Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
306/23.0T8TVD.L1-4
Relator: ALVES DUARTE
Descritores: DESPEDIMENTO ILÍCITO
RETRIBUIÇÕES INTERCALARES
DEDUÇÕES
SUBSÍDIO DE DESEMPREGO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 02/21/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE PROCEDENTE
Sumário: I.A dedução do subsídio de desemprego prevista na c) do n.º 2 do art.º 390.º do CT prossegue um interesse público e tem natureza imperativa, não estando na disponibilidade das partes accioná-la sendo de conhecimento oficioso.

II.Consequentemente, o tribunal sempre deverá acautelar tal possibilidade e determinar na sentença tais deduções para o caso desse subsídio ter sido auferido.


(Sumário da autoria do Relator)


Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, na Secção Social do Tribunal da Relação de Lisboa:


IRelatório.


AA intentou a presente acção declarativa com processo comum, contra BB  — Supermercados, Ld.ª, pedindo que a ré fosse condenada  Ré a pagar-lhe:
€ 6.531,14 a título de indemnização por despedimento ilícito;
€ 543,19 por danos patrimoniais resultantes do pagamento à Segurança Social de tal valor em função da fundamentação aposta pela Ré no encerramento da sua inscrição da Segurança Social;
€ 7.500,00 a título de indemnização por danos morais;
juros moratórios vencidos e vincendos aplicáveis sobre tais quantias às várias taxas legais anuais desde o seu vencimento e até efetivo e integral pagamento.

Para tanto, alegou, em síntese, que:
foi admitida ao serviço da Ré a 16.12.2021 por contrato de trabalho a termo certo, para desempenhar funções de operadora ajudante de supermercado, pelo período de 40 horas semanais, auferindo ordenado base de € 665,00, tendo desempenhado funções como ajudante de talho, na secção de talho;
no dia 06.03.2022 — Domingo — teve uma discussão verbal com o seu superior hierárquico CC — chefe de secção de talho, na sequência da qual o mesmo lhe deu ordem para irem para uma sala onde lhe entregou algumas folhas de papel em branco e a mandou escrever uma rescisão do contrato por seu pedido, entregando-lhe uma minuta para o efeito;
por se sentir pressionada e ter sido ameaçada de despedimento com justa causa com dever de indemnizar a empresa acabou por redigir e assinar uma declaração a dizer que rescindiu os seus serviços com a Ré e que estava 'disposta a dar os dias à casa', sem identificar quando dias seriam ou quando seria o seu ultimo dia de trabalho, pois que desconhecia os prazos legais relativos ao pré-aviso;
ao chegar a casa, cerca das 22h30m do mesmo dia, enviou uma mensagem escrita por WhatsApp para o chefe CC a comunicar-lhe que pedia desculpa pela forma como havia falado e que se tinha precipitado e que gostaria que a carta ficasse sem efeito;
no dia seguinte 7 de Março, ao entrar ao serviço o chefe CC comunicou-lhe que aceitava o pedido de desculpa, mas que ia guardar consigo o texto de rescisão durante uma semana para avaliar profissionalmente o seu comportamento e que devia guardar segredo acerca da existência da carta;
continuou trabalhar nos dias seguintes, faltando no dia 26.03.2022, tendo sido incluída nos turnos para a semana de 4 a 10 de Abril;
no dia 02.04.2022 comunicou ao chefe que estava doente e que poderia entrar de baixa, tendo o chefe dito que justificasse a falta e nesse mesmo dia anulou o horário de trabalho da semana de 4 a 10 de Abril e removeu-a do grupo WhatsApp;
no dia 04.04.2022 foi-lhe passado certificado de incapacidade temporária para o trabalho para o período de 2 de Abril a 27 de Novembro de 2022;
quando nesse mesmo dia contactou CC o mesmo disse-lhe que não era preciso a apresentação de qualquer justificação pois iria entregar a rescisão do dia 6 de Março de 2022 e que nesse dia ‒ 4 de Abril ‒ era o dia de encerramento de contas;
deslocou-se então às instalações da Ré para entregar a baixa na contabilidade onde o Sr. DD respondeu que já não era precisa pois havia recebido a sua rescisão, ao que retorquiu que a mesma tinha sido incorrectamente guardada pelo CC e, ao vê-la, rasgou-a;
mostrou de seguida a baixa ao DD que então viu que era motivada por gravidez de alto risco, tendo o mesmo dito que seguia instruções do CC para fechar as contas, tendo a EE ‒ também presente na contabilidade ‒ afirmado que tinham uma cópia da carta de rescisão;
em 10 de Maio de 2022 a Ré comunicou a cessação da relação laboral à Segurança Social indicando como motivo iniciativa do trabalhador;
a descrita conduta da Ré constitui um despedimento ilegal, sem justa causa nem procedimento disciplinar prévio, com efeitos reportados a 4 de Abril de 2022, por ficcionada rescisão de 6 de Março com produção de efeitos jurídicos no fim do prazo de aviso prévio, o que lhe confere direito a indemnização de valor não inferior ao período de retribuições que ainda faltavam do restante tempo de execução do contrato a termo até 15.12.2022, no valor global de € 6.531,14;
em consequência do despedimento ficou em estado de choque e bastante abalada, sentiu-se muito desanimada, sofreu um intenso desgosto, nervosismo e apatia, dificuldade em dormir, passou a ficar facilmente irritável e enervada, sofreu grande ansiedade e angústia por não saber se e quando iria encontrar novo emprego para enfrentar as despesas do seu agregado familiar, ficou bastante abatida e prostrada com auto estima muito baixa, desmotivada.

Citada a ré, foi convocada e realizada audiência de partes, na qual as mesmas não quiseram acordar sobre o litígio que as divide.

Para tal notificada, a ré contestou, impugnando os factos alegados pela autora, designadamente que foi a autora quem, no dia 06-03-2023, disse que se queria despedir e ir embora depois de ter sido chamada à atenção pelo chefe CC por estar aos gritos e a utilizar vocabulário impróprio para o seu local de trabalho, perante colegas de trabalho, tendo redigido e entregue a carta de rescisão por livre e espontânea vontade e informado que queria cumprir o aviso prévio de 30 dias pelo que o contrato cessaria a 05-04-2022.

Proferido despacho saneador, foi julgada a instância válida e regular, fixado o valor da causa e dispensadas a identificação do objecto do litígio e a enunciação dos temas de prova  objecto do processo e admitidas as provas arroladas pelas partes.

Realizada a audiência de julgamento, o Mm.º Juiz proferiu a sentença, na qual julgou a acção parcialmente procedente e, em consequência:

1)-condenou a ré a pagar à autora, a titulo de indemnização por danos patrimoniais emergentes do seu despedimento ilícito, as retribuições (ilíquidas) que a mesma deixou de auferir desde 05-04-2022 até 15-12-2022, no valor global de € 6.126,66, acrescidas de juros de mora à taxa legal, de acordo com a seguinte discriminação:
a)-€ 611,00 acrescidos de juros de mora à taxa legal, vencidos desde 30.04.2022 e vincendos até integral pagamento
- retribuição de Abril (26 dias);
b)-€ 705,00 acrescidos de juros de mora à taxa legal, vencidos desde 30.06.2022 e vincendos até integral pagamento
- retribuição de Junho;
c)-€ 705,00 acrescidos de juros de mora à taxa legal, vencidos desde 31.07.2022 e vincendos até integral pagamento
- retribuição de Julho;
d)-€ 705,00 acrescidos de juros de mora à taxa legal, vencidos desde 31-08-2022 e vincendos até integral pagamento
- retribuição de Agosto;
e)-€ 705,00 acrescidos de juros de mora à taxa legal, vencidos desde 30-09-2022 e vincendos até integral pagamento
- retribuição de setembro;
f)-€ 705,00 acrescidos de juros de mora à taxa legal, vencidos desde 31-10-2022 e vincendos até integral pagamento
- retribuição de Outubro;
g)-€ 705,00 acrescidos de juros de mora à taxa legal, vencidos desde 30-11-2022 e vincendos até integral pagamento
- retribuição de Novembro;
h)-€ 352,50 acrescidos de juros de mora à taxa legal, vencidos desde 15-12-2022 e vincendos até integral pagamento - retribuição de Dezembro (15 dias);
i)-€ 492,53 acrescidos de juros de mora à taxa legal, vencidos desde 15.12.2022 e vincendos até integral pagamento - proporcional subsídio de férias (255 dias);
j)-€ 440,63 acrescidos de juros de mora à taxa legal, vencidos desde 15-12-2022 e vincendos até integral pagamento - proporcional subsídio de natal (255 dias);
2)– condenou a ré a pagar à autora a quantia de € 2.500,00, a título de indemnização por danos não patrimoniais emergentes do seu despedimento ilícito, acrescida de juros de mora à taxa legal vincendos a partir desta data;
3)–absolveu a ré do mais peticionado pela autora.

Inconformada, a ré interpôs recurso, pedindo que a sentença seja revogada e substituída por decisão que (i) exclua ou no mínimo reduza o montante indemnizatório a título de danos não patrimoniais, estabelecendo-se o mesmo num valor não superior a € 500 e (ii) conheça oficiosamente das deduções decorrentes do estipulado na alínea c) do artigo 390.º, n.º 2, deduzindo-se das retribuições a pagar a autora o subsídio de desemprego atribuído à mesma, culminando a alegação com as seguintes conclusões:
"1)-A Ré vem recorrer da douta Sentença do tribunal a quo porquanto não se conforma com os fundamentos invocados pelo Sr. Dr. Juiz para justificar a sua convicção e consequente decisão.
2)-A Ré vem recorrer da matéria de facto e de direito, nomeadamente quanto aos factos que julgou suficientes para estabelecer o montante indemnizatório a título de danos não patrimoniais, bem como o facto de não ter feito as deduções impostas no artigo 390.º do Código do Trabalho aquando da proferição da Sentença.
3)-Foi a autora que disse, peremptoriamente, ao seu chefe, CC, que se queria despedir, isto no seguimento de uma discussão que a mesma provocou por motivos superficiais.
4)-No entanto, a Autora veio alegar que foi ameaçada e coagida a escrever e a assinar a carta de rescisão, o que não é de todo verdade, tal como concluiu o tribunal a quo.
5)-Aliás, o tribunal a quo concluiu pelo reduzido valor probatório das alegações de parte da Autora, apoiando-se também no que os seus colegas de trabalho afirmaram em audiência de julgamento (que desmentiram tudo o que a Autora disse quanto a ter sido ameaçada e coagida pelo seu chefe).
6)-Não duvidando do sofrimento da Autora, que certamente se sentiu afectada, não podemos, no entanto, acreditar que a mesma tenha entrado numa espiral de emoções negativas tão profunda que a tenha deixado no estado que a mesma alega ter ficado.
7)-Foi a Autora que desejou despedir-se, demonstrando essa vontade perante todos os presentes.
8)-Tudo isto leva-nos a concluir que a discussão do dia 06/03/2022 foi apenas a gota de água num copo cheio, tendo a Autora aproveitado a situação para realizar o desejo que já teria há algum tempo.
9)-A mensagem enviada pela Autora ao seu chefe, CC, mostra claramente que foi a Autora quem decidiu despedir-se, por livre e espontânea vontade, sem ameaças e coação.
10)-Acrescente-se ainda que, após ter regressado ao trabalho no dia 06/03/2022, a Autora nunca referiu aos seus colegas de trabalho que teria sido coagida a escrever e assinar uma carta de rescisão.
11)-O tribunal a quo também não pode atribuir responsabilidade à Ré pelas duas separações que a Autora teve com o seu companheiro.
12)-Efectivamente, o casal já havia tido alguns desentendimentos antes do despedimento, o que revela a fragilidade da relação de ambos.
13)-Fragilidade esta que nada tem a ver com o despedimento.
14)-Também não foi o despedimento da Autora que veio trazer problemas financeiros ao casal, uma vez que estes já existiam.
15)-O casal, na altura do despedimento, já tinha duas crianças a seu encargo, pelo que o agregado familiar seria constituído por quatro pessoas.
16)-Pelo que se torna claro que as remunerações que os dois membros do casal auferiam nunca lhes permitiu ter uma vida desafogada!
17)-Os problemas financeiros sempre estiveram presentes no seio familiar, não foi o despedimento que os veio originar.
18)-Deste modo, o tribunal a quo deveria ter tido outro entendimento na fixação do valor da indemnização a título de danos não patrimoniais, fixando-o num patamar mais baixo.
19)-Relativamente à indemnização por danos patrimoniais, o tribunal a quo também andou mal na fixação do seu valor.
20)-O tribunal a quo, com o devido respeito, não cumpriu com a imposição legal do artigo 390.º, n.º 2 do Código do Trabalho, uma vez que não deduziu, às remunerações intercalares a receber pela Autora, o valor do subsídio de desemprego que a mesma recebeu da Segurança Social.
21)-Era competência oficiosa do tribunal a quo assegurar a devolução dessas verbas ao Estado, garantindo assim a prossecução de interesses de ordem pública e evitando uma dupla remuneração e enriquecimento sem causa da Autora.
22)-Assim, atento o carácter imperativo daquela norma, o tribunal a quo esteve mal ao não ordenar que fossem apurados os rendimentos auferidos pela Autora a título de subsídio de desemprego, e fazendo ele próprio essa dedução antes de proferir a douta Sentença.
23)-Face ao exposto, deve a Sentença recorrida ser revogada, devendo o tribunal a quem excluir ou no mínimo ordenar a redução do valor da indemnização a título de danos não patrimoniais, bem como a dedução das verbas recebidas pela Autora pelo seu desemprego, dando cumprimento ao disposto no artigo 390.º, n.º 2 do Código do Trabalho".

A autora não contra-alegou.

O Exm.º Sr. Procurador-Geral Adjunto foi de parecer que:

"Face a este acervo fáctico, não podemos deixar de concordar com a sentença, quando deu por certo que:
- A A. denunciou o contrato de trabalho em 6 de Março de 2022;
- Nesse mesmo dia, validamente, revogou essa denúncia;
- A carta de denúncia apenas foi entregue na contabilidade no dia seguinte;
- Em 4 de Abril de 2022, a R. impediu a A. de continuar a trabalhar para a empresa, dizendo-lhe que aquele era o último dia de trabalho;
- Tal consubstancia despedimento ilícito, porque sem justa causa e sem precedência de processo disciplinar.
Assim, neste particular não tem a recorrente razão.
Indemnização:
A indemnização por despedimento ilícito, não merece qualquer censura, mostrando-se bem fundamentada e calculada.
A indemnização por danos morais, funda-se em critérios certeiros e justos, representando o 'quantum' fixado num terço do peticionado.
Também, nesta parte, falece o recurso.
Art.º 390.º, n.º 2 do CT:
Na contestação, ou em alguma parte do processo, alegou a recorrente (nem mesmo a A.) que a A. tenha recebido qualquer compensação a título de subsídio de desemprego. Acresce, que face ao motivo invocado pela recorrida – denúncia do contrato, a A. não podia ter recebido qualquer prestação a esse título, pois a cessação do contrato ficava a dever-se à sua vontade.
Tal facto não integrava, assim, o objecto dos autos, pelo que dele não podia o Tribunal 'a quo' conhecer.
De qualquer forma, não estava a recorrente dispensada de pagar esse valor – teria de o fazer à Segurança Social.
Neste segmento, não tem ainda, a recorrente razão.
A sentença posta em crise não violou qualquer norma jurídica, mormente as que a recorrente foi citando, merecendo, na improcedência do recurso, total confirmação".

Nenhuma das partes respondeu ao parecer do Ministério Público.

Colhidos os vistos, cumpre apreciar o mérito do recurso, delimitado pelas conclusões formuladas pelo recorrente e pelas questões de que se conhece ex officio.

A este propósito cumpre referir que pese embora a apelante diga que pretende impugnar tanto a decisão proferida sobre a matéria de facto como a de direito, a verdade é que naquela parte não especificou os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados, os concretos meios de prova que impunham decisão diversa da recorrida e a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre aquelas questões, tal como era ónus a seu cargo nos termos do art.º 640.º, n.º 1, alíneas a) a c) do Código de Processo Civil; e, deve dizer-se, não só o não fez nas conclusões como também o não fez na motivação da apelação, como sempre teria que ser para que disso se pudesse conhecer uma vez que as conclusões são um resumo da mesma, como resulta do art.º 639.º, n.º 1 do mesmo diploma. Aliás, vê-se bem da motivação que o não, pois que alicerçou a apelação na seguinte nota de abertura dali retirada: "A Recorrente pretende submeter a apreciação, então, duas questões de fundo. A primeira respeita ao facto de, face aos factos alegadamente dados como provados, o tribunal a quo dever ter condenado a Ré num montante indemnizatório, a título de danos não patrimoniais, diferente (e mais reduzido) daquele que consta da douta Sentença. A outra questão desemboca no procurar saber se, face ao artigo 390.º, n.º 2, alínea c) do Código do Trabalho, o Sr. Dr. Juiz a quo não deveria estar vinculado a condenar a Ré, a título de danos patrimoniais, num montante diverso daquele que efectivamente condenou".

Mas a verdade é que isso não preclude o conhecimento das questões de direito, como pacificamente com considerando a jurisprudência.[1]

Assim, na apelação importa apurar se:
o montante dos danos não patrimoniais atribuídos à apelada;
a dedução às retribuições intercalares da apelada do valor por ela recebido a título de subsídio de desemprego.
***

IIFundamentos.

1.Factos julgados provados:
"1)-A Autora foi admitida ao serviço da Ré em 16.12.2021 mediante contrato de trabalho a termo certo pelo prazo de doze meses, com termo a 15.12.2022, tendo tal contrato sido assinado apenas em Fevereiro de 2022, sem ter na altura sido entregue a cópia do mesmo à Autora;
2)-Nos termos do contrato ficou assente o desempenho das funções inerentes à categoria profissional de operadora ajudante de supermercado (ajudante do 1.° Ano), na loja da Ré sita na M____, com o período normal de trabalho médio de 40 horas semanais, mediante pagamento da retribuição base mensal de € 665,00, acrescida de subsídio de alimentação no valor diário de € 4,55;
3)-Inicialmente a Autora trabalhou na secção da restauração passando posteriormente, na sequência de conflitos com outros colegas daquela secção, a desempenhar as suas funções na secção de talho, como ajudante de talho;
4)-No dia 06.03.2022 — Domingo — a Autora, exaltada, teve uma discussão verbal com o seu chefe e superior hierárquico CC — chefe de secção de talho — quando o mesmo a mandou executar tarefas que não foram cumpridas por outros colegas de trabalho que se tinham ausentado do serviço;
5)-No âmbito dessa discussão a Autora disse ao chefe CC que se queria despedir;
6)-No seguimento desta afirmação da Autora, CC disse-lhe que o acompanhasse à sala de entrevistas sita no 1° andar porque uma vez que se queria despedir tinha que fazer a carta, e, de seguida, dirigiram-se ambos para tal local, seguindo a Autora à frente de CC;
7)-Ali chegados CC entregou à Autora algumas folhas — páginas de papel em branco — e um modelo/minuta de um texto de rescisão de contrato que a Autora podia copiar ou adaptar para escrever a carta, após o que a Autora escreveu e assinou um texto com o seguinte teor: 'Rescisão de contrato. Dia 6 de Março de 2022, venho por este meio rescindir os meus serviços com a empresa BB  Supermercados. Estou disposta a dar os dias à casa e entregar as fardas em prefeito estado. Com os melhores cumprimentos, AA';
8)-Depois de redigir a carta a Autora entregou-a ao chefe CC e, após, voltou para o seu posto de trabalho;
9)-Pelas 22h30m do próprio dia 06.03.2022 a Autora, através da plataforma WhatsApp, enviou uma mensagem escrita para o chefe CC, que a recebeu, com o seguinte teor: 'Boa noite chefe CC, gostaria de pedir desculpa da forma como lhe falei, precipite-me, gostaria que a carta ficasse sem efeito. Eu a partir do dia de hoje só vou preocupar me em fazer o meu trabalho, somos um grupo e acredite que eu visto a camisola. Tanto em questões de responsabilidades eu não tenho faltado. Sou humilde o suficiente para pedir desculpa como falei e alem de ter falado à frente dos dois colegas. Não vai votar a repetir. Só espero quando tiver algum problema com o que eu faço de mal nas minhas horas laborais me chame atenção. Boa noite e desculpa mandar sms a estas horas';
10)-No dia seguinte - 07.03.2022 - CC entregou a carta de rescisão na contabilidade, deixando-a na secretária de DD (que estava ausente no dia anterior, domingo);
11)-No dia 23.03.2022, cerca das 22 horas houve lugar uma reunião de trabalho da empresa com todos os trabalhadores da secção do talho em que a Autora esteve presente;
12)-No dia 26.03.2022 - Sábado — a Autora faltou ao trabalho e pediu a CC para tal falta ser compensada com prestação de trabalho suplementar;
13)-No dia 30.03.2022 CC pediu à Autora o certificado de registo criminal pois era preciso entregá-lo nos recursos humanos;
14)-No dia 01.04.2022 CC colocou no grupo do Talho no WhatsApp, ao qual a Autora pertencia, o horário de trabalho da equipa para a semana de 4 a 10 de Abril;
15)-No dia 02.04.2022, pouco depois das 09h00m, a Autora remeteu a CC mensagem através do WhatsApp informando que estava doente e teria grande dificuldade em ir trabalhar;
16)-Pela mesma via CC respondeu pelas 10h08m, dizendo à Autora para levar justificação para a falta, tendo esta retorquido, pelas 12h23m, que iria ao hospital e talvez ficasse de baixa;
17)-Pelas 12h58m desse mesmo dia 02.04.2022, CC mandou para o grupo do Talho no WhatsApp, uma mensagem a comunicar que ficava sem efeito o horário referido no ponto 14) e, nesse mesmo dia, removeu a Autora daquele grupo do WhatsApp;
18)-Pelas 15h58m desse mesmo dia 02.04.2022 a Autora foi à urgência do Hospital de Santa Maria em Lisboa onde foi assistida por médica da especialidade de … que recomendou repouso e cessação de actividade física moderada e intensa;
19)-No dia 04.04.2022 — 2.a Feira - o Centro de Saúde da sua residência emitiu à Autora certificado de incapacidade temporária para o trabalho para o período de 02.04.2022 a 27.11.2022, com fundamento em gravidez de risco clínico;
20)-Nesse dia e para entregar a baixa a Autora dirigiu-se à recepção nas instalações da Ré onde foi encaminhada para a contabilidade para falar com o responsável DD;
21)-A Autora subiu à contabilidade, onde estavam presentes DD e EE, e ao entregar o seu documento de baixa, DD disse-lhe que já não era preciso pois havia recebido o documento da sua rescisão contratual, por si elaborado cerca de um mês antes, o qual lhe foi exibido, mais afirmando que aquele seria o seu último dia de trabalho;
22)-A Autora argumentou que tinha falado como o chefe CC para dar a carta sem efeito e que não se queria despedir;
23)-Muito irritada com a situação a Autora dirigiu-se à mesa da EE onde estava a carta e rasgou-a e meteu-a dentro das calças;
24)-A baixa médica acabou por ficar entregue na contabilidade, tendo o DD ficado a conhecer então a gravidez da Autora e que a baixa médica era motivada por gravidez de alto risco;
25)-A Ré pagou à Autora o valor líquido de € 488,31 expresso no último recibo de vencimento (Abril de 2022) que incluía cálculo de proporcionais de subsídio de férias e de Natal por encerramento de contrato;
26)-No dia 10.05.2022 a Ré comunicou à Segurança Social a cessação do contrato de trabalho da Autora pelo motivo ''Denúncia do contrato de trabalho / demissão por iniciativa do trabalhador' com efeitos reportados a 04.04.2022;
27)-Em consequência da cessação do contrato de trabalho a Autora:
... ficou angustiada e ansiosa por não saber se e quando iria encontrar novo emprego para enfrentar as despesas fixas do dia-a-dia e que eram uma parte muito importante da sua contribuição para o normal funcionamento económico do seu agregado familiar formado por si, pelo seu companheiro, por um cunhado órfão à sua guarda de 14 anos de idade e ainda por uma enteada de 7 anos de idade;
... sentiu-se desanimada, nervosa, desmotivada, abatida, apática e com a auto-estima muito baixa, tendo por muitas vezes dificuldade em dormir e passou a ficar facilmente irritável e enervada, afectando a sua vida pessoal e familiar (motivando duas separações temporárias do seu companheiro).
28)-À data da cessação do contrato de trabalho a Autora auferia a retribuição base mensal ilíquida de € 705.00".

2.O direito.

2.1Vejamos então se os danos não patrimoniais atribuídos à apelada foram em valor excessivo.

A tese da apelante encosta-se aos seguintes argumentos:

a)-quanto à fixação do valor da indemnização a título de danos não patrimoniais, que o Tribunal deveria ter num patamar mais baixo:
foi a autora que desejou despedir-se, por livre e espontânea vontade, sem ameaças e coação;
a discussão do dia 06-03-2022 foi apenas a gota de água num copo cheio, tendo a autora aproveitado a situação para realizar o desejo que já teria há algum tempo;
as duas separações que a autora teve com o seu companheiro nada têm que ver com o despedimento;
não foi o despedimento da autora que veio trazer problemas financeiros ao casal, uma vez que estes já existiam;

b)- quanto à indemnização por danos patrimoniais:
era competência oficiosa do Tribunal a quo assegurar a devolução o valor do subsídio de desemprego que a apelada recebeu da Segurança Social, o que não decidiu.

Por sua vez, a sentença louvou-se na seguinte ordem de considerações:

no dia 04-04-2022 a apelada denunciou o contrato de trabalho por escrito e, subsequentemente, por essa forma também revogou a denúncia (mensagem da plataforma WhatsApp à mesma pessoa e seu superior hierárquico), no mesmo dia (factos provados 7 e 8); sendo a revogação válida e eficaz, nos termos dos art.os 400.º, n.os 1 e 3 e 402.º, n.º 1 do Código do Trabalho e 3.º, n.º 1 do Decreto-Lei n.º 12/2021, de 9 de Fevereiro;
a comunicação pela apelante à apelada e depois à segurança Social de que aquele dia fora o último dia de trabalho desta consubstancia o seu despedimento;
a indemnização por danos não patrimoniais é devida sempre que se verifiquem os pressupostos da responsabilidade civil previstos nos art.os 483.º, n.º 1, e 496.º, n.º 1, do Cód. Civil: que o despedimento seja ilícito, culposo e cause danos não patrimoniais ao trabalhador que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito, devendo, na fixação da indemnização atender-se não só à gravidade do dano, mas também ao grau de culpabilidade do agente, à situação económica deste e do lesado e a todas as outras circunstâncias que contribuam para uma solução equitativa;
em consequência da cessação do contrato de trabalho a autora ficou angustiada e ansiosa por não saber se e quando iria encontrar novo emprego para enfrentar as despesas fixas do dia-a-dia e que eram uma parte muito importante da sua contribuição para o normal funcionamento económico do seu agregado familiar formado por si, pelo seu companheiro, por um cunhado órfão à sua guarda de 14 anos de idade e ainda por uma enteada de 7 anos de idade, e sentiu-se desanimada, nervosa, desmotivada, abatida, apática e com a auto-estima muito baixa, tendo por muitas vezes dificuldade em dormir e passou a ficar facilmente irritável e enervada, afectando a sua vida pessoal e familiar (motivando duas separações temporárias do seu companheiro).
tais danos revestem uma gravidade inequivocamente merecedora da tutela do direito justificando assim a fixação de indemnização.
considerando assim esses concretos danos, a culpa da ré (que se reputa elevada face à manifesta ilicitude do despedimento), bem como a situação económica da autora que, sendo concretamente desconhecida, é necessariamente de considerar modesta tendo em conta a necessidade de ajuda que teve depois do despedimento, bem como o facto de ter recebido rendimento social de inserção e até de litigar com apoio judiciário, e tendo presente que se desconhece a concreta situação económica da Ré considero justa, adequada e proporcional a fixação de uma indemnização pelos danos não patrimoniais no valor de € 2.500,00.

Não está em causa a ilicitude do despedimento da apelada perpetrado pela apelante nem a sua culpa, que de resto se presume nos termos do art.º 799.º, n.º 1 do Código Civil (que em todo o caso se provou uma vez que perante a lícita revogação pela apelada da denúncia do contrato de trabalho a não aceitou e declarou o mesmo cessado sem qualquer fundamento para isso).

Por outro lado, não restam dúvidas que a apelada sofreu danos não patrimoniais e da relação de causalidade com o despedimento em face do facto provado 27, o que se recorda:
"27)-Em consequência da cessação do contrato de trabalho a Autora:
... ficou angustiada e ansiosa por não saber se e quando iria encontrar novo emprego para enfrentar as despesas fixas do dia-a-dia e que eram uma parte muito importante da sua contribuição para o normal funcionamento económico do seu agregado familiar formado por si, pelo seu companheiro, por um cunhado órfão à sua guarda de 14 anos de idade e ainda por uma enteada de 7 anos de idade;
... sentiu-se desanimada, nervosa, desmotivada, abatida, apática e com a auto-estima muito baixa, tendo por muitas vezes dificuldade em dormir e passou a ficar facilmente irritável e enervada, afectando a sua vida pessoal e familiar (motivando duas separações temporárias do seu companheiro)".

Aterra assim o argumento da apelante de que "as duas separações que a autora teve com o seu companheiro nada têm que ver com o despedimento", pois que o que efectivamente se provou foi que as consequências do despedimento levaram afinal a essas separações.
 
Por outro lado, se como pretende a apelante é de admitir que "não foi o despedimento da autora que veio trazer problemas financeiros ao casal, uma vez que estes já existiam", ainda que por presunção material permitida pelo art.º 351.º do Código Civil considerando a categoria profissional da apelada de operadora ajudante de supermercado e à retribuição de € 665,00 mensais que daí auferia por 40 horas de trabalho (facto provado 2), não deixa de ser evidente que isso naturalmente também fez acrescer a sua debilidade financeira e contribuiu para a sua angústia e a ansiedade que teve que enfrentar.

E isso, como está bem de ver, são danos não patrimoniais relevantes e que merecem a tutela do direito, como de resto bem considerou a sentença recorrida; pelo que se a isso se adicionar as circunstâncias da apelada se ter "senti[do] desanimada, nervosa, desmotivada, abatida, apática e com a auto-estima muito baixa, tendo por muitas vezes dificuldade em dormir e passou a ficar facilmente irritável e enervada, afectando a sua vida pessoal e familiar (motivando duas separações temporárias do seu companheiro)", rapidamente se chega à conclusão de que a sentença recorrida não merece qualquer reparo pelo valor que a este título arbitrou a favor da lesada.

Daí que nesta parte se conclui por não conceder a apelação, antes manter a sentença recorrida.

2.2–Por outro lado, a apelante insurge-se contra a sentença por não ter oficiosamente decretado a dedução às retribuições intercalares da apelada do valor por ela recebido a título de subsídio de desemprego.

O n.º 1 do art.º 390.º do Código do Trabalho estatui que "sem prejuízo da indemnização prevista na alínea a) do n.º 1 do artigo anterior, o trabalhador tem direito a receber as retribuições que deixar de auferir desde o despedimento até ao trânsito em julgado da decisão do tribunal que declare a ilicitude do despedimento", às quais, segundo o n.º 2, se deduzem "(…) c) O subsídio de desemprego atribuído ao trabalhador no período referido no n.º 1, devendo o empregador entregar essa quantia à segurança social".

Tendo em conta o decidido na sentença e os termos da apelação da ré, nada há a dizer relativamente à indemnização por danos patrimoniais emergentes do despedimento ilícito da apelada e consequentes retribuições que deixou de auferir.

Todavia, deve no entanto determinar-se a dedução nas retribuições do subsídio de desemprego que lhe possa ter sido atribuído naquele período uma vez que "constitui matéria de conhecimento oficioso, já que se trata de uma prestação do Estado, substitutiva da retribuição, que, uma vez recuperada, tem que ser devolvida à Segurança Social, não redundando, por isso, num qualquer beneficio para o empregador".[2]

É certo que a apelante não formulou esse pedido nos autos, designadamente na contestação, sendo igualmente sabido que se não provou que a apelada auferiu a esse título qualquer quantia da Segurança Social. Todavia, como também decidiu o acórdão da Relação do Porto, de 10-01-2011, no processo n.º 171/09.0TTSTS.P1, publicado em http://www.dgsi.pt, "já quanto à dedução prevista no n.º 3 do citado artigo [montante do subsídio de desemprego auferido pelo trabalhador] independentemente da questão ter ou não sido suscitada pelas partes, ou de se ter feito, ou não, prova do pagamento de subsídio de desemprego, sempre deverá o tribunal, oficiosamente, acautelar tal possibilidade, prevendo e determinando na sentença a necessidade de tais descontos para o caso do referido subsidio ter sido auferido"; ou dito de outro modo, "a dedução do subsídio de desemprego prevista na c) do n.º 2 do art.º 390.º, do Código do Trabalho, prossegue um evidente interesse público e tem natureza imperativa, não estando na disponibilidade das partes accioná-la sendo, consequentemente, de conhecimento oficioso".[3]

Nesta parte, portanto, procede a apelação da ré.

As custas são da responsabilidade da apelante, do que exclui a segunda questão que sendo de conhecimento oficioso não entra em regra de custas (art.º 527.º, n.os 1 e 2 do Código de Processo Civil).
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IIIDecisão.

Termos em que se acorda conceder parcial provimento à apelação e, em consequência:
a)-determinar que a apelante deduza as quantias que a apelada tenha auferido a título de subsídio de desemprego nas que foi condenada a pagar-lhe a título de retribuições (ilíquidas) desde 05-04-2022 até 15-12-2022 e as entregue à Segurança Social;
b)- no mais, manter a sentença recorrida.

Custas pela apelante, do que exclui a segunda questão que sendo de conhecimento oficioso não entra em regra de custas (art.º 527.º, n.os 1 e 2 do Código de Processo Civil e 6.º, n.º 2 do Regulamento das Custas Processuais e Tabela I-B a ele anexa).
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Lisboa, 21-02-2024.



(Alves Duarte)
(Sérgio Almeida)
(Maria José Costa Pinto)



[1]Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, de 06-06-2018, no processo n.º 4691/16.2T8LSB.L1.S1 - 4.ª Secção e da Relação de Coimbra, de 02-06-2015, no processo n.º 528/12.0TBCLD-C.C1, publicados em http://www.dgsi.pt (em todo o caso importa ter presente que a apelação foi interposta dentro do prazo normal a que alude o art.º 80.º, n.º 1 do Código de Processo do Trabalho).
[2]Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 12-09-2012, no processo n.º 154/06.2TTMTS-C.P1.S1; no mesmo sentido os acórdãos da Relação do Porto, de 20-12-2011, no processo n.º 406/10.7TTVCT.P1 e de 19-04-2021, no processo n.º 4188/18.6T8VFR-D.P1, todos publicados em http://www.dgsi.pt.
[3]Acórdão da Relação do Porto, de 17-12-2014, no processo n.º 568/10.3TTVNG.P1, publicado em http://www.dgsi.pt.