Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
6029/23.3T8LSB.L1-7
Relator: LUÍS FILIPE PIRES DE SOUSA
Descritores: SERVIÇOS DE PAGAMENTO
RESPONSABILIDADE DO PRESTADOR
PRESSUPOSTOS EXCLUDENTES
ÓNUS DA PROVA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 02/20/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: O risco inerente à utilização e funcionamento dos serviços de pagamento recai sobre o prestador de serviços, cabendo a este, para se eximir dessa responsabilização, provar que (i) a operação de pagamento foi devidamente autenticada (art.º 113º, nº 1, do Decreto-lei nº 91/2018, de 12.11),  (ii) não foi afetada por qualquer avaria técnica ou por outra deficiência relacionada com o serviço de pagamento por si prestado (Artigo 114º, nº9),  mas ainda que  (iii) o utilizador dos serviços de pagamento (ordenante) atuou de forma fraudulenta ou incumpriu de forma deliberada uma ou mais das suas obrigações decorrentes do artigo 110º ou que atuou com negligência grosseira (art.º 113º, nº 3 e nº 4).
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes na 7ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:

RELATÓRIO
 O Tribunal a quo proferiu sentença com o seguinte teor:
«E... e J..., intentaram a presente acção declarativa de condenação sob a forma de processo comum contra “B... SA” alegando a subtracção de valores da sua conta, não autorizadas, e formulando o pedido de condenação da mesma a pagar aos mesmos quantia de €5.6000,00, acrescida de juros de mora à taxa legal desde a citação e até integral pagamento.
*
Atenta a revelia absoluta operante da Ré, foram considerados confessados os factos articulados pelos Autores passíveis de confissão ou que para cuja prova não se exigisse documento escrito.
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Considerando a factualidade provada e aderindo aos fundamentos alegados pelo Autores na petição inicial, que se dão por reproduzidos, condeno a Ré:
a) No pedido formulado pelos Autores;
b) No pagamento das custas.
Fixo o valor da causa em €5.600,00 – Artigos 296.º, 297.º e 306.º, do Código de Processo Civil.
Registe e notifique.»
*
Não se conformando com a decisão, dela apelou a requerente, formulando, no final das suas alegações, as seguintes CONCLUSÕES:
« A. O dever de fundamentação jurídica é um “desígnio social” atinente à função judicial, a qual é administrada em nome e interesse dos cidadãos (v. n.º 1 do artigo 152.º do CPC), assegurando, pela sua relevância, e especialmente pelos valores consignados aos tribunais (independência e imparcialidade), a sindicância da prolação de decisões idóneas, propugnando as melhores soluções de Direito (num Estado que se rege pela e só pela Lei).
B. Constitui a fundamentação das decisões judiciais seu referencial de “entendimento” mas também mecanismo de “auto e hetero-controlo”, pelos destinatários a quem se dirigem (para melhor compreenderem o seu sentido decisório e também para, psicologicamente, interiorizarem a correção da respetiva conduta, em função do tipo de ação em causa), mas também pela comunidade jurídica e social.
C. A petição inicial dos autores como a sentença prolatada pelo tribunal a quo (em dois singelos parágrafos) são desprovidas de fundamentação que permita ao aqui recorrente e à “comunidade” surpreender a razão jurídica concreta da sua condenação, antes parecendo consubstanciar uma intolerável cominação pela ausência processual de contestação, ainda que, no plano substantivo, abundem os argumentos suscetíveis de infirmar o petitório dos autores.
D. Privilegia-se uma justiça material em detrimento de uma justiça formal ou adjetiva (assente em “decisões de secretaria”).
E. O dever de fundamentação das decisões judiciais surge como uma imposição constitucional prevista no n.º 1 do artigo do artigo 205.º da Constituição da República Portuguesa e na lei ordinária prescreve-se que sobre qualquer pedido controvertido ou sobre alguma dúvida suscitada no processo estas devem ser sempre fundamentadas (n.º 1 do artigo 154.º);
F. Ademais acrescenta o n.º 2 do artigo 154.º do CPC que a justificação não pode consistir na simples adesão aos fundamentos alegados no requerimento ou na oposição, salvo quando, tratando-se de despacho interlocutório, a contraparte não tenha apresentado oposição ao pedido e o caso seja de manifesta simplicidade.
G. A desconsideração, pelo julgador, do dever de fundamentação determina a nulidade das respetivas decisões, em especial enquanto vício da sentença (al. b) do n.º 1 do artigo 615.º do CPC)
H. A sentença de que se recorre nestes autos é omissa na fundamentação das razões de facto e de Direito que determinaram o seu sentido condenatório.
I. Não se retira de tal decisão o concreto fundamento jurídico que entendeu o seu autor mobilizar para, em face da matéria de facto assente, decidir pela condenação do Réu (não se alcança se se trata de uma decisão arbitrária ou justificada pelo Direito aplicável, segundo a melhor solução).
J. Um qualquer terceiro (e o próprio Recorrente B...) da leitura da sentença fica com a convicção que a sua condenação surge justificada como uma mera consequência punitiva pelo facto de não ter apresentado contestação (Atenta a revelia absoluta operante da Ré... menciona o dispositivo nesse aparente sentido).
K. Não traçou a sentença sob recurso, de qualquer forma (ainda que imprecisa, incompleta ou incoerente), o Direito aplicável aos factos que ...foram considerados confessados...
L. Assume a sentença sob recurso ter praticado um ato expressamente proibido por lei: a adesão aos fundamentos alegados no requerimento do autor (n.º 2 do artigo 154.º do CPC).
M. Nem tão-pouco o permite, contrariamente ao que refere a sentença, o artigo 6.º do CPC.
N.  Ainda que por mera hipótese pudesse o tribunal recorrido, na sentença a prolatar, aderir aos fundamentos (jurídicos, entenda-se) alegados pelos autores, estaria a aderir a uma “mão-cheia de nada”, porquanto estes apresentaram como único fundamento de direito na sua petição inicial o que consta sob o artigo 27.º da sua petição inicial.
O. Entre o artigo 110.º e o artigo 115.º do Decreto-Lei n.º 91/2018 de 12 de novembro – expressamente alegados pelos Autores ora recorridos - encontra-se um largo espectro de soluções normativas que repartem a responsabilidade pela realização de transações não reconhecidas entre ordenantes (clientes) e prestadores de serviços de pagamento.
P.  A alusão àquele conjunto de normas jurídicas, com sentidos diametralmente distintos, não podia, por via da adesão que a sentença sob recurso diz ter feito (ainda que expressamente proibida por lei), consubstanciar um critério fundamentado de decisão do pleito em causa.
Q. Uma total ausência de fundamentação ocorre na sentença sob recurso que condenou o aqui recorrente nestes autos, porquanto, nenhuma referência faz ao Direito aplicável aos factos, à respetiva interpretação, aplicação e decisão final (falta-lhe o designado silogismo judiciário).
Cumpre ainda notar que:
R. Os efeitos da revelia não importam a imediata condenação do réu no pedido formulado pelo(s) autor(es).
S. Tais efeitos projetam-se no plano probatório dos autos, implicando a admissão por acordo dos factos que competia ao réu impugnar, e a estes aplicando a melhor solução de Direito
T. No caso em apreço, a factualidade suscetível de ser considerada para a boa decisão da causa - mesmo considerando os factos admitidos por acordo, na sequência da revelia do aqui recorrente – reclamava decisão diversa.
U. Dos escassos factos substanciadores da causa de pedir alegada pelos Autores, importa extrair duas conclusões:
c. não integram a previsão que poderia legitimar a procedência do pedido de condenação do recorrente; e
d. estariam sempre infirmados pela prova documental que os (próprios) Autores trouxeram aos presentes autos, em particular as respostas que o recorrente prestou às suas insistentes e infundadas reclamações.
V. Do que alegam não se retira explicação procedente para que as transações cujo reembolso reivindicam tenham sido ordenadas e realizadas (leia-se, consumadas) pela utilização presencial do cartão (num qualquer terminal de pagamento), mediante a introdução bem sucedida desse código (PIN), sem registo de qualquer tentativa falhada.
W. As questões das datas invocadas pelos Autores são facilmente explicáveis, devendo os autores ora recorridos procurado indagar o sucedido:
d. Foram realizadas no estrangeiro;
e. Mediante introdução de um cartão de débito num terminal estrangeiro, não gerido pela SIBS (responsável pela gestão da rede multibanco nacional), com introdução de um código (PIN) de conhecimento exclusivo pelo autor aqui recorrido.
f. Nessa medida, os lançamentos a débito ocorreram dias após a sua realização (e após a data de cancelamento do cartão utilizado para o efeito).
X. O titular de um cartão de débito apenas poderá obter a retificação de uma operação de pagamento não autorizada que dê origem a uma reclamação, se esta não tiver sido autenticada, devidamente registada e contabilizada e que não foi afetada por avaria técnica ou qualquer outra deficiência do serviço prestado pelo prestador de serviços de pagamento (n.º 1 do artigo 112.º e n.º 1 do artigo 113.º, ambos do RJSPME).
Y. Como consta dos autos, mediante prova documental oferecida pelos próprios Autores aqui recorridos, o recorrente, a respeito das transações reclamadas, sempre afirmou que haviam sido ordenadas mediante autenticação, foram devidamente registadas e contabilizadas, e nenhuma avaria técnica ou qualquer outra deficiência do serviço prestado pelo recorrente as afetou.
Z. Como também consta suficientemente comprovado nos autos, de acordo com as respostas prestadas pelo aqui recorrente aos Autores, antes da propositura da presente ação, as transações foram ordenadas pela utilização do cartão de débito (pessoal e intransmissível), emitido a favor de um dos Autores, sempre mediante a introdução do respetivo código PIN, de conhecimento exclusivo do seu titular.
AA. A utilização do cartão corresponde ao elemento de autenticação posse e a introdução, do código PIN corresponde ao elemento de autenticação conhecimento.
BB. Perante isto, considerando a factualidade dada como assente nos presentes autos – não obstante a revelia do B... - nenhuma responsabilidade pode ser assacada ao recorrente, por se encontrar manifestamente provada, por documentos oferecidos pelos Autores ora recorridos, que as transações cujo reembolso estes reivindicaram foram realizadas mediante autenticação forte (n.º 1 do artigo 113.º do RJSPME).
CC. Destarte, a melhor solução de direito aplicável aos factos considerados como provados corresponde à fatispécie contida no n.º 1 do artigo 113.º do RJSPME.
DD. A qual tem como estatuição que o prestador de serviços de pagamento [o aqui recorrente] não é responsável por qualquer transação ordenada mediante a introdução de dois elementos distintos de autenticação: conhecimento, posse e inerência.
EE. Este era o raciocínio que se exigia do tribunal a quo em vez do facilitismo com que encarou o crucial papel de administração da justiça, condescendendo a uma patente solução castigadora de uma aparente indiferença do aqui recorrente aos presentes autos, refletida pela ausência de contestação.
 Nestes termos, e nos mais de Direito a suprir doutamente por V. Exa., deve o presente recurso de apelação ser julgado procedente, por provado, e em consequência ser:
a) ser reconhecida a nulidade da sentença ora recorrida, por total omissão dos específicos fundamentos de facto e de direito (al. b) do n.º 1 do artigo 615.º do CPC);
b) ser revogada a sentença ora recorrida e substituída por outra que aplicando o direito aos factos, de acordo com a melhor solução jurídica aplicável, determine a absolvição do aqui recorrente do pedido formulado pelos Autores.»
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Contra-alegaram os apelados, propugnando pela improcedência da apelação.

QUESTÕES A DECIDIR
Nos termos dos Artigos 635º, nº 4 e 639º, nº1, do Código de Processo Civil, as conclusões delimitam a esfera de atuação do tribunal ad quem, exercendo um função semelhante à do pedido na petição inicial.[1] Esta limitação objetiva da atuação do Tribunal da Relação não ocorre em sede da qualificação jurídica dos factos ou relativamente a questões de conhecimento oficioso, desde que o processo contenha os elementos suficientes a tal conhecimento (cf. Artigo 5º, nº 3, do Código de Processo Civil). Também não pode este Tribunal conhecer de questões novas que não tenham sido anteriormente apreciadas porquanto, por natureza, os recursos destinam-se apenas a reapreciar decisões proferidas, ressalvando-se as questões de conhecimento oficioso, v.g., abuso de direito.[2]
Nestes termos, as questões a decidir são as seguintes:
i.Nulidade da sentença por falta de fundamentação;
ii.Responsabilidade do réu/apelante como prestador de serviços de pagamento.
Corridos que se mostram os vistos, cumpre decidir.
FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
A matéria de facto relevante para a apreciação de mérito é a que consta do relatório, cujo teor se dá por reproduzido.
FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO
Nulidade da sentença por falta de fundamentação
A sociedade ré não contestou esta ação.
Nos termos do Artigo 567º, nº 1, do Código de Processo Civil, se o réu não contestar consideram-se confessados os factos articulados pelo autor. E, nos termos do nº3, «Se a resolução da causa revestir manifesta simplicidade, a sentença pode limitar-se  à parte decisória, precedida da necessária identificação das partes e da fundamentação sumária do julgado
No que tange à interpretação desta norma, releva a seguinte jurisprudência.
Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 23.10.2023, Carlos Gil, 448/23:
I- Ao abrigo do disposto no nº 2 do artigo 567º do Código de Processo Civil é legalmente admissível uma fundamentação sumária por meio de uma remissão para os fundamentos de facto e de direito vertidos na petição inicial, desde que os mesmos sejam suficientes, isto é, desde que nesse articulado constem os factos essenciais que integram a causa de pedir e bem assim as razões de direito que servem de fundamento à ação.
II - A incoerência de fundamentos jurídicos ou a impertinência de normativos invocados na decisão recorrida não integra a nulidade da sentença por falta de fundamentação mas sim, a ocorrer, um típico erro de julgamento.
Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 27.4.2023, Luís Mendonça, 11262/21:
A forma simplificada da sentença do artigo 567.º, 3 não está sujeita ao regime imposto pelo artigo 607.º, 2,3 e 4, não exigindo fundamentação de facto.
Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 20.12.2018, Francisco Matos, 1402/17:
Em caso de revelia operante do réu, sendo manifesta a simplicidade da causa, o juiz pode proferir a decisão condenatória do réu por mera adesão à argumentação do autor, o que significa que a sentença não tem que discriminar os factos que julgou provados.
Crê-se que esta jurisprudência faz uma interpretação correta do disposto no Artigo 567º, nº 3, do Código de Processo Civil, sendo aplicável ao caso.
Nessa medida, não era exigível que a sentença impugnada contivesse uma discriminação feita um a um dos factos provados, sendo ainda que, quanto à fundamentação de direito, é admissível uma remissão para os fundamentos expressos na petição inicial, como foi o caso.
Se esses fundamentos fácticos e jurídicos não são suficientes para determinar a procedência da ação, é matéria que extravasa o vício formal da nulidade por falta de fundamentação, relevando – isso sim – como eventual erro de julgamento.
Assim, improcede a arguição da nulidade da sentença por falta de fundamentação, sem prejuízo da apreciação de mérito a efetuar infra.
Responsabilidade do réu/apelante como prestador de serviços de pagamento
Em sede de apreciação de mérito, há que recapitular os factos vertidos na petição inicial, para os quais remeteu a decisão apelada.
Assim, os factos relevantes são os seguintes:
1. Os Autores são, desde 14/05/2020, cotitulares da conta bancária de depósitos à ordem denominada “Conta B...”, aberta nessa data junto da sociedade Ré, tendo-lhe sido atribuído o n.º ...55 (IBAN: PT5001930000...5522) e sendo o seu número de cliente ...47;
2. O 1.º Autor, por ser um dos cotitulares da referida conta, estava-lhe atribuído um cartão de débito com o número ...100, cartão este que o 1.º Autor usava habitualmente, incluindo nas suas deslocações ao estrangeiro, tendo o 1.º Autor também aderido aos canais digitais associados à conta que usava frequentemente;
3. No dia 21 de Novembro de 2021, o 1.º Autor encontrava-se em viagem na cidade de Paris e terá utilizado o referido cartão (pela última vez) numa aquisição efetuada pelo valor de € 22,50 (vinte e dois euros e cinquenta cêntimos) e que consta mencionada nos extratos bancários com a Ref.ª “SUTHENTHIRAN KA75PARIS 04 - Terminal Internacional”, tendo esta transação ocorrido por volta das 03:30 do referido dia 21;
4. Algum tempo depois, já de volta ao hotel onde estava alojado, por volta das 13:00 do mesmo dia 21 de Novembro de 2021, quando se preparava para sair novamente, o 1.º Autor apercebeu-se da falta do seu cartão de débito, não estando este na sua carteira onde se lembrava de o ter guardado após a última utilização, o que de imediato o fez recear que o mesmo pudesse ter sido furtado, até por temer a prática deste tipo de crime e o mesmo ser comum na cidade onde se encontrava;
5. De imediato, o 1.º Autor entrou na Aplicação do B... para telemóvel, disponibilizada pela Ré, e procedeu ao cancelamento do cartão por desconfiar que o mesmo poderia ter sido furtado, tendo na altura confirmado que nos movimentos da conta bancária não existiam quaisquer transações suspeitas registadas e tendo recebido a confirmação na APP do cancelamento com sucesso;
6. No dia 24/11/2021, os Autores, já de regresso a Portugal, ao consultarem os seus movimentos bancários detetaram que haviam sido efetuadas 2 operações bancárias que não foram por si realizadas ou autorizadas, no valor total de € 400,00 (quatrocentos euros), tais transações foram efetuadas em dois levantamentos sucessivos em caixas ATM, um de € 100,00 e outro de €300,00;
7. Preocupado com a situação,  o 1.ºAutor dirigiu-se a um balcão da Ré – (...) Lapa 0761 - e fez uma reclamação formal referente ao extravio do seu cartão, tendo declarado precisamente o já supra descrito e solicitado o estorno dos valores que haviam sido indevidamente retirados da sua conta já após ter procedido ao cancelamento do cartão na Aplicação, cancelamento que foi confirmado neste balção pelo próprio funcionário que recebeu a reclamação – o Sr. BF, número de colaborador 1445812, tendo a Ré procedido no próprio dia 24 ao estorno dos montantes reclamados que identificou no extrato como “sanação da reclamação”;
8. Para enorme surpresa dos Autores, no dia 25 de Novembro,  quando consultaram a sua conta,  verificaram que a mesma havia sido totalmente esvaziada, tendo-lhes sido retirado indevidamente mais um montante de €5.200,00 através de 18 transações consecutivas identificadas pelo próprio banco em duas plataformas diferentes (online e na APP) como tendo ocorrido no dia 25 de Novembro de 2021, movimentos estes que a Ré não cuidou de impedir mesmo estando o cartão cancelado desde o dia 21 de Novembro e tendo até já sido feita a reclamação formal no balcão no dia 24 de Novembro já supra referida e junta;
9. O 1.º Autor realizou nova reclamação formal junto do mesmo balcão,  sendo que à mesma se encontra anexa a nova lista de transações não autorizadas pelo 1.º Autor – lista fornecida e anexa à reclamação pelo próprio banco – não existindo nesta data qualquer dúvida quanto à data das transações nem quanto à data do cancelamento do cartão, conforme consta do próprio documento porque confirmado/constatado pelo mesmo funcionário Sr. BF que havia recebido a primeira reclamação;
10. Uma vez mais a Ré procedeu ao estorno do valor reclamado sob a mesma designação no extrato “sanação reclamação”,  mas uma vez mais o fez de forma meramente fictícia para fingir “cumprir” com a sua obrigação legal, uma vez que o valor alegadamente estornado só surgia na conta como saldo contabilístico e nunca como saldo disponível, tal aliás nunca veio a suceder, até por a Ré estar, desde o inicio da situação,  a tentar desresponsabilizar-se, recusando assumir a sua responsabilidade  pelos danos ocorridos na esfera dos Autores, resultando a mesma quer da sua inércia após o cancelamento do cartão e reclamação apresentados quer da manifesta ausência de medidas de proteção contra este tipo de transação;
11. Os Autores, quando se aperceberam que o valor do estorno não passava a saldo disponível e acabou outrossim por desaparecer do seu saldo contabilístico, foram solicitando esclarecimentos e respostas à Ré que se ia escusando a responder dizendo que a situação continuava em análise, perante a demora – já em Abril de 2022, quase 5 meses depois - o 1.º Autor optou por apresentar uma nova reclamação formal, desta feita no Livro de Reclamações  e a resposta da Ré surge de forma lacónica e seca dizendo que não assumia qualquer responsabilidade porque as transações "foram realizadas mediante a correta introdução dos fatores de autenticação aplicáveis às transações presenciais, de natureza pessoal e intransmissível, o que permitiu a respetiva realização, com sucesso e sem registo de anomalias.” ;
12. No dia 9 de Maio de 2022, a Ré enviou ao 1.º Autor uma mensagem na qual comunica agradecer o contacto deste e informa que o cancelamento do cartão (na origem das transações, pois não tinha outro) teria sido cancelado em 23/02/2022, ou seja, fazendo fé na própria, a Ré terá mantido o dito cartão bancário ativo quase até final de Fevereiro de 2022, apesar de todas as reclamações e pedidos de esclarecimentos efetuados;
13. O 1.º Autor sempre teve o maior cuidado quando utilizou o seu cartão bancário e quando tendo de recorrer aos fatores de autenticação para utilizar o mesmo sempre o fez ocultando o melhor que conseguiu a introdução do código do seu cartão;
14. A ter existido alguém a aceder a tal informação – o que obviamente se questiona sequer se sucedeu ou não pois nada nesse sentido foi até ao dia de hoje apresentado pela Ré exceto a sua resposta às reclamações (sem nenhuma prova) - sempre o acesso a tal informação teria de ter sido efetuado de forma criminosa/fraudulenta, porquanto o 1.º Autor jamais forneceu essa informação a alguém e não a mantinha sequer registada consigo por nenhuma forma, tendo a mesma somente memorizada;
15. O 2.º Autor nem sequer teve nada a ver com o assunto exceto ter testemunhado a atuação desrespeitosa da Ré para com ambos os cotitulares e ter-se visto despojado do valor que tinha na sua conta bancária.
Atento este quadro factual, interessa agora determinar se o réu/apelante deve ressarcir os autores pelos valores que foram retirados da respetiva conta bancária, o que convoca a aplicação do Regime Jurídico dos Serviços de Pagamento e da Moeda Eletrónica constante do Decreto-lei nº 91/2018, de 12.11.
As disposições pertinentes para a análise do caso são as seguintes (sublinhando-se as diretamente pertinentes ao caso):
Artigo 110.º
Obrigações do utilizador de serviços de pagamento associadas aos instrumentos de pagamento
1 - O utilizador de serviços de pagamento com direito a utilizar um instrumento de pagamento deve:
a) Utilizar o instrumento de pagamento de acordo com as condições que regem a sua emissão e utilização, as quais têm de ser objetivas, não discriminatórias e proporcionais; e
b) Comunicar, logo que tenha conhecimento dos factos e sem atraso injustificado, ao prestador de serviços de pagamento ou à entidade designada por este último, a perda, o furto, o roubo, a apropriação abusiva ou qualquer utilização não autorizada do instrumento de pagamento.
2 - Para efeitos da alínea a) do número anterior, o utilizador de serviços de pagamento deve tomar todas as medidas razoáveis, em especial logo que receber um instrumento de pagamento, para preservar a segurança das suas credenciais de segurança personalizadas.
Artigo 111.º
Obrigações do prestador de serviços de pagamento associadas aos instrumentos de pagamento
1 - O prestador de serviços de pagamento que emite um instrumento de pagamento deve:
a) Assegurar que as credenciais de segurança personalizadas do instrumento de pagamento só sejam acessíveis ao utilizador de serviços de pagamento que tenha direito a utilizar o referido instrumento, sem prejuízo das obrigações do utilizador do serviço de pagamento estabelecidas no artigo anterior;
b) Abster-se de enviar instrumentos de pagamento não solicitados, salvo quando um instrumento deste tipo já entregue ao utilizador de serviços de pagamento deva ser substituído;
c) Garantir a disponibilidade, a todo o momento, de meios adequados para permitir ao utilizador de serviços de pagamento proceder à comunicação prevista na alínea b) do n.º 1 do artigo 110.º ou solicitar o desbloqueio nos termos do n.º 4 do artigo 108.º;
d) Facultar ao utilizador do serviço de pagamento, a pedido deste, os meios necessários para fazer prova, durante 18 meses após a comunicação prevista na alínea b) do n.º 1 do artigo 110.º, de que efetuou essa comunicação ou solicitou o desbloqueio nos termos do n.º 4 do artigo 108.º;
e) Impedir qualquer utilização do instrumento de pagamento logo que a comunicação prevista na alínea b) do n.º 1 do artigo 110.º tenha sido efetuada.
(…)
Artigo 113.º
Prova de autenticação e execução da operação de pagamento
1 - Caso um utilizador de serviços de pagamento negue ter autorizado uma operação de pagamento executada, ou alegue que a operação não foi corretamente efetuada, incumbe ao respetivo prestador do serviço de pagamento fornecer prova de que a operação de pagamento foi autenticada, devidamente registada e contabilizada e que não foi afetada por avaria técnica ou qualquer outra deficiência do serviço prestado pelo prestador de serviços de pagamento.
2 - Se a operação de pagamento tiver sido iniciada através de um prestador do serviço de iniciação do pagamento, recai sobre este último o ónus de provar que, no âmbito da sua esfera de competências, a operação de pagamento foi autenticada e devidamente registada, e não foi afetada por qualquer avaria técnica ou por outra deficiência relacionada com o serviço de pagamento por si prestado.
3 - Caso um utilizador de serviços de pagamento negue ter autorizado uma operação de pagamento executada, a utilização do instrumento de pagamento registada pelo prestador de serviços de pagamento, incluindo o prestador do serviço de iniciação do pagamento, se for caso disso, não é necessariamente suficiente, por si só, para provar que a operação de pagamento foi autorizada pelo ordenante, que este último agiu de forma fraudulenta, ou que não cumpriu, com dolo ou negligência grosseira, uma ou mais obrigações previstas no artigo 110.º
4 - Nas situações a que se refere o número anterior, o prestador de serviços de pagamento, incluindo, se for caso disso, o prestador do serviço de iniciação do pagamento, deve apresentar elementos que demonstrem a existência de fraude, de dolo ou de negligência grosseira da parte do utilizador de serviços de pagamento.
Artigo 114.º
Responsabilidade do prestador de serviços de pagamento em caso de operação de pagamento não autorizada
1 - Sem prejuízo do disposto no artigo 112.º, o prestador de serviços de pagamento do ordenante deve reembolsar imediatamente o ordenante do montante da operação de pagamento não autorizada após ter tido conhecimento da operação ou após esta lhe ter sido comunicada e, em todo o caso, o mais tardar até ao final do primeiro dia útil seguinte àquele conhecimento ou comunicação.
(…)
3 - Sempre que haja lugar ao reembolso do ordenante, o prestador de serviços de pagamento do ordenante deve assegurar que a data-valor do crédito na conta de pagamento do ordenante não é posterior à data em que o montante foi debitado na conta.
4 - No caso previsto no número anterior, o prestador de serviços de pagamento do ordenante, se for caso disso, repõe a conta de pagamento debitada na situação em que estaria se a operação de pagamento não autorizada não tivesse sido executada.
5 - Caso a operação de pagamento seja iniciada através de um prestador do serviço de iniciação do pagamento, o prestador de serviços de pagamento que gere a conta deve reembolsar imediatamente o ordenante do montante da operação de pagamento não autorizada após ter tido conhecimento da operação ou após esta lhe ter sido comunicada e, em todo o caso, o mais tardar até ao final do primeiro dia útil seguinte àquele conhecimento ou comunicação.
(…)
7 - Sempre que haja lugar ao reembolso ao ordenante, o prestador de serviços de pagamento que gere a conta deve, se for caso disso, repor a conta de pagamento debitada na situação em que estaria se a operação de pagamento não autorizada não tivesse sido executada.
8 - Se o prestador do serviço de iniciação de pagamento for responsável pela operação de pagamento não autorizada, deve indemnizar imediatamente o prestador de serviços de pagamento que gere a conta, a pedido deste, pelos danos sofridos ou pelos montantes pagos em resultado do reembolso ao ordenante, incluindo o montante da operação de pagamento não autorizada.
9 - Nos casos a que é aplicável o disposto no n.º 2 do artigo 113.º, recai sobre o prestador de serviços de iniciação do pagamento o ónus de provar que, no âmbito da sua esfera de competência, a operação de pagamento foi autenticada e devidamente registada, e não foi afetada por qualquer avaria técnica ou por outra deficiência relacionada com o serviço de pagamento por si prestado.
10 - Sempre que o ordenante não seja imediatamente reembolsado pelo prestador de serviços de pagamento, e não tenham sido detetados motivos razoáveis que constituam fundamento válido de suspeita de fraude, ou essa suspeita não tenha sido comunicada, por escrito, à autoridade judiciária nos termos da lei penal e de processo penal, são devidos ao ordenante juros moratórios, contados dia a dia desde a data em que o utilizador de serviços de pagamento tenha negado que autorizou a operação de pagamento executada, até à data do reembolso efetivo da mesma, calculados à taxa legal, fixada nos termos do Código Civil, acrescida de 10 pontos percentuais, sem prejuízo do direito à indemnização suplementar a que haja lugar.
Articulando estes dispositivos legais, acompanhamos a síntese expressa no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 12.10.2023, Ana Luísa Loureiro, 3728/21:
«(…) do disposto nos n.ºs 1, 3 e 4 do art.º 113.º do RJSPME resulta que a prova efetuada pelo banco de que a operação de pagamento foi autenticada, devidamente registada e contabilizada, não prova, por si só, que a operação de pagamento foi autorizada pelo ordenante (nem que este último agiu de forma fraudulenta, ou que não cumpriu, com dolo ou negligência grosseira, uma ou mais obrigações previstas no artigo 110.º), incumbindo ao banco réu (prestador de serviços) fazer prova da existência de fraude, de dolo ou de negligência grosseira da parte do utilizador de serviços de pagamento.
Da leitura conjugada das disposições legais supra transcritas decorre, em síntese, que a entidade bancária prestador de serviços de pagamento, no caso de realização de operações de pagamento não autorizadas sobre a conta do cliente através da utilização de serviço de homebanking, com recurso a fraude informática e/ou burla, apenas vê afastada a sua responsabilidade pelos danos sofridos pelo utilizador de serviços de pagamento se alegar e provar que o dano em causa se deveu a atuação dolosa ou negligência grosseira do utilizador do serviço.
Do regime da responsabilidade do ordenante em caso de operação de pagamento não autorizada previsto no art.º 115.º, n.º 3 e n.º 4, conjugada com o regime de prova de autenticação e execução da operação de pagamento estabelecido no art.º 113.º, n.º 1, n.º 3 e n.º 4, ambos do RJSPME, resulta assim que (…)  o risco inerente à utilização e funcionamento dos serviços de pagamento recai sobre o prestador de serviços, cabendo a este, para se eximir dessa responsabilização, não só provar que a operação de pagamento foi devidamente autenticada (art.º 113.º, n.º 1), mas ainda que o utilizador dos serviços de pagamento (ordenante) atuou de forma fraudulenta ou incumpriu de forma deliberada uma ou mais das suas obrigações decorrentes do artigo 110.º ou que atuou com negligência grosseira (art.º 113.º, n.º 3 e n.º 4).»
Considerando que o atual Artigo 113º, nº1 e nº3, corresponde ao revogado Artigo 70º, nºs 1 e 2, do Decreto-lei nº 317/2009, é ainda pertinente o ensinamento da seguinte jurisprudência e doutrina.
Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 14.12.2016, Pinto de Almeida, 1063/12:
II - Apenas o prestador do serviço de pagamentos referido em I – o banco – pode assegurar a operacionalidade do complexo sistema informático utilizado e a regularidade do seu funcionamento, garantindo, também, a confidencialidade dos dispositivos de segurança que permitem aceder ao instrumento de pagamento.
III - Por esta razão, recai sobre o banco prestador do serviço o risco das falhas e do deficiente funcionamento do sistema, impendendo ainda sobre o mesmo o ónus da prova de que a operação de pagamento não foi afetada por avaria técnica ou qualquer outra deficiência (cf. art.º 70.º do referido Regime dos Sistemas de Pagamento).
IV - Ao utilizador do serviço de pagamento – que deve dispor de um conjunto de dispositivos de segurança, como o código de acesso, cartão matriz, entre outros, que lhe vão permitir aceder a esse serviço, dada a sua função de autenticação e identificação – exige-se que tome as medidas razoáveis em ordem a preservar a eficácia desses dispositivos.
V - Entre as técnicas mais frequentemente utilizadas por terceiros para aceder, fraudulentamente, através do sistema, à conta do cliente utilizador do serviço de homebanking, contam-se: (i) o phishing, que consiste no envio de mensagens de correio eletrónico, que provêm aparentemente do banco prestador do serviço, tentando obter dados confidenciais que permitam o acesso ao serviço de pagamento eletrónico; e (ii) o pharming, uma “técnica mais sofisticada em que é «corrompido» o próprio nome de domínio de uma instituição financeira, redirecionando o utilizador para um site falso – em tudo similar ao verdadeiro – sempre que este digita no teclado a morada correta do seu banco”.
VI - Havendo quebra de segurança resultante da intromissão abusiva de terceiros, que lograram, por meio desconhecido, obter os dispositivos de segurança que permitiram o acesso às contas, não é adequado concluir ser aquela quebra imputável ao utilizador do serviço de pagamento apenas por ter este facultado os referidos dispositivos à contabilista, uma “auxiliar”, sendo esta atuação conforme com a diligência de um homem médio e, por isso, razoável, inexistindo negligência grave.
VII - Se o banco réu não demonstrou, como era seu ónus, que o utilizador tenha tido qualquer comportamento suscetível de pôr em causa a segurança do sistema, desconhecendo-se o modo como os terceiros lograram obter os dispositivos de segurança, tem o mesmo a obrigação de reembolsar imediatamente o ordenante do montante da operação de pagamento não autorizada (art.º 71.º, n.º 1, do Regime dos Sistemas de Pagamento).
No mesmo sentido, vejam-se ainda os Acórdãos da Relação de Lisboa de 3.3.2015, Manuel Marques, 1727/13, www.colectaneadejurisprudencia.com, de 14.3.2017, Conceição Saavedra, 4029/15, de 21.12.2017, Manuel Rodrigues, 1318/09, de 8.3.2018, Ana Paula Carvalho, 5525/16.
Na doutrina, Carolina França Barreira, Homebanking: A Repartição dos Prejuízos Decorrentes de Fraude Informática, pp. 47-49, afirma que:
«A opção legislativa constante do n.º 1 do artigo 70º deve-se ao simples facto de o utilizador não poder ser colocado na necessidade de fazer prova sobre o funcionamento do complexo sistema informático do banco, sistema este que não domina. Uma vez feita esta prova, cabe ainda ao banco provar a culpa do seu cliente e o grau da sua contribuição para os prejuízos ocorridos. Assim, o n.º 2 do mesmo artigo estabelece que, caso o utilizador negue ter autorizado determinada operação de pagamento ou alegue que esta não foi corretamente efetuada, “a utilização do instrumento de pagamento registada pelo prestador de serviços de pagamento, por si só, não é necessariamente suficiente para provar que a operação de pagamento foi autorizada pelo ordenante, que este último agiu de forma fraudulenta ou que não cumpriu, deliberadamente ou por negligência grave, uma ou mais das suas obrigações decorrentes do artigo 67º .
O primeiro ponto que este preceito nos indica é que o registo da operação de pagamento não pode ser entendido como um sinal inequívoco de que o titular a autorizou. A autorização no homebanking, geralmente, é concedida através da introdução de uma série de códigos pessoais e intransmissíveis no teclado de um computador, contudo não podemos ignorar os casos em que este acesso é feito por terceiros, distintos do titular do instrumento de pagamento, que conseguiram obter esses dados através de fraudes informáticas.
Mesmo que tal disposição legal não existisse no nosso ordenamento jurídico, consideraríamos igualmente que caberia ao banco a prova de que a operação de pagamento foi autorizada pelo seu cliente. Isto porque o facto de o cliente não ter procedido à ordem de pagamento consubstancia um facto negativo pois reconduz-se à alegação de um facto que não aconteceu. Como nestes casos, é muito difícil para o credor (cliente) fazer prova de que um facto não aconteceu, deve-se entender que cabe à contraparte (banco) provar o facto positivo contrário ao facto negativo invocado.
Assim, compete à entidade bancária provar, no caso concreto, qual o nível de participação do seu cliente na operação de pagamento não autorizada e o grau de diligência com que atuou.
Julgamos pertinente fazer aqui um paralelismo com a assinatura de um documento particular, de acordo com o artigo 374º do CC. A lei civil considera verdadeira a assinatura constante de um documento particular quando reconhecida ou não impugnada pela parte contra quem o documento é apresentado (n.º 1 do referido preceito legal). Contudo, se a parte contra quem o documento é apresentado, ou seja, se o seu alegado autor impugnar a veracidade da assinatura, incumbe à parte que apresenta o documento a prova da sua veracidade (n.º 2 do artigo 374º do CC). Isto significa que se o seu alegado autor impugnar a assinatura, o ónus da prova da sua genuinidade recai sobre quem apresenta o documento. No contrato de homebanking, os códigos introduzidos aquando do acesso ao serviço desempenham a função de assinatura, como que substituindo-a. Num primeiro momento, os movimentos lançados na conta bancária do cliente são tidos como autorizados pelo seu titular. Todavia, se este os impugnar, negando tê-los autorizado, recai sobre o banco o ónus da prova de que foram devidamente autorizados. Como podemos verificar, a nossa situação é em tudo semelhante à da assinatura de um documento particular justificando assim o lugar paralelo.
Retomando a análise do regime do ónus da prova consagrado no artigo 70º do RSP, verificamos que cabe ao banco provar que a ordem de pagamento emana do seu cliente, garantindo-se, assim, a proteção do utilizador do instrumento de pagamento. A mesma disposição legal atribui ao banco o ónus da prova relativo à existência de um comportamento gravemente negligente, fraudulento ou que reflita o incumprimento deliberado de deveres por parte do utilizador, que terá de provar caso queira exonerar-se do dever de suportar os prejuízos ocorridos (…)»
Revertendo ao caso em apreço, temos que, em 21.11.2021, o 1º autor apercebeu-se da falta do seu cartão de débito, sendo que o havia utilizado no mesmo dia, em Paris. De imediato, o 1º autor entrou na aplicação do B... para telemóvel, e procedeu ao cancelamento do cartão por desconfiar que o mesmo poderia ter sido furtado.
Ao atuar desta forma, o 1º autor observou as obrigações que lhe incumbiam, quer ao abrigo das cláusulas 2.4 e 11.1 das Condições Contratuais Gerais de Abertura de cota por pessoa singular (documento nº1 junto com a petição), quer as que decorrem do Artigo 110º, nº1, al. b), do Decreto-lei nº 91/2018, de 12.11.
Nos termos do Artigo 115º, nº 7, deste diploma, «Após ter procedido à comunicação a que se refere a alínea b) do n.º 1 do artigo 110.º, o ordenante não deve suportar quaisquer consequências financeiras resultantes da utilização de um instrumento de pagamento perdido, furtado, roubado ou abusivamente apropriado, salvo em caso de atuação fraudulenta
Conforme acima se viu, o risco inerente à utilização e funcionamento dos serviços de pagamento recai sobre o prestador de serviços, cabendo a este, para se eximir dessa responsabilização, provar que (i) a operação de pagamento foi devidamente autenticada (art.º 113º, nº 1), o que estará indiciado pelos factos acima enunciados sob 6 e 8, (ii) não foi afetada por qualquer avaria técnica ou por outra deficiência relacionada com o serviço de pagamento por si prestado (Artigo 114º, nº 9), mas ainda que  (iii) o utilizador dos serviços de pagamento (ordenante) atuou de forma fraudulenta ou incumpriu de forma deliberada uma ou mais das suas obrigações decorrentes do artigo 110º ou que atuou com negligência grosseira (art.º 113º, nº 3 e nº 4).
Ora, atenta a factualidade apurada nos autos, o Réu não logrou provar quer o requisito enunciado sob (ii) quer qualquer uma destas circunstâncias alternativas excludentes da sua responsabilidade (iii). Em sentido contrário, está demonstrado que o 1º Autor jamais forneceu a terceiros a informação atinente à autenticação do seu cartão, mantendo-a somente memorizada (cf. factos enunciados sob 13 e 15 supra).
Assim, o risco da realização das operações sem autorização dos autores corre por conta do réu.
Assim, tendo sido indevidamente subtraídas da conta dos autores quantias que totalizam €5.600 (€100 + €300 + €5.200), deve o Réu ser condenado a repor a conta de pagamento debitada na situação em que estaria se as operações não autorizadas não tivessem sido executadas (Artigo 114º, nº 7), acrescendo juros à taxa legal de 4% (cf. Artigo 114º, nº10) desde 24.11.2021 sobre €400 e sobre €5.200 desde 25.11.2021, o que está conforme com os pedidos deduzidos pelos autores sob a) e b) do petitório. Não é aplicável o acréscimo de 10% (cf. Artigo 114º, nº10) porquanto o mesmo não foi peticionado.
A fundamentação autónoma da condenação em custas só se tornará necessária se existir controvérsia no processo a esse propósito (cf. art.º 154º, nº 1, do Código de Processo Civil; Acórdãos do Tribunal Constitucional nºs. 303/2010, de 14.7.2010, Vítor Gomes, e 708/2013, de 15.10.2013, Maria João Antunes).
DECISÃO
Pelo exposto, acorda-se em julgar improcedente a apelação, confirmando-se a sentença recorrida, sendo o réu condenado a reintegrar a conta bancária dos autores pelos valores parciais de €400 e €5.200, acrescendo juros à taxa legal de 4% desde 24.11.2021 sobre €400 e sobre € 5.200, desde 25.11.2021.
Custas pela apelante na vertente de custas de parte (Artigos 527º, nºs 1 e 2, 607º, nº6 e 663º, nº 2, do Código de Processo Civil).

Lisboa, 20.2.2024
Luís Filipe Pires de Sousa
Diogo Ravara
Cristina Coelho         
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[1] Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil, 7ª ed., 2022, p. 186.
[2] Abrantes Geraldes, Op. Cit., pp. 139-140.
Neste sentido, cf. os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 9.4.2015, Silva Miguel, 353/13, de 10.12.2015, Melo Lima, 677/12, de 7.7.2016, Gonçalves Rocha, 156/12, de 17.11.2016, Ana Luísa Geraldes, 861/13, de 22.2.2017, Ribeiro Cardoso, 1519/15, de 25.10.2018, Hélder Almeida, 3788/14, de 18.3.2021, Oliveira Abreu, 214/18, de 15.12.2022, Graça Trigo, 125/20, de 11.5.2023, Oliveira Abreu, 26881/15, de 25.5.2023, Sousa Pinto, 1864/21, de 11.7.2023, Jorge  Leal, 331/21. O tribunal de recurso não pode conhecer de questões novas sob pena de violação do contraditório e do direito de defesa da parte contrária (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17.12.2014, Fonseca Ramos, 971/12).