Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
27129/21.9T8LSB.L1-8
Relator: ANA PAULA NUNES DUARTE OLIVENÇA
Descritores: REALIZAÇÃO DE OBRAS
DANOS CAUSADOS
RESPONSABILIDADE EXTRACONTRATUAL
INDEMNIZAÇÃO
PRESCRIÇÃO
INÍCIO DO PRAZO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 02/22/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: 1. Do regime de prescrição previsto no art.º 498º, nº 1 do C. Civil, decorre dois prazos prescricionais de duração e momentos de início de contagem distintos, mas que correm ou podem correr ainda que parcialmente, em simultâneo;
2. Na prescrição, o prazo espelha o lapso de tempo durante o qual o lesado/credor, por negligência faz presumir a sua vontade de renunciar ao direito. Deste modo, decorrido o prazo, o seu beneficiário tem, de acordo com o preceituado no art.º 304º, nº 1 do CCivil, a faculdade de recusar a prestação ou de se opor, por qualquer modo, ao exercício do direito prescrito.
3. O artigo 498º, n.º 1 do Código Civil determina que o prazo de prescrição se inicia no momento do conhecimento dos factos relevantes para a consciência de que se é titular de um direito de indemnização, não se exigindo que esse conhecimento seja cabal, absoluto, isento de dúvidas ou incertezas, daí que seja irrelevante o desconhecimento da pessoa do responsável e da extensão integral dos danos.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes que compõem a 8ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa:

1. Relatório
A. e B., vieram propor
ACÇÃO DECLARATIVA DE CONDENAÇÃO, COM PROCESSO COMUM,
contra:
C e D, respectivamente;
e
E e F,
respectivamente, pedindo como segue:
-Os 1ºs. Os Réus serem condenados a pagar à 1.ª Autora a quantia de €51.976,00 (sendo €20.476,00 a título de reembolso de custos que esta teve que ter para evitar que o edifício em que tem o seu apartamento ficasse estruturalmente deficiente e constituísse um risco para todos) e €35.000, 00 a título de compensação pelos prejuízos morais que sofreu com a situação, e a pagar à 2.ª Autora a quantia de €80.640,81 (sendo € 2.640,81, a título de reembolso dos custos em que incorreu para, de urgência, mandar colocar 3 vigas de reforço no seu tecto, €18.000,00 pelo que deixou de receber por causa da situação, e €60.000,00 a título de compensação pelos danos morais causados com tudo o que teve que passar durante mais de 3 anos até ver, finalmente, a estrutura do prédio reforçada);
Os 1.ºs Réus e o 2.º Réu serem solidariamente condenados a mandar executar a expensas suas todos os trabalhos necessários para a reparação de todos os danos causados nos apartamentos das Autoras, como efeito da demolição das paredes estruturais na fracção «B», actualmente propriedade do 2.º Réu e anteriormente propriedade dos 1.ºs Réus.
Para tanto alegam, em síntese, terem os apartamentos de sua propriedade sofrido danos provocados por obras que haviam sido levadas a efeito e que consistiram na remoção de paredes tanto ao nível do rés-do-chão como ao nível do 1.º andar do prédio.
As obras realizadas no 1.º andar foram a causa de anomalias detectadas no edifício, porque provocaram um grande enfraquecimento da sua estrutura e da sua resistência sísmica.
Foram os 1º RR. que levaram a efeito as obras no 1º andar sendo os 2º RR. os seus actuais proprietários.
*
Devidamente citados, os Réus apresentaram contestação.
Alegam que a obrigação de indemnizar se encontra prescrita considerando o disposto no nº1, do art.498º do CCivil.
Afirmam que a obra realizada no Piso 1 ocorreu em 2017, sendo que o primeiro relatório realizado pelo Eng. Z data de Junho de 2018 e a presente Acção foi intentada a 17 de Novembro de 2021.
Os 1ºs RR nunca receberam até à citação na presente Acção qualquer notificação judicial avulsa que tivesse como fim interromper o prazo de prescrição da obrigação de indemnizar. Concluem, pois, que a obrigação de indemnizar – se tivesse existido- já se encontra prescrita, o mesmo acontecendo no que se refere às facturas correspondentes ao pagamento dos documentos nº 18, 20 e 23 da PI, nas quantias de €2.152,50 (Rec. 2018A/32), € 2.152,50 (Rec. 2018A/76) e €2.640,81 (Factura Far 2018/5), são todas anteriores a 17 de Novembro de 2018.
No mais impugnam a factualidade apresentada pelas AA..
Alegam, para além domais, que nenhuma das AA. conhecia o estado da fracção C, à data em que a mesma foi adquirida pelos mesmos sendo certo que as obras aí levadas a efeito foram encetadas pelos anteriores proprietários.
Impugnam que quaisquer fissuras, descolamento de rodapés, afastamento de escadas ou afundamento de soalho nas fracções de que as AA. são proprietárias – a existirem - tenham tido origem ou tenha sido causada pela obra no 1º Piso efectuada em 2017 e,
impugnam que a situação de conservação das Fracções de que as AA. são proprietárias fosse, em Janeiro de 2017, antes das obras efectuadas no 1º andar, diferente da actual.
Afirmam desconhecer qual era o estado de conservação das Fracções das AA. antes de 2017, pelo que, é impossível saber com exactidão quais os danos que possam ter sido efectivamente causados pelas obras nas diversas fracções do edifício, se é que existiram.
Contestam os danos apurados e pedem a improcedência da acção.
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Deduzem incidente de intervenção dos anteriores proprietários da fracção C que iniciaram as obras no 1º andar e que realizaram as obras no r/c.
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Os 2º RR. alegam que não tendo as Autoras identificado (porque não existe) qualquer causa de imputação da responsabilidade independente de culpa aos 2.ºs Réus, o regime aplicável sempre será o da responsabilidade civil subjectiva, ou seja, dependente de culpa.
As Autoras (alegadas lesadas) esforçaram-se para provar a culpa do autor da lesão, que imputaram claramente aos 1.ºs Réus tendo mesmo afirmado que os 2.ºs Réus não têm culpa dos danos que resultaram das obras efectuadas pelos 1.ºs Réus. Nestes termos, não havendo qualquer culpa dos 2.ºs Réus pelas obras que, alegadamente, provocaram os danos alegados pelas Autoras, facto que estas reconhecem, aceitam e reforçam, não pode ser-lhes imputada qualquer responsabilidade pela reparação dos mesmos, uma vez que a culpa é um elemento essencial da obrigação de indemnizar.
Assim sendo, defendem serem parte ilegítima pugnando pela sua absolvição da instância.
Mais alegam, que assim não se entendendo, sempre o direito que se arrogam se encontra prescrito à luz do disposto no art.498º, nº1, do CCivil, uma vez que assumindo as AA. que tiveram conhecimento dos danos alegadamente provocados pelos 1º RR. em meados de 2017 e tendo a p.i, dado entrada em juízo em Novembro de 2021, decorreram mais de 4 anos depois das AA. terem conhecimento do alegado direito que se arrogam. Ainda que não se entendesse que o conhecimento das Autoras datava de 2017, admitindo-se no limite, que o conhecimento remontasse a Fevereiro de 2018, porque admitido pelas Autoras nos artigos 25.º, 26.º, 27.º, 40.º, 54.º a 56.º e 85.º da petição inicial, ainda assim o alegado direito das Autoras encontrava-se prescrito em Novembro de 2021.
São as próprias que Autoras deixam claro que o conhecimento dos alegados danos ocorreu há mais de três anos quando, no pedido, se indignam com «tudo o que teve que passar durante mais de 3 anos até ver».
No mais, impugnam a factualidade alegada pelas AA..
Também deduzem reconvenção, pedindo a condenação das AA. nos seguintes termos:
- No pagamento de uma indemnização pelos danos causados à reputação dos 2.ºs Réus e do imóvel, nunca inferior a €16.320,00 (dezasseis mil trezentos e vinte euros); e
- No pagamento de uma indemnização pelos danos causados pela perda de chance da venda do imóvel, nunca inferior a €40.000,00 (quarenta mil euros), tudo no valor de €56.320,00 (cinquenta e seis mil trezentos e vinte euros).
Pedem, ainda, a condenação das AA. como litigantes de má fé.
Alegam, em síntese, para fundar o pedido reconvencional, terem adquirido a fracção com o objectivo de a rentabilizar com arrendamentos de curta duração, porém, os comportamentos que as AA. manifestam para com os seus clientes, tem vindo a determinar a sua redução e o valor cobrado pela sua ocupação, prejuízo que lhes imputam. Mais alegam que decidiram proceder à venda da fracção em 2022 tendo sido apresentado uma proposta de compra no valor de €340.000,00 que os RR. aceitaram, porém, quando comunicaram à interessada a pendencia da presente acção a mesma informou que já não estava interessada no negócio o que resultou em prejuízo para os Réus.
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Pelas AA. foi apresentada réplica na qual apresentaram contestação à reconvenção, pugnando pela sua improcedência e responderam à deduzida excepção de prescrição alegando que não tiveram nem podiam ter tido qualquer percepção da titularidade do direito à indemnização antes de terem tido conhecimento do relatório do Eng. Z. O relatório constituiu para as Autoras a primeira confirmação de que havia uma relação, um nexo de causalidade, entre as obras levadas a efeito no 1.º andar do prédio e os danos por este sofridos que provocaram consequências danosas na parte comum do prédio e em todos os apartamentos a partir do 2.º andar.
As Autoras que não são portuguesas, não falam português, não são engenheiras, não podiam de forma alguma percepcionar que seriam titulares dum direito a serem indemnizadas, quando as próprias entidades portuguesas responsáveis lhes dizem que está tudo bem que não houve qualquer ilegalidade nem irregularidade.
As sensações das Autoras sobre o que se estava a passar não eram suficientes para lhes criar essa percepção de serem titulares dum direito à indemnização e a falta de confirmação pelas entidades oficiais fazia aumentar a sua angústia por não compreenderem o que se estava a passar com o imóvel;
Só com o Relatório Final do Engenheiro apresentado em 18 de Julho de 2019, as AA. percepcionaram que eram titulares do direito a serem indemnizadas.
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Após, foi proferido despacho dispensando a audiência prévia. Seguiu-se despacho que não admitiu a intervenção de terceiros; não se admitiu a reconvenção e proferiu-se despacho saneador, no âmbito do qual se decidiu excepção de ilegitimidade suscitada pelos 2º RR., tendo-se declarado os mesmos, parte legítima ad causam.
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Por ter considerado conterem os autos todos os elementos fácticos que o permitiam, conheceu-se, da prescrição tendo a final, sido decidido:
«Por tudo o exposto, julgo totalmente procedente a exceção de prescrição e, consequentemente, absolvo os réus do pedido.
Custas pelas autoras (art.º 527º, n.º 1 do Código do Processo Civil).
Registe e notifique.»
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Inconformadas com tal decisão, da mesma vieram interpor recurso as AA., tendo apresentado as seguintes conclusões:
«I. Em causa no presente recurso está o facto de a douta decisão recorrida ter absolvido os Réus do pedido por entender que, à data em que as Autoras intentaram a presente acção já havia prescrito o seu direito de o fazer.
II. Tal decisão baseia-se no facto de o Tribunal entender que foi em Fevereiro de 2018 que as Autoras “souberam dos factos que se afiguram essenciais para exercerem os seus direitos”.
III. Salvo o devido respeito e melhor opinião, tal conclusão não se pode retirar dos factos descritos pelas Autoras nem pelos Réus, uma vez que, em Fevereiro de 2018, as Autoras apenas se aperceberam de uma problema que parecia extraordinariamente grave no prédio, mas não sabiam o origem dele;
IV. E o facto de, no 1.º andar, terem sido levadas a efeito obras pelos 1.ºs Réus não era suficiente para considerar que essas obras eram responsáveis pelo problema e que as Autoras tinham direito a ser indemnizadas;
V. Os bombeiros quando visitaram o prédio constataram um assentamento à frente e atrás, mas não deram indicação de qualquer causa para o mesmo;
VI. Fizeram transitar o assunto para a Câmara Municipal de Lisboa, tendo o prédio sido visitado por uma Senhora Arquitecta, que garantiu à 2.ª Autora que as obras do 1.º andar tinham sido bem feitas;
VII. A referida Senhora Arquitecta transmitiu à 2.ª Autora o contacto do Senhor Eng. Z, por achar que esta estava era muito interessada factos históricos dos prédios antigos;
VIII. As Autoras, que não são portuguesas, não dominam a língua portuguesa nem os procedimentos, ao receberem este contacto, ainda mais tendo confirmado que o Senhor Eng. Z é uma referência em Portugal quer em engenharia de estruturas quer na recuperação de prédios antigos, imediatamente acharam que ele era a pessoa indicada para perceber o se passava no prédio;
IX. Até à intervenção do Senhor Eng. Z, as Autoras não tinham qualquer facto concreto que lhes indicasse que o facto de o prédio estar com problemas graves era resultado da conduta de alguém e que isso lhes daria direito a indemnização, pelo que não tinham forma de saber que esse seu direito à indemnização existia;
X. O primeiro facto que lhes deu indícios de que, efectivamente, poderiam ter direito à indemnização foi o relatório preliminar do Eng. Z, mas que, mesmo assim não foi definitivo nem completamente seguro;
XI. Embora as Autoras considerem que, na sua situação e de acordo com o atrás descrito, só mesmo depois do relatório definitivo do Eng. Z ficou esclarecido que tinham direito a indemnização, admitem que possa haver opinião diferente na interpretação quanto ao início do prazo ser após conhecimento do relatório preliminar ou após conhecimento do relatório definitivo, mas nunca antes de ter conhecimento do primeiro;
XII. Assim, embora não partilhem dessa interpretação, admitem que o prazo se possa começar a contar a partir de 27 de Junho de 2018, caso que os três anos, acrescidos dos 160 dias devidos ao regime especial derivado da pandemia, terminou em 4 de Dezembro de 2021, ou seja, já depois de as Autoras terem intentado a presente acção, razão pela qual, ao contrário do que refere a douta decisão recorrida, o seu direito não se encontrava prescrito à data da propositura da acção, não podendo os Réus ser absolvidos do pedido por tal motivo.
NESTES TERMOS e nos mais de direito aplicáveis, e invocando ainda o douto suprimento,
Deve ser dado provimento ao presente recurso e, em consequência, ser a douta decisão recorrida revogada, no sentido de ser considerada improcedente por não provada a excepção da prescrição invocada pelos Réus, ora Apelados, devendo os autos, outrossim, prosseguir para que, a final, as Autoras, ora Apelantes, possam ser ressarcidas dos prejuízos que sofreram, como é de direito e de JUSTIÇA!»
*
Apresentaram os 1º RR. contra-alegações, alinhando as seguintes conclusões:
«1. O conhecimento do direito a que alude o nº 1 do artigo 498.º do C. Civil, corresponde ao conhecimento dos factos essenciais integradores dos pressupostos da responsabilidade.
2. Bem andou o tribunal a quo ao considerar que o lesado não pode escudar-se no desconhecimento de todos os aspetos ou pormenores dos factos integradores da responsabilidade, designadamente daqueles que tem a possibilidade de conhecer, se diligenciar nesse sentido.
3. Mais considerou, e bem, o douto tribunal que a Lei não confere ao lesado o direito de escolher o momento que se sente suficientemente informado acerca dos factos e dos seus direitos. Por essa tese, levada ao absurdo, se as autoras, apesar de terem danos desde fevereiro de 2017, ainda não tivessem encomendado nenhum estudo sobre as causas das patologias nos seus apartamentos, então o prazo ainda nem tinha começado a correr…
4. O conhecimento dos pressupostos da responsabilidade civil não tem de ser, por isso, certo ou isento de dúvidas.
5. Não se exige, igualmente, que o lesado saiba em concreto qual a extensão do dano, o grau de ilicitude, o grau de culpa do responsável, a identidade concreta do responsável, etc.
6. Tais factos poderão ser concretizados através da produção de prova em processo judicial intentado para o efeito.
7. Ora, as AA. alegam ter tido a percepção da verificação dos pressupostos relativos ao putativo facto ilícito e culposo logo em 2017, quando acreditaram terem as obras realizadas no 1.º andar removido uma parede estrutural (gaiola pombalina).
8. Alegam ainda as AA. que os danos nas suas frações se verificaram logo em Fevereiro de 2018.
9. Assim, em Fevereiro de 2018, as AA. [1] sabiam terem sido realizadas obras no andar de baixo; [2] tinham a perceção que tinha sido removida uma parede que consideravam estrutural nesse mesmo andar; [3] tinham sido informadas por um técnico da área que os danos supostamente adviriam das obras realizadas no andar de baixo; [4] tinham colocado 3 vigas de metal IPN como solução de emergência porque receavam que o teto do apartamento caísse em consequência da falta de estabilidade do prédio; [5] pensavam estar o prédio em risco de cair; [6] choravam frequentemente ao falar do assunto tal era a perturbação que o mesmo lhes provocava.
10. É assim inquestionável que em Fevereiro de 2018, as AA. já tinham concluído pela existência do suposto nexo de causalidade entre as obras realizadas no 1.º andar pelos 1.º RR e os danos provocados nas suas frações.
11. Com os relatórios solicitados ao Sr. Engenheiro XX apenas pretenderam obter um elemento de prova para o que as mesmas já tinham decidido desde Fevereiro de 2018 – que eram os 1.º RR os responsáveis pelos danos nas suas frações.
12. Por conseguinte, contrariamente ao que alegam, é falso que, para as AA., o nexo de causalidade entre o facto e o dano apenas tivesse sido apreendido com o relatório de 26 de Junho de 2018.
13. O prazo de prescrição previsto no nº 1 do artigo 498.º do C. Civil tem por objetivo punir a negligência e inércia do lesado, neste caso, das AA.
14. Pelo que bem andou o Tribunal a quo ao julgar procedente a excepção de prescrição, decisão que deverá ser confirmada.
TERMOS EM QUE que deve ser o recurso julgado improcedente e confirmada a sentença recorrida.
Assim decidindo Exmos. Senhores Doutores Juízes Desembargadores farão V. Exas. a costumada
J U S T I Ç A»
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Pelos 2º RR. também foram apresentadas contra-alegações que não contendo conclusões, no essencial, pugnam pela manutenção do julgado em 1ª instância.
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O recurso foi admitido.
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Cumpridos os vistos legais, cabe apreciar e decidir.

2. Objecto do recurso
O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (cf. Arts. 635º, nº 4, 639º, nº 1, e 662º, nº 2, todos do Código de Processo Civil), sendo que o tribunal não está obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes e é livre na interpretação e aplicação do direito (cf. Art.º 5º, nº3 do mesmo Código).
In casu cumpre decidir se o direito das AA. se encontrava prescrito à data da entrada da petição inicial em juízo.
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3. Fundamentação de Facto
Para julgar procedente a excepção de prescrição alinhou o tribunal a quo a seguinte factualidade alegada pelas AA. em sede de petição inicial, acrescentando-se (devidamente realçada a bold) a matéria alegada, omitida pela 1ª instância, que este tribunal entende interessar à decisão, o que faz ao abrigo do disposto no art.662º, nº2, al. c) (a contrario), do CPCivil:
- «No decurso desse mesmo ano de 2017, em mais uma das suas deslocações a Lisboa, a 2.ª Autora constatou que os novos proprietários do 1.º andar já tinham iniciado obras, mas verificou, com alguma perplexidade, que a parede que consistia na «gaiola pombalina» tinha sido (pelo menos, aparentemente) removida.» (artigo 21º)
- «Tendo a 2.ª Autora partilhado com a 1.ª o que tinha visto, ambas formaram a ideia de que esta remoção era ilegal, por conversas que já tinham tido com outras pessoas acerca dessa famosa técnica construtiva do pós-terramoto de 1755» (artigo 22º)
- «Então, a 1.ª Autora tentou questionar os donos do apartamento e chegou mesmo a falar com o filho deles, a quem inclusivamente solicitou se podia ver o projecto e os cálculos das obras» (artigo 23º)
- «ao que este respondeu que era engenheiro, que sabia muito bem o que estava a fazer, que tudo o que estava a fazer era legal, e que não tinha nada que lhe mostrar o projecto nem os cálculos.» (artigo 24º)
- «em Fevereiro de 2018, a 2.ª Autora voltou a Lisboa para tratar disso, ficando em casa da sua Mãe, a 1.ª Autora,» (artigo 25º);
- «e, ao entrar no apartamento propriedade da sua Mãe, deparou, também, com coisas nunca lá vistas: fissuras na parede, partes do rodapé a descolar da parede, e, pior que tudo, a escada que sobe para o quarto, afastada da parede.» (artigo 27º);
- «e desceu para o seu apartamento, onde deu, igualmente, com coisas nunca lá vistas: fissuras na parede, descolamento do rodapé da parede, e afundamento do soalho.» (artigo 28º);
- «Nessa mesma noite, a 2.ª Autora levantou-se pouco depois de se ter deitado, convencida de que estava a haver um terramoto, de tal modo o seu apartamento tremia e vibrava!» (artigo 32º);
- «Não conseguiu dormir nada o resto da noite, e, na manhã seguinte, chamou, de urgência, a empresa que tinha estado a fazer a insonorização, para contar o que tinha acontecido e pedir que verificassem se podia ter alguma coisa a ver com o que haviam feito.» (artigo 35º)
- «O responsável da empresa veio de imediato e rapidamente confirmou que o que se estava a passar nada tinha a ver com a insonorização que tinha sido feita.» (artigo 36º)
- «Como este tinha tido conhecimento que haviam sido levadas a cabo obras no andar de baixo, perante as fissuras abertas, os rodapés deslocados e demais anomalias, entretanto surgidas, disse que o mais provável era que o que sucedera tivesse tido a ver com as obras feitas no andar de baixo» (artigo 37º)
- «tendo perguntado à 2.ª Autora se esta sabia o que ali fora realizado, tendo ela respondido que sabia que tinha sido removida uma parede, mas que o responsável se tinha negado a mostrar-lhe os projectos e os cálculos» (artigo 38º)
- «propôs, então, à 2.ª Autora, como solução de emergência, que reforçasse o tecto do seu apartamento com 3 vigas em metal IPN» (artigo 39º);
- «As 1.ª e 2.ª Autoras ficaram destroçadas com tudo o que se estava a passar» (artigo 40º);
- «A 2.ª Autora teve de cancelar todos os compromissos profissionais que tinha em Paris para ficar em Lisboa» (artigo 41º)
- O engenheiro Z elaborou dois relatórios, datados de 26.06.2018 e 18.07.2019 – documentos 7 e 8 da p.i., respectivamente.
*
4. Fundamentação de Direito:
Dita o art.º 595º, nº1, al. b) do CPCivil que: «1 - O despacho saneador destina-se a:
b) Conhecer imediatamente do mérito da causa, sempre que o estado do processo permitir, sem necessidade de mais provas, a apreciação, total ou parcial, do ou dos pedidos deduzidos ou de alguma exceção perentória.»
Daqui resulta, claramente, que o procedimento para o conhecimento de excepções peremptórias, que se integra na apreciação do mérito da causa, pressupõe que o estado do processo possibilite tal decisão, sem necessidade de mais provas, e independentemente de a mesma favorecer uma ou outra parte[1].
Como se salienta no sumário do Ac. R.P. de 24.05.2021, in www.dgsi.pt
«I - O conhecimento de mérito no despacho saneador apenas deve ter lugar quando o processo fornecer já em tal fase processual, antecipadamente relativamente à normal - a da sentença -, todos os elementos de facto necessários à decisão do caso segundo as várias soluções plausíveis da questão de direito.
II - Assim, e pela negativa, nunca é legitimo ao julgador enveredar, antecipadamente, pela sua solução definitiva do litígio, sem que garantida esteja a presença de todos os factos necessários a que as outras visões possíveis possam, também, ser logo, sustentadas.
III – (…)
IV - E controvertida estando matéria relevante para efetuar a subsunção jurídica do caso a um instituto convocado, nunca pode ser considerado consolidado estado dos autos que permita ao juiz antecipar a decisão, com o adiantar da solução por si perfilhada, pois que necessária se torna (após instrução) a condensação - como provados e não provados - dos factos que permitam, na interpretação, concatenação e ponderação de todos eles, adotar justa solução que se desenhe no leque das possíveis.
V - Deve, pois, o juiz proceder à recolha dos factos da causa (cfr. art.º 5º, do CPC) que se mostrem dotados de relevância jurídica, garantindo a condensação de todos, por forma a acautelar anulações de julgamento.»
Em suma, existindo mais do que uma solução plausível para a questão de direito e factos controvertidos com relevância para alguma delas é prematuro o conhecimento do mérito antes da fase de julgamento ou de qualquer excepção peremptória que tenha sido invocada.»
Fixadas as incidências fácticas fixadas entendeu-se em 1ª instância julgar prescrito o direito das AA..
Ora, as partes não questionam que os autos não contivessem todos os elementos de facto e de direito que permitissem o conhecimento da excepção em sede de despacho saneador, apenas não se conformando as apelantes com a decisão de procedência da mesma.
Temos, assim, como inequívoca a possibilidade do conhecimento da excepção nesta sede.
Cumpre, assim, decidir, tão só, se o direito as que as AA. se arrogam se encontra prescrito conforme foi decidido em 1ª instância.
Invocam os réus a prescrição do direito das autoras, por à data da interposição da acção já terem passado mais de três anos desde que tomaram conhecimento dos factos geradores da obrigação de indemnizar, o que fazem ao abrigo do disposto no art.498º, nº 1, do CCivil.
Responderam as autoras que apenas tomaram conhecimento da titularidade do seu direito com o relatório final do Engenheiro Z, apresentado em 18 de Julho de 2019. Mais dizem, que considerando o prazo de três anos postulado no art.º 498º, nº1 do CCivil, e a suspensão dos prazos prescricionais determinada por força da legislação excepcional vigente em face da situação pandémica Covid 19, o seu direito não estava prescrito na data da propositura da acção.
Vejamos se lhes assiste razão.
In casu, dúvidas não há em face da relação jurídica exposta em sede de petição inicial, que fundando as AA. o pedido de condenação dos réus, para além do mais, no pagamento de uma indemnização pelos danos patrimoniais e não patrimoniais para elas resultantes da prática de facto ilícito e violador do seu direito de propriedade, estamos no âmbito da responsabilidade civil extracontratual. Cfr. art.º 483º do CCivil.
Assim, o direito de indemnização em causa encontra-se sujeito ao regime de prescrição previsto  no art.º 498º, nº 1 do C. Civil, o qual estabelece que «1. O direito de indemnização prescreve no prazo de três anos, a contar da data em que o lesado teve conhecimento do direito que lhe compete, embora com desconhecimento da pessoa do responsável e da extensão integral dos danos, sem prejuízo da prescrição ordinária se tiver decorrido o respectivo prazo a contar do facto danoso.»
Deste preceito legal decorre que vêm estabelecidos dois prazos prescricionais de duração e momentos de início de contagem distintos, mas que correm ou podem correr ainda que parcialmente, em simultâneo.
Temos assim o prazo ordinário de vinte anos (art.º 309ºCCivil) que se conta desde o facto danoso a par do prazo de três anos que corre a partir do momento «em que o lesado teve conhecimento do direito que lhe compete» e sendo irrelevante que desconheça o responsável pela produção dos danos ou a sua extensão integral.
A propósito escreve Ana Prata[2] «Compreende-se a razão por que o legislador pretendeu que o prazo de prescrição do direito de indemnização fosse especialmente curto: se decorre muito tempo sobre os factos, aumenta o risco de a prova, mormente a testemunhal, ser mais difícil e incerta.»
Segundo Vaz Serra[3], o regime prescricional da responsabilidade civil extracontratual, previsto no art.º 498º, nº 1, do C. Civil, procura compatibilizar os interesses do credor da indemnização e os do devedor, dando prevalência, através da redução do prazo normal, ao factor da segurança jurídica.
Menezes Cordeiro[4]  entende que o prazo especialmente curto visa, por um lado, pôr rapidamente cobro a situações de insegurança que é representado pela existência de danos imputáveis, cujo ressarcimento, dependente do lesado, se encontra em dúvida quanto à realização e, por outro, incitar os lesados à realização pronta dos seus direitos.
Temos assim que, na prescrição, o prazo espelha o lapso de tempo durante o qual o lesado/credor, por negligência faz presumir a sua vontade de renunciar ao direito. Deste modo, decorrido o prazo, o seu beneficiário tem, de acordo com o preceituado no art.º 304º, nº 1 do CCivil, a faculdade de recusar a prestação ou de se opor, por qualquer modo, ao exercício do direito prescrito.
Assente o prazo aplicável, cumpre agora determinar o momento a partir do qual inicia-se a contagem do referido prazo de prescrição de três anos, o que nos remete, desde logo, para a necessidade de determinar o momento em que os autores tiveram «conhecimento do direito que lhe compete» sendo aqui que divergem as partes.
Tal como ensina Menezes Cordeiro[5], sobre  o início da contagem do prazo de prescrição, existe o sistema subjectivo segundo o qual  o prazo de prescrição  só começa a correr  quando o credor tenha conhecimento  dos elementos essenciais relativos ao seu direito, e o sistema objectivo, adoptado pela lei portuguesa, no art.º 306º, nº 1, 1ª parte, do CCivil, segundo o qual o prazo  de prescrição começa a correr assim que o direito possa ser exercido e independentemente do conhecimento que o credor tenha ou possa ter dos elementos essenciais do direito.
Assim se escreve no Acórdão do STJ, de 20.03.2014[6], que «o prazo prescricional deve começar a correr no momento em que o direito, exigível, pode ser exercido».
A propósito e citando Vaz Serra[7][8] escreveu-se no Ac. STJ de 14.10.2021, «“o tempo legal da prescrição deve ser um tempo útil, não podendo censurar-se o credor pelo facto de não ter agido numa altura em que não podia fazê-lo. Se assim não fosse, poderia acontecer que a prescrição se consumasse antes de poder ser exercido o direito prescrito”, não sendo de aceitar uma solução que faça “correr o prazo de prescrição antes de o credor poder praticamente exercer o seu direito”, sublinhando que o termo inicial do prazo deve ter como ponto de partida a existência objectiva, no aspecto jurídico - e não de mero facto - das condições necessárias e suficientes  para que o direito possa ser exercitado, isto é, a ausência de causas (« impedimentos de natureza jurídica») que impeçam o exercício do direito e, com ele, consequentemente, o da prescrição.»
Continuando a citar o Prof. Vaz Serra, continua o Ac. citado « o prazo de prescrição a que se refere o nº 1 do art.º 498º do C. Civil conta-se a partir do conhecimento, pelo titular do respectivo direito, dos pressupostos que condicionam a responsabilidade e não da consciência da possibilidade legal do ressarcimento», salientando que «não se afigura suficiente o conhecimento de tais pressupostos, sendo ainda preciso que o lesado tenha conhecimento do direito que lhe compete, como expressamente diz a lei: se ele conhece a verificação dos pressupostos da responsabilidade do lesante, mas não sabe que tem direito de indemnização, não  começa a correr o prazo de prescrição de curto prazo», acrescentando mais adiante « Se ele ( lesado) tendo embora conhecimento da verificação dos pressupostos da responsabilidade do lesante, ignora o seu direito de indemnização, seria violento que a lei estabelecesse um prazo curto para exercício desse direito e declarasse este prescrito  com o decurso de tal prazo».
Assim se há-de concluir que,  para efeito  de contagem do termo inicial do prazo prescricional  estabelecido no art.º 498º, nº 1 do C Civil,  o lesado  terá conhecimento «do direito  que lhe compete» quando tenha na sua posse os elementos fácticos que integram os pressupostos legais do direito de indemnização  fundado na responsabilidade civil extracontratual (facto ilícito, culpa, dano e relação de causalidade entre o facto e o dano), sabendo  que dispõe  do  direito à indemnização pelos danos que sofreu.
Ora, vista a alegação vertida em sede de petição inicial, resulta claro da alegação das AA., que ao invés do que pretendem fazer crer, não foi apenas com a recepção do relatório preliminar do Eng. Z que as mesmas ficaram a saber a quem imputar os eventos danosos. Na verdade, com a recepção de tal relatório, provavelmente, ficaram mais seguras do seu direito, embora e tal como defendem, só com o segundo relatório ficassem realmente certas da causa dos danos das suas fracções. Porém, e conforme decorre do por si alegado no art.º 21º, em 2017, embora ainda não tivessem surgido quaisquer danos, já a 2ª A. declara ter constatado que os novos proprietários do 1º andar tinham iniciado obras tendo constatado «com alguma perplexidade, que a parede que consistia na «gaiola pombalina» tinha sido (pelo menos, aparentemente) removida». Tal situação foi de tal modo impactante para si que a comunicou à sua mãe, 1ª A. e ambas concluíram tratar-se de situação ilegal tendo levado a 1ª A., inclusivamente, a contactar os donos da fracção solicitando projecto e cálculo de obras.
Continuando a linha do tempo, quando a 2ªA. em Fevereiro de 2018 regressa aos apartamentos constata a existência de danos em ambos os apartamentos -quer no seu, quer no da sua mãe- e quando chama o responsável pela empresa que havia feito as obras de insonorização do seu apartamento, vistas as alegadas vibrações que lhe provocaram o medo de que o tecto do seu apartamento cedesse e pessoas e/ou móveis do andar de cima «lhe caíssem em cima» e questionada por este se sabia o que ali fora realizado, a 2ª A. não parece ter tido qualquer dúvida ao responder que «sabia que tinha sido removida uma parede mas que o responsável se tinha negado a mostrar-lhe os projectos e os cálculos».
Ora, da factualidade alegada pelas próprias AA., se não antes, pelo menos em Fevereiro de 2018, estas tinham a ideia formada de que os danos provocados nas suas fracções decorriam das obras que tinham sido levadas a efeito na fracção do 1º andar.
Pelo menos nessa data, dúvidas não existem, de que estavam conhecedoras de todos os pressupostos da responsabilidade civil a saber, dano, facto ilícito, culpa e nexo de causalidade entre o facto ilícito e o dano.
Anote-se, que se concorda com a sentença recorrida quando afirma, que o artigo 498º, n.º 1 do Código Civil determina que o prazo de prescrição se inicia no momento do conhecimento dos factos relevantes para a consciência de que se é titular de um direito de indemnização, sendo claro também que não se exige que esse conhecimento seja cabal, absoluto, isento de dúvidas ou incertezas, daí que seja irrelevante o desconhecimento da pessoa do responsável e da extensão integral dos danos. Para se imputar um dano a alguém, terá de haver um mínimo de certeza e muito mais que esse mínimo já o tinham as AA. em Fevereiro de 2018.
Com efeito, basta o conhecimento dos factos essenciais que constituem pressupostos da responsabilidade civil, apreensíveis por qualquer pessoa média, colocada na posição das autoras, para que o prazo se inicie, não se exigindo que se trate de um conhecimento isento de dúvidas, seguro, garantido, confirmado por entidades externas ou por quem tenha conhecimentos técnicos apropriados. E, afinal, o que as AA. fizeram quando recorreram ao trabalho do engenheiro, foi a confirmação por técnico especializado que lhes aportou os elementos de prova que quiçá lhes deu o conforto necessário para a propositura da presente acção e não mais que isso.
Por tudo, se concorda com o decidido em 1ª instância.
5. Decisão
Na sequência do que se deixou exposto acordam os Juízes que constituem a 8ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa, em julgar improcedente o recurso interposto pelas Autoras e, consequentemente, mantêm a decisão recorrida.
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Custas a cargo das apeladas.
Notifique e registe.
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Lisboa, 22-02-2024
Ana Paula Nunes Duarte Olivença
Marília dos Reis Leal Fontes
Amélia Puna Loupo
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[1] Cf. nesse sentido A. Geraldes, Paulo Pimenta, e Luís Sousa, in Código de Processo Civil Anotado, vol. I, p. 696
[2] CCivil Anot., Vol.I, Almedina, pág.651/652
[3] In BMJ, nº 87, pág. 38.
[4] In “Direito das Obrigações”, Vol. II, pág. 430.
[5]  “Tratado de Direito Civil Português, I Parte Geral, Tomo IV, 2005, Almedina, pág. 166.
[6]  Proc. nº 420/13.0TBMAI.P1.S1, in www.dgsi.pt
[7] “Prescrição e Caducidade”, in BMJ, nº 105, págs. 190, 193 e 194.
[8] Proc.1292/20.4T8FAR-A.E1.S1, in www.dgsi.p