de defesa”. E, na verdade, se pessoa indefesa é aquela que não se pode defender, pessoa particularmente indefesa, fazendo justiça ao sentido das palavras, será aquela que se encontra numa situação de completa ausência de defesa. O exemplo-padrão em discussão não se preenche com a simples superioridade em razão da idade, que não vai além de uma agravante de carácter geral. A especial maior culpa subjacente a esta circunstância qualificativa exige uma atitude bem mais distanciada dos valores”. A devida consideração da “ratio juris” extraída do elemento histórico, de particular relevo na construção do “pensamento tipológico”, próprio do procedimento de determinação da incriminação, em que a interpretação teleológica desempenha papel de relevo (cfr. Artur Kaufmann, Filosofia do Direito, 5.ª ed., Fundação Calouste Gulbenkian, 2014, p. 187ss), conduz, assim, a que a especial vulnerabilidade ou fragilidade da vítima, protegida pela alínea c) do artigo 132.º do Código Penal, deva ser analisada por referência a uma relação de poder (superioridade) do agente sobre a vítima, de modo a estabelecer-se a exigida correspondência da concreta situação de facto a este elemento do tipo de culpa. Assim se poderá afirmar que “a especial censurabilidade é determinada pelo abuso, aproveitamento ou exploração dessa situação de desamparo” (citando Miguez Garcia e Castela Rio, Código Penal, Parte Geral e Especial, anotação ao artigo 132.º, Almedina, 2014, p. 506; em idêntico sentido, Pinto de Albuquerque, ob. cit., p. 511, onde refere: “A especial censurabilidade da atitude do agente evidencia-se na exploração (“aproveitamento”) da situação de desamparo da vítima”), por quem, com conhecimento da grave impossibilidade de a vítima se defender ou da completa ausência de possibilidade de defesa, por causa da idade, de deficiência, doença ou gravidez, numa determinada situação de facto, é detentor de alguma forma de poder sobre a vítima. Para concluir pelo especial grau de perversidade e censurabilidade, por via da intermediação desta circunstância, considerou o tribunal a quo (supra, 7) que a vítima “já se encontrava prostrada no chão, totalmente indefesa em consequência das anteriores agressões levadas a cabo [pelo arguido] com vista a concretizar as agressões sexuais”, que o arguido “desferiu contra a cabeça de BB diversos pontapés já após esta se encontrar totalmente incapacitada de reagir” e que a vítima era pessoa especialmente indefesa porque “atenta a sua idade e fragilidade”, pois esta tinha 67 anos e o arguido 38, “se encontrava totalmente indefesa em consequência das anteriores agressões”. Não parece, porém, que este seja fundamento bastante para o exacto preenchimento da circunstância típica. Se é certo que, por estar prostrada, a vítima não poderia defender-se – podendo, nesse sentido, dizer-se que se encontrava “indefesa” –, não é possível, apenas com base neste elemento, nas idades do arguido e da vítima e na mencionada “fragilidade” – qualidade notoriamente associada a idade avançada, em resultado de limitações graves inerentes ao normal processo de envelhecimento, o que, não sendo o caso, careceria de outros elementos caracterizadores, não concretizados (sobre a insuficiência da simples superioridade em razão da idade, isoladamente considerada cfr. supra, 15, o acórdão deste Tribunal de 26.11.2015) –, afirmar-se que a vítima se encontrava “particularmente indefesa” para efeitos de especial agravação da culpa nos termos do artigo 132.º. Para além de a dita razão de a vítima se encontrar nessa situação – por, no momento, se encontrar na impossibilidade ou em grave dificuldade de resistir ou de se defender devido à acção do próprio arguido – se relacionar com a forma de execução do crime de violação que imediatamente antecedeu a tentativa de homicídio, constituindo um dos elementos relevantes da definição típica desse crime, por que, na valoração dessa circunstância, o arguido vem condenado, resulta apenas dos factos provados que este agiu “sabendo” dessa situação, que provocara pela agressão à vítima. Não estando provado que a vítima era uma pessoa impossibilitada de se defender por causa da sua idade avançada, de doença de que padecia ou de deficiência que a afectava, não se mostra, por conseguinte, suficientemente fundado concluir que o arguido, para cometer o tentado crime de homicídio, encontrando-se numa situação de superioridade, dolosamente se tenha aproveitado de uma situação de desamparo da vítima originada por qualquer desses motivos. Acresce que, numa visão global do facto, a violência da agressão visava directamente a satisfação de um desejo de causar sofrimento (ponto 11 da matéria de facto), já não de tirar a vida à vítima (que apenas surge como resultado possível com que o arguido se conformou – ponto 11 da matéria de facto), o que também não pode deixar de se reconhecer como uma significativa dificuldade em vista da “especial” agravação da culpa do crime de homicídio requerida pelo tipo qualificado do artigo 132.º do Código Penal. Em conclusão, sem prejuízo de dever reconhecer-se a elevada censurabilidade da acção do arguido, não poderá esta considerar-se a um nível “especial”, por não ocorrência das requeridas exigências típicas de maneira a preencher o exemplo-padrão da alínea c) do n.º 2 do artigo 132.º. Em consequência, a factualidade que, no acórdão recorrido, lhe diz respeito deverá ser considerada, na sua gravidade, unicamente como circunstância agravante de âmbito geral, para efeitos de determinação da medida da pena do crime de homicídio simples (artigo 131.º) tentado, nos termos do disposto no artigo 71.º do Código Penal» (Ac. STJ de 18.9.2018, Procº 359/16.8JAFAR.S1, publicado em ECLI). Do que antecede pode retirar-se, com segurança, que a previsão factual visada pela norma em apreço é de, em razão da idade da vítima se verificar impossibilidade de defesa, completa ou total ausência daquela, por especial vulnerabilidade ou fragilidade da vítima, sem capacidade de movimentos, destreza ou discernimento para esboçar uma defesa. Não basta a vítima ser indefesa, tem de o ser especial ou particularmente. O caso claro e típico será assim o de criança de tenra idade ou de idoso paralisado em elevada medida. No caso a para além das respectivas idades, acresce a estatura da assistente (fotografada) e a incapacidade do assistente reflectida no correspondente grau (70%, como se alcança da correspondente documentação clínica). Mas ainda que não estavam imobilizados, sequer parcialmente. Por conseguinte, sendo a factualidade apurada mais ilustrativa no sentido da respectiva debilidade do que a mera consideração da idade avançada das vítimas, salvo o devido respeito, acaba por ser conclusiva para o necessário grau de substanciação exigido para o preenchimento típico em causa (não lhe ofereciam grande resistência ou que seriam incapazes de, só por si, se defenderem). Destarte, o tipo penal base preenchido é o de homicídio simples. Posto que cometido com arma proibida, rege o nº 3 do artº 86º da Lei das Armas (5/2006, de 23.2) “as penas aplicáveis a crimes cometidos com arma são agravadas de um terço nos seus limites mínimo e máximo, exceto se o porte ou uso de arma for elemento do respetivo tipo de crime ou a lei já previr agravação mais elevada para o crime, em função do uso ou porte de arma.” E por não se ter consumado, o crime foi imputado na forma tentada. A este propósito, o recurso insurge-se contra a correspondente condenação por não ter havido actos de execução. Mas houve, como ressalta claríssimo da factualidade apurada. De entre os vários, iremos directos aos determinantes: a catanada dada à primeira vítima e a que o arguido se preparava para dar à segunda, quando foi travado. Concluindo, cometeu o arguido um crime de detenção de arma proibida e dois crimes de homicídio agravado tentado pp. e pp. pelos artos 131º, 22º, nº 1, alíneas a) e b) e 23º do Código Penal e 86º, nº 3 e conjugação do 2º, nº 1, alínea m), 3º, nº 2, alínea ab) e 86º, nº 1, alínea d) da Lei nº 5/2006, de 23.2. * Escolha de pena de prisão. Na visão do recurso, a pena de multa no respeitante à punição pelo crime de detenção de arma proibida impor-se-ia, já que se mostra proporcional, atendendo à personalidade do arguido. Trata-se de conclusão que encontra algum eco na factualidade apurada, especialmente neste último aspecto. «Mas o juízo que importa fazer, sobre a preferência a dar à aplicação de uma pena de multa, muda completamente de sentido quando a condenação a que o arguido está sujeito implica, por outro(s) crime(s), uma condenação inelutável em pena de prisão. Então, importa antes do mais ver, se a punição de um crime com pena de multa não significará, no caso, a impunidade. Porque, ou a pena é tão leve, face ao património do arguido, que não implica para ele um sacrifício e não é pena, ou o condenado, em meio prisional, está impossibilitado de angariar fundos para pagar a multa, com as naturais consequências. Como diz JESCHECK, "A finalidade politico-criminal da pena de multa, isto é, poupar o autor à aplicação de uma pena de prisão, faz com que, por regra geral, aquela não seja imposta junta com esta". In "Tratado de Derecho Penal- Parte General", 5ª ed. Pág. 827. A este respeito FIGUEIREDO DIAS é categórico: "Uma tal pena «mista» é, numa palavra, profundamente dessocializadora, além de contraditória com o sistema dos dias de multa: este quer colocar o condenado próximo do mínimo existencial adequado à sua situação económico-financeira e pessoal, retirando-lhe as possibilidades de consumo restantes, quando com a pena «mista» aquele já as perde na prisão!" In "Direito Penal Português – II As Consequências Jurídicas do Crime", 2005, pág. 154. No caso em apreço, (…) As necessidades de prevenção geral, leia-se, as expetativas de punição por parte da comunidade, mal se compadeceriam com uma pena de multa, no caso. Sobretudo, o arguido vai ter que cumprir uma pena relativamente prolongada de prisão pelo[s] outro[s] crime[s], pelo que, em cúmulo, estaríamos em face de uma pena "mista", com todos os inconvenientes assinalados. Fez bem o tribunal recorrido em condenar o arguido em pena de prisão por este crime." Serve para dizer que, pelo exposto, se nos afigura correta a opção de aplicar, pelo crime ora em apreço, uma pena de prisão. A opção pela aplicação de uma pena de multa ou por uma pena privativa da liberdade é completamente diferente quando, em função da prática de outro ou outros crimes, o arguido esteja inevitavelmente sujeito a uma condenação em pena de prisão. Nesta hipótese, ou a pena de multa é tão leve, face ao património do arguido, que não implica para ele um sacrifício, e então não é pena, ou o condenado, em meio prisional, está impossibilitado de angariar fundos para pagar a multa, com as naturais consequências daí resultantes. No acórdão de 25-10-2006, processo n.º 3042/06-3.ª Secção, em que a opção tem lugar relativamente a aplicação de pena por crimes de coação, de falsificação de documento e de detenção ilegal de arma, todos puníveis com pena de prisão ou de multa – e todos em concurso real, com um crime de roubo agravado - a escolha recaiu na pena de prisão, por no caso concreto e atenta a frequência da prática criminosa descrita, ser “aquela que se apresenta com maior potencial dissuasor, respondendo ao pragmatismo que lhe é próprio, à proteção dos bens jurídicos violados (art. 40.º n.º 1, do C P), além de desempenhar uma função retributiva, na forma de interiorização do mal causado, sendo a aconselhável em nome de uma incontornável e premente prevenção geral”. E mais à frente, diz-se que “A prevenção especial cabida no caso não se basta com uma mera advertência sob o modelo da pena de multa, mas antes exige e impõe pena de prisão, como forma de emenda cívica Segundo o acórdão de 12-02-2009, proferido no processo n.º 110/09, da 5.ª Secção “Sempre que, na pena única conjunta, tenha de ser incluída uma pena de prisão, impõe-se, na medida do possível, não aplicar pena de multa a um ou mais dos demais crimes em concurso, por também aí se verificarem os inconvenientes geralmente atribuídos às chamadas «penas mistas» de prisão e multa”. No acórdão de 08-10-2009, proferido processo n.º 228/08.5JAFAR.S1-5.ª, em caso em que estava em equação a opção por pena de multa, em situação de conjunção de um crime de falsificação de documento e de um crime de roubo, aduz-se que: «Uma vez que a prática do crime de falsificação de documento está intimamente ligada à prática de um crime de roubo, é de repudiar, e em princípio, a aplicação de uma pena efetiva por este crime, e ao mesmo tempo, uma pena alternativa de multa, para aquele, com o qual está em primeiro está uma relação de concurso, formando, assim uma espécie de pena, compósita ou mista, sendo que esta espécie de penas foi arredada do âmbito dos sanções criminais». Tendo em consideração a gravidade concreta destes crimes e a sua ligação umbilical a condutas globalmente graves, in casu são patentes fortes exigências de prevenção geral positiva que, só por si, tornam claramente inadequada a pena de multa e reclamam a imposição de penas de prisão.» Por todos, Ac. S.T.J. de 19.6.2019, procº 319/14.3 GCVRL.G1. Acresce ainda o que foi adiantado pelo tribunal recorrido a este propósito e que se mostra adequado ao caso. “No que concerne às exigências de prevenção especial ou individual, haverá que ter em consideração o facto de o arguido ter praticado este crime para praticar um ainda mais gravoso, o que eleva a um nível muito alto as exigências de prevenção especial, persistindo assim a necessidade de prevenir o cometimento de mais crimes e de os fazer interiorizar o desvalor das suas condutas. Assim, nos termos expressamente previstos pelo artigo 70º do Código Penal, o Tribunal opta pela aplicação de uma pena privativa da liberdade ao arguido, uma vez que se mostra evidente que a pena de multa não realiza de forma adequada e suficiente a proteção dos bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade (artigo 40º do Código Penal).” * Medida das penas. Atendendo ao diferente enquadramento jurídico detectado, com a correspondente e parcial procedência do recurso no que respeita aos dois crimes mais graves, cabe a este tribunal determinar as correspondentes penas, levando em atenção a factualidade apurada a tanto adequada e obviamente sem esquecer o alinhamento de circunstâncias relevantes para o efeito feito pelo tribunal colectivo, bem assim, como proceder ao exame da restante pena aplicada. A pena abstracta do crime de homicídio agravado tentado tem como mínimo 2 anos, 1 mês e 18 dias de prisão e máximo 14 anos, 2 meses e 20 dias de prisão. A pena abstracta do crime de detenção de arma proibida vai o mínimo de 1 mês até ao máximo de 4 anos de prisão. Para as respectivas medidas concretas consideremos as considerações judiciosas do acórdão recorrido, a acrescer às que haviam sido expandidas a propósito das necessidades de prevenção geral, no caso do crime de detenção de arma: “No caso em análise, as exigências de prevenção geral são extremamente elevadas, por um dos bens jurídicos protegido ser de extrema grandeza, a vida. Teremos de ter em atenção ainda a perturbação comunitária que provoca este tipo de infração em que está em causa um valor nuclear da convivência social, sendo imperioso que a comunidade esteja certa de que as violações dos laços mais básicos de relação social são penalizadas com adequada punição e, por tal forma, se tenha a noção de que a Vida é um valor intocável. Acresce que a escalada de violência contra as pessoas a que assistimos diariamente gera intranquilidade e alarme sociais, pelo que importa infletir essa tendência, por forma a minimizar este sentimento de insegurança social. Também elevadas se mostram as necessidades de prevenção especial, atento ao elevado grau de ilicitude do facto, atendendo às lesões provocadas e ao sofrimento psíquico das vítimas, bem o elevado grau de culpa, porquanto o arguido agiu com dolo direto, onde sobressaia a indiferença pelo valor da vida. Não podemos ignorar a falta de arrependimento e autocritica do seu comportamento, revelada no modo como tentou desculpar‑se e eximir-se à responsabilidade de ter querido matar o os pais da sua ex-companheira. A seu favor, temos a existência de hábitos de trabalho e a rede de amizades, mas a seu desfavor temos ainda a condenação averbada no registo criminal.” A estas teremos de acrescentar quanto aos crimes de homicídio tentado, a debilidade das vítimas, própria da sua avançada idade e condições em comparação com a idade do arguido (nascido a 16.1.1985) pois a respectiva desconsideração no enquadramento jurídico, impõe a sua ponderação na dosimetria da pena, tal como também é claramente apontado na jurisprudência supra citada acerca do correspondente ponto, ademais com o necessário respaldo legal na alínea a) do nº 2 do artº 71º do Código Penal no que toca ao modo de execução dos factos. Mostrar-se-iam justas por adequadas e proporcionais à culpa do arguido e gravidade das condutas, penas a rondar o terço da correspondente moldura. O acórdão recorrido aplicou a pena de 5 anos de prisão por cada um daqueles crimes, sem recurso por parte do Ministério Público, pelo que o disposto no nº 1 do artº 409º do Código de Processo Penal impede que seja ultrapassado aquele limite. Como assim, “o tribunal superior pode, em recurso, alterar oficiosamente a qualificação jurídico-penal efectuada pelo tribunal recorrido, mesmo que para crime mais grave, sem prejuízo, porém, da proibição da reformatio in pejus” (Acórdão 4/95 do STJ de 7.6.1995, em Diário da República n.º 154/1995, Série I-A de 6.7). Dir-se-á que a qualificativa foi alterada para crime menos grave (e ainda que marginalmente, como o demonstram as correspondentes molduras). Mas menos certo não é que na correspondente operação e juízo, este tribunal já não está, de forma alguma, balizado por outra que não aquela barreira legal. Assim, para a fixação da correspondente pena concreta, tem o dever inalienável de encontrar a que, nas novas circunstâncias, se mostre adequada, por justa e proporcional, sem outro critério que não os que resultam do artº 71º do Código Penal. Do que antecede resulta que as penas aplicadas se mostram adequadas, dentro da dosimetria supra referida. Colocando o nível de gravidade em patamar próximo quanto ao crime de detenção de arma branca, relevando ainda as necessidades de prevenção geral elencadas pelo acórdão recorrido e ainda sem olvidar a perigosidade da arma em causa dentro da generalidade das armas brancas, impõe-se a aplicação da pena de 20 meses de prisão, já plenamente suficiente para a correspondente adequação e proporcionalidade. De novo investido em poder original quanto à fixação de penas, haverá este tribunal que ajuizar sobre a pena única, pois que nos termos dos artos 77º e 78º do Código Penal os crimes pelos quais o arguido deverá ser condenado encontram-se em relação de concurso, pelo que igualmente se procederá ao cúmulo das respectivas penas. O limite máximo da pena única aplicável é de 11 anos e 8 meses de prisão. O limite mínimo é o de 5 anos de prisão. O quadro geral constituído pela totalidade dos factos e personalidade do arguido é de gravidade muito carregada, com a tenaz determinação de tirar a vida a duas pessoas frágeis, de forma bárbara e depois de ultrapassar também de modo violento as barreiras constituídas pelas mais elementares regras de convívio social, ao invadir o respectivo lar, quebrando e danificando todos os obstáculos encontrados, até chegar às vítimas dentro do domicílio assim violado (o que constitui igualmente mais do que uma atitude criminosa) para o que carregava arma branca de excepcional poder destrutivo e como resulta dos factos, sem nunca ter abrandado no seu desígnio e sem nunca se ter arrependido do que fez. A resposta da/e em nome da comunidade não pode deixar de espelhar aquele quadro pesado e grave. Por isso que atendendo ao conjunto dos factos provados e à personalidade do arguido revelada por aqueles, se mostra justa por adequada a pena única de 8 anos de prisão, ainda assim, um pouco abaixo do meio da respectiva moldura. * Suspensão da execução da pena de prisão. A dimensão da pena única aplicada impede legalmente a suspensão da respectiva execução, à luz das disposições legais invocadas a propósito no recurso. Cumpre decidir. * * * Pelo exposto, acordam em conceder parcial provimento ao recurso, por isso se condenando o arguido, pela prática de dois crimes de homicídio agravado tentado, pp. e pp. pelos artos 131º, 22º, nº 1, alíneas a) e b) e 23º do Código Penal e 86º, nº 3 da Lei nº 5/2006, de 23.2, nas penas de 5 anos de prisão por cada um e pela prática de um crime de detenção de arma proibida, p. e p. pela conjugação do 2º, nº 1, alínea m), 3º, nº 2, alínea ab) e 86º, nº 1, alínea d) da Lei nº 5/2006, de 23.2, na pena de 20 meses de prisão. Em cúmulo, vai AA condenado na pena única de 8 anos de prisão, no mais se confirmando o acórdão recorrido. * Lisboa, 19 de Março de 2024 Manuel Advínculo Sequeira Luísa Oliveira Alvoeiro Maria José Machado |