Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
475/22.7PALSB.L2-3
Relator: MARIA MARGARIDA ALMEIDA
Descritores: LEI Nº 38-A/23
DE 2 DE AGOSTO
PERDÃO
INCIDÊNCIA
CRIMES NÃO PERDOADOS
PENA ÚNICA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 02/21/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO
Sumário: O perdão de penas concedido pela Lei 38-A/23, de 2 de Agosto incide sobre a pena única em cúmulo, ainda que nesta estejam englobadas penas pela comissão de crimes excluídos do perdão.

Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam em conferência na 3ª secção do Tribunal da Relação de Lisboa

*

I–Relatório


1.–O arguido AA foi condenado, por decisão transitada em julgado, na pena única de 4 (anos) anos e 3 (três) meses de prisão efectiva.

Neste cúmulo incluem-se as seguintes penas parcelares:
- 2 (dois) anos de prisão, pela prática, por cada um dos 4 (quatro) crimes de roubo, previstos e punidos pelo Art.º 210.º, n.º 1, do Código Penal;
- 9 (nove) meses de prisão, pela prática de um crime de detenção de arma proibida, previsto e punido pelos Arts.º 2.º, n.º 1, alínea m) 3.º, n.º 2, alínea d) e 86.º, n.º 1, alínea d), todos da Lei n.º 5/2006, de 23/02.

O arguido BB foi condenado, por decisão transitada em julgado, na pena única de 4 (anos) anos e 3 (três) meses de prisão efectiva.

Neste cúmulo, incluem-se as seguintes penas parcelares:
- 2 (dois) anos de prisão, por cada um dos 4 (quatro) crimes de roubo, previstos e punidos pelo Art.º 210.º, n.º 1, do Código Penal;
- 9 (nove) meses de prisão, pela prática um crime de detenção de arma proibida, previsto e punido pelos Arts.º 2.º, n.º 1, alínea m) 3.º, n.º 2, alínea d) e 86.º, n.º 1, alínea d), todos da Lei n.º 5/2006, de 23/02.

2.–Os condenados requereram que lhes fosse aplicada a Lei nº 38-A/23, de 2 de Agosto, pedindo que seja descontado um ano de prisão.

3.–Por despacho de 29 de Novembro de 2023, foi deferida tal pretensão, tendo sido declarado o perdão de 1 (um) ano de prisão, cumprindo, consequentemente:
- o arguido AA a pena única de 3 (três) anos e 3 (três) meses de prisão efectiva;
- o arguido BB a pena única de 3 (três) anos e 3 (três) meses de prisão efectiva.

4.–Inconformado, veio o Mº Pº interpor recurso, pedindo a substituição do despacho recorrido por outro que mantenha inalteradas as penas parcelares de prisão, pela prática dos crimes de roubo, em que os arguidos foram condenados, extinguindo integralmente a pena dos crimes de detenção de arma proibida, por força da aplicação do perdão, restando tão só as penas dos crimes que não beneficiam de tal medida.

5.–O recurso foi admitido.

6.–Os reclusos não apresentaram resposta.

7.–Neste tribunal, o Exº PGA pronunciou-se no sentido da procedência do recurso.

II–fundamentação.

1.–A decisão proferida pelo tribunal “a quo”, tem o seguinte teor:
O arguido AA foi condenado, por decisão transitada em julgado, na pena única de 4 (anos) anos e 3 (três) meses de prisão efectiva.
- nas penas parcelares de 2 (dois) anos de prisão, pela prática por cada um dos 4 (quatro) crimes de roubo, previstos e punidos pelo Art.º 210.º, n.º 1, do Código Penal e de 9 (nove) meses de prisão, pela prática de um crime de detenção de arma proibida, previsto e punido pelos Arts.º 2.º, n.º 1, alínea m) 3.º, n.º 2, alínea d) e 86.º, n.º 1, alínea d), todos da Lei n.º 5/2006, de 23/02.
O arguido CC foi condenado, por decisão transitada em julgado, na pena única de 4 (quatro) anos de prisão efectiva.
- nas penas parcelares de 2 (dois) anos de prisão, pela prática por cada um dos 4 (quatro) crimes de roubo, previstos e punidos pelo Art.º 210.º, n.º 1, do Código Penal.
O arguido BB foi condenado, por decisão transitada em julgado, na pena única de 4 (anos) anos e 3 (três) meses de prisão efectiva;
- nas penas parcelares de 2 (dois) anos de prisão por cada um dos 4 (quatro) crimes de roubo, previstos e punidos pelo Art.º 210.º, n.º 1, do Código Penal e de 9 (nove) meses de prisão, pela prática um crime de detenção de arma proibida, previsto e punido pelos Arts.º 2.º, n.º 1, alínea m) 3.º, n.º 2, alínea d) e 86.º, n.º 1, alínea d), todos da Lei n.º 5/2006, de 23/02.
Vieram os arguidos, em síntese, requerer que seja aplicada a Lei do Perdão, requerendo que seja descontado um ano de prisão por cada crime.
Pronunciou-se o Digno Ministério Público pela aplicação da Lei do Perdão, na medida de 9 (nove) meses de prisão às penas aplicadas aos arguidos AA e BB, por conta da condenação pela prática do crime de detenção de arma proibida, sendo os demais crimes excepcionados da sua aplicação.
Considerando as datas de nascimentos dos arguidos, 16.10.1999, 25.01.1995 e 16.04.2003, constata-se efectivamente que todos tinham mais de dezasseis anos e menos de trinta anos na data da prática dos factos.
Mais se constata não terem sido condenados numa pena de prisão superior a oito anos.
No entanto, os três arguidos foram condenados pela prática de crimes de roubo, como já enunciado.

Estatui o Art.º 7.º, n.º 1, da Lei n.º 38-A/2023, de 02 de Agosto que: “Não beneficiam do perdão e da amnistia previstos na presente lei:
- alínea g) Os condenados por crimes praticados contra crianças, jovens e vítimas especialmente vulneráveis, nos termos do Art.º 67.º-A do Código de Processo Penal, aprovado em anexo ao Decreto-Lei n.º 78/87, de 17 de Fevereiro.”
Ou seja, o legislador expressamente exclui do benefício do perdão o condenado por crime praticado contra crianças, jovens e vítimas especialmente vulneráveis, independentemente do tipo de crime, pois, veja-se que a alínea g) deste preceito legal assume um carácter inequivocamente autónomo, não estando integrado nem na alínea a) “crimes contra as pessoas”, nem na alínea b) “crimes contra o património”.
Aliás, nem outra interpretação se pode extrair da explícita menção estatuída na alínea g) do n.º 1 do Art.º 7.º, da Lei n.º 38-A/2023, de 02/08, pois, mostram-se, desde logo, excluídos os crimes de infanticídio, violência doméstica, maus-tratos, contra a liberdade e a autodeterminação sexual, pelo que, se estivesse em causa essa qualidade de vítimas especialmente vulneráveis e/ou crianças/jovens não havia necessidade de alargar a excepção com a alínea g) do citado artigo.
Na verdade, a alínea g) do n.º 1 do Art.º 7.º, da Lei n.º 38-A/2023, de 02/08 prende-se com a qualidade do ofendido, da vítima, e não com o tipo de crime, mas sim o facto de o condenado o ter sido por ter praticado um crime contra crianças, jovens e vítimas especialmente vulneráveis, sendo certo que, o legislador esclareceu que o conceito de crianças, jovens e vítimas especialmente vulneráveis é o que se mostra definido no Art.º 67.º-A, do Código de Processo Penal.
Com efeito, antagónico seria estabelecer “um perdão de penas e uma amnistia de infracções por ocasião da realização em Portugal da Jornada Mundial da Juventude” (cfr. Arts.º 1 e 2.º, n.º 1, do referido diploma legal), estando abrangidas as “pessoas que tenham entre 16 e 30 anos de idade à data da prática do facto” e não ser igualmente ponderado o jovem, a criança e a vítima especialmente vulnerável que reveste (legalmente) a qualidade de vítima, contra quem o condenado praticou um crime.
Assim, a interpretação sistemática de tal alínea g) do n.º 1 do Art.º 7.º, da Lei n.º 38-A/2023, de 02/08, não pode ser outra que não seja a protecção da pessoa contra quem o condenado praticou crime, ficando expeccionado do perdão o condenado por crime praticado contra esta categoria de pessoas, independentemente do tipo de crime expressamente mencionado nas alíneas anteriores, pois, a não ser assim, esta alínea não teria qualquer efeito útil, à semelhança, aliás, dos reincidentes, que não beneficiam do perdão independentemente do crime em causa, como cristalinamente se retira da alínea j) do mesmo Art.º 7.
Pelo que, apesar do arguido CC ter menos de 30 anos na data da prática dos factos e de ter sido condenado em pena inferior a oito anos, a verdade é que, foi condenado pela prática (e somente) de crimes de roubo contra vítima especialmente vulnerável, pois o crime de roubo comporta uma conduta dolosamente dirigida contra (nomeadamente) a integridade física e a liberdade pessoal, pelo que, estamos perante a classificação legal de criminalidade violenta e é também especialmente violenta por a pena máxima aplicável ser igual a oito anos (cfr. Arts.º 1.º, alíneas j) e l), do Código de Processo Penal).
Pois, define o n.º 3 do Art.º 67.º-A, do Código de Processo Penal, para o qual expressamente remete a alínea g) do n.º 1 do Art.º 7, da Lei n.º 38-A/2023, de 02/08 que “As vítimas de criminalidade violenta e de criminalidade especialmente violenta são sempre consideradas vítimas especialmente vulneráveis para efeitos do disposto na alínea b) do n.º 1.”
Que por sua vez define: “vítima especialmente vulnerável, a vítima cuja especial fragilidade resulta, nomeadamente, da sua idade, do seu estado de saúde ou de deficiência (...)”, sendo que se considera “vítima a) i) a pessoa singular que sofreu um dano, nomeadamente um atentado à suai integridade física ou psíquica, um dano emocional ou moral, ou um dano patrimonial directamente causado por acção ou omissão, no âmbito da prática de um crime”.
Motivo pelo qual, o condenado pela prática de crime de roubo não beneficia do perdão.
Destarte, indefere-se a aplicação da lei do perdão ao arguido CC.
O mesmo se aplica quanto aos arguidos AA e BB, no que aos crimes de roubo se reporta, não podendo ser beneficiários do perdão.
Todavia, quanto ao crime de detenção de arma proibida, pelo qual estes dois arguidos foram também condenados, o mesmo não se mostra excepcionado da aplicação do perdão.
Sem descurar que, não é aplicado um ano por cada crime, mas sim na pena única.
Destarte, por imperativo legal, impõe-se a aplicação do perdão de 1 (um) ano de prisão na pena única aplicada, sob a condição resolutiva prevista no Art.º 8.º, n.º 1, da Lei n.º 38-A/2023, de 02/08.
O perdão, em caso de condenação em cúmulo jurídico, incide sobre a pena única (cfr. Art.º 3.º, n.º 4, da Lei n.º 38-A/2023, de 02 de Agosto) e a exclusão do perdão nos termos do Art.º 7.º, desta mesma Lei não prejudica a aplicação do perdão relativamente a outros crimes cometidos, como sucede nos autos, cfr. Art.º 7.º, n.º 3, da mesma Lei.
Sendo certo que, o legislador estatui de forma clara que o desconto de um ano é na pena única, não mencionando qualquer ressalva quanto à reformulação do cúmulo – como sucedida em outras leis – pelo que, essa ausência de qualquer ressalva não tem outra interpretação que não seja o efectuar no desconto na pena única.
Sem olvidar que, inexiste qualquer parcelar que possa estar a imiscuir-se na pena parcelar do crime excepcionado do perdão, visto que, por um lado, as penas parcelares perderam a sua autonomia, tendo sido englobadas numa pena única, e por outro lado, estar-se-ia a ficcionar que o peso no apuramento na pena única fosse equivalente à medida concreta da pena parcelar no que ao crime objecto de perdão.
Ora, onde o legislador não distingue não deve o intérprete fazê-lo, pelo que, afigura-se que a lei é clara, no sentido de o legislador ter pretendido que o desconto fosse um ano e a ser operado na pena única.
Pelo que, e atendendo ao regime legal acima aludido, se impõe declarar o perdão de 1 (um) ano de prisão, cumprindo, consequentemente:
- o arguido AA a pena única de 3 (três) anos e 3 (três) meses de prisão efectiva;
- o arguido BB a pena única de 3 (três) anos e 3 (três) meses de prisão efectiva.

2.–O recorrente, em sede conclusiva, apresenta as seguintes razões de discórdia:
1º- Em 15.11.2023 (Ref.º 430393150), o Ministério Público promoveu a aplicação aos condenados do perdão das penas parcelares, pelos crimes de detenção de arma proibida (inferiores a ano de prisão), por referência à pena única aplicada, nos termos do art.º 2.º/1, 3.º/1 e 4 e 7.º e sob a condições resolutivas previstas no art.º 8.º/1 da citada lei.
2º- Em 29.11.2023 (Ref.º430782032), o Tribunal “a quo” proferiu o despacho recorrido e aplicou às penas únicas, de cada um dos arguidos, o perdão de 1 ano de prisão, sendo que tal perdão abrange crime excepcionado pela Lei 38-A/2023 de 02.08, no art.º 7.º/1, al. b) (ponto i) e g) da Lei, isto é o crime de roubo.
3º- A questão que se coloca é a de saber se se mostram observadas correctamente as regras de aplicação do perdão, a que se refere o citado diploma, quando um crime está excluído do perdão (Roubo) e o que está abrangido(furto), tem uma pena parcelar inferior ao período fixado para o perdão (1 ano).
4º- In casu, os arguidos foram os mesmos condenados pela prática do crime de detenção de arma proibida, nas penas parcelares 9 meses (DD e EE) de prisão e pela prática de um crime de roubo nas penas parcelares de 4 anos, para cada um dos arguidos; em cúmulo jurídico, foram condenados, cada um deles, nas penas únicas de 4 anos e 3 meses de prisão.
5º- Por força da aplicação do perdão, o Tribunal “a quo” fixou como penas únicas, respectivamente, de 3 anos e 3 meses (DD) e 3 anos e 3 meses (EE) de prisão efectiva. - (Ref.º430782032, de 29.11.2023).
6º- Afigura-se-nos que o despacho recorrido está a perdoar uma parte da pena de um crime que a lei declara imperdoável, pelo que, foi além do espírito do legislador, uma vez que, o perdão deveria corresponder às penas parcelares do de detenção de arma proibida (respectivamente 9 meses e inferiores a um ano), sob pena de estar a violar o previsto no art.º 7.º/ 1 al. b) – ponto i) e al. g), da Lei 38A/2023 de 02.08,
7º- A interpretação que se perfilha é a única forma de impedir que o perdão genérico seja abusivamente concedido, pois não permite que o mesmo incida sobre penas dele excluídas, sob pena de conduzir a resultados metodologicamente incorrectos e totalmente desvirtuados do pensamento legislativo e a razão de ser da lei.
8º- Ter o entendimento perfilhado pelo Tribunal “a quo” redonda em benefício superior à medida prevista na lei para os condenados, situações estas claramente violadoras do princípio da igualdade consagrada no art.º 13.º da CRP.2
9º- o despacho recorrido estende, de modo injustificado e contrário ao espírito da lei, na parte da pena única de prisão não perdoável – aquela que corresponde aos crimes cometidos pelos condenados e excluídos do âmbito da aplicação da lei 38-A/2023 de 02.08 - sendo que o peso da pena parcelar a perdoar na pena única e fixada a final (4 anos e 3 meses), ficou aquém da sua exacta medida concreta (9 meses) ou, pelo menos, não a excedeu.
2 Vide Ac. STJ de 15.11.2006, proc.06P3183, Relator FF.
10°- O Ministério Público entende que deve manter-se inalterada as penas parcelares de prisão, pela prática dos crimes de roubo, em que os arguidos foram condenados, extinguindo integralmente a penas dos crimes de detenção de arma proibida, por força da aplicação do perdão, restando tão só as penas dos crimes que não beneficiam de tal medida.
10°- O Ministério Público defende que, o Tribunal “a quo” fez uma incorrecta interpretação e aplicação do direito, mormente do regime previsto nos art.° 3.°/ 1 e 4, 7.°/ 1 al. b) – ponto i) e al. g), da Lei 38-A/2023 de 02.08 e art.° 13.° da CRP.

3.–Apreciando.

No que se refere à circunstância de os dois condenados poderem ser abrangidos pela Lei da Amnistia, dadas as suas idades, à data da prática dos factos, bem como não terem sido condenados numa pena de prisão superior a oito anos, existe pleno consenso, entre o julgador e todos os intervenientes processuais.
De igual modo ninguém questiona que os crimes de roubo não beneficiam do perdão estabelecido na Lei nº 38-A/23, de 2 de Agosto, dada a expressa exclusão constante no seu artº 7º, nº1, al.b), i) - Por crimes de abuso de confiança ou burla, nos termos dos artigos 205.º, 217.º e 218.º do Código Penal, quando cometidos através de falsificação de documentos, nos termos dos artigos 256.º a 258.º do Código Penal, e por roubo, previsto no n.º 2 do artigo 210.º do Código Penal
Assim, os crimes de roubo pelos quais os arguidos foram condenados, mostram-se excluídos do âmbito do perdão de penas, previsto na acima mencionada lei, não havendo sequer necessidade de se fazer referência à al. g) do referido artigo, já que há norma expressa na lei da amnistia, a propósito deste específico tipo de ilícito.
Não obstante, no que concerne ao crime de detenção de arma proibida, que ambos os arguidos igualmente cometeram e pelos quais foram condenados, este mostra-se abrangido pelo perdão de penas da Lei nº 38-A/23, de 2 de Agosto, sendo certo que, a esse respeito, o limite máximo do perdão aplicável é de um ano (artº 3º nº1 da referida Lei).

4.–As penas parcelares pelas quais cada um dos arguidos foi condenado, foram englobadas, correctamente, numa pena única, em momento anterior à entrada em vigor da Lei nº 38-A/23, de 2 de Agosto, em cumprimento do disposto no artº 77 do C. Penal.
Assim, a única questão que se põe neste recurso, e a única divergência do recorrente, prende-se com o modo como deve ser aplicado o perdão previsto no artº 3º de tal lei.
Aí se estipula que (1) é perdoado 1 ano de prisão a todas as penas de prisão até 8 anos, bem como que, (4) em caso de condenação em cúmulo jurídico, o perdão incide sobre a pena única.
Ora, sendo um dos crimes em concurso passível de perdão de penas, mas o mesmo não sucedendo com os restantes crimes, há que proceder à aplicação conciliadora de tais normativos legais.

5.–Este problema surgiu já anteriormente, no âmbito de outras leis da amnistia, designadamente da Lei 29/99, de 12 de Maio, uma vez que o seu artº 1º nº4 igualmente estipulava a aplicação do perdão à pena única, em caso de cúmulo jurídico e nesse diploma vinham identicamente consignadas excepções à aplicação de tal perdão, atendendo quer a condições subjectivas, quer objectivas (tipos de ilícitos praticados).
Perfilaram-se então, em termos jurisprudenciais, várias soluções jurídicas, tendo em vista a conciliação, por um lado, da admissibilidade de perdão em relação a um ou mais crimes englobados em cúmulo jurídico – que implicava a forçosa necessidade de aplicar tal benefício ao condenado – e, por outro, da proibição da sua aplicação aos restantes ilícitos, excluídos de tal benesse, como nos dá conta Pedro José Esteves de Brito, in Notas práticas referentes à Lei n.º 38-A/20023, de 2 de Agosto, que estabelece um perdão de penas e uma amnistia de infracções por ocasião da realização em Portugal da Jornada Mundial da Juventude, Julgar Online, Agosto de 2023, nº 52, ponto 10:
10.-Do perdão em caso de condenação em cúmulo jurídico de penas (n.º 4):
A partir da Lei n.º 16/86, de 11 de junho, nas várias leis de amnistia e perdão, sempre foi estipulado que, em caso de cúmulo jurídico, o perdão incide sobre a pena única e não sobre as penas parcelares24. No entanto, relativamente aos cúmulos jurídicos englobando várias penas, em que umas beneficiam do perdão e outras não, as soluções foram variando ao longo do tempo. Inicialmente efetuava-se um cúmulo jurídico das penas parcelares abrangidas pelo perdão e calculava-se a respetiva pena única, a que se aplicava o perdão a que houvesse lugar e, depois, realizava-se outro cúmulo jurídico com o remanescente daquela pena única e todas as outras penas parcelares que não beneficiavam do perdão. Posteriormente, uma corrente jurisprudencial foi-se formando em sentido diferente até se tornar maioritária, senão unânime. Segundo a mesma efetuava-se um cúmulo jurídico das penas parcelares perdoáveis, segundo as regras dos arts. 77.º e 78.º do C.P. (cúmulo parcial) só para o efeito de calcular a extensão do perdão (em relação à pena encontrada 25) e, seguidamente, cumulavam-se juridicamente, levando sempre em conta aquelas regras, todas as penas parcelares que faziam parte do concurso de crimes, quer as perdoáveis, quer as não abrangidas pelo perdão, e determinava-se a pena única, sobre a qual incidiria o perdão. Na verdade, num cúmulo jurídico de penas, só devem ser englobadas penas parcelares e não penas que tenham sido construídas já a partir de uma operação de cúmulo, e o perdão deve incidir sobre a pena única obtida a partir do cúmulo jurídico de todas as penas parcelares26. 11.
24- “O perdão referido no n.º 1 abrange as penas de prisão fixadas em alternativa a penas de multa e, em caso de cúmulo jurídico, incide sobre a pena unitária, sendo materialmente adicionável a perdões anteriores.” (cfr. art.º 13.º, n.º 2, da Lei n.º 16/86, de 11 de junho); “O perdão referido nas alíneas a) e b) do n.º 1 abrange as penas de prisão fixadas em alternativa a penas de multa e, em caso de cúmulo jurídico, incide sobre a pena unitária, sendo materialmente adicionável a perdões anteriores” (cfr. art.º 14.º, n.º 3, da Lei n.º 23/91, de 04 de julho); “Em caso de cúmulo jurídico, o perdão incide sobre a pena única e é materialmente adicionável a perdões anteriores, sem prejuízo do disposto no artigo 10.º” (cfr. art.º 8.º, n.º 4, da Lei n.º 15/94, de 11 de maio); e “Em caso de cúmulo jurídico, o perdão incide sobre a pena única e é materialmente adicionável a perdões anteriores, sem prejuízo do disposto no artigo 3.º” (cfr. art.º 1.º, n.º 4, da Lei n.º 29/99, de 12 de maio); e
“O perdão referido nos números anteriores abrange a prisão subsidiária resultante da conversão da pena de multa e a execução da pena de prisão por não cumprimento da pena de multa de substituição e, em caso de cúmulo jurídico, incide sobre a pena única” (cfr. art.º 2.º, n.º 3, da Lei n.º 9/2020, de 10 de abril).
25-Na verdade, ao contrário da Lei em análise, a medida do perdão das penas de prisão na Lei n.º 16/86, de 11 de junho (cfr. art.º 13.º, n.º 1, al. b), na Lei n.º 23/91, de 04 de julho (cfr. art.º 14.º, n.º 1, al. b), na Lei n.º 15/94, de 11 de maio (cfr. art.º 8.º, n.º 1, al. d) e na Lei n.º 29/99, de 12 de maio (cfr. art.º 1.º, n.º 1) era variável em função da medida concreta da pena de prisão aplicada.

6.–Como se mostra defendido no acórdão do STJ, de 24-10-2006 processo 06P2941, nº convencional JSTJ000, relator Santos Carvalho, nº do documento SJ200610240029415 (acessível em www.dgsi.pt):
II- Para proceder ao cúmulo jurídico de penas em concurso de infracções quando só algumas beneficiam de perdão, há que seguir estes passos:
-1.° efectua-se o cúmulo jurídico de todas as penas em concurso, independentemente de alguma delas beneficiarem de perdão e, assim, obtém-se a pena única;
- 2.° calcula-se o perdão, após se ficcionar um cúmulo jurídico parcelar das penas que por ele estão abrangidas;
- 3.° faz-se incidir o perdão assim calculado sobre a pena única inicial, mas o perdão tem como limite máximo a soma das parcelas das penas "perdoáveis", tal como encontradas na operação de cálculo dessa pena única inicial.
III- Rejeita-se, assim, a fórmula que há anos era a jurisprudencialmente consagrada: na situação apontada, havendo que cumular penas abrangidas por perdão com penas por ele não abrangidas, entendia-se que haveria que efectuar um cúmulo jurídico provisório das penas.
abrangidas pelo perdão, aplicar o perdão à pena única parcelar provisória e, depois, efectuar o cúmulo final entre o remanescente desta e as restantes penas não abrangidas pelo perdão.
IV- Ora, esta fórmula é passível, pelo menos, de duas críticas pertinentes:
- por um lado, dela resulta uma dupla compressão injustificada de certas penas. Como se sabe, para a formação de um cúmulo jurídico, todas as penas, com excepção da mais grave, sofrem uma determinada compressão, maior ou menor consoante a ponderação que é feita dos factos e da personalidade do agente, visto que, em regra, não é aplicada a pena máxima do concurso (a soma material de todas as penas). Daí decorre que na fórmula em apreço há uma primeira compressão na formação do cúmulo jurídico provisório para calcular o perdão e uma segunda no cúmulo jurídico definitivo. E, como facilmente se percebe, é uma dupla compressão injustificada, pois há só um cúmulo jurídico real, já que o outro é meramente ficcionado tendo em vista o cálculo do perdão;
- a outra crítica é a de que, com este método, o perdão fica diluído e não transparece na pena única definitiva, pelo que, por um lado, o arguido mal se apercebe de que beneficiou de um perdão no meio das contas do cúmulo, por outro, não se sabe ao certo que desconto efectivo foi feito na pena única final, por fim, perde-se o efeito dissuasor da condição resolutiva a que está sujeito o perdão (art. 4.º da Lei 29/99).

7.–Explicita no seu texto, tal acórdão, o raciocínio e mecanismo de realização desse cúmulo, nos seguintes termos:
Como proceder ao cúmulo jurídico de penas num concurso de infracções quando só algumas delas beneficiam de perdão?
Como se sabe, o perdão das penas por crimes em concurso incide sobre a pena única (art.º 1.º, n.º 4, da Lei n.º 29/99, de 12 de Maio). Por isso, não se pode aplicar o perdão a cada uma das penas parcelares abrangidas pela lei, mas também não se pode fazê-lo sobre a pena única, visto nela concorrerem crimes que não foram abarcados pelo perdão.
Para resolver este problema, cuja solução não decorre apenas da lei, o tribunal recorrido socorreu-se da fórmula que há uns anos era a jurisprudencialmente consagrada, que consiste em efectuar um cúmulo jurídico provisório das penas abrangidas pelo perdão, aplicar o perdão à pena única parcelar provisória e, depois, efectuar o cúmulo final entre o remanescente desta e as restantes penas não abrangidas pelo perdão.
Ora, esta fórmula é passível, pelo menos, de duas críticas pertinentes.
Por um lado, dela resulta uma dupla compressão injustificada de certas penas. Como se sabe, para a formação de um cúmulo jurídico, todas as penas, com excepção da mais grave, sofrem uma determinada compressão, maior ou menor consoante a ponderação que é feita dos factos e da personalidade do agente, visto que, em regra, não é aplicada a pena máxima do concurso (a soma material de todas as penas). Daí decorre que na fórmula em apreço há uma primeira compressão na formação do cúmulo jurídico provisório para calcular o perdão e uma segunda no cúmulo jurídico definitivo. E, como facilmente se percebe, é uma dupla compressão injustificada, pois há só um cúmulo jurídico real, já que o outro é meramente ficcionado tendo em vista o cálculo do perdão.
A outra crítica é a de que, com este método, o perdão fica diluído e não transparece na pena única definitiva, pelo que, por um lado, o arguido mal se apercebe de que beneficiou de um perdão no meio das contas do cúmulo, por outro, não se sabe ao certo que desconto efectivo foi feito na pena única final, por fim, perde-se o efeito dissuasor da condição resolutiva a que está sujeito o perdão (art.º 4.º da Lei 29/99).
Daí que tenha surgido uma outra corrente jurisprudencial, cujo método consiste em começar por fazer o cúmulo jurídico de todas as penas em concurso para assim obter a pena única, independentemente do perdão. Depois e tão só para cálculo do perdão, efectua-se um cúmulo jurídico parcelar das penas que beneficiam do perdão. Finalmente, incide-se o perdão assim calculado sobre a pena única que se formou inicialmente.
Esta solução contorna totalmente as críticas apontadas ao primeiro método e, portanto, é a que consideramos preferível. Mas há que lhe estabelecer um limite.
É que, sendo o cúmulo jurídico formado por uma soma entre a pena mais elevada e parcelas de cada uma das penas restantes, a aplicação do perdão feita nestes moldes pode levar a que o perdão beneficie também as parcelas das penas que legalmente por ele não estão abrangidas, o que sucederá quando, nessa operação, a soma das parcelas das penas “perdoáveis” for inferior ao montante do perdão.
Um simples exemplo ajuda a compreender esta situação. Se o cúmulo abrange três penas de um ano de prisão, das quais só duas beneficiam de perdão, a pena única será, por hipótese, de 1 ano e 8 meses de prisão (somando-se à pena mais grave um terço da soma das restantes). Para cálculo do perdão, obtém-se uma pena única parcelar das penas perdoáveis, com o mesmo critério, de 1 ano e 4 meses de prisão, pelo que o perdão será fixado em um ano de prisão. Fazendo incidir este perdão sobre a pena única inicial, o arguido terá de cumprir um remanescente de 8 meses de prisão, o qual é inferior à pena parcelar não perdoada e inferior mesmo ao limite mínimo abstracto do cúmulo, que é o da pena mais grave (um ano de prisão, não perdoado). Chegamos a um resultado que contraria a lei que concedeu o perdão de penas e também o art.º 77.º, n.º 2, do CP.

Daí que se possa concluir que, para proceder ao cúmulo jurídico de penas em concurso de infracções quando só algumas beneficiam de perdão, há que seguir estes passos:
1º- efectua-se o cúmulo jurídico de todas as penas em concurso, independentemente de alguma delas beneficiarem de perdão e, assim, obtém-se a pena única;
2º- calcula-se o perdão, após se ficcionar um cúmulo jurídico parcelar das penas que por ele estão abrangidas;
3º- faz-se incidir o perdão assim calculado sobre a pena única inicial, mas o perdão tem como limite máximo a soma das parcelas das penas “perdoáveis”, tal como encontradas na operação de cálculo dessa pena única inicial.
No exemplo anterior, o limite máximo do perdão seria de 8 meses de prisão, correspondente ao “peso” que tiveram as penas que beneficiavam de perdão na formação da pena única. Portanto, o arguido, em tal exemplo, seria condenado na pena única de 1 ano e 8 meses de prisão, da qual se descontaria o perdão de 8 meses.
O cúmulo jurídico das penas em que foi condenado o recorrente varia entre 4 anos (pena parcelar mais grave) e 9 anos (soma de todas as penas parcelares), conforme dispõe o art.º 77.º, n.º 2, do CP.
Na formação da pena única têm de se avaliar, em conjunto, os factos e a personalidade do arguido.
O tribunal recorrido usou de um critério excessivo, já que na operação do cúmulo foi somada à pena mais grave mais de metade da soma das restantes penas.
Ora, sendo o arguido delinquente primário e inserido socialmente, tendo decorrido entretanto mais de 7 anos sem registo de outra actividade criminosa, é de admitir que os crimes que cometeu foram fruto de circunstâncias quiçá irrepetíveis, pelo que se considera mais ajustado fixar a pena única em 5 anos, acrescentando-se à pena mais alta (quatro anos) um quinto da soma das restantes penas(1/5 de 5 anos = 1 ano), o que está mais de acordo com os critérios que este STJ tem seguido em casos semelhantes (2).
As duas penas abrangidas pelo perdão são de um ano e meio e de um ano, pelo que em cúmulo, usando o mesmo critério, formariam a pena única de 1 ano e 8 meses e 12 dias de prisão, sobre o qual incidiria o perdão de 1 ano, nos termos do artigo 1º, nº 1, da Lei nº 29/99, de 12/05. Contudo, como as duas penas somaram, aquando da formação do cúmulo de todas as penas, a parcela global de 6 meses (1/5 de 2 anos e 6 meses = 6 meses), é este o montante do perdão aplicável.
Termos em que o recurso merece provimento parcial.

8.–Seguindo esta linha de raciocínio, que anteriormente perfilhámos, a propósito da questão suscitada no âmbito da Lei nº 29/99 e da qual não vislumbramos razões para divergir, na aplicação da presente lei da amnistia, temos que, no caso presente, a questão do cálculo do perdão aplicável à pena única imposta, decorre directamente da lei, uma vez que nem sequer haverá que proceder a um cúmulo entre penas parcelares incluídas no perdão, já que, no caso, apenas uma se mostra abrangida pela Lei nº 38-A/23, de 2 de Agosto, designadamente a relativa ao cometimento do crime de detenção de arma proibida.
Assim, o cálculo do perdão a aplicar à pena única, decorre da aplicação das regras do perdão a essa pena singular e corresponde a 9 meses de perdão, já que a pena imposta, pela prática deste crime, a cada um dos arguidos, foi de 9 meses de prisão.

9.–Aqui chegados, resta concluir que sobre as penas únicas que lhes foram impostas, deve incidir então o perdão de 9 meses.
Impõe-se assim declarar tal perdão, o que implica a revogação do despacho recorrido, no segmento que aplicou aos condenados o perdão de um ano de prisão.

Merece, pois, provimento o recurso interposto.

IV–DECISÃO.
Face ao exposto, acorda-se em julgar procedente o recurso interposto pelo Mº Pº e, em consequência, revoga-se o despacho recorrido e, em sua substituição, determina-se a aplicação a cada um dos arguidos do perdão de 9 (nove) meses, sobre a pena única em que cada um foi condenado, o que determina que terão a cumprir as seguintes penas (após perdão):
AA– pena única de 3 (três) anos e 6 (seis) meses de prisão (pena única original de 4 (anos) anos e 3 (três) meses de prisão, deduzidos 9 meses de perdão);
BB– pena única de 3 (três) anos e 6 (seis) meses de prisão (pena única de 4 (anos) anos e 3 (três) meses de prisão, deduzidos 9 meses de perdão).
Sem tributação.

Lisboa, 21 de Fevereiro de 2024

Maria Margarida Almeida
Adelina Barradas de Oliveira
Filipa Valentim