Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
3868/22.6T9FNC.L1-3
Relator: MARGARIDA RAMOS DE ALMEIDA
Descritores: ABUSO DE CONFIANÇA CONTRA A SEGURANÇA SOCIAL
CONDIÇÃO OBJECTIVA DE PROCEDIBILIDADE
MOMENTO DA VERIFICAÇÃO
PAGAMENTO EM PRESTAÇÕES
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 02/21/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NÃO PROVIDO
Sumário: Em caso de falta de entrega de contribuições devidas á segurança social, o pagamento em prestações acarretará consequências diversas, para efeito de procedimento criminal, consoante as seguintes situações:

A–Formulação de pedido de pagamento em prestações, dentro do prazo de 90 dias subsequente ao termo legal do pagamento da dívida:

Se o pedido de pagamento em prestações dá entrada, a entidade credora passa a ter conhecimento de que o contribuinte relapso quer pagar e que não o pode fazer de imediato. Se assim é, até ao encerramento do processo prestacional, não pode a mesma entidade ignorar esse circunstancialismo e notificar o mesmo dito contribuinte para proceder ao imediato pagamento, no prazo de 30 dias, da totalidade do devido; isto é, se o pedido de pagamento em prestações dá entrada antes da notificação realizada ao abrigo do disposto no nº4 do artº 105 do RGIT, esta não pode ser efectuada antes de ocorrerem uma de duas situações – ou o indeferimento do pedido de pagamento em prestações ou, sendo deferido, o seu incumprimento.

Até tais momentos temporais, não pode ser dado início ao procedimento criminal, por não se mostrar reunida a condição objectiva de punibilidade que a lei impõe, nem ser passível a notificação para tal fim. Apenas se e quando se verificarem as circunstâncias reportadas aos momentos temporais acima referidos, poderá ser dado cumprimento a tal normativo notificatório.

B–Formulação de pedido de pagamento em prestações, após cumprimento da notificação prevista no nº4 do artº 105 do RGIT, dentro do prazo de 30 dias aí previsto:

No caso de, quando dá entrada o pedido de pagamento em prestações, este ocorrer já no seguimento da notificação prevista no nº4 do artº 105, mas ainda dentro do prazo de 30 dias aí consignado, de igual modo o procedimento criminal não pode prosseguir, até ocorrerem as mesmas duas situações atrás mencionadas - ou o indeferimento do pedido de pagamento em prestações ou, sendo deferido, o seu incumprimento – pelas mesmas ordens de razões.

A única diferença, neste caso, é que não se mostra necessária a repetição da notificação ao abrigo do nº4 do artº 105 do RGIT, se já validamente realizada, uma vez que, não existindo pagamento, quer prestacional, quer integral, a condição objectiva de punibilidade aqui já se mostrará reunida, caso o pedido venha a ser indeferido ou haja incumprimento, dado que quando tal notificação foi feita, não havia ainda sido formulado qualquer pedido de pagamento faseado.

C–Formulação de pedido de pagamento em prestações, após esgotamento do prazo de 90 dias e do prazo de 30 dias (após interpelação admonitória):

Neste caso, no momento em que é formulado tal pedido, a condição de punibilidade já se verificou e tal pagamento prestacional, a concluir-se, terá seguramente relevo em sede executiva mas, em sede criminal, não interrompe, suspende ou obstaculiza o procedimento criminal, que prosseguirá seus termos normais, relevando apenas tal pagamento para efeitos de eventual pedido cível deduzido e dosimetria da pena, na perspectiva da reparação.

Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam em conferência na 3ª secção do Tribunal da Relação de Lisboa


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I–RELATÓRIO


1.Identificação dos intervenientes processuais

ASSISTENTE:INSTITUTO DE SEGURANÇA SOCIAL DA MADEIRA, IP-RAM.

ARGUIDOS: ...

2.No seguimento da queixa apresentada e findo o inquérito, o MP, procedeu ao arquivamento dos autos.
3.Veio então a assistente requerer abertura de instrução, pugnando pela pronúncia dos arguidos, pela prática, como autores materiais e na forma consumada, de um crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, previsto e punido pelos artigos 6.º, 7.º, 107.º, nº 1 e 2, 105.º, n.º 4, alínea a) e b) do RGIT e 30.º, n.º 1 do Código Penal, bem como que os arguidos, através do comportamento que adoptaram, causaram à Segurança Social um prejuízo, relativamente ao referido período, que ascende ao valor das quotizações não pagas, pois, do período em referência nestes autos e atrás indicado, não se encontra pago qualquer montante.

4.Em 24 de Outubro de 2023, foi proferida a seguinte decisão, pelo Mº JIC:
Pelo exposto e ao abrigo do disposto nos arts. 283.º, n.º 2, 307.º e 308.º do Código de Processo Penal, decido não pronunciar os arguidos AA e ...

5.Inconformada, a assistente interpôs recurso desta decisão, pugnando pela revogação do despacho de não pronúncia e a sua substituição por outro que pronuncie os arguidos nos termos e pela prática dos ilícitos, que lhes haviam imputados.

6.O recurso foi admitido.

7.O MºPº respondeu à motivação apresentada, defendendo a sua improcedência.

8.Neste tribunal, o Sr. Procurador-geral Adjunto remeteu para a resposta dada pelo seu Exº Colega de 1ª instância.

II–QUESTÕES A DECIDIR.

DO PAGAMENTO EM PRESTAÇÕES E SUAS CONSEQUÊNCIAS, PARA EFEITOS DE PROCEDIMENTO CRIMINAL.

III–FUNDAMENTAÇÃO.

1.A decisão sobre a qual recai a censura da recorrente, tem o seguinte teor:
O tribunal é competente.
O Ministério Público tem legitimidade para exercer a acção penal.
Da invocada nulidade do inquérito
Requereu o assistente que seja declarada a nulidade do inquérito nos termos do disposto no art. 119.º, alínea d) do Código de Processo Penal.
Nos termos do referido preceito, constitui nulidade insanável, que deve ser oficiosamente declarada em qualquer fase do procedimento a falta de inquérito ou de instrução, nos casos em que a lei determinar a sua obrigatoriedade.
Por seu turno, nos termos do disposto no art. 120.º, n.º 1 e n.º 2 alínea d) do Código de Processo Penal, constitui nulidade, dependente de arguição, a insuficiência do inquérito ou da instrução, por não terem sido praticados actos legalmente obrigatórios, e a omissão posterior de diligências que pudessem reputar-se essenciais para a descoberta da verdade.
No processo comum, e conforme se estabelece no art. 262.º, n.º 2 do Código de Processo Penal, havendo a notícia de um crime a abertura de inquérito é sempre obrigatória, ressalvadas as excepções previstas neste código, sendo estas os casos em que o Ministério Público optar pela submissão dos factos a julgamento em processo sumário, ou nos casos em que o procedimento depender de queixa ou participação e estas se não tiverem verificado.
Conforme se disse no Acórdão da Relação de Lisboa de 14 de Maio de 2008 (in www.dgsi.pt) “Importa esclarecer que a expressão “notícia de um crime” tem o significado de notícia de factos que objectivamente preenchem os elementos constitutivos de algum tipo de ilícito criminal. Como é bom de ver, a “notícia de um crime” para o ser tem de conter factos que podem integrar em abstracto um ilícito criminal.
Para aferir se os factos participados objectivamente preenchem os elementos constitutivos de algum tipo de ilícito, basta o simples confronto dos mesmos com a lei.
Se, feito este confronto, os factos manifestamente não configuram qualquer crime, o MºPº procede pura e simplesmente ao arquivamento da denúncia.”
No caso dos autos foi determinada a abertura de inquérito (despacho de fls. 23) e foram realizadas diligências, entre as quais a constituição como tal e interrogatório dos arguidos.
Como tal, é manifesto que foi realizado inquérito.
Por outro lado, e no que respeita à nulidade a que se refere o art. 120.º, n.º 1 e n.º 2 alínea d) do Código de Processo Penal, importa ter em conta que a norma comporta dois segmentos, designadamente, o respeitante à nulidade respeitante a insuficiência do inquérito ou da instrução, por não terem sido praticados actos legalmente obrigatórios, por um lado, e, por outro, o segmento respeitante à omissão posterior de diligências que pudessem reputar-se essenciais para a descoberta da verdade, sendo estas exclusivas da fase de julgamento.
Ora, na fase de inquérito, a única diligência obrigatória é a constituição de arguido nos casos legalmente previstos.
Quanto à constituição de arguido, o art. 58.º do Código de Processo Penal estabelece taxativamente quais os casos em que a mesma é obrigatória, designadamente quando: correndo inquérito contra pessoa determinada, esta prestar declarações perante qualquer autoridade judiciária ou órgão de polícia criminal (alínea a); tenha de ser aplicada a qualquer pessoa uma medida de coacção ou de garantia patrimonial (alínea b), um suspeito for detido, nos termos e para os efeitos previstos nos artigos 254.º a 261.º (alínea c) ou for levantado auto de notícia que dê uma pessoa como agente de um crime e aquele lhe for comunicado, salvo se a notícia for manifestamente infundada (alínea d).
Por outro lado, e como estabelece expressamente o art. 272.º, n.º 1 do Código de Processo Penal, correndo inquérito contra pessoa determinada em relação à qual haja suspeita fundada da prática de crime é obrigatório interrogá-la como arguido, salvo se não for possível notificá-la.
No mais, e conforme conta do Acórdão do Tribunal de Évora de 2 de Julho de 2019, in www.dgsi.pt, “o Ministério Público é livre, salvaguardados os atos de prática obrigatória e as exigências decorrentes do princípio da legalidade, de levar a cabo ou de promover as diligências que entender necessárias, com vista a fundamentar uma decisão de acusar ou de arquivar o inquérito e não determina a nulidade do inquérito por insuficiência a omissão de diligências de investigação não impostas por lei – cfr. Acórdão do Tribunal Constitucional 395/04 de 2.6.2004, DR 11 série de 9.10. 04, p. 14975”.
No caso dos autos procedeu-se à constituição como arguidos, sendo que os mesmos invocaram nessa sede ter diligenciado pelo pagamento em prestações dos montantes em dívida, invocado a irregularidade da notificação efectuada pelo assistente.
Ora, considerando que as notificações referentes ao art. 105.º, n.º 4, alínea b) precedem a notícia do crime, a necessidade (ou não) de repetição de notificações não gera qualquer nulidade.
Nestes termos, não se verifica qualquer nulidade do inquérito.
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Não existem nulidades ou outras questões prévias ou incidentais de que cumpra, desde já, conhecer e que obstem à apreciação do mérito da causa.
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Segundo o disposto no art.° 286.°, n.° 1 do Código de Processo Penal, “a instrução visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento”.
O art.º 283.º, n.º 2, ex vi art.º 308.º, n.º 2 do Código de Processo Penal, estipula que “consideram-se suficientes os indícios, sempre que deles resultar uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena ou uma medida de segurança”.
Sobre este conceito legal escreve o Prof. Figueiredo Dias - os indícios só serão suficientes e a prova bastante quando já em face dela, seja de considerar altamente provável a futura condenação do acusado, ou quando esta seja mais provável do que a absolvição. Acrescenta este autor que logo se compreende que a falta delas (provas) não possa de modo algum desfavorecer a posição do arguido: um “non liquet” na questão da prova..., tem de ser sempre valorado a favor do arguido. - Direito Processual Penal,1º, 1974, 133, citado no Ac. da Rel. de Coimbra, de 31.3.93, in C.J., T. II, p. 65.
Na jurisprudência, a interpretação desse conceito é resumida pela Relação de Coimbra (Ac. da Rel. de Coimbra, de 31.3.93, in C.J., T.II, p.65) da seguinte forma - para a pronúncia, não é preciso uma certeza da existência da infracção, mas os factos indiciários devem ser suficientes e bastantes, por forma que, logicamente relacionados e conjugados, formem um todo persuasivo de culpabilidade do arguido, impondo um juízo de probabilidade do que é imputado.
Neste sentido se pronunciou o S.T.J. (Ac. de 10.12.92, citado no Código de Processo Penal Anotado, de Manuel Silva Santos e outros, Ed. de 1996, p.131), que definiu “indiciação suficiente” como aquela que resulta da verificação suficiente de um conjunto de factos que, relacionados e conjugados, componham a convicção de que, com a discussão ampla em audiência de julgamento, se poderão vir a provar em juízo de certeza e não de mera probabilidade, os elementos constitutivos da infracção porque os agentes virão a responder.
Deve assim o juiz de instrução compulsar os autos e ponderar toda a prova produzida em sede de inquérito e de instrução e fazer um juízo de probabilidade sobre a condenação do arguido e, consequentemente, remeter ou não a causa para a fase de julgamento.
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O assistente imputa aos arguidos a prática em co-autoria material, e sob a forma continuada, um crime de abuso de confiança contra a segurança social, previsto e punido pelos artigos 107.º n.º 1 e 2, 105.º, n.º 4, alínea a) e b), em conjugação com os art. 6.º e 7.º do Regime Geral das Infracções Tributárias.
De acordo com o referido artigo 107.°, n.° 1, “as entidades empregadoras que, tendo deduzido do valor das remunerações devidas a trabalhadores e membros dos órgãos sociais o montante das contribuições por estes legalmente devidas, não o entreguem, total ou parcialmente, às instituições de segurança social, são punidas com as penas previstas nos n.º 1 e 5 do artigo 105.°”.
Por sua vez o n.º 1 do artigo 105.º do Regime Geral das Infracções Tributárias (RGIT), estabelece que “quem não entregar à administração tributária, total ou parcialmente, prestação tributária de valor superior a € 7500 deduzida nos termos da lei e que estava legalmente obrigado a entregar é punido com pena de prisão até três anos ou multa até 360 dias”.
Nos termos do n.º 4 do mesmo artigo, os factos descritos nos números anteriores só são puníveis se, tiverem decorrido mais de 90 dias sobre o termo do prazo legal de entrega da prestação (alínea a) e a prestação comunicada à administração tributária através da correspondente declaração não for paga, acrescida dos juros respectivos e do valor da coima aplicável, no prazo de 30 dias após notificação para o efeito (alínea b).
Considerou o Ministério Público que esta notificação deve ter-se por inoperante e face ao acordo de pagamento celebrado, considerando por sua vez o assistente que a celebração de acordo de pagamento em prestações de dívida à segurança social, nos termos previstos no código contributivo, e nos termos do CPPT, não impede nem desobriga a Instituição de Segurança Social de notificar o devedor e os seus administradores para procederem ao pagamento integral das quotizações, nos termos e para os efeitos do disposto no art.º 107.º e 105.º, nº 4 b) do RGIT, nem obsta à instauração ou ao prosseguimento de procedimento criminal pela prática do crime de abuso de confiança à segurança social, nem tão pouco faz desaparecer ou impede a prática do ilícito criminal, pois a situação contributiva regularizada ficcionada em virtude da celebração de acordo de pagamento faseado da dívida em cobrança coerciva, não significa inexistência de dívida; a dívida existe, subsiste e continua a existir enquanto não for integralmente paga, mas, em virtude de o devedor ter plano de pagamentos autorizado (que mais não é que um programa alternativo relativo a pagamentos que não foram efectuados em devido tempo), apenas a cobrança coerciva dessa dívida fica suspensa, não podendo o processo executivo prosseguir com a penhora de bens, enquanto o contribuinte/devedor estiver a cumprir o plano de pagamento das prestações e as contribuições correntes que se forem vencendo.
Não pondo em causa a autonomia entre a responsabilidade tributária e a responsabilidade penal, afigura-se que não assiste razão ao assistente.
Na verdade, até à notificação nos termos do disposto no art. 105.º, n.º 4, alínea b) do RGIT, não obstante o facto ilícito estar consumado, a respectiva conduta não é punível, sendo clara a jurisprudência de que a efectivação de tal notificação e a omissão do pagamento na sequência da mesma constitui condição objectiva de punibilidade.
Perante a omissão relevante de pagamento que constitui facto ilícito típico ainda não punível, deve a Segurança Social proceder à notificação referida e, omitido o pagamento devido acrescido de juros e coima, desencadear o procedimento criminal, pois só nessa data se mostra verificada a existência do crime no que ao processo crime respeita.
Na verdade, não obstante, haver já um facto ilícito e típico a existência do processo penal apenas se reporta à existência de um crime tal como definido no art. 1.º, alínea a) do Código de Processo Penal, ou seja, ao conjunto de pressupostos de que depende a aplicação ao agente de uma pena ou de uma medida de segurança.
Sem que o facto seja punível, em rigor, não deve sequer haver lugar ao levantamento do auto de notícia e à abertura de inquérito.
No caso dos autos, sem que as notificações a que se refere o art. 105.º, n.º 4, alínea b) estivessem regularmente efectuadas, o assistente aceitou o pagamento prestacional do tributo, sendo que, nos termos do art. 177.º-A, n.º 1, alínea b) do Código de Procedimento e de Processo Tributário, se considera que o contribuinte tem a situação tributária regularizada quanto esteja autorizado a pagamento da dívida em prestações, desde que exista garantia constituída, nos termos legais.
Ora, a Segurança Social não está impedida nem desobrigada de proceder à notificação em caso de incumprimento, nem tão pouco de levar a cabo os procedimentos contra-ordenacionais a que houver lugar, mas os princípios da boa-fé e da confiança que vinculam também – e principalmente – o Estado impõem que a notificação em causa seja efectuada previamente à instauração do procedimento criminal, mesmo com risco de prescrição dos factos não podendo os arguidas ser responsabilizadas pela omissão em tempo daquela, sendo consequência lógica, a de que não podem ser retiradas quaisquer consequências legal da notificação efectuada para efeitos do disposto no art. 105.º, n.º 4, alínea b) do RGIT, quer por via da regularização precedente da situação contributiva, quer pela invalidade da mesma.
Com efeito, as notificações que contam dos autos não foram sequer assinadas, delas não consta a menção relativa à coima aplicável e no caso do arguido, a notificação constante dos autos não é feita a título pessoal, mas enquanto gerente da sociedade arguida.
Ainda que se considerasse que esta omissões – de notificação a título pessoal e em pessoa diversa – constituem irregularidade susceptível de sanação e não nulidade como acima exposto, a notificação em causa não pode ocorrer nesta fase processual, dada a sua natureza, pois não cabe à instrução substituir-se à Administração ou ao Ministério Público.
Não se verificando nulidade do inquérito não existe fundamento legal para a devolução dos autos ao Ministério Público e, procedendo-se agora à regular notificação dos arguidos, ainda assim haveria de proceder aos actos de inquérito como sejam o interrogatório das mesmas e eventual inquirição de testemunhas.
Como resulta da norma acima citada, à instrução cabe a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento e não fazer ou refazer um inquérito que não deve correr sem a existência de um facto punível.
Assim sendo, considero que os autos não estão feridos de qualquer nulidade nem estão reunidos os pressupostos para que as arguidas sejam submetidas a julgamento pela prática dos factos que lhes foram imputados.

2.A recorrente apresentou as seguintes conclusões:
a)-A decisão instrutória recorrida, que considera que a celebração de acordo para pagamento faseado da dívida global de contribuições e de quotizações em processo de cobrança coerciva, (ao qual a lei atribui o efeito de situação contributiva regularizada, nos termos do disposto na alínea b) do n.° 2 do art.° 208,° do Código dos Regimes Contributivos do Sistema Previdencial de Segurança Social, com a consequente suspensão do processo de cobrança executiva do tributo) equivale ao pagamento, que, nos termos do disposto na alínea b) do n.° 4 do art.° 105.° do RGIT, impede o desencadear do procedimento criminal por abuso de confiança à Segurança Social, é ilegal e faz errada interpretação do disposto nos supra citados normativos legais, mormente do disposto no art.° 105.° e 107.° do RGIT e do art.° 208.° do Código dos Regimes Contributivos do Sistema Previdencial de Segurança Social.
c)-Nos termos do disposto no n° 2, do artigo 107.° do RGIT, a dedução nas remunerações devidas a trabalhadores e membros dos órgãos sociais do montante das contribuições por estes legalmente devidas para o regime contributivo obrigatório de segurança social, e a não entrega, total ou parcial, dos correspondentes valores às instituições de segurança social, sónão serão puníveis se, após notificada para o efeito, a entidade empregadora pagar à segurança social, no prazo de 30 dias, a totalidade da prestação, acrescida dos juros respetivos e do valor da coima aplicável.
d)-Face à letra da lei (artigo 107." e artigo 105.° do RGIT), só o efetivo e integral pagamento/entrega à segurança social da totalidade do valor das quotizações deduzido remunerações devidas a trabalhadores e membros dos órgãos sociais, no prazo de 30 dias a contar da notificação para o efeito, pode obstar à instauração ou ao prosseguimento do procedimento criminal por abuso de confiança à segurança social; só o cumprimento, pela entidade empregadora/devedora, da condição de pagamento, no prazo de 30 dias após notificação para o feito, da totalidade do montante das quotizações em falta impede o acionamento do procedimento criminal pelo crime de abuso de confiança fiscal.
e)-A celebração de acordo de pagamento da dívida de contribuições e de quotizações em sede de execução fiscal, não descriminaliza a conduta da entidade empregadora, muito menos não impede/desobriga a segurança social de notificar o devedor, nos termos e para os efeitos do disposto na alínea b), do n.° 4, do artigo 105.° do RGIT, e não dispensa a entidade empregadora devedora de cotizações, caso queira evitar a instauração do procedimento criminal por abuso de confiança à segurança social, de ter de proceder ao pagamento integral desse valor das quotizações, no prazo de 30 dias, que para o referido efeito lhe seja notificado pela segurança social, acrescido dos juros e da coima.
f)-A instauração ou a pendência de processo executivo para cobrança coerciva dos tributos de contribuições e de quotizações, ou a celebração de acordo de pagamento faseado desse mesmo tributo, no âmbito da execução fiscal, não constitui causa de exclusão da ilicitude ou da exclusão da punibilidade da conduta da dedução das quotizações nos salários e da não entrega à segurança social no prazo legal, nem é causa impeditiva do procedimento criminal por abuso de confiança à segurança social, contra a entidade empregadora e contra os respetivos gerentes.
g)- Se o legislador quisesse que a retenção pelos empregadores das quotizações nos salários dos seus trabalhadores e a não entrega das mesmas à segurança social só fossem puníveis se, antes da notificação efetuada nos termos dos disposto na alínea b), do n.° 4, do artigo 105." do RGIT, o devedor não tivesse celebrado acordo de pagamento da dívida em prestações em processo de execução fiscal; ou se o legislador quisesse que os acordos e pagamento de dívida em processo de execução fiscal determinassem a impossibilidade de instauração ou prosseguimento do procedimento criminal por abuso de confiança fiscal relativamente à conduta do abuso de confiança à segurança social pela retenção e não entrega mensal à segurança social dos valores das quotizações retidos nos salários dos trabalhadores, tê-lo-ia dito na letra da lei - e não o diz.
h)- A celebração de acordo de pagamento em prestações de dívida à segurança social, nos termos previstos no código contributivo, e nos termos do CPPT, não impede a instauração de procedimento criminal por abuso e confiança à segurança social, nem desobriga a Instituição de Segurança Social de notificar o devedor para proceder ao pagamento integral das quotizações, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 107.° e 105.°, n" 4, alínea b), do RGIT, nem obsta ao prosseguimento de procedimento criminal pela prática do crime de abuso de confiança à segurança social, nem tão pouco faz desaparecer ou impede a prática do ilícito criminal.
i)- Face à lei vigente, (artigo 107." e 105.0, n° 4, alínea b), do RGIT) só o pagamento integral da dívida de quotizações, no prazo de 30 dias a contar da notificação efetuada para o efeito, e não já o pagamento faseado, impede a reação processual criminal por crime de abuso de confiança à segurança social.
j)- As causa de extinção da dívida à segurança social são as taxativamente previstas no artigo 188.° do Código dos Regimes Contributivos do Sistema Previdencial de Segurança Social; e a situação contributiva efetivamente regularizada pelo pagamento é, apenas e tão só, a prevista no n.° 1 do artigo 208.° do referido código.
k)- Nos termos do disposto na alínea b), do n.° 4, ao artigo 105.°, do RGIT, só o pagamento integral da dívida de quotizações, acrescida e juros e da coima aplicável, no prazo de 30 dias a contar da notificação para o efeito, constitui condição objetiva que obsta à punibilidade.
1)-A celebração de acordo de pagamento da dívida e contribuições e quotizações, designadamente o efetuado processo de execução fiscal, não constitui um facto demonstrativo da não verificação da condição objetiva de punibilidade prevista no artigo 105.0, n° 4, alínea b) do RGIT. A responsabilidade tributária é autónoma face à responsabilidade penal tributária, e nos termos do disposto no artigo 105.°, n° 4, alínea b), do RGIT, o acionamento desta última está objetivamente condicionada à notificação para pagamento dos créditos tributários (das quotizações retidas e não entregues pelo empregador) pelo que, sendo o crime de abuso de confiança à segurança social um crime omissivo puro — que se consuma no momento em que o agente não entrega a prestação tributária devida — não é defensável, que um acordo de pagamento, ainda que celebrado antes daquela notificação, seja impeditivo da instauração ou do prosseguimento de procedimento criminal por abuso de confiança fiscal do empregador e dos seus gerentes, responsabilidade essa que é autónoma da responsabilidade tributária.
m)- Não existe equivalência entre um acordo de pagamento em prestações da dívida de contribuições e de quotizações à segurança social, e o pagamento total e imediato (no prazo de 30 dias a contar da notificação) do valor das quotizações previsto na alínea b), do artigo 105.°, n° 4, do RGIT, pelo que um acordo de pagamento, entre o devedor da prestação tributária (quotizações) e a segurança social, não obsta à verificação e funcionamento da condição de punibilidade da conduta, consagrado no artigo 105.°, n.° 4, alínea b), do RGIT.
n)- O acordo de pagamento em prestações efetuado no âmbito de execução fiscal em nada contende com a verificação do crime de abuso de confiança à segurança social, com o procedimento criminal e com a punibilidade da conduta do agente, pois o procedimento criminal por abuso de confiança à segurança social visa sancionar os comportamentos criminais, traduzidos na retenção e não entrega à segurança social das quotizações no prazo legal, com o atinente desvalor face ao bem jurídico que a incriminação visa tutelar, e não visa a cobrança do tributo (quotizações).
o)- Nesta sequência, conforme foi até decidido numa situação semelhante à dos presentes autos (cfr. Douto Acórdão proferido no âmbito do Processo n.° 1490/17.8T9FNC.L1, do Tribunal da Relação de Lisboa, 3° Secção, em que foi Relatora a Exm° Sr" Juiz Desembargador M. Elisa Marques), relativamente a um processo que correu termos no Tribunal Judicial da Comarca da Madeira, do Juízo de Instrução Criminal do Funchal, em que o ora Recorrente Instituto de Segurança Social da Madeira, IP-RAM, interpôs recurso de uma decisão instrutória e em que foi julgado procedente o recurso e revogou-se a decisão recorrida pois entendeu-se "por adquirido ser a responsabilidade tributária autónoma face à responsabilidade penal tributária.
q)- E de acordo com o mencionado Douto Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa, foi julgado procedente o recurso interposto pelo Instituto de Segurança Social da Madeira, IP-RAM, revogando-se a decisão recorrida, substituindo-a por outra que "retire as devidas consequências legais das notificações efectuadas para efeitos do disposto no art. 105.°, n.° 4, alínea b) do RGIT."
r)-De igual forma, sufragamos a posição adotada no Douto Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa (processo n° 464/16.0T 9SCR.L), num recurso interposto pelo Instituto de Segurança Social da Madeira, IP-RAM, num caso análogo aos dos presentes autos, onde é referido que "se bastasse a mera dedução de qualquer desses meios processuais, e a decorrente aquisição do estado de situação contributiva regularizada, para assegurar a impunidade da conduta, estaria aberta uma avenida muito larga para obstar à perseguição criminal, inviabilizando ou, pelo menos, reduzindo substancialmente a tutela do bem jurídico protegido pelo artigo 107.0 do RGIT (..)"
s)-Acresce também fazer alusão ao Douto Acórdão proferido no âmbito do Processo n.° 564/22.8T9SCR.L1, do Tribunal da Relação de Lisboa, relativamente a um processo que correu termos no Tribunal Judicial da Comarca da Madeira, do Juízo de Instrução Criminal do Funchal (com a decisão instrutória da Senhora Juíza de Direito do Tribunal Judicial da Comarca da Madeira — Juízo de Instrução Criminal do Funchal, datada de 10/01/2023), em que o Instituto de Segurança Social da Madeira, IP-RAM, interpôs recurso de uma decisão instrutória e em que foi julgado procedente o recurso e revogou-se a decisão recorrida pois entendeu-se "À luz, do que dito fica, podemos concluir com a necessária segurança que o acordo de pagamento, entre o devedor da prestação tributária e a administração tributária, não obsta à verificação e funcionamento da condição de punibilidade da conduta, consagrado na alínea b) do n° 4 do artigo 105.°. do RGIT, que no caso se mostra preenchida, muito menos impede a notificação a que alude na parte final da referida disposição legal." A este propósito, convém referir que no Douto Acórdão em apreço, é feita alusão a alguma jurisprudência relevante que já abordou esta problemática em termos idênticos ao ali decidido, a saber:
- Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 05/06/2017 de Ausenda Gonçalves (Proc n° 480/15.0T9PTLG1, disponível em www.dgsi.pt);
- Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 03/06/2016 de António Gama (Proc n° 2607/13.71DPRT.P1, disponível em www.dgsi.pt);
- Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 17/04/2018 de Jorge Gonçalves (Proc n° 777/16.11DLSB.L1-5, disponível em www.dgsi.pt);
- Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 26/04/2022 de Fernando Ventura (Proc no 464/16.0T9SCR.L1, disponível em www.dgsi.pt).
t)- Por outro lado, no despacho de não pronúncia ainda é referido que as notificações dos arguidos em causa eram inoperantes, dado que nelas não constava, como se impunha, a interpelação admonitória de que os denunciados deveriam. também, pagar o valor da coima aplicável.
u)- Ora, ao contrário do entendimento manifestado no despacho de não pronúncia dos arguidos, afigura-se-nos que as notificações em causa contêm todos os elementos essenciais para que os denunciados fossem informados do prazo que tinham, do montante a remeter à Segurança Social, e de que ao mesmo acrescem juros legais e das consequências da não entrega de tais valores.
v)- Acresce que, conforme resulta dos presentes autos, junto aos oficios de notificação remetidos aos arguidos, constata-se que foi anexado o "Mapa de dívida de quotizações", de onde resulta devidamente descriminada a "obrigação fiscal incumprida", isto é, o montante mensal em dívida de quotizações que os arguidos retiveram das remunerações pagas aos trabalhadores, que deveriam ter sido entregues à Segurança Social.
w)- Ainda acresce dizer que as notificações em causa contêm os elementos essenciais para que se cumpra a finalidade da norma em apreço, ou seja:
- Indicação da norma legal aplicável — art." 105.°, n." 4, al. b) do RGIT;
- Indicação do tipo de crime em causa;
- Indicação dos períodos a que diz respeito a quantia em dívida;
- Quantias em dívidas à Segurança Social;
- Informação do prazo concedido — 30 dias — para regularizar a situação;
- Indicação do que o agente deverá fazer para regularizar a situação, ou seja, deslocar-se aos Serviços da Segurança Social.
y)- Considerando o texto da notificação, temos de concluir que a finalidade pretendida pelo artigo 105.°, n.° 4, alínea b) do RGIT foi atingida, fornecendo aos arguidos todas as informações indispensáveis para que os mesmos regularizassem a sua situação, bem como as consequências resultantes do incumprimento, pelo que deveria ter sido deduzida acusação pelo menos em relação aos arguidos que foram notificados.
z)- No despacho de não pronúncia é mencionado que "no caso do arguido, a notificação constante dos autos não é feita a título pessoal, mas enquanto gerente da sociedade e é efectivada em pessoa diversa."
aa)- Ora, a notificação prevista na alínea b), do n°4 do artigo 105.° do RGIT, foi desencadeada pela Instituto de Segurança Social da Madeira, IP-RAM, antes de instaurado o inquérito, cumprindo-se assim o propósito legislativo de evitar a proliferação de procedimentos criminais contra os sujeitos passivos que, tendo sido notificados para o efeito regularizaram a situação.
bb)-Caso o procedimento criminal se tivesse iniciado sem ter lugar aquela notificação —nomeadamente por não ser encontrado o obrigado - o Ministério Público durante a fase do inquérito deveria providenciar pelo suprimento da omissão, nomeadamente procedendo à notificação em falta.
cc)-Ora, suscitando-se dúvidas acerca da notificação dos arguidos, que foi efetuada pelo Instituto de Segurança Social da Madeira, IP-RAM, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 105.°, n° 4, alínea b), do RGIT, nomeadamente, em virtude dos avisos de receção terem sido assinados por pessoa diversa da destinatária, o Ministério Público deveria ter ordenado a repetição dessas notificações durante a fase de inquérito, pois nessa fase processual poderia essa alegada questão ser sanada.
dd)-Acresce que, como resulta dos autos, os arguidos foram notificados através de cartas enviadas para os seus domicílios fiscais e as notificações foram ali recebidas.
ee)-A este propósito, refira-se que segundo o Douto Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Évora de 18/02/2020, proferido no âmbito do processo n° 481/15.81DFAR.E 1, in www.dgsi.pt, «As situações de concreto esgotamento das diligências processuais para a notificação do arguido, em que a notificação não ocorre por responsabilidade exclusiva deste, devem ser equiparadas aos casos em que a notificação é ordenada e devidamente concretizada.", pelo que as notificações deveriam ter sido consideradas concretizadas.
ff)-Por outro lado, o Ministério Público na fase de inquérito, de forma a suprir a alegada ausência do referido requisito de punibilidade que diz ter ocorrido no despacho de arquivamento, deveria ter ordenado a notificação aos arguidos, ao abrigo do disposto no artigo 105.°, n° 4, do RGIT.
gg)-Nesta medida, não poderia o Ministério Público proferir o despacho de arquivamento do inquérito nos termos em que foi proferido, nem concluir, como foi ali concluído pela inadmissibilidade legal do procedimento criminal, pois se foi detetada uma eventual irregularidade, verifica-se que a mesma poderia ter sido suprida a todo o tempo, isto é, poderia ter sido reparada oficiosamente ou mandada reparar pelo Ministério Público ou pela autoridade judiciária competente.
hh)-Tanto mais que, no caso dos autos, verifica-se que o denunciado AA foi contactado presencialmente pela PSP a fls 48 a 49 dos autos, tendo prestado o termo de identidade e residência a fls 37 a 38 dos autos, bem como foi constituído arguido a fls 29 a 30 dos autos, pelo que o seu paradeiro não era desconhecido.
ii)- Esta é de resto a posição defendida no acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 13 de Maio de 2009, proferido no âmbito do processo n° 142/05.66IDPRT.P1, in www.dgsi.pt, que dispõe que «A falta de notificação dos arguidos em nome pessoal, nos termos e para os efeitos do artigo 105° n° 4 al. b) do RG1T, constitui, em nosso entender, uma irregularidade. O Tribunal pode ordenar, oficiosamente, a reparação da irregularidade em causa, no momento em que da mesma tomar conhecimento, quando ela puder afetar o valor do ato praticado (cfr. artigo 123°/2 do Código de Processo Penal)».
jj)-Por outro lado, acresce dizer que o artigo 286.°, n° 1, do Código do Processo Penal, com a epígrafe, "Finalidade e âmbito do instrução" dispõe que "A instrução visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento."
kk)-O artigo 290.°, n° 1, do Código do Processo Penal, com a epígrafe "Actos do juiz de instrução e actos delegáveis", refere que "O juiz pratica todos os actos necessários à realização das finalidades referidas no n.° 1 do artigo 286.""
11)-Assim sendo, muito embora se considere que as notificações remetidas aos arguidos nestes autos devam ser consideradas efetuadas, na fase da instrução e em última instância o Tribunal poderia proceder à sanação de tal alegada irregularidade, ordenando novas notificações aos arguidos.
mm)-Por seu turno, acresce que o inquérito compreende o conjunto de diligências que visam investigar a existência de um crime, determinar os seus agentes e a responsabilidade deles e descobrir e recolher as provas, em ordem à decisão sobre a acusação — artigo 262.°, n° 1 do Código do Processo Penal.
nn)-O n° 2 do mesmo artigo estatui que: "Ressalvadas as excepções previstas neste Código, a notícia de um crime dá sempre lugar à abertura de inquérito".
oo)-A direção do inquérito cabe ao Ministério Público - artigo 263.° do Código do Processo Penal — que pratica os atos necessários à realização da finalidade a que se dirige: investigar a notícia do crime e quem foram os seus agentes em ordem à decisão sobre se deverá ou não promover-se a fase de julgamento — artigo 267.° do Código Penal
pp)-O Ministério Público procede oficiosamente a quaisquer diligências que julgar indispensáveis à descoberta da verdade (artigo 50.°, n° 2).
qq)-A fase do inquérito é essencialmente inquisitória, dominada pelo Ministério Público a quem é atribuído o poder de esclarecimento oficioso do facto objeto da suspeita. O Ministério Público dispõe dos mais amplos poderes de investigação — artigo 267.° do Código do Processo Penal.
rr)-Ora, verifica-se que se o Ministério Público proferiu despacho de arquivamento sem proceder a qualquer diligência no âmbito do inquérito ignorando um patamar mínimo de atos de investigação, face aos factos que lhe foram denunciados, visto que os autos contêm indícios da prática pelas arguidas do crime de natureza pública de abuso de confiança contra a segurança social, pelo que entende-se que foi cometida a nulidade insanável de falta de inquérito prevista no artigo 119.°, alínea d), do Código do Processo Penal.
ss)-Bem como omitiu a prática de alguns atos que se reputam obrigatórios ou diligências essenciais face à natureza do crime em questão (pois apesar de ter entendido que as notificações efetuadas não poderiam produzir efeito não cuidou de levar a cabo novas notificações, o Ministério Público optou pelo "arquivamento liminar do inquérito"), verificando-se o cometimento da nulidade prevista no artigo 120.", n° 2, alínea d) do Código do Processo Penal.
tt)-Assim, caso se tenha verificado que o procedimento criminal se tenha iniciado sem ter lugar à notificação prevista na alínea b), do n° 4, do artigo 105.°, do RGIT, nomeadamente, por não se ter encontrado o denunciado, ou caso se tenha verificado existir alguma irregularidade na dita notificação, afigura-se-nos que o Ministério Público deveria providenciar pelo suprimento da omissão, nomeadamente procedendo à notificação em falta. uu) De acordo com o Douto Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa, (cfr. Processo n° 1584/18.2T9SNT.L1-9, datado de 30/09/2019), no sítio da internet www.dgsi.pt, foi consignado que "1-Se o Ministério Público profere despacho de arquivamento sem proceder a qualquer diligência no âmbito do inquérito ignorando um patamar minimo de investigação face aos factos denunciados, comete a nulidade insanável de falta de inquérito prevista no art. 119.0, aI. d), do CPP;
11-0 que efectivamente interessa saber, é, se a denúncia, tal como é apresentada, tem alguma potencialidade para configurar um crime. Se de forma evidente e conclusiva não houver crime, nem deve ser aberto inquérito. Mas se houver indícios ou suspeitas, mesmo ténues que sejam, tem que haver inquérito, procedendo-se pelo menos à inquirição do arguido/suspeito, antes de eventualmente o Ministério Público decidir arquivar o inquérito; 111-Tendo sido totalmente omitido o inquérito num caso em que a lei determina a sua obrigatoriedade, estamos perante uma nulidade insanável, de conhecimento oficioso, a que alude o art. 119. °, al. d), do Código de Processo Penal (cf: ainda o art. 118°, n.° 1, do mesmo código)."
vv)-Assim sendo, considera-se que o Ministério Público não poderia ter proferido o despacho de arquivamento do inquérito do modo e nas condições em que o fez, pois deveria ter procedido à realização de todas as diligências necessárias a investigar a existência do crime que foi denunciado, determinar os seus agentes e a responsabilidade de cada um deles, bem como descobrir e recolher as provas e tudo o mais necessário a sustentar uma acusação, razão pela qual considera-se que foi totalmente omitido o inquérito num caso em que a lei determina a sua obrigatoriedade, verificando-se a ocorrência de uma nulidade (insanável, de conhecimento oficioso), prevista no artigo 119.°, alínea d), do Código do Processo Penal, em conjugação com o artigo 118.°, n° 1, do mesmo diploma.
ww)-Isto porque, não pode o Ministério Público, porque tem um entendimento contrário à Lei de que "O cumprimento do acordo de pagamento em prestações determina que se considere regularizada a dívida à segurança social'', ignorar que os factos que lhe foram denunciados consubstanciam a prática de um crime de abuso de confiança contra a segurança social que defende o interesse público, procedendo pura e simplesmente ao arquivamento do inquérito de forma liminar.
xx)-Pelo exposto, deverá julgar-se verificada a nulidade em questão, de conhecimento oficioso, declarando-se inválido o despacho de arquivamento do inquérito, o que aqui se requer, com as devidas consequências legais.
yy)-Por seu turno, muito embora se considere que as notificações remetidas aos arguidos nestes autos devam ser consideradas efetuadas, por mera cautela de patrocínio e tendo em conta que não consta da alínea b), do n° 4, do artigo 105.° do RGIT ou de qualquer outra norma de quem é a entidade que legalmente tem poder para elaborar a notificação daquele preceito, na fase da instrução e em última instância a Meritíssima Juíza "a quo". poderia e deveria ter ordenado a notificação aos arguidos, ao abrigo do disposto no artigo 105.°, n° 4, do RGIT.
zz)-Neste contexto, face aos elementos constantes dos autos, a douta decisão instrutória proferida pelo Digníssimo Tribunal a quo, deverá ser revogada integralmente, o que aqui se requer, para os devidos efeitos.

3.–Apreciando.

Cremos que, para melhor compreensão da tese jurídica defendida no despacho ora alvo de recurso, convém proceder à transcrição do despacho de arquivamento, que dá origem ao pedido de abertura de instrução e subsequente envolvimento do Mº JIC, na decisão destes autos. Tem o mesmo o seguinte teor, na parte que aqui nos importa:
I. Factos noticiados e sua qualificação jurídica
O inquérito iniciou com a notícia de que a ..., sediada à ... E, 2 V, Funchal, nesta comarca da Madeira, por decisão do seu gerente, AA, tomada por si e no seu próprio interesse e, em nome, por conta e no interesse daquela, enquanto seus gerentes, não entregou, até ao termo do respetivo prazo legal, ao Instituto de Segurança Social da Madeira, IP-RAM, as quotizações que reteve das remunerações pagas aos seus gerente e trabalhadores no período compreendido dezembro de 2018 e dezembro de 2020, no valor total de 3.323,16 €.
*
Os factos acima descritos são suscetíveis de configurar, em abstrato, a prática:
a)- Pela ..., de:
- Um crime protraído de abuso de confiança contra a segurança social, p. e p. pelo artigo 107.º, n.os 1 e 2, do Regime Geral das Infrações Tributárias, por referência aos artigos 7.º e 105.º, n.os 1, 4 e 7, do mesmo diploma.
b)- Por AA de:
- Um crime protraído de abuso de confiança contra a segurança social, p. e p. pelo artigo 107.º, n.os 1 e 2, do Regime Geral das Infrações Tributárias, por referência aos artigos 6.º e 105.º, n.os 1, 4 e 7, do mesmo diploma.
*

II.Fundamentação da decisão de arquivamento:
(…)
Em conformidade com o estatuído no artigo 107.º, n.os 1 e 2, do Regime Geral das Infrações Tributárias, por referência ao artigo 105.º do mesmo diploma, comete o crime de abuso de confiança contra a segurança social a entidade empregadora que, tendo deduzido do valor das remunerações devidas a trabalhadores e membros dos órgãos sociais o montante das contribuições por estes legalmente devidas (quotizações), não o entregue, total ou parcialmente à competente instituição de segurança social.
Nos termos do preceituado no artigo 6.º do Regime Geral das Infrações Tributárias, também comete o referido crime quem agir voluntariamente como titular de um órgão, membro ou representante de uma pessoa coletiva, sociedade, ainda que irregularmente constituída, ou de mera associação de facto, ou ainda em representação legal ou voluntária de outrem.
Trata-se de crime omissivo puro, que se consuma com a mera não entrega por uma entidade empregadora aos cofres da competente instituição de segurança social das quotizações legalmente devidas pelos seus trabalhadores e que tenham sido deduzidas das remunerações que lhes tiverem sido pagas (cfr., neste sentido, o Acórdão de Uniformização de Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça n.º 2/2015, de 8 de janeiro de 2015, proferido no processo n.º 398/09.5TAGLS.E1-A.S1 (rel. ISABEL SÃO MARCOS), publicado em Diário da República, I-Série, n.º 35, de 19 de Fevereiro de 2015, pp. 967-982).

Todavia, a punibilidade do crime de abuso de confiança contra a segurança social depende da verificação cumulativa e sucessiva das condições estabelecidas nas alíneas a) e b) do n.º 4 do artigo 105.º do Regime Geral das Infrações Tributárias, ex vi artigo 107.º, n.º 2, do mesmo diploma, a saber: por um lado, que a entidade empregadora não entregue à competente instituição de segurança social as quotizações devidas nos 90 (noventa) dias posteriores ao termo do prazo legal para a respetiva entrega; e, por outro lado, que a entidade empregadora não entregue à competente instituição de segurança social o montante das quotizações devidas, acrescido dos juros e da coima aplicável, nos 30 (trinta) dias subsequentes a notificação para efeito.
Conforme é jurisprudência pacífica, as condições previstas no artigo 105.º, n.º 4, do Regime Geral das Infrações Tributárias, ex vi artigo 107.º, n.º 2, do mesmo diploma, são condições de punibilidade, na medida em que a repressão criminal só pode ter lugar se elas estiverem efetivamente verificadas, e não meras condições de não punibilidade (circunstâncias que, reunidas, excluem a responsabilidade criminal, de outra forma verificada, como sucedia com o n.º 6 do artigo 105.º do Regime Geral das Infrações Tributárias, entretanto revogado). Ou seja, estamos perante verdadeiros pressupostos positivos da punição.
Feito este necessariamente breve enquadramento dogmático do crime de abuso de confiança contra a segurança social, é tempo de ver se estão reunidos os pressupostos materiais e processuais de que depende o prosseguimento dos autos com a dedução de acusação.
Compulsados os autos, verifica-se que com vista ao pagamento da dívida de quotizações e juros, a sociedade ..., celebrou com o Instituto de Segurança Social da Madeira, IP-RAM, plano prestacional.
Mais se verifica que, para o efeito de notificar ..., e AA nos termos e para os efeitos previstos no artigo 105.º, n.º 4, alínea b), do Regime Geral das Infrações Tributárias, ex vi artigo 107.º, n.os 1 e 2, do mesmo diploma, o Instituto de Segurança Social da Madeira, IP-RAM, expediu ofícios remetidos por via postal registada com aviso de receção.
Sucede, porém, que as notificações em causa eram inoperantes, dado que nelas não constava, como se impunha, a interpelação admonitória de que os denunciados deveriam, também, pagar o valor da coima aplicável.
Uma vez que o procedimento por contraordenação tem natureza pública e é irrenunciável, não estando na disponibilidade do Instituto de Segurança Social da Madeira, IP-RAM, instaurá-lo, ou não, é de concluir que as citadas notificações não respeitaram o formalismo legal.
Importa extrair daqui todas as consequências.
A condição objetiva de punibilidade estabelecida pela alínea b) do n.º 4 do artigo 105.º do Regime Geral das Infrações Tributárias foi introduzida pelo artigo 95.º da Lei n.º 53-A/2006, de 29 de Dezembro, que aprovou o Orçamento do Estado para o ano de 2007, e fundou-se, essencialmente, em razões de política criminal: «[d]esde logo, e em primeiro lugar, o legislador terá atendido ao facto de a entrega, ainda que fora do prazo, pôr fim ao prejuízo patrimonial do Estado provocado pelo agente; por outro lado, aquela norma constitui um incentivo ao pagamento das prestações em falta e permite ainda evitar os custos que o procedimento criminal acarreta para a administração fiscal; por último, esta alteração legislativa foi sensível à necessidade de um certo lapso temporal que permita à administração fiscal o tratamento das informações fiscais relevantes, designadamente que dizem respeito ao não cumprimento dos deveres fiscais» (cfr. SUSANA AIRES DE SOUSA, Os crimes fiscais. Análise dogmática e reflexão sobre a legitimidade do discurso criminalizador, Coimbra, Coimbra Editora, 2006, pp. 136-137).
Com efeito, lê-se no relatório que acompanhou a Proposta de Lei do Governo n.º 99/X, relativa ao Orçamento do Estado para o ano de 2007:
«A entrega da prestação tributária (retenções de IR/selo e IVA) está actualmente associada à obrigação de apresentação de uma declaração de liquidação/pagamento. A falta de entrega da prestação tributária pode estar associada ao incumprimento declarativo ou decorrer simplesmente da falta de pagamento do imposto liquidado na respetiva declaração. Quando a não entrega da prestação tributária está associada à falta declarativa existe uma clara intenção de ocultação dos factos tributários à Administração Fiscal. O mesmo não se poderá dizer quando a existência da dívida é participada à Administração Fiscal através da correspondente declaração, que não vem acompanhada do correspondente meio de pagamento, mas que lhe permite desencadear de imediato o processo de cobrança coerciva.
Tratando-se de diferentes condutas, com diferentes consequências na gestão do imposto, devem, portanto, ser valoradas criminalmente de forma diferente.
Neste sentido, não deve ser criminalizada a conduta dos sujeitos passivos que, tendo cumprido as suas obrigações declarativas, regularizem a situação tributária em prazo a conceder, evitando-se assim a “proliferação” de inquéritos por crime de abuso de confiança fiscal que, atualmente, acabam por ser arquivados por decisão do Ministério Público na sequência do pagamento do imposto» (cfr. Ministério das Finanças e da Administração Pública, Orçamento do Estado para 2007 – Relatório, Lisboa, 2007, p. 44).
Nesta conformidade, é manifesto que a consagração legal da condição objetiva de punibilidade do crime de abuso de confiança contra a segurança social inserta na alínea b) do n.º 4 do artigo 105.º do Regime Geral das Infrações Tributárias teve em vista obviar à instauração desnecessária de inquéritos criminais, pretendendo o legislador levar, através dela, ao cumprimento, ainda que atrasado, dos deveres tributários, pelo que deve ser compatibilizada com outras soluções legislativas que visam atingir a mesma finalidade, nomeadamente a autorização para o pagamento em prestações da dívida às competentes instituições de segurança social.
Dispõe o artigo 189.º, n.º 1, do Código dos Regimes Contributivos do Sistema Previdencial de Segurança Social que «[o] diferimento do pagamento da dívida à segurança social, incluindo os créditos por juros de mora vencidos e vincendos, assume a forma de pagamento em prestações».
O pagamento em prestações é uma situação excecional de regularização da dívida à segurança social, e rege-se pelo disposto no artigo 190.º do sobredito código e pelas disposições aplicáveis ao processo de execução fiscal, nomeadamente à disciplina dos artigos 196.º a 200.º do Código de Procedimento e Processo Tributário.
O cumprimento do acordo de pagamento em prestações determina que se considere como regularizada a dívida à segurança social que dele é objeto, reputando-se legalmente que esse cumprimento ocorre quando estiverem verificadas as seguintes condições: (i) pagamento da primeira prestação; (ii) constituição de garantia real, quando aplicável; e (iii) inexistência de falta de pagamento de três prestações sucessivo ou de seis prestações interpoladas, se, no prazo de 30 (trinta) dias, após notificação para o efeito, não sobrevier o pagamento das prestações incumpridas (cfr. artigos 190.º e 208.º, n .º 1, alínea a), do Código dos Regimes Contributivos do Sistema Previdencial de Segurança Social e artigo 200 .º, n .º 1, do Código de Procedimento e Processo Tributário).
Perante este quadro legal, é de concluir que a dívida da ..., ao Instituto de Segurança Social da Madeira, IP-RAM, deve considerar-se regularizada, na medida em que a dívida aqui em causa é objeto de acordos de pagamento em prestações que aquele instituto considera vigorarem, ou seja, reputa de cumpridos.
Nesta medida, não poderia o Instituto de Segurança Social da Madeira, IP-RAM, ter encetado as notificações previstas no artigo 105.º, n.º 4, alínea b), do Regime Geral das Infracções Tributárias, ex vi artigo 107.º, n.os 1 e 2, do mesmo diploma, pelo que as mesmas não podem deixar de haver-se como inoperantes, como decorrência direta, para além dos respetivos vícios formais supra aludidos, dos princípios da boa fé e da proteção da confiança, que vinculam o Estado (em sentido amplo).
Não se ignora, com isto, que a responsabilidade criminal é independente da responsabilidade tributária, nem se afirma o contrário.
Tem-se apenas presente que o ordenamento jurídico é uno e que o Direito é uma ciência lógica.
E, assim sendo, por apelo aos princípios basilares e estruturantes do nosso ordenamento jurídico, como sejam o da boa fé, da proteção da confiança e da segurança, a que todos os sujeitos de Direito estão vinculados, principiando pelo Estado (em sentido amplo), enquanto emanações do princípio do Estado de Direito democrático, consagrado no artigo 2.º da Constituição da República Portuguesa, é de considerar que a vigência de um acordo de pagamentos obsta à realização da notificação a que alude o artigo 105.º, n.º 4, alínea b), do Regime Geral das Infrações Tributárias, ex vi artigo 107.º, n.os 1 e 2, do mesmo diploma.
Entendamo-nos: o Estado não pode querer ter sol na eira e chuva no nabal, passe o adágio popular.
Não pode o Estado, a um tempo, exigir aos autores de um crime de abuso de confiança contra a segurança social o pagamento da dívida de quotizações, acrescida dos juros de mora, da coima eventualmente aplicável e dos demais encargos, no prazo de 30 (trinta) dias, contado de notificação que, para o efeito, lhes seja dirigida, sob pena de se concretizar a sua responsabilidade penal, quando previamente a essa notificação já concedera à entidade empregadora devedora um prazo para o respetivo pagamento em prestações, necessariamente superior àquele.
Admitir o contrário seria permitir uma atuação da administração da segurança social desconforme com o princípio do Estado de Direito democrático, consagrado no artigo 2.º da Constituição da República Portuguesa, e com os princípios da legalidade, da prossecução do interesse público e da proteção dos direitos e interesses dos cidadãos, da boa administração, da proporcionalidade, da justiça e da razoabilidade, da imparcialidade, da boa-fé e da colaboração com os particulares, previstos nos artigos 3.º, 4.º, 5.º, 7.º, 8.º, 9.º e 10.º do Código do Procedimento Administrativo (cfr., neste sentido, o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 16 de fevereiro de 2021, proferido no processo n.º 352/19.9T9FNC (rel. JOSÉ ADRIANO), não publicado).
Seria, aliás, a afirmação do desvirtuamento do objetivo declarado da introdução da condição objetiva de punibilidade prevista no artigo 105.º, n.º 1, alínea b), do Regime Geral das Infrações Tributárias, ex vi artigo 107.º, n.os 1 e 2, do mesmo diploma: evitar a proliferação de inquéritos criminais.
Constituiria, também, flagrante atentado ao conceito de sistema jurídico e à noção de pensamento sistemático (cfr., sobre estas noções, por todos, CLAUS-WILHELM CANARIS, Pensamento sistemático e conceito de sistema na Ciência do Direito, 6.ª edição, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 2019, passim).
O entendimento aqui vertido é, salvo o devido respeito por opinião contrária, o único que se revela conforme com os princípios e regras fundamentais do sistema jurídico, que permite a concordância prática entre as diversas disposições legais vigentes e que acautela a diferente natureza e a independência das responsabilidades penal e tributária.
Na verdade, e contrariamente ao que sucede na situação dos autos, se o acordo de pagamento em prestações for celebrado quando a condição objetiva de punibilidade já estiver verificada, por decurso do prazo previsto no artigo 105.º, n.º 1, alínea b), do Regime Geral das Infrações Tributárias, ex vi artigo 107.º, n.os 1 e 2, do mesmo diploma, sem que tenha ocorrido, nesse prazo, o pagamento aí aludido, tal acordo não poderá ter o efeito de obstar à concretização da responsabilidade criminal do agente do crime, na exata medida em que não há qualquer defraudamento da confiança, da segurança jurídica ou da boa fé, relevando, eventualmente, como atenuante e em seu abono na escolha da pena e na determinação da sua medida.
Destarte, reputo de não verificada a condição objetiva de punibilidade prevista no artigo 105.º, n.º 1, alínea b), do Regime Geral das Infrações Tributárias, ex vi artigo 107.º, n.os 1 e 2, do mesmo diploma, e, em consequência, concluo pela inadmissibilidade legal do procedimento criminal, o que impõe o arquivamento dos autos, nos termos do disposto no artigo 277.º, n.º 1, do Código de Processo Penal.

4.Cumpre começar por notar que a maioria da jurisprudência publicada, a propósito desta questão, tem entendido, por virtude das diversas e autónomas realidades que constituem, por um lado, a execução fiscal (onde se visa o pagamento da dívida do imposto) e, por outro, o crime fiscal (onde se tem por objectivo sancionar os comportamentos criminais, traduzidos na falta de pagamento de um imposto ou de uma contribuição, com o atinente desvalor face ao bem jurídico que a incriminação visa tutelar, pondo em causa o sistema financeiro público do Estado, através do qual este obtém as receitas necessárias ao funcionamento do próprio Estado, propiciador de bem-estar a todos os seus cidadãos, como se afirma num dos acórdãos citados pela recorrente), que o pagamento em prestações não equivale a pagamento da dívida nem à extinção desta, mas a um pagamento que se vai realizando, no âmbito das execuções fiscais, pelo que, não estando a dívida paga, teriam os arguidos (como responsáveis criminalmente) de ser notificados, como foram, nos termos e para os efeitos do artigo 105.º, n.º 4, al. b), RGIT..( Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, Processo 777/16.1IDLSB.L1-5, de 17-04-2018).

5.Adita-se, ainda que, no caso da presente relatora, tem sido este o entendimento que tem vindo a ser por si genericamente seguido, na decisão deste tipo de questão.
Sucede, todavia, que o despacho de arquivamento e a decisão proferida em sede de instrução, vêm trazer à colação dois elementos que, no que concerne à presente relatora, nunca sobre os mesmos teve de se pronunciar e que em nenhum dos acórdãos citados pela recorrente, efectivamente se mostram sequer ponderados, designadamente o vertido no artº 177.º-A, do DL n.º 433/99, de 26 de Outubro (CÓDIGO DE PROCEDIMENTO E DE PROCESSO TRIBUTÁRIO), assim como a questão de saber qual a relevância, para efeitos de processo-crime, de ter havido lugar a pedido e deferimento de pagamento faseado de quotizações em atraso, antes da notificação prevista no nº4 do artº 105 do RGIT.

6.–Vejamos então.
O artº 177.º-A, do DL n.º 433/99, de 26 de Outubro, estabelece as circunstâncias em que se tem de entender, juridicamente, que o contribuinte tem a sua situação tributária regularizada, aí se prevendo expressamente, no nº1 al. b), que se entende integrar-se em tal categoria o contribuinte que esteja autorizado ao pagamento da dívida em prestações, desde que exista garantia constituída, nos termos legais. Ora, a situação dos autos enquadra-se, precisamente, no disposto em tal alínea, isto é, a dívida gerada pela ausência de tempestiva entrega de contribuições que eram devidas, tem de se entender, enquanto decorrer tal pagamento em prestações, como mostrando-se saldada, pese embora se mostre a mesma sujeita a condição de efectiva satisfação de todas as prestações devidas.

7.Atento o que se narrou, em conjugação com um reequacionar da questão à luz deste preceito, bem como a exigência de verificação de uma condição de punibilidade, resulta evidente que não pode, em termos jurídicos, o tribunal desconsiderar tal circunstância, remetendo-a apenas para a relevância em sede civil/executiva, mas indiferente para efeitos de procedimento criminal.
Efectivamente, o legislador estabeleceu, expressamente, a necessidade de verificação, para efeitos de responsabilização criminal do contribuinte faltoso, pela prática de um crime, uma condição objectiva de punibilidade, que se consubstancia na ausência de pagamento, por parte do relapso, após notificação para tal fim, da quantia em dívida, acrescida dos juros respectivos e do valor da coima aplicável, no prazo de 30 seguintes à mesma.
E, por sua vez, para que possa haver lugar a tal notificação admonitória, necessário se mostra que tenham decorrido mais de 90 dias sobre o termo do prazo legal de entrega da prestação.
8.–O que daqui se retira é que, caso o contribuinte/quotizado em falta, pague a prestação e os demais encargos, ou nos 90 dias seguintes ao termo do prazo legal da entrega da prestação ou dentro do prazo dos 30 dias seguintes à notificação, não pode haver lugar a abertura de procedimento criminal, pela prática do crime previsto no artº 107 da Lei n.º 15/2001, de 05 de Junho (REGIME GERAL DAS INFRACÇÕES TRIBUTÁRIAS), pois a punibilidade dos factos está sujeita à condição objectiva de ausência de um acto de pagamento extemporâneo, no prazo adicionalmente concedido para tal fim.
9.E a primeira questão que aqui surge é a de saber se, para obviar à notificação prevista no nº4 do artº 105 do RGIT, esse acto de pagamento terá de ser integral e efectivo – isto é, a quantia em dívida tem de estar integralmente paga no prazo dos 90 dias posteriores ao termo legal da entrega da prestação – ou para tanto bastará a circunstância de esse pagamento se mostrar a decorrer, por virtude de ter sido deferido o pagamento em prestações da quotização em dívida ou, ainda, que esse pagamento prestacional tenha sido peticionado, embora ainda não alvo de deferimento.
10.Entende o despacho recorrido – na esteira do despacho de arquivamento – que o facto de a lei considerar como saldada a prestação, na decorrência da celebração de um acordo de pagamento em prestações (o disposto no mencionado artº 177-A, nº 1 al. b), do DL n.º 433/99, de 26 de Outubro - CÓDIGO DE PROCEDIMENTO E DE PROCESSO TRIBUTÁRIO), inviabiliza a notificação a que alude o nº 4 al. b) do artº 105 do RGIT, precisamente porque, em termos legais, é o próprio legislador a determinar que a dívida, embora ainda não totalmente saldada, coloca o contribuinte em causa, não numa situação de incumprimento, mas antes como tendo a sua situação tributária regularizada, à semelhança, aliás, de todos os demais, que nada devam em sede de impostos ou outras prestações tributárias e respectivos juros (vide al. a) do mesmo artigo).
Considera, por seu turno, a recorrente que assim não é, uma vez que, efectivamente, ainda se não verificou o pagamento integral da dívida.
11.Efectivamente, assim é. A dívida ainda está a ser paga, mas o enquadramento jurídico pelo próprio legislador querido, ao equiparar tal circunstancialismo a uma situação de regularidade da situação tributária, não pode, de todo, ser escamoteada ou relegada para um mero circunstancialismo apenas relevante para efeitos de responsabilidade em sede de execução. E não pode sê-lo, quer porque o legislador não fez qualquer ressalva, a esse respeito, no âmbito do artº 177-A supracitado (designadamente, não salvaguardou, excluindo, a questão da responsabilidade criminal, dessa declaração de regularização de situação contributiva), quer, mais relevantemente, porque constituiria uma contradição face à necessidade de notificação a que alude o nº4 do artº 107.
12.De facto, e salvo o devido respeito, não se vislumbra que remota harmonia de sistema ou princípio de boa-fé e da confiança, nas relações entre o Estado e os cidadãos, se pode mostrar minimamente assegurado, quando se defende que, pese embora o contribuinte, antes da própria instituição (no caso, a Segurança Social) o interpelar nos termos do nº4 do artº 105, tenta normalizar a sua situação, pedindo e alcançando um pagamento faseado da sua dívida, o que determina que se tenha de entender que tem a sua situação regularizada, se veja, no decurso do período que lhe foi concedido para pagar, notificado para entregar a totalidade dos quantitativos em dívida, no prazo de 30 dias, sob pena de, não o fazendo, ser dado início ao procedimento criminal.
Esta notificação entra em completa rota de colisão e contradição, com a circunstância de, anteriormente, com o beneplácito da Segurança Social, esta lhe ter admitido o pagamento faseado da sua dívida, quando, para tal deferimento, se mostra necessário demonstrar que o faltoso não tem meios para proceder ao pagamento integral e imediato, do quantitativo em dívida (artº 196 do DL n.º 433/99, de 26 de Outubro). Ora, se a Segurança Social tem pleno conhecimento de que tal é o caso, resta perguntar porque razão se dá sequer ao trabalho de proceder à notificação do nº4 do artº 105? E qual a lógica e o abrigo legal para tal?

13.–Mais:
Como é que, a um contribuinte relapso, que, em escassos meses, tendo disponibilidade financeira para tal (o que, de certo modo indicia, que já a teria quando omitiu os pagamentos…), se permite que este se exima da responsabilidade criminal, mediante o pagamento integral dos montantes em dívida, e, em confronto a um outro contribuinte, na mesma situação de incumprimento, que não tem possibilidade de liquidar integralmente a sua dívida, no período temporal de 91 dias, mas se compromete a fazê-lo pagando a mesma em prestações, se não permite que tal faseamento o ilibe, igualmente, de responsabilidade criminal?
14.Consideramos assim que, nos casos em que já tiver dado entrada pedido de pagamento em prestações, ainda que o mesmo não tenha ainda sido deferido, não se mostra legalmente admissível, por uma mera questão da lógica do sistema, nos termos aliás exaustivamente expostos no despacho de arquivamento supra transcrito, proceder-se à notificação prevista no nº4 do artº 105. E mais: sendo tal pagamento deferido, só poderá haver eventualmente lugar à referida notificação, caso venha a ocorrer incumprimento do plano prestacional.
Por tal razão, não se concorda integralmente com o que se mostra defendido pelo tribunal “a quo”, pois nem todas as situações de pagamento em prestações são inibidoras do cumprimento da notificação admonitória. Há que distinguir.

15.–Assim, em termos de lógica do sistema, e em síntese, haverá que concluir que o pagamento em prestações acarretará consequências diversas, para efeito de procedimento criminal, consoante as seguintes situações:
AFormulação de pedido de pagamento em prestações, dentro do prazo de 90 dias subsequente ao termo legal do pagamento da dívida:
Se o pedido de pagamento em prestações dá entrada, a entidade credora passa a ter conhecimento de que o contribuinte relapso quer pagar e que não o pode fazer de imediato. Se assim é, manifestamente que, até ao encerramento do processo prestacional, não pode a mesma entidade ignorar esse circunstancialismo e notificar o mesmo dito contribuinte para proceder ao imediato pagamento, no prazo de 30 dias, da totalidade do devido; isto é, se o pedido de pagamento em prestações dá entrada antes da notificação realizada ao abrigo do disposto no nº4 do artº 105, esta não pode ser efectuada antes de ocorrerem uma de duas situações – ou o indeferimento do pedido de pagamento em prestações ou, sendo deferido, o seu incumprimento.
Até tais momentos temporais, não pode ser dado início ao procedimento criminal, por não se mostrar reunida a condição objectiva de punibilidade que a lei impõe, nem ser passível a notificação para tal fim. Apenas se e quando se verificarem as circunstâncias reportadas aos momentos temporais acima referidos, poderá ser dado cumprimento a tal normativo notificatório.
B–Formulação de pedido de pagamento em prestações, após cumprimento da notificação prevista no nº4 do artº 105 do RGIT, dentro do prazo de 30 dias aí previsto:
No caso de, quando dá entrada o pedido de pagamento em prestações, este ocorrer já no seguimento da notificação prevista no nº4 do artº 105, mas ainda dentro do prazo de 30 dias aí consignado, de igual modo o procedimento criminal não pode prosseguir, até ocorrerem as mesmas duas situações atrás mencionadas - ou o indeferimento do pedido de pagamento em prestações ou, sendo deferido, o seu incumprimento – pelas mesmas ordens de razões.
A única diferença, neste caso, é que não se mostra necessária a repetição da notificação ao abrigo do nº4 do artº 105 do RGIT, se já validamente realizada, uma vez que, não existindo pagamento, quer prestacional, quer integral, a condição objectiva de punibilidade aqui já se mostrará reunida, caso o pedido venha a ser indeferido ou haja incumprimento, dado que quando tal notificação foi feita, não havia ainda sido formulado qualquer pedido de pagamento faseado.
C–Formulação de pedido de pagamento em prestações, após esgotamento do prazo de 90 dias e do prazo de 30 dias (após interpelação admonitória):
Neste caso, entende-se que, no momento em que é formulado tal pedido, a condição de punibilidade já se verificou e, assim, sendo, tal pagamento prestacional, a concluir-se, terá seguramente relevo em sede executiva mas, em sede criminal, não interrompe, suspende ou obstaculiza o procedimento criminal, que prosseguirá seus termos normais, relevando apenas tal pagamento para efeitos de eventual pedido cível deduzido e dosimetria da pena, na perspectiva da reparação.

16.As soluções que acabámos de enunciar prendem-se, cremos, não só com a forçosa e necessária conciliação dos normativos que acima deixámos expressos, mas ainda com a imperiosa conjugação do princípio de que um Estado de Direito democrático, que Portugal se arroga ser, determina que as relações entre cidadãos e entidades oficiais, se devem regular pelos princípios da boa-fé, equidade e justiça, no tratamento que é dado aos seus cidadãos, face ao Estado ou à Segurança Social, bem como se adequam e são determinadas pela própria natureza intrínseca do ilícito em questão.

17.De facto, o crime de abuso de confiança contra a Segurança Social é um crime omissivo puro, que se consuma quando termina o prazo de pagamento legal; isto é, consuma-se pela omissão de pagamento de uma determinada quantia devida, dentro do prazo legalmente estipulado para tal fim.
Por seu turno, o nº4 do artº 105 do RGIT estabelece uma condição de punibilidade, que se consubstancia numa interpelação para pagar, dando (mais) uma oportunidade ao contribuinte relapso para o fazer, mediante a contrapartida de lhe ser concedida a impunidade criminal da sua conduta, caso realize tal pagamento; ou seja, é condição para a abertura de um procedimento criminal contra um arguido, que tal notificação tenha sido realizada e que aquele não tenha feito o pagamento, no prazo de 30 dias subsequente a essa notificação.
Uma condição de punibilidade é um elemento que não se liga nem à ilicitude nem à culpa, decidindo apenas sobre a punibilidade do facto. Destina-se apenas a dar-lhe uma faculdade de extinção da sua responsabilidade criminal, através do pagamento.

18.Ora, conciliando estas circunstâncias e a natureza do acto ilícito que a lei pune, cremos que se mostra claro que, se o objectivo da condição de punibilidade, consignada no nº4 do artº 105 do RGIT, é o de “oferecer” a impunidade criminal ao contribuinte relapso, mediante o pagamento da prestação em dívida, juros e coimas, não restam dúvidas que um pedido de pagamento em prestações – que quando deferido, determina o entendimento legal de que a situação do contribuinte está regularizada – se tem de considerar como um obstáculo legal ao início ou à prossecução do procedimento criminal.
De facto, o pagamento, embora já extemporâneo, mas realizado ou permitido, dentro dos prazos legalmente previstos (90 dias seguintes ao termo do prazo e/ou nos 30 dias após a notificação prevista no nº4 do artº 105 do RGIT), seja ele na totalidade ou em prestações, devidamente autorizadas pela entidade competente, consubstancia a prática de uma acção, que ultrapassa e remedeia a omissão característica do tipo de crime em apreciação.
E é a essa acção (que a lei pretende alcançar, através da concessão da possibilidade de pagamento, nos termos do nº4 do artº 105), que o legislador confere relevância, para efeitos da punibilidade, em termos de perseguição criminal pela prática de tais actos; ou seja, havendo acção, por parte do contribuinte relapso - dentro dos prazos de 90 e/ou mais 30 dias acima mencionados, seja por pagamento integral ou em prestações - o legislador entendeu que a omissão anterior fica suprida.
Nestes termos, a condição de punibilidade só se efectiva e é passível de actuar, quando a inicial omissão de pagamento perdura, para além dos prazos excepcionais de regularização que a lei consente; isto é, quando apesar da concessão de prazo adicional em que, com encargos, ainda seria possível pagar, o contribuinte não o faz, seja de imediato, seja através de prestações. Pagar em prestações não deixa de ter a natureza de pagamento. É esse o seu objecto.

19.Posto este enquadramento, vejamos então o caso dos autos.

Lendo o processado, temos o seguinte:
Em Setembro de 2022, foram enviadas notificações, tendo por objecto o cumprimento do disposto no nº4 do artº 105 do RGIT.
Em 26 de Janeiro de 2023, foi formulado, pelos arguidos, pedido de pagamento em prestações, inicialmente em número de 150, posteriormente alterado para 60 prestações (aperfeiçoamento do pedido, por sugestão da assistente), que foi autorizado, em Fevereiro de 2023.
Tanto quanto é do conhecimento destes autos, este plano prestacional tem vindo a ser cumprido.
Assim, atendendo ao que acima se deixou exposto, pareceria, à primeira vista, que tendo o pedido de pagamento prestacional dado entrada já após a notificação consignada no nº4 do artº 105 do RGIT e após esgotamento do decurso do prazo de 30 dias concedido para pagamento, nada obstaria ao prosseguimento do procedimento criminal, uma vez que a condição de punibilidade exigida por lei, se mostraria verificada.
Não obstante, tal não é o caso.

20.Na realidade, determina o nº4 do artº 105 do RGIT o seguinte:
4- Os factos descritos nos números anteriores só são puníveis se:
a)- Tiverem decorrido mais de 90 dias sobre o termo do prazo legal de entrega da prestação;
b)- A prestação comunicada à administração tributária através da correspondente declaração não for paga, acrescida dos juros respectivos e do valor da coima aplicável, no prazo de 30 dias após notificação para o efeito.

21.Por seu turno, na decisão instrutória, menciona-se, a respeito das missivas enviadas nos autos, pela assistente, o seguinte:
Ora, a Segurança Social não está impedida nem desobrigada de proceder à notificação em caso de incumprimento, nem tão pouco de levar a cabo os procedimentos contra-ordenacionais a que houver lugar, mas os princípios da boa-fé e da confiança que vinculam também – e principalmente – o Estado impõem que a notificação em causa seja efectuada previamente à instauração do procedimento criminal, mesmo com risco de prescrição dos factos não podendo os arguidas ser responsabilizadas pela omissão em tempo daquela, sendo consequência lógica, a de que não podem ser retiradas quaisquer consequências legal da notificação efectuada para efeitos do disposto no art. 105.º, n.º 4, alínea b) do RGIT, quer por via da regularização precedente da situação contributiva, quer pela invalidade da mesma.
Com efeito, as notificações que constam dos autos não foram sequer assinadas, delas não consta a menção relativa à coima aplicável e no caso do arguido, a notificação constante dos autos não é feita a título pessoal, mas enquanto gerente da sociedade arguida.
Ainda que se considerasse que esta omissões – de notificação a título pessoal e em pessoa diversa – constituem irregularidade susceptível de sanação e não nulidade como acima exposto, a notificação em causa não pode ocorrer nesta fase processual, dada a sua natureza, pois não cabe à instrução substituir-se à Administração ou ao Ministério Público.

Contrapõe a recorrente pela ausência de tais vícios e, caso assim se não entenda, pelo seu suprimento.

22.Independentemente de quaisquer outras circunstâncias correlacionadas com o conteúdo intrínseco das ditas missivas que a assistente enviou, a verdade é que as mesmas se resumem a uma carta com A/R, dirigida a cada um dos destinatários, cartas estas que não foram reclamadas (menção de não atendeu) e cujos A/R se mostram por assinar.
Entende a assistente, fundando-se num Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, Processo 481/15.8IDFAR.E1, de 18-02-2020, que tais circunstâncias não impedem que se tenha de considerar as notificações como realizadas.
Mas sem qualquer razão.
De facto, o que se afirma em tal acórdão é que, naquele caso concreto (em que os arguidos até acabaram por ser declarados contumazes), se esgotaram as diligências possíveis tendo em vista a sua notificação e, como tal, será possível daí extrair o juízo de que a notificação não ocorreu por responsabilidade exclusiva dos ditos arguidos.
Independentemente do facto de ser discutível que a punibilidade de uma conduta possa resultar eventualmente, de uma não notificação e de uma presunção judicial daí retirada, a verdade é que, ainda que se sufrague tal tese, a mesma é manifestamente inaplicável ao caso dos autos pois, em bom rigor, a assistente não realizou qualquer diligência posterior ao recebimento de duas cartas não reclamadas (uma para cada arguido), no sentido de tentar apurar ou notificar qualquer um dos destinatários. Não foi feita qualquer diligência sequer, no sentido de apuramento de eventuais mudanças de morada ou razões de ausência de pessoas físicas daqueles locais, eventuais encerramentos dos mesmos ou o que quer que fosse. As cartas vieram devolvidas e a assistente entendeu por bem nada mais ter de diligenciar no sentido de contactar os respectivos destinatários.

23.Assim sendo, não se mostra manifestamente possível concluir-se que tais missivas se possam considerar como prova válida da notificação que a lei impõe; isto é, terá de se concluir que nenhum dos arguidos foi notificado nos termos e para os efeitos do nº4 do artº 105 do RGIT.
E, manifestamente, tal nulidade, não pode ser suprida nem pelo MºPº, nem pelo tribunal, uma vez que (como aliás igualmente afirma o acórdão citado pela assistente) De tudo resulta que não pode ser proferida acusação contra arguido que não se encontre regularmente notificado nos termos e para os efeitos previstos na al. b), do nº 4, do art. 105º do RGIT. E a tê-lo sido, essa acusação apresenta-se como manifestamente infundada.
Assim se decidiu também nos acórdãos desta Relação de Évora de 25.10.2016 (Rel. Leonor Esteves) e de 10.12.2007 (Rel. Sénio Alves), o qual teve o sumário seguinte:
I.Em processo relativo a factos praticados após a entrada em vigor da al. b) do nº 4 do artº 105º do RGIT, introduzida pela Lei 53-A/2006, de 29/12, a notificação aí prevista (e o não pagamento subsequente, nos 30 dias posteriores) deve estar verificada antes da acusação.
II.Não o estando, deve a acusação ser rejeitada, nos termos do disposto no artº 311º, nº 2, al. a) do CPP, por ser manifestamente infundada”.
(…)
Assim, resulta inequívoco que, em circunstâncias normais (isto é, quando não ocorrem alterações legislativas no decurso de processo criminal pendente), a condição objectiva de punibilidade tem de se considerar verificada para poder ser proferida acusação. Não se justificando que seja, por exemplo, o juiz de julgamento a (poder/dever) realizá-la, pois a necessidade de proceder à notificação verificou-se em momento muito anterior à sua intervenção no processo crime.

24.–Mais:
No caso que nos ocupa, ainda que tal suprimento fosse sequer possível, pelo MºPº ou pelo tribunal (e não é), a verdade é que, neste momento temporal, não seria admissível, pelas razões que acima deixámos expostas; isto é, porque, neste momento temporal, vigora um pagamento prestacional, que inviabiliza, sequer, a notificação prevista no nº4 do artº 105 do RGIT.

25.Finalmente e no que concerne à questão relativa à putativa nulidade do inquérito:
Não assiste qualquer razão à recorrente, atenta a fundamentação já exposta em sede do despacho instrutório, cujo teor subscrevemos e que aqui damos por reproduzida. Acresce que, ainda que tal nulidade ocorresse, haveria uma nulidade prévia, que impediria sequer o início da fase de inquérito, correspondente à ausência de cumprimento legal do disposto no nº4 do artº 105 do RGIT.

26.Temos pois que:
A instrução tem como finalidade a comprovação judicial da decisão final proferida em sede de inquérito (acusação ou arquivamento do inquérito), em ordem a submeter ou não a causa a julgamento.
Atento tudo o que se mostra acima referido, resta-nos apenas considerar que não estão reunidos os pressupostos para que os arguidos possam ser submetidos a julgamento, pela prática de factos que integrem ilícitos penais, o que, desde logo, determina a justeza da sua não pronúncia.

IV–DECISÃO.

Face ao exposto, acorda-se em considerar improcedente o recurso interposto pela assistente INSTITUTO DE SEGURANÇA SOCIAL DA MADEIRA, IP-RAM, mantendo-se o despacho alvo de recurso, se bem que por fundamentação algo diversa.
Condena-se a recorrente no pagamento da taxa de justiça de 4 UC.



Lisboa, 21 de Fevereiro de 2024



Margarida Ramos de Almeida
Carlos Alexandre
Maria Antónia Dias Andrade