Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
512/22.5T8OER-A.L1-2
Relator: ANTÓNIO MOREIRA
Descritores: RELAÇÃO JURÍDICA PROCESSUAL
DESISTÊNCIA DA INSTÂNCIA
PROCEDIMENTO ESPECIAL DE DESPEJO
ACÇÃO DECLARATIVA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 02/22/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: 1- Em todos os casos em que não esteja em causa o direito material invocado, mas apenas a relação jurídica processual, admite-se que o titular do direito disponha dessa relação jurídica processual, mas apenas enquanto o demandado não tenha exercido o seu direito de defesa.
2- Expressando o senhorio requerente a sua vontade de ser considerada a desistência do procedimento especial de despejo apresentado contra o arrendatário requerido, “nos termos do disposto no nº 2, do artigo 15º-G” (do NRAU), sempre há que considerar que está em causa, tão só, a desistência da instância desse procedimento especial, e não a desistência dos pedidos aí formulados (de despejo e de pagamento de rendas e indemnização pela não desocupação do local arrendado).
3- Nessa medida, e extinto o procedimento especial de despejo face a essa desistência, não está o senhorio requerente impedido de exercer o seu direito em acção declarativa, aí pedindo a condenação do arrendatário requerido no pagamento das referidas rendas e indemnização.
(Sumário elaborado ao abrigo do disposto no art.º 663º, nº 7, do Código de Processo Civil)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa os juízes abaixo assinados:

MM P. propôs acção declarativa com processo comum contra EE S. (1º R.) e AA O. (2ª R.), pedindo a condenação solidária dos RR. a pagar-lhe:
a) Rendas vencidas e não pagas no montante de € 4.200,00, bem como juros de mora vencidos, no valor de € 137,16, e todos os vincendos à taxa convencional, até efectivo e integral pagamento;
b) As deteriorações provocadas na fracção arrendada, em valor a liquidar aquando da efectiva conclusão das obras de reparação;
c) A indemnização por mora na entrega da fracção arrendada no montante de € 7.200,00, correspondente aos meses de Junho, Agosto e Setembro de 2021;
d) As despesas com taxas de justiça e honorários de Advogado no montante de € 857,00.
Para sustentar a sua pretensão alega, em síntese, que:
- Deu de arrendamento ao 1º R. uma fracção autónoma de sua propriedade, pela renda mensal de € 1.400,00, e constituindo-se a 2ª R. fiadora do 1º R., assumindo solidariamente a obrigação de cumprimento de todas as cláusulas do contrato de arrendamento;
- O 1º R. não pagou as rendas referentes aos meses de Dezembro de 2019, Março de 2020 e Março de 2021, na data do vencimento respectivo ou nos oitos dias subsequentes, nem posteriormente;
- A A. comunicou ao 1º R. a resolução do contrato com fundamento na falta de pagamento da renda, através de notificação judicial avulsa;
- O 1º R. não colocou termo à mora pelo que o contrato cessou em 26/4/2021, não tendo o 1º R. restituído a fracção arrendada;
- Em 28/7/2021 a A. instaurou procedimento especial de despejo requerendo a desocupação da fracção arrendada e o pagamento dos valores em atraso;
- O 1º R. só entregou a fracção arrendada em 10/9/2021, com várias anomalias e deteriorações provocadas por mau uso.
Os RR. apresentaram contestações separadas, tendo o 1º R. vindo invocar, para além do mais, que tendo a A. optado pela resolução do contrato de arrendamento pela via extrajudicial, e tendo recorrido ao procedimento especial de despejo a que respeitam os art.º 15º e seguintes do NRAU, verifica-se a excepção da falta de interesse em agir, já que terá obtido título executivo quanto à desocupação da fracção arrendada e ao pagamento dos montantes em falta, nos termos que agora pretende fazer valer em juízo. Conclui pela sua absolvição da instância.
A A. respondeu a tal excepção, reafirmando que o 1º R. não desocupou a fracção arrendada após a notificação judicial avulsa recebida em 26/4/2021, o que motivou a instauração do procedimento especial de despejo, mas tendo entretanto o 1º R. desocupado a fracção arrendada, pelo que a A. requereu a extinção desse procedimento, nos termos do art.º 15º-G do NRAU, extinção que foi confirmada em Outubro de 2021, e tendo de recorrer a tribunal porque não se formou título executivo para o pagamento das quantias que não foram comunicadas ao 1º R., através da notificação judicial avulsa.
Por despacho de 13/3/2023 foi solicitada ao Balcão Nacional de Arrendamento certidão integral do procedimento especial de despejo identificado pela A.
Mostrando-se a mesma junta aos autos, com dispensa de audiência prévia foi proferido despacho saneador, aí sendo, para além do mais, conhecida a excepção suscitada pelo 1º R., nos seguintes termos:
Compulsados os autos resulta demonstrado que:
a. A autora a 14.07.2021 intentou junto do BNA requerimento de despejo contra o Reu EE S. peticionando:
“6. Sucede, porém, que o Requerido, apesar de várias vezes instado para o efeito, não pagou as rendas referentes aos meses de Dezembro de 2019, Março de 2020 e Março de 2021 (1.400,00€ X 3 = 4.200,00€), na data do respectivo vencimento e 7. Também não procedeu ao pagamento nos oito dias a contar da data do começo da mora, relativamente a cada uma das indicadas rendas, nem posteriormente. 8. Ora, tendo decorrido mais de três meses sobre a data do início da mora no pagamento daquelas rendas e consequentemente, tendo-se tornado inexigível à Requerente a manutenção do contrato de arrendamento sub judice, esta procedeu à sua resolução nos termos e ao abrigo do disposto no artigo 1083º, nº 3, do Código Civil. 9. Determina o disposto no artigo 1084º, nº 2, do Código Civil, que a resolução do contrato de arrendamento com base em tal fundamento, opera por comunicação à contraparte. 10. Comunicação que poderá ser feita valer por um dos meios previstos no artigo 9º, nº 7 do NRAU Lei nº 6/2006, de 27 de Fevereiro, com a alteração que lhe foi introduzida pela Lei nº 31/2012, de 14 de Agosto), de entre as quais se encontra a notificação judicial avulsa junta ao presente requerimento, conforme documento nº 4, que se junta e se dá por integralmente reproduzido para todos os devidos efeitos legais. 11. Efectivamente, a Requerente declarou resolvido o contrato de arrendamento celebrado com o Requerido, ao qual se reporta o artigo 2º supra, com a obrigação daquele em entregar o locado livre e devoluto de pessoas e bens, requerida a 16 de Abril de 2021. 12. Sucede, porém, que o Requerido, até à presente data, ainda não entregou o locado! 13. Nem procedeu ao pagamento da indemnização devida pelo atraso na restituição da coisa – nos termos e ao abrigo do disposto no artigo 1045º, nºs 1 e 2, do C.C. - com referência aos meses de Junho de 2021 e Agosto de 2021 (2 X 2 X 1.400,00€ = 5.600,00€). 14. Afigurando-se assim ser devida pelo Requerido à ora Requerente a quantia global de 9.800,00€ (nove mil e oitocentos euros).”
b. A 25.10.2021 deu entrada uma desistência do pedido por parte da Autora, tendo o PED sido considerado extinto.
- conforme certidão junta a 17.03.2023 pelo BNA
c. A fracção foi entregue a 10.09.2021 (confissão)
O pedido da Autora consubstancia-se, na parte relevante para a questão em crise:
a) Condenar os RR a pagarem solidariamente à A as rendas vencidas e não pagas no montante de 4.200,00€ (quatro mil e duzentos euros), bem como os juros de mora vencidos, no valor de 137,16€ (cento e trinta e sete euros e dezasseis cêntimos) e todos os vincendos à taxa convencional, até efectivo e integral pagamento.
c) Condenar os RR. a pagarem solidariamente, à A., o montante de 7.200,00€ (sete mil e duzentos euros), a título de indemnização por mora na entrega do locado correspondente aos meses de Junho/2021, Agosto/2021 e Setembro/2021.
Determina o art. 285º do CPC que a desistência do pedido extingue o direito que se pretendia fazer valer. Acresce que constitui tendo os efeitos da desistência sido produzidos, verifica-se a existência de caso julgado material, isto é, produz eficácia de caso julgado material em relação ao direito que o desistente pretendia fazer valer.
Ora, pese embora a Autora tenha desistido do pedido num todo, sempre poderia ter alegado quanto à entrega inutilidade superveniente da lide e ter solicitado a continuação para pagamento das rendas: art. 14-A do NRAU. Optou por não fazer.
O que não pode fazer é voltar a peticionar as mesmas quantias. É o que fez nos presentes autos.
Por conseguinte, julgo procedente a excepção peremptória processual imprópria da autoridade do caso julgado, julgando-se, consequentemente, os pedidos a) e c) improcedentes, absolvendo-se os Réus do pedido”.
A A. recorre desta decisão, terminando a sua alegação com as seguintes conclusões, que aqui se reproduzem:
I. O presente recurso tem por objecto o douto Despacho Saneador proferido nos presentes autos, o qual, julgando procedente a excepção peremptória processual imprópria da autoridade do caso julgado, absolveu os Réus do pedido de pagamento das rendas vencidas e não pagas e do pedido de indemnização por mora na entrega do locado.
II. Salvo o devido respeito, o douto Tribunal a quo não fez justiça.
III. Entendeu o Tribunal a quo que, tendo a Autora intentado, junto do BNA, Procedimento Especial de Despejo (PED), contra o Réu EE S., peticionando, para além da desocupação do locado, o pagamento das rendas vencidas e não pagas e indemnização por mora na entrega do locado, posteriormente desistiu do pedido.
IV. Nesse entendimento, o douto Tribunal a quo, concluiu que a Autora não poderia ter voltado a peticionar as mesmas quantias e julgou procedente a excepção peremptória processual imprópria da autoridade do caso julgado.
V. Salvo o devido respeito, labora em erro, o Tribunal a quo.
VI. Desde já, porque a Autora, não desistiu do pedido.
VII. A Autora, a 25/10/2021, então na qualidade de requerente, desistiu do procedimento especial de despejo, com o nº 984/21.5YLPRT, que é um procedimento alternativo, de natureza não judicial, tramitado junto do Balcão Nacional do Arrendamento.
VIII. E requereu a desistência antes da dedução da oposição e antes do termo do prazo desta.
IX. Ao desistir deste meio processual, a Autora exerceu um direito concedido pela Lei nº 6/2006, de 27 de Fevereiro (NRAU), que regula o referido procedimento, na Subsecção II da Secção IV (art.s 15º a 15º-S)
X. Com efeito, dispõe o artigo 15º G, nº 2, do NRAU: “O requerente pode desistir do procedimento especial de despejo até à dedução da oposição ou, na sua falta, até ao termo do prazo de oposição”.
XI. E, determina, o referido diploma, que esta desistência é causa de extinção do procedimento, assim como a desocupação do locado e a morte do requerente ou do requerido, conforme art. 15º-G, nº 1 do NRAU, ou seja, qualquer destas circunstâncias, implica, ipso facto, a extinção do procedimento.
XII. Isto, em coerência com a finalidade do PED, que, efectivamente, e por definição é “um meio processual que se destina a efectivar a cessação do arrendamento,..., quando o arrendatário não desocupe o locado ...”, art. 15º, nº 1, do NRAU.
XIII. É essencial distinguir o pedido – pretensão que o Autor pretende obter - do meio processual – meio utilizado para exercer um direito.
XIV. No caso dos autos, a Autora, então requerente, desistiu do meio processual, pelo que, não pode confundir-se a desistência do procedimento com a desistência do pedido.
XV. Ainda que a Autora não tivesse apresentado a desistência do procedimento, este extinguir-se-ia sempre, caso o Balcão tomasse conhecimento da desocupação do locado.
XVI. Acresce que, a decisão tomada sustenta-se ainda no argumento de que a Autora “sempre poderia ter alegado quanto à entrega inutilidade superveniente da lide e ter solicitado a continuação para pagamento das rendas: art. 14-A do NRAU”.
XVII. Ora, estamos perante uma impossibilidade. É que, ocorrendo a desocupação do locado antes da dedução de oposição (ou até ao termo do prazo), pode e deve o requerente desistir do procedimento como um todo, e não lhe é dada a oportunidade de desistir do pedido de desocupação do locado e prosseguir para pagamento das rendas.
XVIII. O NRAU, no âmbito deste procedimento, permite apenas o inverso: “No caso de desistência do pedido de pagamento de rendas, encargos ou despesas, o procedimento especial de despejo segue os demais trâmites legalmente previstos quanto ao pedido de desocupação do locado”, artigo 15º, nº 8.
XIX. Já assim não é, quando a desocupação do locado ocorre já depois de deduzida oposição, pois, após distribuição, encontrando-se o processo na sua fase judicial, as suas consequências hão-de ser analisadas á luz do CPC, e não daquele art. 15º‑G.
XX. Essas consequências são a extinção da instância por inutilidade superveniente da lide quanto ao pedido de despejo, dada a desocupação do locado, ao abrigo do art. 277º do CPC, mas prosseguimento dos autos para decisão do outro pedido, o de condenação no pagamento das rendas.
XXI. Pelo que, atendendo a que a desistência do PED, por parte da Autora, ocorreu antes do processo ter passado para a sua fase judicial, as suas consequências devem ser analisadas à luz das disposições reguladoras do procedimento especial de despejo.
XXII. E estas consequências são apenas a extinção do procedimento.
Sem conceder,
XXIII. Mesmo que assim não se entendesse, não ocorreria a excepção peremptória consistente na autoridade do caso julgado, como sustentou o douto Tribunal a quo.
XXIV. Não se verifica, entre o PED, com o nº 984/21.5YLPRT, que decorreu no BNA e os presentes autos, a tríplice identidade prevista no art. 581º do CPC para a verificação do caso julgado na sua vertente de excepção dilatória (efeito negativo), como também não se verifica a autoridade de caso julgado, no seu efeito positivo, pois esta pressupõe a decisão de determinada e concreta questão prejudicial ou prévia que não pode voltar a ser discutida.
XXV. Isto é, a autoridade do caso julgado, importa a aceitação de decisão proferida anteriormente, noutro processo, cujo conteúdo importa ao presente e que se lhe impõe, assim obstando que uma determinada situação jurídica ou relação seja novamente apreciada, considerando parte da jurisprudência e doutrina que, nesta acepção, não se exige a tríplice identidade. Entendimento que se justifica pela necessidade de evitar que um tribunal possa definir uma concreta situação controvertida de forma válida, de modo contraditório e incompatível com outra anterior transitada em julgado.
XXVI. É manifesto que é inaplicável ao caso sub judice. Desde já porque não houve qualquer decisão judicial anterior.
XXVII. A desistência apresentada no BNA, antes da oposição do requerido, opera automaticamente, não recaindo sobre aquela, qualquer despacho ou sentença, pois estes são proferidos apenas no domínio de processos jurisdicionais, por juízes.
XXVIII. No âmbito do procedimento especial de despejo, perante a desistência do requerente, apenas há lugar à notificação, pelo Balcão, do requerente e ao requerido, da extinção do procedimento nos termos do art. 15º-G, do NRAU. Como de facto aconteceu.
XXIX. Face a todo o exposto, a excepção peremptória imprópria da autoridade do caso julgado, deve ter-se por não verificada e, em consequência, deve ser revogado o Despacho Saneador na parte em que absolve os Réus dos pedidos de pagamento das rendas vencidas e não pagas e indemnização por mora na entrega do locado.
Apenas o 1º R. apresentou alegação de resposta, aí sustentando a manutenção da decisão recorrida.
***
Sendo o objecto do recurso balizado pelas conclusões do apelante, nos termos preceituados pelos art.º 635º, nº 4, e 639º, nº 1, ambos do Código de Processo Civil, a questão submetida a recurso, delimitada pelas aludidas conclusões, prende‑se com a extinção do direito da A. relativamente às quantias a que respeitam as al. a) e c) do pedido e, subsidiariamente, com a falta de interesse em agir.
***
A materialidade com relevo para o conhecimento do objecto do presente recurso é a que decorre das ocorrências e dinâmica processual expostas no relatório que antecede, havendo apenas que acrescentar, por tal resultar demonstrado face ao teor da certidão junta aos autos em 17/3/2023, que:
a) Em 25/10/2021 a A. apresentou requerimento no procedimento especial de despejo, com o seguinte teor:
MM P., Requerente no processo suprarreferido, vem, nos termos do disposto no nº 2, do artigo 15º-G da Lei nº 6/2006, de 27 de Fevereiro, requerer a desistência do presente procedimento especial de despejo, em virtude da desocupação do locado por parte do Requerido.
Mais requer, nos termos do disposto no nº 3 do citado artigo, a devolução do expediente”.
b) Em 26/10/2021 o Balcão Nacional do Arrendamento expediu notificação dirigida à A., com o seguinte teor:
Fica V. Ex.ª por este meio devidamente notificada(o), relativamente ao procedimento supra identificado, de que foi o mesmo considerado extinto nos termos do art.º 15.º-G da Lei n.º 6/2006, de 27 de Fevereiro.
Assim, nos termos do art.º 15.º-G, n.º 3 da Lei n.º 6/2006 de 27 de Fevereiro, junto se devolve a V. Ex.ª o expediente respeitante ao Procedimento Especial de Despejo”.
c) Aquando da apresentação do requerimento identificado em a) o 1º R. (requerido no referido procedimento especial de despejo) ainda não havia sido notificado nos termos e para os efeitos do art.º 15º-D do NRAU.
***
Sob pretexto de estar a ser conhecida a excepção da falta de interesse em agir suscitada pelo 1º R. na sua contestação, considerou-se na decisão recorrida que o requerimento que a A. apresentou no procedimento especial de despejo em 25/10/2021 representava uma “desistência do pedido” formulado pela A. nesse procedimento. Pelo que, considerando que tal procedimento especial de despejo foi extinto em consequência da apresentação de tal requerimento, mais se considerou que se verificou a extinção do direito material que a A. pretendia fazer valer, na parte correspondente ao recebimento dos montantes identificados nas al. a) e c) do pedido agora formulado na acção declarativa. E, nessa medida, entendeu-se que o caso julgado formado por tal desistência do pedido, nessa parte, configura uma “excepção peremptória processual imprópria”, a ditar a absolvição dos RR. do pedido, no que respeita às referidas al. a) e c).
Recordando o teor do requerimento apresentado pela A. em 25/10/2021, aquilo que a mesma requereu é que fosse considerada a desistência do procedimento especial de despejo, nos termos do disposto no art.º 15º-G, nº 2, do NRAU, porque o R. havia desocupado a fracção arrendada.
É sabido que a desistência do pedido não se confunde com a desistência da instância, já que a primeira tem por efeito a extinção do direito que se pretendia fazer valer, enquanto a segunda apenas faz cessar o processo que se instaurou (art.º 285º do Código de Processo Civil).
Como explicam António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa (Código de Processo Civil Anotado, vol. I, 2018, pág. 332-333), “a desistência da instância produz apenas efeitos relativos, ao nível da extinção da instância, sem obstar a que o autor intente nova acção com o mesmo objecto e contra o mesmo sujeito”. Já a “desistência do pedido tem o mesmo efeito que teria uma sentença desfavorável ao autor, formando a sentença homologatória caso julgado material impeditivo da invocação do mesmo direito noutra acção entre os mesmos sujeitos”. Do mesmo modo, porque a desistência da instância “não interfere, por si, no mérito da pretensão”, enquanto a desistência do pedido “tem como efeito a extinção do direito invocado”, a primeira carece da aceitação do réu, “quando formulada depois da contestação”, como resulta do art.º 286º do Código de Processo Civil.
Ou seja, em todos os casos em que não esteja em causa o direito material invocado, mas apenas a relação jurídica processual, admite-se que o titular do direito disponha dessa relação jurídica processual, mas apenas enquanto o demandado não tenha exercido o seu direito de defesa.
Com efeito, a razão de ser da necessidade de aceitação da desistência da instância pelo réu, quando a mesma ocorre após a apresentação da contestação, funda-se na tutela dos direitos deste.
Assim, e como explica Alberto dos Reis (Comentário ao Código de Processo Civil, volume 3º, pág. 469-471), a justificação para a necessidade de aceitação da desistência da instância por parte do réu encontra-se na circunstância de “em face dos bons princípios” não se poder reconhecer “ao autor o direito de dispor da relação jurídica processual como de coisa sua”, já que quando o réu é citado “ao lado da relação jurídica de acção se forma a relação jurídica de contradição ou defesa e, em consequência, deste segundo vínculo, o réu adquire o direito de fazer proferir sentença sobre o fundo da controvérsia, sobre a relação jurídica substancial”, não sendo lícito ao autor “por simples acto da sua vontade, extinguir unicamente a instância”.
Mas como é de entender que “a relação jurídica de contradição só se constitui verdadeiramente com a contestação”, então a “citação é o acto-condição que torna possível a formação do vínculo entre o réu e o tribunal; mas a relação não pode considerar-se já constituída pelo simples facto de o réu ser citado”, pois que “efectuada a citação, a relação jurídica processual entre o réu e o juiz existe em potência, mas não existe em acto”, assim se justificando que se reconheça “ao autor o direito de desistir enquanto a relação de contradição não se afirmar no processo em acto positivo”.
Reconduzindo os conceitos ora apurados ao domínio do procedimento especial de despejo, tal como o mesmo decorre dos art.º 15º e seguintes do NRAU, prescreve-se no nº 2 do seu art.º 15º-G que “o requerente pode desistir do procedimento especial de despejo até à dedução da oposição ou, na sua falta, até ao termo do prazo de oposição”.
Ou seja, comparando tal preceito com o disposto no nº 1 do art.º 286º do Código de Processo Civil, logo se alcança que aquilo que está em causa não é a desistência do pedido de despejo (eventualmente cumulado com o pedido de pagamento de rendas, encargos ou despesas devidas pelo arrendatário, nos termos permitidos pelo nº 6 do art.º 15º do NRAU), mas antes a desistência da instância do procedimento especial de despejo.
Com efeito, só assim se justifica que se preceitue a eficácia dessa desistência, sem dependência da posição do arrendatário, apenas até à dedução de oposição (ou até ao termo do prazo para a sua apresentação).
Caso contrário, e estando antes em causa a desistência do pedido, com a consequente extinção do direito ao despejo e às rendas, encargos ou despesas, sempre podia o senhorio apresentá-la a todo o tempo, como resulta do nº 2 do art.º 286º do Código de Processo Civil. E, nessa medida, a interpretação do nº 2 do art.º 15º-G do NRAU seguida pelo tribunal recorrido, e que agora se afasta, apresentar-se-ia contrária ao espírito do sistema onde se integra, por tornar relativamente indisponíveis direitos do senhorio de natureza disponível.
Assim, sendo, e expressando a A. a sua vontade de ser considerada a desistência do procedimento especial de despejo apresentado contra o 1º R., “nos termos do disposto no nº 2, do artigo 15º-G” (do NRAU), sempre há que considerar que está em causa, tão só, a desistência da instância desse procedimento especial, e não a desistência dos pedidos aí formulados (de despejo e de pagamento de rendas e indemnização pela não desocupação da fracção arrendada)
Acresce que tendo a A. declarado ainda que tal desistência do procedimento especial de despejo tinha por justificação a desocupação da fracção arrendada pelo 1º R., do mesmo modo resulta do nº 1 do art.º 15º-G do NRAU que o procedimento especial de despejo sempre havia de ser considerado extinto. O que significa que, ainda que quisesse, no âmbito desse procedimento especial de despejo a A. estava impedida de continuar a fazer valer o seu direito às quantias indicadas como estando em dívida pelo 1º R. É que constituindo causa legal da extinção do mesmo procedimento especial a desocupação da fracção arrendada, tal significa que não mais pode aí ser verificado e declarado tal direito de crédito. Mas sem que se possa afirmar que tal significa, do mesmo modo, que a A. não mais podia fazer valer tal direito de crédito por outro meio processual, designadamente através da acção declarativa que intentou.
Ou seja, de modo algum se pode afirmar que a declaração da A. de 25/10/2021 corresponde a uma desistência do pedido de condenação dos RR. a pagarem-lhe as quantias a que respeitam as al. a) e c) do pedido formulado na acção declarativa.
E, nessa medida, não se pode afirmar que se extinguiu o direito de crédito correspondente, com a consequente absolvição dos RR. do pedido, relativamente às referidas al. a) e c).
Mas, do mesmo modo, também não se pode afirmar que o 1º R. deve ser absolvido da instância em face da procedência da excepção dilatória da falta de interesse em agir da A. É que, face a tudo o que acima já ficou exposto, está demonstrada a necessidade de a A. recorrer à acção declarativa para fazer valer o direito de crédito que invoca, tendo presente que não se formou qualquer título executivo quanto ao mesmo direito de crédito, no procedimento especial de despejo, exactamente em razão da extinção do mesmo, que operou nos termos do nº 1 do art.º 15º-G do NRAU.
O que é quanto basta para afirmar que o tribunal recorrido errou no seu julgamento quanto a esta questão, assim procedendo as conclusões do recurso da A., com a revogação da decisão recorrida e com a improcedência da excepção suscitada pelo 1º R.
***
DECISÃO
Em face do exposto julga-se procedente o recurso e revoga-se a decisão recorrida, a qual se substitui por esta outra em que se julga improcedente a excepção dilatória da falta de interesse em agir suscitada pelo 1º R. com a sua contestação.
Custas do recurso pelo 1º R., sem prejuízo do apoio judiciário de que beneficia.

22 de Fevereiro de 2024
António Moreira
Arlindo Crua
José Manuel Monteiro Correia