Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
12223/20.1T8LSB-B.L1-2
Relator: HIGINA CASTELO
Descritores: PROVA TESTEMUNHAL
PRINCÍPIO DA IMEDIAÇÃO
PROVA DOCUMENTAL
ADMISSÃO DE DOCUMENTO
CONTRADITA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 02/22/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: Se uma testemunha descreve em julgamento uma dada ocorrência que presenciou, e faz essa descrição de maneira inconciliavelmente contraditória com a descrição que fez da mesma ocorrência perante outra autoridade, o documento do qual constam as declarações anteriores torna-se admissível, ao abrigo do disposto no artigo 423.º, n.º 3, do CPC, sem necessidade de contradita.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os abaixo assinados juízes do Tribunal da Relação de Lisboa:
I. Relatório
Caixa Geral de Depósitos, S.A., ré na ação declarativa de condenação que lhe é movida por «A», representada pelo seu tutor «B», notificada do despacho proferido em 27 de junho de 2023, que admitiu um documento contendo declarações prestadas na Polícia Judiciária por pessoa que é testemunha nos presentes autos e que, nos dois locais, fez afirmações contraditórias, e com esse despacho não se conformando, interpôs o presente recurso.

«A», representada em juízo pelo seu tutor, «B», propôs a presente ação declarativa de condenação, com processo comum, contra CAIXA GERAL DE DEPÓSITOS, S.A. E BANCO SANTANDER TOTTA, S.A., formulando os seguintes pedidos:
a) condenação da 1ª Ré no pagamento de uma indemnização à Autora pelos danos patrimoniais causados, no montante integral de 285.969,72€;
b) condenação da 2ª Ré no pagamento de uma indemnização à Autora pelos danos patrimoniais causados, no montante integral de 14.510,93€;
c) condenação de ambas as Rés no pagamento de uma indemnização pelos danos não patrimoniais que as suas inaceitáveis e ilícitas condutas causaram, em virtude da grave violação da confiança depositada, relegando-se para execução de sentença a necessária quantificação que se impõe fazer a este título;
d) pagamento de uma sanção pecuniária compulsória, na base que doutamente for entendida ser a mais curial;
e) condenação das Rés no pagamento de juros de mora à taxa comercial em vigor, contados desde a data da citação para a presente ação até efetivo e integral pagamento.
Alegou, em síntese, que as rés tinham permitido movimentos a débito nas contas bancárias da autora não autorizados por esta.

A ação foi contestada.

O processo seguiu os regulares termos e, no decurso do julgamento, entre duas sessões, a autora requereu a junção de um documento consistente no auto de inquirição efetuado em 05/03/2020 pela Polícia Judiciária a «C», testemunha nos presentes autos e que tinha sido inquirida em anterior sessão.
É o seguinte o teor do requerimento de junção do documento em causa:
«1. Aquando da inquirição da testemunha arrolada pela Ré C.G.D., «C», o que se verificou na 2ª Sessão de julgamento do dia 5 de Junho, pela 14:23h,
2. Por esta testemunha foi dito e redito, afirmado e reiterado por diversas vezes, que a A. «A» tinha estado presente nas instalações da Agência da …, sita na Av. …, no Porto, também nos dias 26 e 27 de Outubro de 2017, datas em que cada uma das transferências de 130 mil euros foram ordenadas – presencialmente pela própria Autora, segundo referiu esta testemunha da Ré C.G.D., que, para tal efeito se terá deslocado para o efeito àquela agencia da Ré C.G.D.
3. Sucede que, esta mesma testemunha, «C» – inquirida também no âmbito do já conhecido destes autos processo crime nº …T9PRT,
4. Cujo inquérito decorreu no DIAP do Porto, na sequência do qual foi deduzida acusação contra «D» e «E» (encontrando-se a aguardar a marcação de julgamento no Juízo Local Criminal do Porto - Juiz 3),
5. Relativamente a essa mesmíssima questão referiu no depoimento que prestou em 05/03/2020, ou seja, há mais de três anos atrás e, por isso, com a memória mais fresca relativamente aos acontecimentos verificados em setembro de 2017, o seguinte:
Relatou que pelo que se recorda, quem foi ao banco para realizar essas transações, as duas transferências, terá sido «D» e «E», e «A» não terá estado presente. "Até, porque não tinha que estar, pois «D» tinha plenos poderes para movimentar a conta." (sic) – conforme tudo melhor consta do teor integral da sua inquirição que se anexa sob o Doc. nº1, cujo teor deve ter-se por integralmente reproduzido,
6. Tendo em conta este depoimento diametralmente oposto ao prestado nesta sede, constante do Doc. nº1 que vai junto,
7. Requer-se a V. Exa se digne admitir, ao abrigo do nº 3 do artigo 423º do CPC, a junção aos presentes autos da cópia do referido depoimento,
8. Porquanto, salvo o devido respeito, se revela essencial para a descoberta da verdade material, tendo em conta os princípios contidos nos artigos 411º, 413º e 417º, todos do CPC.
9. Sendo que, ao abrigo do nº3 do artigo 423º do CPC, só agora, nesta fase e perante este testemunho – que nunca se julgou ser diametralmente oposto ao já conhecido nos autos de processo crime supra citado – se justifica a sua apresentação,
10.Estando perfeitamente enquadrado nos temas da prova enunciados e, em todo o caso, nos factos necessitados da prova.
11. Sendo que, apesar da rigidez para que o contido no artigo 423º do CPC parece apontar, em parte associada ao princípio da autorresponsabilidade das partes, o mesmo não pode deixar de ser compatibilizado com outros preceitos ou com outros princípios que justificam a iniciativa oficiosa do Tribunal na determinação dá junção ou requisição de documentos que, estando, embora, fora daquelas condições, sejam tidos como relevantes para a justa composição do litígio, à luz de um critério de justiça material (STJ 30-6-20, 10831/16), cabendo realçar em especial o princípio do inquisitório consagrado no art.º 411º e concretizado ainda no art.º 436º (acerca do necessário equilíbrio entre a autorresponsabilidades das partes e a oficiosidade do inquisitório, cf. Paulo Pimenta, ob. cit., pp. 372-373, RL 25-9-18, 744/11, RP 2-7-20, 2854/14)

A ré opôs-se à junção do dito documento, nos seguintes termos:
«II – Quanto ao requerimento entrado em 07.07.2023 com a refª citius nº 45800148:
7 Este requerimento para junção de “documento” é agora apresentado pela A. na sequência de, na pretérita audiência de julgamento, a A. ter expressamente referido – estando, aliás, em pleno curso as instâncias da Il. Mandª do A. à testemunha Srª «C» – que não pretendia requerer a sua junção, facto este que não pode deixar de aqui ser devidamente sublinhado.
8 Constata-se, assim, que à A. pareceu “melhor” deixar concluir o depoimento prestado pela testemunha «C» para só agora vir apresentar este “documento”, o que revela que pretende a qualquer custo influenciar a convicção do Tribunal.
9 Relativamente a este “documento” a R. dá aqui por reproduzidas as considerações que realizou supra nos nºs 2 e 3 desta peça processual quanto à tempestividade da respetiva apresentação, atendendo a que o mesmo desde há muito se encontra no poder da A. sendo aliás do seu conhecimento desde a contestação que a testemunha em causa se encontrava arrolada pela R.
10 Pelo que deverá ser tal documento ser mandado desentranhar dos autos, sem prejuízo de, a assim não ser entendido, ir desde já o mesmo impugnado nos termos e para os efeitos do disposto no art.º 374º nº 2 do C.C. ignorando a R. sem qualquer obrigação de conhecimento a autenticidade da sua autoria letra e assinaturas.
11 Isto sem embargo de nos termos consignados no nº 1 do art.º 422º do CPC a contrario os depoimentos produzidos num processo sem audiência contraditória da parte não poderem ser invocados noutro processo contra a mesma parte,
12 o que é o caso atendendo a que a CGD não é parte nem interveniente processual no processo indicado pela A. (processo crime nº …T9PRT).
13 E, ainda, sem embargo de, nos próprios termos consignados no denominado “auto de inquirição” não decorrer o que a A. pretende fazer inculcar.
Pelo que deverão os documentos e respetivos requerimentos que os capeiam ser desentranhados dos autos e devolvidos à A., o que se requer

A junção foi deferida pelo seguinte despacho, proferido em 27/06/2023:
«Requerimento ref. 36199699:
Veio ainda a Autora, na pessoa do tutor, requerer a junção (cópia) do depoimento escrito prestado pela testemunha «C» na Polícia Judiciária, no âmbito do processo-crime no âmbito do qual são arguidos «D» e «E», alegando, para tal, que esse depoimento diverge daquele ora prestado em juízo, no âmbito dos presentes autos, sendo relevante para a descoberta da verdade.
A Ré CGD opôs-se, nos termos e com os fundamentos que constam do requerimento que antecede – no qual, aliás, também fundamentou a sua oposição à junção dos documentos a que se refere o req. ref. 36199688.
Quanto a esta pretensão, diremos que não se encontra relevância à circunstância, alegada pela Ré, de a Il. Mandatária, na audiência, ter declarado que não pretendia efetuar a junção ora em análise. Interessa, sim, a iniciativa processual ora deduzida, pois que, nessa mesma ocasião, nenhuma pretensão foi apresentada.
Quanto à pertinência do documento ora junto, dir-se-á que, apesar de não ser o mesmo superveniente (nem objetiva, nem subjetivamente), e de, como salienta a Ré, se relacionar com o depoimento de uma testemunha arrolada já em sede dos articulados, cumpre também realçar que só com a prestação do próprio depoimento foi possível à Autora descortinar a necessidade de contrapor outros elementos probatórios – suscetíveis de, na perspetiva da demandante, afetar, quer a credibilidade da testemunha, quer a idoneidade do depoimento.
Temos presente a jurisprudência – cremos, dominante – no sentido em que o depoimento de testemunhas arroladas nos autos não constitui ocorrência posterior para efeitos de apresentação de documentos não juntos aos autos, com fundamento na parte final do n.º 3 do artigo 423º do C.P.C. (neste sentido, por exemplo, os Acs. RL de 06.12.2017 e de 08.02.2018 in www.dgsi.pt). Porém, no caso vertente, não se trata de aduzir novos elementos documentais que, em abono da prova a produzir pelo apresentante, se sobrepusessem ao depoimento da testemunha; trata-se, sim, de pôr em causa a aptidão probatória do depoimento, contrapondo-o com o depoimento prestado pela mesma testemunha noutra sede, assim se contribuindo para a apreciação do próprio depoimento – e não do facto a cuja prova o depoimento se destina.
Crê-se, portanto, que estamos perante a circunstância excecional a que alude a parte final do artigo 423º, n.º 3 do C.P.C., determinando a admissibilidade do documento.
Pelo exposto, admito a junção, também, deste documento.»

A ré CGD não se conformou e recorreu, concluindo as suas alegações de recurso da seguinte forma:
«1) O Tribunal admitiu a junção do documento onde consta o depoimento da testemunha «C» prestado no âmbito de um inquérito criminal porque entendeu que o mesmo era apto e se destinava a pôr em causa a aptidão e credibilidade do depoimento prestado pela mesma testemunha «C» no decurso da audiência de julgamento, não se tratando, portanto, de documento para prova das questões de mérito destes autos, mas sim apenas de documento que se destina a descredibilizar a dita testemunha «C»;
2) Todavia, o Tribunal admitiu a junção deste documento totalmente à revelia do respetivo enquadramento legal que o CPC expressamente prevê nos seus artigos 521º e 522º para a impugnação da credibilidade de depoimento testemunhal, não tendo sido requerida pela A. o incidente da contradita nos termos consignados no art.º 522º do CPC no âmbito do qual se pudesse justificar e fundamentar a junção de tal documento;
3) Ou seja, na perspetiva da apelante o documento apenas poderia ter sido ajuizado e admitido ou indeferido pelo Tribunal no âmbito do incidente da contradita, incidente este que não se verificou in casu;
4) Ao ter admitido a junção de um documento que se destina exclusivamente a descredibilizar a testemunha «C» sem ter sido deduzida contradita o Tribunal irá ajuizar em sede de sentença sobre a credibilidade do depoimento desta testemunha com base neste documento, sem sequer ter ouvido esta testemunha a respeito da matéria que alegadamente descredibiliza o respetivo depoimento e, portanto, sem ter dado cumprimento ao disposto no art.º 522º nºs 1 a 4 do CPC, nem tão pouco tendo a aqui apelante podido instar tal testemunha a respeito da matéria que alegadamente descredibiliza o depoimento prestado em audiência;
5) O Tribunal estribou-se no nº 3 do art.º 423º do CPC para admitir a junção do documento aqui em causa, mas esta norma processual não pode ser interpretada por forma a desvirtuar nem o seu concreto âmbito de aplicação nem tão pouco o regime jurídico da contradita, que constitui regime de natureza especial no que à junção de documentos diz respeito;
6) Com efeito, o âmbito do regime jurídico previsto no art.º 423º do CPC restringe-se aos documentos aptos para a “prova dos fundamentos da ação ou da defesa” – conforme aliás expressamente resulta do seu nº 1 – não servindo portanto para admitir a junção de documentos que se destinam a impugnar a credibilidade de um depoimento testemunhal, documentos estes que pela sua natureza, não se destinam à “prova dos fundamentos da ação ou da defesa”;
7) Pelo que a norma do nº 3 do art.º 423º ficou violada, bem como a do art.º 522º, ambos do CPC;
8) Acresce que nos termos consignados no nº 1 do art.º 422º do CPC interpretado a contrario os depoimentos produzidos num processo sem audiência contraditória da parte não podem ser invocados noutro processo contra a mesma parte o que é o caso atendendo a que a CGD não é nem foi parte nem interveniente processual no processo indicado pela A. (processo crime nº …T9PRT);
9) Com efeito, a norma do art.º 422º nº 1 do CPC não restringe a sua aplicação apenas ao conteúdo probatório do documento relevante para o mérito da causa, sendo assim aplicável também aos casos em que está em causa não as questões de mérito, mas apenas a credibilidade da testemunha em causa, pelo que também por esta razão não deveria o documento ter sido admitido.
Termos em que deverá ser revogado o douto despacho que admitiu a junção deste documento, substituindo-se o mesmo por outro que determine o respetivo desentranhamento dos autos. Assim se fará Justiça!»

A autora contra-alegou, pronunciando-se pela confirmação do despacho recorrido.

Entretanto, em 25/09/2023, foi proferida sentença que julgou a ação totalmente improcedente absolveu as rés dos pedidos.
Dessa sentença foi interposto recurso que, admitido, se encontra no TRL desde 26/01/2024. Esse recurso inclui impugnação da decisão de facto, pelo que o documento que é objeto do presente recurso, estando nos autos, pode vir a ser valorado de outra forma.
Por essa razão, o presente recurso não perdeu utilidade.

Foram colhidos os vistos e nada obsta ao conhecimento do mérito.

Objeto do recurso
Sem prejuízo da apreciação de eventuais questões de conhecimento oficioso, são as conclusões das alegações de recurso que delimitam o âmbito da apelação (artigos 635.º, 637.º, n.º 2, e 639.º, n.ºs 1 e 2, do CPC).
Tendo em conta o teor daquelas, coloca-se a questão de saber se o documento em causa não podia ter sido admitido, se apenas poderia ser admitido em sede de contradita, que não foi deduzida.

II. Fundamentação de facto
Os factos relevantes são os constantes do relatório.

III. Apreciação do mérito do recurso
Conforme resulta do relatório, durante a inquirição da testemunha «C» em julgamento, a mesma afirmou que, quando foram feitas as transferências de €130.000,00 de conta da autora para contas de «E» e de «D», a autora estava presente no balcão da CGD e teria dado as ordens pessoalmente.
Sucede que, em inquirição na PJ cujo auto constitui o documento objeto deste recurso, a mesma testemunha «C» afirmou que «pelo que se recorda, quem foi ao banco para realizar essas transações, as duas transferências, terá sido «D» e «E», e «A» não terá estado presente. “Até porque não tinha que estar, pois «D» tinha plenos poderes para movimentar a conta.” (sic)» (p. 3, linhas 55-58).
Tanto é quanto basta para que a junção do documento tenha toda a pertinência. Trata-se de documento que indicia fortemente que, num dos atos, a testemunha mentiu (voluntaria ou involuntariamente) e isso deve ser ponderado na avaliação que o tribunal faz do depoimento da testemunha.
Questão que se coloca é se o auto de inquirição da testemunha na PJ apenas podia ser junto no âmbito de um incidente de contradita, que não foi deduzido. A ré assim o entende.

Nos termos do disposto no artigo 521.º do CPC (antigo artigo 640.º CPC-1961), epigrafado «Contradita», a parte contra a qual for produzida a testemunha pode contraditá-la, alegando qualquer circunstância capaz de abalar a credibilidade do depoimento, quer por afetar a razão da ciência invocada pela testemunha, quer por diminuir a fé que ela possa merecer.
A contradita destina-se, como a norma clara e expressamente afirma, a «abalar a credibilidade do depoimento, quer por afetar a razão da ciência invocada pela testemunha, quer por diminuir a fé que ela possa merecer». Ou seja, a contradita não se destina (diretamente) a fazer prova de que os factos narrados pela testemunha são falsos; a contradita visa de forma imediata ou direta demonstrar que a testemunha não está em posição de conhecer os factos ou que tem motivos para os alterar.
Esta interpretação da norma contida no artigo 521.º do CPC (anterior artigo 640.º CPC-1961) não tem oferecido dúvidas à doutrina e à jurisprudência. Cf. Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, vol. I, Almedina, 2018, pp. 572-3: «Pretende-se com este incidente fornecer ao julgador determinados factos acessórios, exteriores ao depoimento prestado, que o ponham de sobreaviso na apreciação da força probatória do depoimento. Este incidente visa questionar a credibilidade da própria testemunha e não a veracidade do depoimento (…). Entre os fatores capazes de afetar a fé ou a credibilidade da testemunha encontra-se a vida e os costumes da pessoa, o interesse no pleito, o parentesco ou o relacionamento com as partes que tenham sido omitidos durante a inquirição. (…) A contradita há de assentar em factos não relatados pela testemunha, em relação aos quais é exigido, como único requisito, a suscetibilidade de abalarem a credibilidade, seja em função da razão de ciência invocada, seja quanto à fé que a mesma possa merecer» ().
Anteriormente e no mesmo sentido, Antunes Varela, Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, 2.ª ed., Coimbra Editora, 1985, pág. 627): «A contradita é o incidente desencadeado pela parte contrária (à que ofereceu a testemunha) com o fim de, partindo de circunstâncias exteriores ao depoimento, abalar a credibilidade dele. Para esse efeito, como fundamento da contradita, pode ser invocada qualquer circunstância que prejudique a razão de ciência invocada (alegando-se, p. ex., que a testemunha se encontrava em Paris no dia em que ela afirmou ter presenciado certo facto em Lisboa) ou afete a que o depoente possa merecer (alega-se, p. ex., que a testemunha foi condenada duas ou mais vezes por prestação de falsas declarações). O incidente pode atacar a pessoa do depoente – a sua ou credibilidade – ou a razão de ciência por ele invocada, mas não o depoimento em si mesmo (com o fundamento, p. ex., de ser notoriamente falso ou fantasiado um dos factos referidos pelo depoente)».
Recuando, Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, IV, Coimbra Editora, 1987, p. 459): «Quando se contradita a testemunha, faz-se um ataque, não ao depoimento propriamente dito, mas à pessoa do depoente; não se alega que o depoimento é falso, que a testemunha mentiu; alega-se que, por tais e tais circunstâncias, exteriores ao depoimento, a testemunha não merece crédito. Só quando a contradita se dirige contra a razão de ciência invocada pela testemunha é que as declarações desta são postas em causa; mas ainda aqui não se atacam diretamente os factos narrados pelo depoente, só se ataca a fonte de conhecimento que ele aponta».
Na jurisprudência, a título meramente exemplificativo, os seguintes acórdãos da última década:
Ac. TRL de 15/04/2021, proc. 3355/18.7T8LSB.L1-2: «I – O incidente da contradita não visa o depoimento prestado, mas a própria testemunha, não questionando diretamente o que a testemunha disse, mas a sua credibilidade».
Ac. TRL de 08/02/2018, proc. 207/14.3TVLSB-B.L1-6:
«1.–  Faltando menos de 20 dias para a data em que se realiza a audiência final, apenas pode a parte apresentar documentos cuja apresentação não tenha sido possível até àquele momento, bem como aqueles cuja apresentação se tenha tornado necessária em virtude de ocorrência posterior - cfr. nº 3, do artº 423º, do CPC.
2.–  Consubstancia ocorrência posterior , para efeitos do nº 3, in fine, do artº 423º, do CPC , o depoimento prestado em audiência por testemunha, e visando a junção de documentos demonstrar que não são verdadeiros factos referidos no depoimento pela referida testemunha.
3.– O incidente da contradita não serve para a parte lograr infirmar o depoimento de testemunha nos termos referidos em 4.2., pois que, em rigor, importa não olvidar que, a contradita, não tem por desiderato por em cheque/causa o depoimento da testemunha propriamente dito, mas a pessoa do depoente».

Aqui chegados, perguntamo-nos se o auto de inquirição da testemunha na PJ (no qual afirmou o contrário do que testemunhou neste julgamento, sobre uma concreta situação) visa pôr em causa de forma direta e imediata a credibilidade da testemunha ou se visa direta e imediatamente a prova de acontecimentos que constituem causa de pedir na ação.
A dúvida surge porque o conteúdo do documento versa diretamente sobre os factos que constituem causa de pedir na ação. Nesta situação, a junção do documento (auto de inquirição na PJ) serve, objetiva e diretamente, para pôr em causa a veracidade do depoimento que a testemunha prestou em tribunal, uma vez que demonstra (ou indicia fortemente) que a testemunha já prestou depoimento em que, sobre o mesmo facto, disse coisa diferente e inconciliável; e, porque as declarações constantes desse documento se reportam a factos integradores da causa de pedir, o mesmo documento visa também a prova desses factos.
O dito documento não podia ter sido junto/ admitido em sede de junção de documentos destinados à prova dos factos que alicerçam os pedidos, uma vez que se trata de um depoimento sobre factos relevantes nestes autos prestado por alguém capaz para depor em juízo como testemunha. Admiti-lo na referida sede equivaleria a admitir, de facto, um depoimento escrito numa situação em que, de direito, ele não seria admissível.
Com efeito, o disposto no artigo 500.º do CPC impõe que as testemunhas deponham na audiência final, presencialmente ou através de teleconferência, exceto nos casos constantes das alíneas do mesmo artigo, aos quais a situação da testemunha em causa não se subsume. O princípio da imediação, acautelado, entre outros, pelo artigo 500.º do CPC, «preconiza que “o julgador deve ter, por um lado, o contacto mãos próximo e direto possível com as pessoas ou com as coisas que servem de meios de prova; e, por outro, as pessoas (in casu as testemunhas, as partes e os peritos) devem situar-se na relação mais direta possível com os factos a provar (…)”. A imediação pode ser concebida num sentido amplo e num sentido restrito. No primeiro, a imediação exige a presença judicial nos atos em que se desenvolve o processo; no segundo, que é o mais comum e que também poderá ser designado por imediação em sentido subjetivo, a imediação exige que o juiz que dite a sentença esteja presente nos atos processuais atinentes à produção de prova no propósito de o colocar nas melhores condições para conhecer o objeto do processo e apreciar a prova» - Luís Filipe Pires de Sousa, Prova testemunhal, Almedina, 2013, pp. 384-5.
«Instrumentais relativamente ao princípio da imediação são os da oralidade e da concentração. O primeiro implica que a produção dos meios de prova pessoal tenha lugar oralmente, perante os julgadores da matéria de facto» - José Lebre de Freitas, Introdução ao processo civil, Coimbra Editora, 1996, pp. 156-7.
Não obstante o documento ora em causa não ser admissível antes da inquirição da testemunha, para prova direta dos factos da causa, a partir do momento em que a testemunha depôs e fez afirmações contrárias às que tinha feito perante outra autoridade e que estão documentadas no auto, a junção deste torna-se admissível e a ponderação do que dele consta torna-se inelutável, sem necessidade de contradita.
Se uma testemunha descreve em julgamento uma dada ocorrência que presenciou, e faz essa descrição de maneira inconciliavelmente contraditória com a descrição que fez da mesma ocorrência perante outra autoridade, o documento do qual constam as declarações anteriores torna-se admissível, nos termos do disposto no artigo 423.º, n.º 3, do CPC.

IV. Decisão
Face ao exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar improcedente a apelação, mantendo o despacho recorrido.

Custas pela recorrente.

Lisboa, 22/02/2024
Higina Castelo
Inês Moura
Orlando Nascimento