Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
5450/2006-6
Relator: CARLOS VALVERDE
Descritores: CONTRATO DE SEGURO
LEGITIMIDADE PASSIVA
SEGURADORA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 06/29/2006
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: AGRAVO
Decisão: RECURSO IMPROCEDENTE
Sumário: À legitimidade não satisfaz a existência de qualquer interesse, ainda que jurídico (não apenas moral, científico ou afectivo), na procedência ou improcedência da acção, exigindo-se que as partes tenham um interesse directo, seja em demandar, seja em contradizer; por isso, não sendo a contestante a seguradora do veículo alegadamente causador do acidente, nem representante ou correspondente em Portugal desta, não tem interesse directo em contradizer e só este e não eventuais interesses indirectos ou reflexos a podia processualmente legitimar.
(CV)
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa:

A intentou acção emergente de acidente de viação, com processo sumário, contra B, com representação em Portugal por C, SA, pedindo a condenação da Ré a pagar-lhe a quantia de € 5.454,45, a título de danos patrimoniais e não patrimoniais, que sofreu em consequência de acidente de viação que se ficou a dever a culpa exclusiva do condutor do veículo de matrícula alemã (BB), segurado na Ré.

Citada a indigitada representante da Ré em Portugal, veio esta a arguir a sua ilegitimidade para a causa, dizendo, no essencial, que não é uma empresa seguradora, antes uma sociedade regularizadora de sinistros, que não tem procuração para receber citações em nome da seguradora identificada nos autos e, por outro lado, a acção sempre deveria ter sido intentada contra o Gabinete Português do Certificado Internacional de Seguro, pois o pedido está contido dentro do montante do seguro obrigatório.

Após resposta da A., defendendo a improcedência da excepção, o Sr. Juiz, indo de encontro à pretensão da contestante, considerou-a parte ilegítima e absolveu-a da instância.

Inconformada com a decisão, dela interpôs recurso a A., cujas conclusões, devidamente resumidas - artº 690º, 1 do CPC -, se traduzem nas seguintes questões colocadas à apreciação deste Tribunal de recurso:
- a ilegitimidade da Ré contestante;
- a nulidade da sentença.

Não foram produzidas contra-alegações.

Quid iuris?
Segundo o critério legal, o R. será parte legítima se tiver interesse em contradizer, exprimindo-se este pelo prejuízo derivado da procedência da acção (art. 26º, 1 e 2 do CPC).
Por outro lado e consagrando a concepção que, de há muito, vinha sendo maioritariamente sufragada pela jurisprudência, com a reforma processual de 1995 estabeleceu-se que as partes só devem considerar-se ilegítimas quando, tomada a relação jurídica material controvertida, tal como a configura o autor na petição inicial, elas não sejam os sujeitos desta (citado art. 26º, nº 3, na redacção introduzida pelo Dec-Lei nº 29-A/95, de 12/2). Seja e no dizer de Miguel Teixeira de Sousa, “a legitimidade tem de ser apreciada e determinada pela utilidade (ou prejuízo) que da procedência (ou improcedência) da acção possa advir para as partes, face aos termos em que o autor configura o direito invocado e a posição que as partes, perante o pedido formulado e a causa de pedir, têm na relação jurídica material controvertida, tal como o apresenta o autor” ( “A Legitimidade Singular em Processo Declarativo”, in BMJ nº 292, pág. 105).
Distingue-se, pois, a legitimidade das chamadas condições da acção.
A legitimidade, enquanto pressuposto processual, respeita às condições impostas ao exercício de uma situação subjectiva em juízo e as condições da acção referem-se aos aspectos dos quais depende a obtenção da tutela jurisdicional requerida (cfr. Ac. do STJ de 4-2-97, BMJ 464-545).
Seja e no ensinamento de Antunes Varela, "uma coisa é saber se as partes são sujeitos da pretensão formulada, admitindo que a pretensão exista. Outra coisa, essencialmente distinta, é apurar se a pretensão na verdade existe, por se verificarem os requisitos de facto e de direito que condicionam o seu nascimento, o seu objecto e a sua perduração.
A primeira indagação interessa à legitimidade das partes; a segunda à procedência da acção."(in Manual, 2ª ed., pág. 134).
Em conclusão, à legitimidade, tal como hoje a lei adjectiva a concebe, interessa saber quem são os sujeitos da relação material controvertida, tal como o A. a configura, pertencendo ao mérito da causa saber se essa relação existe ou não existe.
Articuladas sumariamente estas noções, passemos ao concreto dos autos.
Estamos perante uma acção emergente de acidente de viação, em que a A., pretende ser indemnizada pelos danos sofridos em consequência de acidente de viação alegadamente causado por veículo segurado na Ré Companhia de Seguros B; seja, a A. pretende a responsabilização desta, enquanto seguradora do veículo causador do acidente e podia fazê-lo na presente acção (art. 20º, nº 8 do DL nº 522/85, de 21/12).
É que, sendo embora certo que, tratando-se de acidente com intervenção de um veículo matriculado na Alemanha, deveria ter sido, em princípio, accionado o Gabinete Português do Certificado Internacional de Seguro (art. 2º do DL nº 122-A/86, de 30/5), nada impedia que o fosse de imediato a Ré seguradora, como directamente responsável pelos danos provocados pelo veículo que segurou, podendo, se assim o entendesse, requerer a intervenção principal provocada desse Gabinete (neste sentido, o Ac. da RC de 28-1-97, CJ, XXII, I, 36).
Todavia, na decisão sindicanda não está em causa a legitimidade da Ré seguradora, mas antes a da Ré C, SA, indigitada como sua representante, que só seria de considerar parte legítima se, efectivamente, fosse correspondente ou representante daquela Ré em Portugal - nº 3 do Despacho Normativo nº 20/78, de 24/1, onde se dispõe que o Gabinete “abandonará a instrução do processo e a liquidação dos sinistros ao referido correspondente” (cfr. o Ac. do STJ de 8-2-94, CJ, STJ, II, I, 88).
Mas tal não está demonstrado nos autos, antes o contrário se colhe do ofício do Instituto de Seguros de Portugal, junto a fls. 106.
Sendo assim, a Ré contestante escapa à relação material controvertida, o que vale por dizer que não é titular dessa relação, sendo-lhe, por isso, indiferente as vicissitudes de tal relação.
Não tem, pois, interesse em contradizer, tanto mais que “à legitimidade não satisfaz a existência de qualquer interesse, ainda que jurídico (não apenas moral, científico ou afectivo), na procedência ou improcedência da acção. Exige-se que as partes tenham um interesse directo, seja em demandar, seja em contradizer; não basta um interesse indirecto, reflexo ou derivado.” (cfr. Antunes Varela, in ob. cit., pág. 135).
A contestante, não sendo a seguradora do veículo alegadamente causador do acidente, nem representante ou correspondente em Portugal desta, não tem interesse directo em contradizer e só este e não eventuais interesses indirectos ou reflexos a podia processualmente legitimar.
Em conclusão, da relação material controvertida, tal como a A. a configura, não resulta que a contestante C, SA, tenha interesse directo em contradizer, que o mesmo é dizer que é, na verdade, parte ilegítima.
A acção, todavia, também foi intentada contra a Ré seguradora, como se colhe claramente da identificação das partes na petição inicial.
Cremos que, não tendo sido citada ab initio, como devia, a Ré seguradora, face ao posicionamento da contestante, deveria o Sr. Juiz, absolvida esta da instância, em nome do princípio do inquisitório e do poder de direcção processual que lhe é legalmente cometido (art. 265º, 1 do CPC), ter providenciado pelo “andamento regular e célere” da lide e ter ordenado, de imediato (isto é, sem esperar pelo trânsito da decisão que julgou parte ilegítima a Ré contestante) a citação daquela Ré, até porque da petição constava a localização da sua sede, não sendo que anular o processo, como agora se pretende, porque este correu devidamente contra parte como tal indicada e querida pela A., como se colhe da resposta à contestação, onde se pugna pela legitimidade da contestante (o que, de resto, se continua a fazer nesta fase de recurso), ao invés de se ter referido que não era ela, contestante, que deveria ter sido citada, mas apenas a Ré seguradora, por só esta ter sido demandada.
Por isso, também não se está perante qualquer nulidade da decisão, mormente a da al. d), do nº 1 do art. 668º do CPC, porque, ao contrário do que parece adiantar a agravante, não houve qualquer omissão de pronúncia, já que se conheceu da questão em referência - a ilegitimidade passiva suscitada pela Ré contestante.
Em conclusão, é de manter a decisão agravada, devendo, contudo, ordenar-se a citação da Ré seguradora, seguindo-se os ulteriores termos.

Pelo exposto, na improcedência do recurso, confirma-se a decisão recorrida, devendo ordenar-se a citação da Ré Cª de Seguros B, seguindo-se os ulteriores termos.
Custas pela agravante.
Lisboa, 29-06-2006
Carlos Valverde
Granja da Fonseca
Pereira Rodrigues