Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
236/17.5IDLSB.L1-5
Relator: LUÍSA MARIA DA ROCHA OLIVEIRA ALVOEIRO
Descritores: CRIME DE FRAUDE FISCAL
IMPOSIÇÃO ART.º 14.º N.º 1
DO RGIT
SUSPENSÃO DA EXECUÇÃO DA PENA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 03/19/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NÃO PROVIDO
Sumário: (da responsabilidade da relatora)
I. O crime de fraude fiscal qualificada, p. e p. pelos arts. 103º, nº 1, al. a) e 104º, nº 2 e 3 do RGIT fica consumado com a elaboração da declaração e remessa ao Fisco.
II. Apesar de terem passado mais de 10 anos sobre a data dos factos, tal circunstância não constitui, per si, circunstância que diminua (e muito menos de forma acentuada) a ilicitude do facto, a culpa do agente ou a necessidade da pena.
III. A imposição decorrente do art. 14º, nº 1 do RGIT mostra-se justificada pelo interesse preponderantemente público que acautela e pela necessidade de eficácia do sistema penal tributário.
IV. O juízo quanto à impossibilidade de pagar não é impedimento legal da suspensão pois sempre pode ocorrer alteração das condições económicas do visado (nada garante que no período temporal de duração da suspensão da execução da pena de prisão, o mesmo não adquira bens ou rendimentos suficientes para o efeito) e a revogação da suspensão da execução da pena não é automática, dependendo de uma posterior avaliação judicial da culpa no incumprimento da condição (o tribunal só poderá revogar a suspensão da execução, por incumprimento da condição fixada, se este for culposo, se não forem viáveis as soluções alternativas enumeradas pelo art. 14º nº 2 al. a) e b) do RGIT e 55º do C.Penal e se forem infringidos, de forma grosseira ou repetida, os deveres impostos, tal como resulta do art. 56º, nº 1, al. a) do C.Penal, aplicável ex vi art. 3º, al. a) do RGIT).
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, as Juízas Desembargadoras da 5ª secção criminal do Tribunal da Relação de Lisboa:

I. RELATÓRIO
No Processo 236/17.5IDLSB do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, Juízo Central Criminal de Lisboa - Juiz 1, consta da parte decisória do acórdão datado de 13/07/2023, o seguinte:
“1. Pelo exposto, acordam os juízes que constituem o Tribunal Coletivo em:
1.1. – Condenar a arguida AA, pela prática de um crime de fraude qualificada, p. e p. pelo artigo 103.º, n.º 1, al. a) e 104.º, nº 2 e 3 e 7.º, n.º1 do RGIT, na pena de 960 (novecentos e sessenta) dias de multa à taxa diária de € 50,00 (cinquenta euros);
1.2 Absolver a arguida AA
1.3 Condenar o arguido BB, pela prática de um crime de fraude qualificada, p. e p. pelo artigo 103.º, n.º1, al. a) e 104.º, nº2 e 3, e 6.º, n.º1 do RGIT na pena de quatro anos de prisão, suspensa por cinco anos, condicionada ao pagamento, até ao limite de cinco anos subsequentes à condenação, da prestação tributária e acréscimos legais, do montante dos benefícios indevidamente obtidos, 369.684,27 sendo,pelo menos, a quantia de € 21.633,82€ (vinte e um mil seiscentos e trinta e três euros e quinze cêntimos) no prazo de 12 meses e metade da quantia total no prazo de 2 anos e 6 meses);
1.4 Absolver o arguido BB, dos demais crimes que lhe eram imputados (…)”.
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Inconformados com a decisão condenatória, vieram os arguidos BB e AA” interpor recurso, formulando as seguintes conclusões:
“A – Padece o douto Acórdão recorrido de erro notório na apreciação da prova, nos termos do disposto no artigo 410º nº 2 alinea c) do Código de Processo Penal, porquanto da prova produzida em sede de audiência de julgamento, e resultante da documentação constante dos autos, notoriamente esta aponta para o afastamento dos Arguidos da prática de qualquer ilícito criminal;
B – O Tribunal a quo não fez uma correcta valoração da prova testemunhal produzida, concretamente, das declarações da Contabilista CC, da inspectora tributária DD, que apenas apreciou a informação preliminar que lhe foi entregue, e, em especial, da Inspectora Tributária EE, que conduziu o Inquérito e elaborou o Relatório Final deste, referente ao período de 2013, em especial nos excertos supra identificados e constantes na íntegra nas transcrições que se anexam.
C- Como não valorou a informação contida na documentação constante dos autos, nomeadamente o relatório final do processo de inquérito, de fls.1245 a 1291, do qual, a página 6 (II.3.6), resulta bastante provado que, “…o SP cumpriu com as suas obrigações declarativas/fiscais desde 2013, tendo entregue:
– Declarações periódicas de rendimento (Mod.22) previsto no artº. 117º nº. 1 b) do CIRC, nos termos do artº 120º do mesmo código;
- Declarações anuais de informação contabilística e fiscal (IES), conforme previsto nos artºs 117º nº 1 c) do CIRC, nos termos do artº 121º do mesmo código e também previsto do artº 29º do CIVA;
- Declarações periódicas de IVA previstas no artº 29º do CIVA nos prazos definidos no artigo 41º do CIVA, até à data de cessação (30/10/2016)”.
D- Assim, de forma expressa e tendo por base todos os argumentos atrás expendido, de forma expressa se pretende afrontar os factos dados como provados e inscritos sob os números 6 a 26 da peça em questão ou seja todos aqueles que surgem a fundamentar a sua responsabilidade.
E- Nomeadamente que os Arguidos, no decurso do ano de 2013 e seguintes, tivesse delineado um esquema para obter vantagens patrimoniais indevidas à custa do Estado e de o prejudicar diminuindo as receitas tributárias.
F- Esquema esse que se consubstanciava na criação de um circuito documental de facturas emitidas por terceiros (...), com vista a fazer introduzir as mesmas na contabilidade da empresa.
G- Que tais facturas não correspondiam a transacções inexistentes em sacrifício do IRC e IVA, que deixou de ser entregue nos cofres do Estado, criando artificialmente valores a deduzir a titulo de IVA.
H- Sendo objectivo dos Recorrentes contabilizar os valores titulados por aquelas facturas, por forma a diminuir as quantias que a sociedade Arguida teria de liquidar a título de IVA e de IRC, não obstante saber que os serviços ali mencionados nunca lhe haviam sido prestados e que os valores referentes ao pagamento das mesmas não tinham sido pela mesma suportados.
I- E que na execução do plano previamente delineado pelos Recorrentes estes lograram obter, de forma não concretamente apurada, várias facturas, emitidas em papel com timbre da sociedade ... e que titulavam alegadas vendas de bens ou cedência de trabalhadores para a área das telecomunicações, bem como as cobranças dos valores, titulados por essas facturas, e devidos por tais serviços.
J- E na sequência da conduta dos Recorrentes, foram indevidamente, nos anos de 2013 e 2014, deduzidos pela sociedade arguida, a titulo de IVA, os montantes globais de 178.684,33 (2013-54.101,15, 2014- 1T- 21.633,82, 2T – 35.106,51, 3º.T – 21223,73, 4T – 46.619,12), os quais, consequentemente, não foram entregues nos cofres do Estado.
L- E que, em sede de IRC, referente aos referidos anos de 2013/2014 e considerando os custos contabilizados e inerentes às facturas que lhe tinham sido emitidas, entre outras, pela sociedade ..., a Arguida declarou um lucro tributável de €190.989.94 (no ano de 2013- €68.650,25 e ao ano de 2014- €122.339,69).
M- Considerando tais valores de IVA e de IRC (€369.674, 27), (e não o referido no douto Acórdão condenatório, de que se recorre: 369.684,27), correspondentes à vantagem patrimonial que os Arguidos obtiveram indevidamente- em sede fiscal e ao prejuízo causado aos cofres do Estado.
N- E ainda que os Recorrentes sabiam que as facturas acima descritas, a que tiveram acesso, de forma não concretamente apurada, não tinham qualquer correspondência com a realidade, uma vez que as transacções económicas nelas mencionadas, não existiram.
O- Sabendo os Recorrentes que as facturas em causa, e que inseriram nos registos contabilísticos da Sociedade, são elementos fiscalmente relevantes, e que apesar de saber que as mesmas eram forjadas, utilizaram-nas e inseriram-nas nessa mesma contabilidade, com o objectivo de obter benefícios económicos indevidos em sede de IVA e IRC, à custa da defraudação do património do Estado, o que quiseram e conseguiram.
P- E que com tal actuação, os Recorrentes tiveram intenção de fazer crer, perante terceiros (nomeadamente a Administração Fiscal), que os elementos constantes das facturas em causa eram verdadeiros e que os serviços ali mencionados tinham efectivamente sido prestados, colocando em causa a credibilidade que tais documentos devem merecer, o que quiseram e conseguiram.
Q- Pretendendo os Recorrentes evitar que a sociedade arguida tivesse de proceder ao pagamento ao Estado das quantias monetárias devidas a título de IVA e IRC, nos valores atrás descritos, e dessa forma aumentar o seu acervo patrimonial, à custa do património fiscal daquele, o que sucedeu.
R- E que o Recorrente actuou sempre na qualidade de Gerente da Sociedade Arguida, de direito e de facto, desde a data da sua constituição – 2013-07-05 até 31-12-2014, em nome, em representação e no interesse da mesma, com o propósito de obter para aquela sociedade e, consequentemente, também para si, benefícios económicos à custa da defraudação do Estado, o que quis e conseguiu.
S- Actuaram os Recorrentes BB e AA”, de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo ser as suas condutas proibidas e punidas por lei.
T- Todos estes concretos pontos de facto, consideram os Recorrentes estarem incorrectamente julgados.
U- Perante as provas já mencionadas em A, B, C e D das presentes Conclusões, as quais se criticamente analisados à luz dos olhos de um bom pai de família, teriam imposto decisão diversa da recorrida.
V- O Tribunal a quo, violou o princípio in dúbio pro reo, visto que, do conjunto de todos os depoimentos produzidos, resulta, que não existe factualidade idónea, suficiente, segura e conclusiva para que o tribunal a quo pudesse formar convicção, indubitável e segura, para condenar o arguido e, se duvida restasse quanto a algum facto que pudesse apontar para fazendo parte da gerência de facto, então deveria o Tribunal a quo, confrontado com tal dúvida, em respeito ao princípio basilar do nosso direito penal – in dúbio pro reo – ter absolvido os arguidos, ora Recorrentes, ou quando muito não ter uma mão tão pesada.
X- Existindo vício de contradição insanável entre os factos dados como provados e a prova produzida em sede de Audiência de Julgamento, existindo erro grave e insanável na apreciação quer da prova factual quer documental para fazer justiça.
Y- Pese embora invocar as regras da experiência comum para apreciação dos factos, esquece que estas devem servir como limite negativo à livre apreciação da prova produzida, na medida em que impedem a decisão de julgar determinado facto como provado, apesar de todos os relevantes meios de prova indicarem nesse sentido, caso o mesmo seja contrário a tais regras, como às da lógica, impondo, portanto e nestes casos, que o facto seja dado como não provado.
Z- Ao decidir de modo diverso, o Acórdão impugnado, violou além do princípio in dúbio pro reo, o comando do artigo 127º do C.P.
AA- Os vícios indicados de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada reconduzem-se à configuração do fundamento de recurso previsto no artº 410º nº. 2 alínea a) do CPP, tal como interpretada pelos nossos Tribunais Superiores, os quais tendem a fazer corresponder ao vício de omissão de pronuncia, previsto no artigo 379º nº. 1 alínea c) do CPP, enquanto causa de nulidade da decisão, o fundamento de recurso que se encontra vertido no artigo 410º nº. 2, alínea a) do mesmo Código.
AB- Por sua vez, os vícios indicados sobre a contradição insanável entre a fundamentação e a decisão, além de poderem acarretar as consequências previstas no artigo 426º nº. 1) do CPP, redundam ainda na nulidade do Acórdão (sobretudo o vício de falta de fundamentação), à luz do disposto no artigo 379º nº. 1 al. a) do CPP.
AC- Deve o presente Recurso ser julgado procedente e em consequência revogar-se o Acórdão proferido, substituindo-se por outro que, em conformidade com o exposto no reconhecimento dos vícios invocados, declare a nulidade da decisão, ou, se assim se não entender, o que não se concede,
AD- Deve declarar-se a nulidade que inquina o Acórdão recorrido, ordenando-se o reenvio do processo para novo julgamento, ou, se assim se não entender, o que não se concede,
AE- Julgar procedente o Recurso e proceder à modificação da matéria de facto, por decorrência do supra alegado, e consequentemente absolver os Arguidos do ilícito, pelo qual foram condenados, com os legais efeitos.
AF- Caso não sejam julgados procedentes os pedidos supra referidos, sem prescindir do supra alegado e admitindo, por mera hipótese académica, como provados os factos em que assentou a sentença objecto de recurso.
AG- Se entenda que o Tribunal a quo não considerou correctamente as circunstâncias elencadas nos artigos 71º nº. 2 e 72º nº. 2 do Codigo Penal e desconsiderou que passaram já mais de 10 anos sobre a data dos factos que considerou indiciarem o crime pelo qual condenou os Recorrentes, o que prejudica as possibilidades de defesa dos Recorrentes, e o que, por si só, atenua a necessidade de punir.
AH- O que, face à manifesta diminuição das exigências de prevenção, quanto aos ora Recorrentes, imporia a atenuação especial da pena, consubstancia um poder-dever do Julgador, a que este se encontra vinculado na determinação das consequências jurídicas do crime.
AI- Qualquer interpretação do artigo 71º do C.P. no sentido de que, no âmbito da determinação da medida da pena, é admissível ao Tribunal valorar, contra o Arguido, o facto de este não ter claramente confessado os factos ou mostrado arrependimento, redunda em norma materialmente inconstitucional por violação direta das garantias de defesa consagradas no artigo 32º nº. 1 da Constituição e, bem assim, no artigo 32º nº. 1 da Constituição da Republica, e no artigo 6º parág. 1º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, o que desde já se invoca, com todas as consequências legais.
AJ- Devendo neste particular, caso não se decida pela absolvição dos Arguidos, do crime que os condenou, nos termos do disposto no artigo 104º nº.s 1 e 2 do RGIT, deverá a pena ser substituída por outra mais suave dentro da moldura penal do artº 103º nº. 1 do RGIT, mantendo-se a suspensão da mesma.
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O recurso foi admitido para este Tribunal da Relação de Lisboa, por despacho datado de 06.10.2023, com subida imediata, nos próprios autos e com efeito suspensivo.
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O Ministério Público apresentou resposta ao recurso, formulando as seguintes conclusões:
“1. Do douto acórdão recorrido consta a exposição dos motivos de facto que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal, em conformidade com o disposto no art.º 374.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, e evidenciando um raciocínio lógico que permite a completa restituição dos procedimentos que presidiram à solução encontrada e determinou que certos factos fossem dados como provados, tendo sido feita uma análise crítica dos depoimentos e dos outros meios de prova, de modo a formar a sua convicção, de resto formada com base na valoração lógica e racional da prova, segundo o bem senso e as regras normais da experiência comum, preenchendo a factualidade a solução de direito adoptada.
2. Pelo exposto não se verifica padecer o acórdão recorrido de qualquer vício ou irregularidade, nomeadamente as invocadas nulidades resultantes de omissão de pronúncia, previsto no art.º 379.º, n.º 1, alínea c), do Código de Processo Penal, vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, nos termos do art.º 410.º, n.º 2, alínea a), do Código de Processo Penal, vício da contradição insanável entre a fundamentação e a decisão, nos termos do art.º 410.º, n.º 2, alínea b), do Código de Processo Penal, vício de erro notório na apreciação da prova, nos termos do art.º 410.º, n.º 2, alínea c), do Código de Processo Penal.
3. O que os recorrentes realmente pretendem é pôr em crise a livre convicção do tribunal, que levou a que se tivesse convencido da credibilidade de determinados meios de prova, em especial o teor das declarações prestadas pelo arguido BB, olvidando os recorrentes o princípio da livre apreciação da prova, consagrado no art.º 127.º do Código de Processo Penal.
4. Quanto ao apontado erro de julgamento e impugnação da matéria de facto – art.ºs 410.º, n.º 3, e 412.º, n.º 3, alíneas a), b) e c), do Código de Processo Penal -, com impugnação dos factos que constam dos pontos 6 a 26 da matéria de facto tida por assente, conclui-se que os factos impugnados deverão ser mantidos nos exactos termos como foram julgados provados pelo tribunal a quo.
5. A convicção do julgador, no tribunal do julgamento, só poderá ser modificada se, depois de cabal e eficazmente cumprido o triplo ónus de impugnação previsto no citado art.º 412.º, n.ºs 3, 4 e 6 do Código de Processo Penal, se constatar que decisão da primeira instância sobre os precisos factos impugnados quando comparada com a prova efetivamente produzida no processo deveria necessariamente ter sido a oposta, seja porque aquela convicção se encontra alicerçada em provas ilegais ou proibidas, seja porque se mostram violadas as regras da experiência comum e da lógica, ou, ainda, porque foram ignorados os conhecimentos científicos, ou inobservadas as regras específicas e princípios vigentes em matéria probatória, designadamente, os princípios da livre apreciação da prova e in dúbio pro reo, assim como, as normas que regem sobre a validade da prova e sobre a eficácia probatória especial de certos meios de prova, como é o caso da confissão, da prova pericial ou da que emerge de certo tipo de documentos (autênticos e autenticados).
6. Assim, os recursos configuram-se no Código de Processo Penal como um remédio e não como um novo julgamento sobre o objecto do processo, o que vale plenamente para o recurso em matéria de facto nos termos do art.º 412.º, n.º 3, do Código de Processo Penal, que não visa a realização de novo julgamento do facto pelo tribunal de recurso, mas antes a reapreciação da prova indicada pelo recorrente – acrescida do que oficiosamente dever apreciar -, com vista a decidir se ao julgar provados ou não provados os factos igualmente especificados pelo recorrente, o tribunal de julgamento incorreu em erro de julgamento, nomeadamente por violação de normas e princípios legais de direito probatório, regras do conhecimento técnico ou científico ou regras de da experiência comum.
7. Analisada e avaliada em conjunto toda a prova produzida, na ponderação lógica e racional de todos os elementos probatórios, face às regras da experiência comum, não pode senão concluir-se que a argumentação e prova indicadas pelo recorrente não impõem decisão diversa, nos termos da al. b) do nº 3 do art.º 412º do Código de Processo Penal, sendo que as declarações das testemunhas indicadas ao invés confirmam a decisão ora recorrida, não havendo, pois, qualquer razão para alterar a matéria de facto provada descrita nos pontos 6 a 26 decidida pelo tribunal a quo.
8. Atento tudo o referenciado, o que respeita à verificação do elemento subjectivo do ilícito em causa, é manifesto que o ora recorrente agiu com intenção de se apropriar de montantes que não lhe pertenciam, em proveito próprio, mas também em nome e no interesse da sociedade arguida, tendo agido livre, voluntária e conscientemente e sabendo que da punibilidade e censurabilidade da sua actuação, até considerando as anteriores condenações constantes do registo criminal por crime de idêntica natureza.
9. Quanto à violação do princípio in dubio pro reo ainda alegada pelos recorrentes, exige-se na aplicação deste princípio que no espírito do julgador subsistisse uma dúvida positiva e invencível, efectivamente impeditiva da convicção do tribunal, depois de esgotado todo o iter probatório e feito o exame crítico de todas as provas, sobre a verificação, ou não, dos factos integradores de um crime ou relevantes para a pena.
10. Ora, no caso concreto, não é invocável o princípio in dubio pro reo, atenta toda a determinante prova produzida e que fundamentou a decisão da matéria de facto provada, sendo que o tribunal a quo não teve, nem tinha, correctamente, de ter, qualquer dúvida quanto à veracidade dos factos dos factos dados como provados.
11. No que concerne à medida das penas de prisão aplicadas, cumpre salientar que a decisão recorrida não enferma de qualquer violação aos art.ºs 40.º, 70.º e 71.º, todos do Código Penal, revelando-se, antes, decisão justa, adequada às necessidades de prevenção em causa, suficiente às finalidades da punição e às finalidades de reinserção social dos arguidos.
12. Encontra-se bem aplicada a condição fixada para a suspensão da execução da pena de prisão, tendo em conta as disposições legais aplicáveis e que impõem o pagamento da vantagem patrimonial devida, bem como as finalidades das penas e as exigências de prevenção que se verificam no caso concreto, aliadas às concretas condições pessoais e económicas do arguido pessoa singular.
13. Face a todo o exposto a douta sentença recorrida mostra-se irrepreensível, fundamentada com base em critérios objectivos e legalmente decorrentes do próprio art.º 127.º do Código de Processo Penal, que assim se deverá manter na sua plenitude mantendo-se as condenações nesses termos efectuadas pelo tribunal a quo”.
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Nesta Relação, o Exmo Senhor Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido de o recurso dever ser “julgado improcedente, mantendo-se na íntegra o Acórdão recorrido”.
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Foi cumprido o estabelecido no artigo 417º, n.º 2 do C.P.Penal.
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Proferido despacho liminar e colhidos os “vistos”, teve lugar a conferência.
Cumpre apreciar e decidir.
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II. OBJETO DO RECURSO
Conforme é jurisprudência assente (cfr. Acórdão do STJ, de 15/04/2010, acessível em www.dgsi.pt: “é pelas conclusões extraídas pelo recorrente na motivação apresentada, em que resume as razões do pedido que se define o âmbito do recurso. É à luz das conclusões da motivação do recurso que este terá de apreciar-se, donde resulta que o essencial e o limite de todas as questões a apreciar e a decidir no recurso, estão contidos nas conclusões (…)”, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso a que alude o artigo 410º do Código de Processo Penal (conhecimento oficioso que resulta da jurisprudência fixada no Acórdão nº 7/95, do STJ, in DR, I Série-A, de 28/12/95), o âmbito do recurso delimita-se pelas conclusões extraídas pelo recorrente (das quais devem constar de forma sintética os argumentos relevantes em sede de recurso) a partir da respetiva motivação.
Pelo que “[a]s conclusões, como súmula da fundamentação, encerram, por assim dizer, a delimitação do objeto do recurso. Daí a sua importância. Não se estranha, pois, que se exija que devam ser pertinentes, reportadas e assentes na fundamentação antecedente, concisas, precisas e claras” (Pereira Madeira, Art. 412.º/ nota 3, Código de Processo Penal Comentado, Coimbra: Almedina, 2021, 3.ª ed., p. 1360 – mencionado no Acórdão do STJ, de 06.06.2023, acessível em www.dgsi.pt).
Isto, sem prejuízo da tomada de posição sobre todas e quaisquer questões que sejam de conhecimento oficioso e de que ainda seja possível conhecer (artigo 412º, nº 1 do C.P.Penal).
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Face às conclusões extraídas pelo recorrente da motivação apresentada, cumpre apreciar:
1. Falta de fundamentação da matéria de facto nos termos dos arts. 379º, nº 1, al. a) e 374º, nº 2 do C.P.Penal ;
2. Vícios da decisão quanto à matéria de facto;
3. Erro de julgamento de facto quanto aos pontos 6 a 29 dos factos provados;
4. Qualificação jurídica da conduta dos recorrentes;
5. A não aplicação da atenuação especial da pena na determinação da moldura penal da pena abstrata do crime;
6. Medida concreta das penas aplicadas aos recorrentes.
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III. FUNDAMENTAÇÃO
O Acórdão recorrido considerou provados e não provados os seguintes factos e com a seguinte motivação:
“1. Factos provados:
Com relevância para a responsabilidade criminal dos arguidos, provaram-se os seguintes factos:
1. A sociedade arguida AA é uma sociedade comercial por quotas, titular do NIPC ..., com sede na ....
2. A referida sociedade foi constituída em … de … de 2013 e tem por objeto social a angariação de clientes na área das …, a que corresponde o CAE ….
3. O arguido BB, doravante BB, é único sócio da sociedade AA e exerce as funções de gerente desde a data da sua constituição e até à presente data.
4. Na qualidade de gerente da sociedade arguida AA, competiu ao arguido BB o poder de decisão, quer no domínio da gestão comercial, quer financeira da respetiva sociedade, estando de si dependentes o cumprimento das obrigações fiscais que aquelas constituíram.
5. No período compreendido entre 2013 e 2015 a sociedade AA estava enquadrada em sede de IRC (Imposto sobre o rendimento das pessoas coletivas) no regime geral, sendo o período de tributação coincidente com o ano civil em sede de IVA (Imposto Sobre o Valor Acrescentado) no regime normal de periodicidade trimestral.
6. Sucede que, em data não concretamente apurada de 2013, mas pelo menos desde o mês de julho, o arguido BB, na qualidade de gerente de facto e de direito da sociedade arguida, delineou um esquema para obter vantagens patrimoniais indevidas à custa do Estado e de o prejudicar diminuindo as receitas tributárias.
7. Esquema esse que se consubstanciava na criação de um circuito documental de faturas, que serviu de base a transações inexistentes, em sacrifício do Imposto Sobre o Valor Acrescentado (IVA) e do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas (IRC) que deixou de ser entregue nos cofres do Estado, criando artificialmente valores a deduzir a título de IVA e IRC.
8. Dessa forma, a sociedade arguida contabilizou custos que lhe permitiram diminuir o valor do IRC e do IVA a liquidar junto da Fazenda Nacional, o que quis e conseguiu.
9. Assim, em execução do plano previamente gizado, durante o ano de 2013, o arguido BB, na qualidade de gerente de facto e de direito da sociedade arguida, de forma não concretamente apurada, logrou obter faturas emitidas pela sociedade …. à sociedade arguida AA, num valor global de 289.326,75€ (duzentos e oitenta e nove mil trezentos e vinte e seis euros e setenta e cinco cêntimos), assim discriminadas:
10. Todavia, tais serviços não foram prestados nem os bens ali indicados fornecidospela …à sociedade arguida.
11. Do mesmo modo, durante o ano de 2014, o arguido BB, na qualidade de gerente de facto e de direito da sociedade arguida, em circunstâncias não concretamente apuradas, logrou obter faturas emitidas pela sociedade …. à sociedade arguida, num valor global de 327.828,21€ (trezentos e vinte e sete mil oitocentos e vinte e oito euros e vinte e um cêntimos) assim discriminadas contabilisticamente na conta respeitante a subcontratos com IVA dedutível:
12. Todavia, tais serviços não foram prestados nem os bens ali indicados fornecidos pela …. à sociedade arguida.
13. Na concretização do referido plano previamente delineado, durante o ano de 2014, o arguido BB, na qualidade de gerente de facto e de direito da sociedade arguida, em circunstâncias não concretamente apuradas, logrou obter faturas emitidas pela sociedade ... à sociedade arguida, num valor global de 266.935,36€ (duzentos e sessenta e seis mil novecentos e trinta e cinco euros e trinta e seis cêntimos) assim discriminadas contabilisticamente na conta respeitante a subcontratos com IVA dedutível:
14. Todavia, tais serviços não foram prestados nem os bens ali indicados fornecidos pela … à sociedade arguida.
15. Na concretização do plano previamente delineado, o arguido em circunstâncias não concretamente apuradas, logrou obter faturas emitidas pela sociedade … À sociedade arguida, num valor global de 71.485,63€ (setenta e um mil quatrocentos e oitenta e cinco euros e sessenta e três cêntimos) assim discriminadas contabilisticamente na conta respeitante a subcontratos com IVA dedutível:
16. Todavia, tais serviços não foram prestados nem os bens ali indicados fornecidos pela sociedade … à sociedade arguida.
17. Apesar de ter conhecimento desse facto, a sociedade AA, através do seu gerente, o arguido BB, refletiu tais faturas na sua contabilidade e respetivos custos, o que lhe permitiu reduzir os montantes de IVA a entregar nos cofres do Estado (através da dedução do valor daquele imposto) constantes das faturas e dos valores de IRC a pagar (através da redução do respetivo lucro tributável) por dedução dos custos decorrentes daquelas prestações de serviços.
18. A sociedade arguida AA e o arguido BB bem sabiam que tais faturas não correspondiam a qualquer negócio real entre as referidas sociedades, mas, ainda assim, quiseram e conseguiram utilizar as referidas faturas, integrando-as na sua contabilidade como se traduzissem verdadeiras operações comerciais.
19. Ao atuar da forma descrita, utilizando as mencionadas faturas, a arguida AA e o arguido BB, deduziram indevidamente, no exercício de 2013 e de 2014, em sede de IVA, os seguintes valores, obtidos após correções:
- 4.º trimestre de 2013 (AA a AA): 54.101,15 € (cinquenta e quatro mil cento e um euros e quinze cêntimos);
- 1.º trimestre de 2014 (AA a AA): 21.633,82€ (vinte e um mil seiscentos e trinta e três euros e quinze cêntimos);
- 2.º trimestre de 2014 (AA a AA): 35.106,51€ (trinta e cinco mil cento e seis euros e cinquenta e um cêntimos);
- 3.º trimestre de 2014 (julho a AA): 21.223,73€ (vinte e um mil duzentos e vinte e três euros e setenta e três cêntimos);
- 4.º trimestre de 2014 (AA a AA): 46.619,12€ (quarenta e seis mil seiscentos e dezanove euros e doze cêntimos.
20. Quanto ao IRC, no exercício de 2013 e no exercício de 2014, a sociedade arguida contabilizou custos inerentes às faturas que lhe tinham sido emitidas pelas sociedades …, …, … e ….
21. Em função da dedução indevida de tais custos, quis e conseguiu a sociedade arguida e o arguido BB obter uma vantagem patrimonial em sede de IRC no ano de 2013 no valor de 68.650,25€ (sessenta e oito mil seiscentos e cinquenta euros e vinte e cinco cêntimos) e no ano de 2014 no valor de 122.339,69€ (cento e vinte e dois mil trezentos e trinta e nove euros e sessenta e nove cêntimos) e a diminuição das receitas tributárias, em sede de tal imposto, de igual montante.
22. Sendo tais valores de IVA e de IRC correspondentes à vantagem patrimonial que os arguidos obtiveram indevidamente em sede fiscal e ao prejuízo causado aos cofres do Estado.
23. A sociedade AA e o arguido BB, agiram com o propósito de obter as referidas vantagens patrimoniais, bem sabendo e querendo causar o correlativo prejuízo ao AA, como de facto causaram, pois não entregaram à Administração Fiscal os mencionados valores a título de IVA provocando a diminuição das receitas do Estado.
24. A sociedade AA e o arguido BB quiseram e conseguiram, com a contabilização das faturas que, por si ou por interposta pessoa a seu pedido, fabricaram, ficcionar custos que não correspondiam a serviços prestados ou a bens fornecidos, dessa forma conseguindo que a sociedade arguida obtivesse uma vantagem que não lhe era devida, nos exercícios de 2013 e 2014, em sede de IRC, assim diminuindo as receitas tributárias também quanto a este imposto, prejudicando a Fazenda Nacional nos valores supra mencionados.
25. O arguido BB agiu sempre em nome e no interesse da sociedade arguida AA bem como no seu próprio interesse.
26. A sociedade AA e o arguido BB atuaram de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.
Situação pessoal:
27. BB é o único filho de um casal de média condição social, o pai … e a mãe …, tendo sido criado num ambiente protetor e de desafogo económico.
28. Autonomizou-se familiarmente aos vinte e sete anos de idade, na sequência de casamento.
29. Com o terceiro ciclo do ensino básico, BB começou a trabalhar aos dezasseis anos após abandono escolar, tendo exercido atividade assalariada como empregado de armazém numa empresa do pai e como técnico de vendas numa fase inicial do seu percurso laboral.
30. Em AA, o arguido constituiu a empresa AA, cuja gerência assegurou desde então e no período temporal dos factos pelos quais está acusado.
31. Esta atividade empresarial cessou no ano de AA.
32. Desde então o arguido tem prestado serviços de natureza operária na área da ….
33. A situação económica do arguido degradou-se desde o período dos factos pelos quais está acusado, presentemente aufere remunerações variáveis decorrentes da sua atividade profissional, entre €600 a €800 mensais, circunscrevendo as despesas mensais a transportes e manutenção pessoal.
34. Conta com o apoio de familiares ao nível do alojamento, residindo numa moradia propriedade da família com boas condições de habitabilidade e conforto, e também para pagamento de encargos com a amortização de crédito para habitação; tem dividas fiscais por regularizar.
35. No meio sócio residencial, uma localidade com procura turística do concelho de ..., o arguido tem cultivado uma presença discreta; circunscreve os seus relacionamentos aos familiares próximos e frequenta ocasionalmente a zona balnear da área de residência.
36. Manifesta intranquilidade com a presente situação jurídico-processual, aguardando com expectativa as consequências penais que dela venham a decorrer.
37. O arguido BB já foi julgado e condenado:
37.1 no processo n.º AA, do 2.º Juízo do Tribunal de Pequena Instância Criminal de Lisboa, foi condenado por sentença proferida em AA, transitada em julgado a AA, pela prática em AA, de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, previsto e punido pelo artigo 292.º, n.º 1 e 69.º, n.º 1, al. a), ambos do Código Penal, numa pena de 50 (cinquenta) dias de multa e 3 (três) meses de inibição de conduzir, penas já declaradas extintas;
37.2 no proc. n.º AA do 2.º Juízo Criminal do Tribunal do Barreiro, por sentença proferida em AA, transitada em julgado em AA, pela prática, em AA, de um crime de abuso de confiança fiscal, previsto e punido pelos artigos 7.º e 8.º, n.º 1 e 2, 105.º, n.º 1, 4 e 7 do RGIT, na redação que lhe foi dada pela Lei n.º 15/2001, de 05 de Junho, na pena de 150 (cento e cinquenta) dias de multa; pena declarada extinta pelo cumprimento em AA;
37.3 no proc. n.º AA do AA (juiz 11), por sentença proferida em AA, transitada em julgado em AA, pela prática, em AA, de um crime de abuso de confiança fiscal, previsto e punido pelo artigo 105.º, n.º 1, 2 e 4 do RGIT, na redação que lhe foi dada pela Lei n.º 15/2001, de 05 de Junho, na pena de 200 (duzentos) dias de multa; pena declarada extinta pelo cumprimento em AA;
38. A sociedade arguida AA foi condenada no proc. n.º AA do AA (juiz 11), por sentença proferida em AA, transitada em julgado em AA, pela prática, em AA, de um crime de abuso de confiança fiscal, previsto e punido pelo artigo 105.º, n.º 1, 2 e 4 do RGIT, na redação que lhe foi dada pela Lei n.º 15/2001, de 05 de Junho, na pena de 200 (duzentos) dias de multa; pena declarada extinta pelo cumprimento em AA.
2. Factos não provados
Não existem.
3. Motivação da matéria de facto
A convicção do Tribunal quanto à factualidade provada resultou da análise crítica e ponderada da prova produzida em julgamento, apreciada segundo as regras da experiência comum e o princípio da livre convicção do julgador.
No que tange aos factos dados como provados de 1. a 3., apuraram-se com base na certidão do registo comercial da sociedade AA (doravante, AA), a fls. 1489 a 1492, e do Registo Integrado de Contribuintes da Autoridade Tributária, a fls. 99 e 103, confirmados pelo próprio arguido nas declarações que prestou em audiência de julgamento e pela contabilista certificada da sociedade, CC.
Para prova dos factos relativos ao exercício das funções de gerência (de facto) pelo arguido, o tribunal atendeu à prova documental junta aos autos, designadamente aos documentos constantes do Anexo I, entre outros, documentos bancários que demonstram que o arguido era a única pessoa autorizada a movimentar a conta bancária da sociedade, escritura constituição da sociedade, contratos com a sociedade ..., todos assinados pelo arguido enquanto gerente da sociedade AA Esta prova foi conjugada com o depoimento da testemunha CC, contabilista certificada da sociedade arguida desde 2013, que confirmou que o arguido foi sempre o seu interlocutor para todos os assuntos relativos à AA, desde logo, foi quem se dirigiu ao escritório para contratar os serviços de contabilidade e era quem lhe entregava os documentos de suporte para a contabilidade da AA
Teve-se ainda em conta os extratos da declaração de remunerações da sociedade AA em 2013, a fls. 295 a 301, que evidenciam períodos em que o arguido foi o único trabalhador, sendo notório que era quem auferia rendimentos mais elevados.
Face ao que antecede, nenhumas dúvidas subsistiram para o tribunal, quanto ao facto de ser o arguido BB quem geria, efetivamente, a sociedade AA, determinando em exclusivo todos os aspetos do funcionamento da mesma.
Tal facto, foi, de resto, assumido pelo arguido nas declarações que prestou em audiência de julgamento.
Relativamente à factualidade de pontos 6. a 26., o Tribunal baseou-se nas declarações das testemunhas DD e EE, inspetoras da Administração Tributária, que participaram na investigação dos crimes tributários em análise nos autos, e levaram a cabo a análise cruzada dos dados da sociedade AA e das sociedades que alegadamente lhe tinham fornecido bens ou serviços, ... e T___, Lda, resultando claro da conjugação dos mesmos que estas sociedades não tinham estrutura que permitisse as vendas de bens ou serviços que sustentaram as aquisições declaradas nos Anexos P das declarações fiscais de 2013 e 2014 da AA
Estes depoimentos foram conjugados com a seguinte prova documental:
- Informação preliminar da AT fls. 15 a 19;
- Informação das bases de dados da Autoridade Tributária de fls. 94 a 105
- Certidão permanente da sociedade …., de fls. 81 a 90 e documento de fls. 415 a 429;
- faturas emitidas pela ..., em particular, fls. 32 a 37v (fatura 171/2013), fls. 31 a 48v (fatura 184/2013 ); fls. 49 a 58v (fatura 226/2013), fls. 59 a 68v (fatura 229/2013) e fls.69 a 78v (fatura 255/2013), documentos de saídas de caixa e declarações de recebimento de valores de fls. 21 a 78; reproduzidas no Anexo III do Relatório de inspeção, que contem o registo contabilístico das faturas emitidas em nome da … destinadas à AA;
- os documentos do Anexo II: extratos de movimentos bancários e comprovativos de levantamentos em numerário da conta bancaria da sociedade arguida e documentos que atestam os pagamentos em numerário à sociedade ..., sendo que o próprio arguido confirmou os pagamentos em numerário;
- Balancete analítico da sociedade AA de fls. 153 a 156;
- Extrato de conta da sociedade AA, de fls. 157 a 213
- Extrato de remunerações da sociedade ..., de fls. 279 a 291;
- Informação da base de dados de fls. 503 a 510;
- Auto de diligência externa de fls. 513 e 514, confirmado pela testemunha DD em audiência;
- Informação bancária de fls. 520 a 633, respeitante à conta bancária da sociedade AA;
- Informação constante do Sistema de Gestão e Registo de Contribuintes da Autoridade Tributária relativo à sociedade … (fls. 664 a 667),
- Informação das bases de dados de fls. 816 e 817;
- Documentos de fls. 827 a 840;
- Informação de fls. 1043 a 1053;
- Certidão permanente da sociedade … fls. 1056 a 1058, 1156 a 1161;
- Certidão permanente da sociedade ... fls. 1065 a 1070, 1137 a 1147;
- Certidão permanente da sociedade …. fls. 1071 a 1073, 1169 a 1174;
- Informação da segurança social de fls. 1085;
- Informação de fls. 1100 e 1103 e Informação do SEF fls. 1104 a 1107;
- Informações de fls. 1120 a 1137;
- Informações de fls. 1149 a 1155, fls. 1162 a 1168, fls. 1175 a 1177 e fls. 1188
- Informações de fls. 1192 a 1199 e 1202 a 1212;
- Informações das bases de dados de fls. 1225 a 1234;
- Relatório da AT de fls. 1245 a 1291.
No que respeita aos factos relativos à sociedade …, a testemunha FF, que foi sócio-gerente desta sociedade de 2009 até 2012, quando cessou funções por renuncia, prestou depoimento de forma isenta embora já não tivesse memória segura de alguns acontecimentos. Afirmou que durante a sua gerência nunca ouviu falar da AA, nem teve trabalhadores a angariar contratos para operadoras de telemóvel. Relativamente à sociedade ... cedeu a quota a custo zero, e acabou por reconhecer o fotograma de GG, de fls. 83, que consta como adquirente de uma quota da ..., em abril de 2012.
As testemunhas HH, II e JJ prestaram um depoimento credível e isento, prestaram serviços para a sociedade ... na área da …, mas revelaram pouco ou nenhum conhecimento da ..., que tinham como empresa de trabalho temporário.
KK prestou um depoimento credível e seguro, reconheceu GG no fotograma de fls. 83, é seu cunhado, a ... não lhe diz nada; em 2013 o cunhado estaria no .... Explicou de forma convincente porque razão o cunhado nunca poderia ter sido gerente daquela ou de outra empresa, depoimento que se mostrou isento e sincero.
Que os valores das faturas emitidas pela ... não tinham correspondência com a realidade, apurou-se da conjugação destes depoimentos com o depoimento da testemunha EE, Inspetora Tributária, que de forma clara e concisa, relatou ao tribunal, por referência ao Relatório de inspeção constante de fls. 853 a 860 dos autos, as diligências efetuadas no âmbito da inspeção, esclarecendo como chegou às conclusões do relatório relativamente à sociedade ..., designadamente como foram efetuadas as correções aos valores que constavam nas faturas, sublinhando que não houve recurso a métodos indiretos.
Explicou e concretizou, relativamente às faturas em causa nos autos, que não estavam suficientemente detalhadas a nível contabilístico - ou seja, não descreviam de forma suficiente o serviço prestado, já que a designação que delas constava era angariação clientes para telecomunicações, descritivo que não exprime a natureza concreta do trabalho executado - e não tinham sido emitidas por programa certificado pela AT, o que levantou desde logo suspeitas de que as faturas apresentadas pela AA não corresponderiam a operações reais. Por seu turno, a análise aos extratos da conta bancária da sociedade AA, movimentada pelo arguido, mostraram que, em regra, as saídas da conta daquele período correspondem a levantamentos em numerário ao balcão, assim se perdendo o rasto ao dinheiro, quando é do conhecimento comum que, para efeitos fiscais, o pagamento de faturas aos fornecedores tem que ser efetuado por um meio que permita comprovar o pagamento (como cheque ou transferência bancária). Por seu turno, da análise à contabilidade da sociedade e à informação constante das aplicações informáticas da AT, inexistiam elementos de outros fornecedores da ..., sendo que esta sociedade, pelas diligências que fizeram ao longo da inspeção, não tinha estrutura operacional que suportasse serviços prestados na ordem dos €200.000,00.
Este depoimento foi conjugado com o depoimento de DD, Inspetora Tributária, que confirmou, de forma isenta e credível, os autos de diligência externa de fls. 435, 471, 513 e 514, dos quais resulta que na sede da ..., localizada num edifício de habitação, não foi encontrada qualquer pessoa, não há registos de consumos (água), nem tão pouco estrutura operacional. Além das diligências relativamente ao exercício de 2013, relativas à ..., também pediu e analisou elementos contabilísticos da sociedade ... relativamente a 2014 e fez deslocações à alegada sede. Concretizou ainda que, apesar das diligências empreendidas, não foi possível localizar ou inquirir os gerentes das sociedades ...., ... e sociedade ..., o que, em face da constatada ausência de existência ... destas sociedades e da inexistência ou praticamente inexistência de trabalhadores, relativamente a 2014, verificada nos elementos fornecidos pela segurança social, levou à conclusão inevitável de que as faturas que estas sociedades emitiram não representam efetivas prestações de serviços.
O depoimento destas testemunhas, porque isento, distanciado e sempre sustentado em elementos probatórios independentes e objetivos, acolheu-se em detrimento das declarações do arguido, que negou, em suma e no essencial, os factos de que vinha acusado, designadamente, negou ter beneficiado de montantes relativos ao IVA e IRC, que deveriam ter sido entregues à Autoridade Tributária.
O Tribunal não atendeu à versão apresentada pelo arguido por clamorosamente contrária a toda a prova produzida (testemunhal e documental) e às regras da experiência comum, em particular no que respeita aos contornos da atividade da AA e à explicação do modelo de negócio da AA, a qual, pelas incongruências patenteadas se afigurou sem amparo nas regras da normalidade e experiência comum e, por conseguinte, com nenhuma credibilidade.
Face ao que antecede, nenhuma dúvida restou ao tribunal quanto ao modus operandi do arguido BB, que, em nome e representação da sociedade arguida, contabilizou faturas emitidas pelas sociedades ... e ... que não correspondiam a qualquer prestação de serviço efetivamente realizada, tendo aquelas sido entregues e posteriormente integradas na contabilidade da sociedade AA com a única intenção de obtenção de benefícios fiscais que o arguido sabia serem indevidos.
No que se refere aos elementos psicológicos e volitivos imputados ao arguido, considerou-se que decorrem de forma segura, por inferência e com apoio em regras de normalidade, das suas descritas condutas.
E dúvidas não restam de que arguido atuou no seu interesse, na medida em que se apropriou de montantes que não lhe pertenciam e os utilizou para proveito próprio, mas também que o fez em nome e no interesse da sociedade em nome da qual agiu.
A situação da sociedade arguida apurou-se com base na informação constante da certidão permanente, que evidencia a penhora das quotas pelo ..., e nas declarações do arguido.
A situação pessoal do arguido BB apurou-se com base no relatório social constante dos autos, cujo teor o arguido confirmou e em que se confiou, pelas fontes consultadas e metodologia evidenciada.
Os antecedentes criminais dos arguidos apuraram-se com base nos respetivos certificados de registo criminal”.
*
Apreciação do Recurso
1 – Falta de fundamentação da matéria de facto, nos termos dos arts. 379º, nº 1, al. a) e 374º, nº 2 do C.P.Penal
Os recorrentes alegam que o Acórdão recorrido enferma de nulidade por falta de fundamentação da matéria de facto (conclusão AB).
Dispõe o artº 374º, nº 2 do C.P.Penal que é requisito da sentença “a fundamentação, que consta da enumeração dos factos provados e não provados, bem como de uma exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal”.
Por conseguinte, a fundamentação de facto e de direito não tem de ser exaustiva nem mencionar, de forma particularizada, todos factos e a sua interligação com as provas produzidas, pois a exigência de fundamentação satisfaz-se com uma exposição concisa, ainda que tanto quanto possível completa, que deve conter a indicação e o exame crítico das provas que sustentaram a convicção do Tribunal.
E só na falta destas referências se pode concluir pela nulidade da decisão, nos termos do nº 1, alínea a), do art.º 379º do C.P.Penal, o que também se verifica quando o tribunal deixe de se pronunciar sobre questões que devesse apreciar (cfr. alínea c) deste preceito legal).
“A necessidade de fundamentar de facto e de direito, com indicação e exame crítico das provas, não pretende vincular processualmente o juiz a efectuar uma enumeração mecânica de todos os meios de prova, mas apenas a seleccionar e a examinar criticamente os que serviram para fundamentar a sua convicção positiva ou negativa (explicitando porque deu mais relevo a uns em detrimento de outros), ou seja, aqueles que serviram de base à selecção da matéria de facto provada e não provada. Tal matéria é a que constitui objecto de prova e é juridicamente relevante para a existência ou inexistência do crime, a punibilidade ou não punibilidade do arguido e a determinação da medida da pena aplicável (cfr., neste sentido, o Ac. do STJ de 30.6.1999, BMJ nº 488, p. 272 e o Ac. da Relação de Évora de 16.3.2004 proferido no âmbito do Proc. nº 1160/03.1). O que é necessário é explicitar porque é que o Tribunal deu determinados factos como provados ou não provados, ou seja, dar a conhecer os motivos que determinaram a convicção do julgador – neste sentido o Ac. do STJ de 30.01.2002, no Proc. nº 3063/01, refere que “o exame crítico consiste na enunciação das razões de ciência reveladas ou extraídas das provas administradas, a razão de determinada opção relevante por um ou outro dos meios de prova, os motivos da credibilidade dos depoimentos, o valor de documentos e exames, que o tribunal privilegiou na formação da convicção, em ordem a que os destinatários (e um homem médio suposto pela ordem jurídica, exterior ao processo, com a experiência razoável da vida e das coisas) fiquem cientes da lógica do raciocínio seguido pelo tribunal e das razões da sua convicção” – Acórdão deste TRL de 13.07.2023, Proc. nº 1074/21.6JAPDL.L1-5.Também neste sentido, o Acórdão do TRP de 14.06.2023, Proc. nº 246/21.8GBAMT.P1 refere que “a indicação e exame crítico das provas decorre da necessidade de potenciar a adesão dos destinatários e comunidade em geral ao teor da decisão criminal e de garantir a observância e respeito pelos princípios da legalidade, imparcialidade e independência, postergando a mera arbitrariedade em benefício do legítimo e fundado exercício da livre convicção, servindo de garante a um processo equitativo. O exame crítico da prova reveste especial relevo já que é aí que o tribunal explica a convicção adquirida e qual o caminho percorrido para a atingir. Com efeito, a citada previsão legal impõe ao dominus do processo que individualize as razões objectivas e a base racional que levou à convicção exprimida na factualidade provada e/ou não provada e bem assim os motivos que subjazem à valoração e credibilidade atribuída aos meios de prova disponíveis. E, como é bom de ver, o exame crítico só será suficiente quando exteriorize cabalmente o percurso lógico-dedutivo que presidiu à convicção firmada, não se confundindo com a simples enumeração dos meios probatórios ou sequer com a descrição – mais ou menos alargada - do seu conteúdo. Mas, para tanto, o julgador não necessita de realizar exposições doutrinárias, citações jurisprudenciais ou sequer descrever (por súmula ou desenvolvidamente) o teor de cada uma das provas produzidas. Basta que exprima com clareza e rigor as circunstâncias que determinaram a opção efectuada, tornando perceptível aos intervenientes processuais e aos cidadãos em geral as razões da sua íntima convicção e as provas que a sustentam, seja por si só ou em conjugação com as regras de experiência e normalidade de acontecer, devendo neste caso explicitar-se o respectivo âmbito de actuação. Todavia, como bem se compreende, essa tarefa comporta diferentes graus de complexidade, conforme as circunstâncias do caso, a amplitude e a unanimidade ou divergência da prova produzida. Deste modo, haverá nulidade quando perante as circunstâncias do caso, a fundamentação da convicção do tribunal for insuficiente para efectuar uma reconstituição do iter que conduziu a considerar cada facto provado ou não provado, ou seja para se perceber as razões que sustentam tal decisão”.
Percorrendo a motivação da matéria de facto exarada no Acórdão recorrido constatamos que o Tribunal a quo menciona as provas valoradas relativamente à factualidade provada, nomeadamente os documentos juntos aos autos, as declarações do arguido e os depoimentos das testemunhas, conjugados com a prova documental que enumera.
No que respeita às declarações do arguido, consta do acórdão recorrido que “nenhumas dúvidas subsistiram para o tribunal, quanto ao facto de ser o arguido BB que geria, efetivamente, a sociedade AA, determinando em exclusivo todos os aspetos do funcionamento da mesma. Tal facto, foi, de resto, assumido pelo arguido nas declarações que prestou em audiência de julgamento”.
No entanto, o Tribunal a quo não as considerou credíveis pois “não atendeu à versão apresentada pelo arguido por clamorosamente contrária a toda a prova produzida (testemunhal e documental) e às regras da experiência comum, em particular no que respeita aos contornos da atividade da AA e à explicação do modelo de negócio da AA, a qual, pelas incongruências patenteadas se afigurou sem amparo nas regras da normalidade e experiência comum e, por conseguinte, com nenhuma credibilidade”.
Já, quanto aos mencionados depoimentos testemunhais, reportados aos factos provados que constam dos pontos 6. a 26., o Tribunal a quo afirmou que “baseou-se nas declarações das testemunhas DD e EE, inspetoras da Administração Tributária, que participaram na investigação dos crimes tributários em análise nos autos, e levaram a cabo a análise cruzada dos dados da sociedade AA e das sociedades que alegadamente lhe tinham fornecido bens ou serviços, ... e T___, Lda, resultando claro da conjugação dos mesmos que estas sociedades não tinham estrutura que permitisse as vendas de bens ou serviços que sustentaram as aquisições declaradas nos Anexos P das declarações fiscais de 2013 e 2014 da AA”.
Mais afirmou que ”o depoimento destas testemunhas, porque isento, distanciado e sempre sustentado em elementos probatórios independentes e objetivos, acolheu-se em detrimento das declarações do arguido, que negou, em suma e no essencial, os factos de que vinha acusado, designadamente, negou ter beneficiado de montantes relativos ao IVA e IRC, que deveriam ter sido entregues à Autoridade Tributária” e concluiu que não teve qualquer dúvida “quanto ao modus operandi do arguido BB, que, em nome e representação da sociedade arguida, contabilizou faturas emitidas pelas sociedades ... e ... que não correspondiam a qualquer prestação de serviço efetivamente realizada, tendo aquelas sido entregues e posteriormente integradas na contabilidade da sociedade AA com a única intenção de obtenção de benefícios fiscais que o arguido sabia serem indevidos.
No que se refere aos elementos psicológicos e volitivos imputados ao arguido, considerou-se que decorrem de forma segura, por inferência e com apoio em regras de normalidade, das suas descritas condutas.
E dúvidas não restam de que arguido atuou no seu interesse, na medida em que se apropriou de montantes que não lhe pertenciam e os utilizou para proveito próprio, mas também que o fez em nome e no interesse da sociedade em nome da qual agiu”.
Assim sendo, mostram-se explicitadas as razões de ciência que conduziram à credibilização de tais depoimentos testemunhais, à concatenação entre tais depoimentos e os depoimentos das testemunhas FF (sócio-gerente da …de 2009 a 2012), HH, II e JJ (prestaram serviços para a sociedade … na área da …) e KK (cunhada de GG) bem como as declarações do arguido, tudo em articulação com a prova documental, e o raciocínio que subjaz à solução encontrada.
Mostra-se, pois, correta e adequadamente fundamentada a matéria de facto provada.
Coisa diversa será saber se essas razões da convicção e o percurso lógico seguido pelo Tribunal a quo merecem aceitação e se a decisão não incorre em qualquer dos vícios previsto no nº 2 do art. 410º do C.P.Penal, o que oportunamente se apreciará.
Assim sendo, improcede, nesta parte, o recurso em análise.
*
2. Vícios da decisão quanto à matéria de facto
Os recorrentes invocam no seu requerimento de recurso os seguintes vícios decisórios:
a) A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada;
b) Contradição insanável entre os factos dados como provados e a prova produzida e entre a fundamentação e a decisão;
c) O erro notório na apreciação da prova.
E, apelam simultaneamente ao erro de julgamento a que alude o art. 412º, nº 3, 4 e 6 do C.P.Penal.
Face à confusão em que os recorrentes laboram, importa relembrar os pressupostos da impugnação da matéria de facto em sede de recurso.
Os poderes de cognição dos tribunais da relação abrangem a matéria de facto e a matéria de direito (art. 428º do C.P.Penal), podendo o recurso, sempre que a lei não restrinja a cognição do tribunal ou os respetivos poderes, ter como fundamento quaisquer questões de que pudesse conhecer a decisão recorrida (art. 410º, nº 1 do C.P.Penal).
Como é sobejamente sabido, a matéria de facto pode ser sindicada por duas vias:
a) no âmbito, mais restrito, dos vícios previstos no mencionado art. 410º, nº 2 do C.P.Penal;
b) através da impugnação ampla da matéria de facto.
Estabelece o art.º 410º, nº 2 do C.P.Penal que “mesmo nos casos em que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum:
a) A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada;
b) A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão;
c) O erro notório na apreciação da prova”.
Tratam-se de vícios da decisão sobre a matéria de facto que são vícios da própria decisão, como peça autónoma, e, uma vez demonstrada a existência desses vícios e a impossibilidade de se decidir a causa, o tribunal de recurso deve determinar o reenvio do processo para um novo julgamento relativamente à totalidade do objeto do processo ou a questões concretamente identificadas na decisão de reenvio (art.º 426º, nº1 do C.P.Penal).
Estes vícios são de conhecimento oficioso, pois têm a ver com a perfeição formal da decisão da matéria de facto e decorrem do próprio texto da decisão recorrida, por si só considerado ou em conjugação com as regras da experiência comum, sem possibilidade de recurso a outros elementos que lhe sejam estranhos, mesmo constantes do processo (neste sentido, Maia Gonçalves, in “Código de Processo Penal Anotado”, 17. ª ed., pág. 948). Mas, não podem ser confundidos com a divergência entre a convicção pessoal do recorrente sobre a prova produzida em audiência e a convicção que o tribunal firme sobre os factos, no respeito pelo princípio da livre apreciação da prova inscrito no art. 127º do CPP. Pois o que releva “é a convicção que o tribunal forme perante as provas produzidas em audiência, sendo irrelevante, no âmbito da ponderação exigida pela função do controlo ínsita na identificação dos vícios do art. 410º, nº 2 do C.P.Penal, a convicção pessoalmente formada pelo recorrente e que ele próprio alcançou sobre os factos” (Cfr. Acórdão do STJ de 2008.11.19, proc. nº 3453/08-3 referido por Simas Santos e Leal-Henriques, in “Recursos em Processo Penal”, 9.ª ed., 2020, pág. 76).
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a) Insuficiência para a decisão da matéria de facto provada
A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, vício previsto no art. 410º, nº 2, al. a), ocorrerá quando a matéria de facto provado seja insuficiente para fundamentar a decisão de direito e quando o tribunal, podendo fazê-lo, não investigou toda a matéria de facto contida no objeto do processo e com relevo para a decisão, cujo apuramento conduziria à solução legal – diga-se, contudo, que este vício decisório não se deve confundir com a errada subsunção dos factos (devida e totalmente apurados) ao direito, o que consubstancia um caso de erro de julgamento, nem, por outro lado, tal vício se reconduz à discordância sobre a factualidade que o tribunal, apreciando a prova com base nas “regras da experiência” e a sua “livre convicção”, nos termos do art. 127º do C.P.Penal, entendeu dar como provada. A insuficiência da prova para a matéria de facto provada, questão que pertence ao âmbito do princípio de livre apreciação da prova, não é sindicável caso não seja suscitada a impugnação ampla da decisão sobre a matéria de facto.
Nenhum dos argumentos invocados pelos recorrentes se subsume a este concreto vício, confundindo os recorrentes a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, com a insuficiência da prova para a comprovação dos factos (apelando às declarações do arguido e aos depoimentos das testemunhas DD e EE, inspetoras tributárias, para sustentarem a ausência da intenção de obtenção de vantagens patrimoniais que não lhes eram devidas, em prejuízo do Estado, o que nos reconduz ao erro de julgamento).
E o acórdão em causa não padece do vício em apreço, uma vez que o Tribunal se debruçou sobre toda a matéria factual aportada pela acusação e pela defesa e os factos comprovados integram os tipos de ilícito pelos quais os recorrentes foram condenados.
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b) Contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão
A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão, vício previsto no art. 410º, nº 2, al. b), consiste na incompatibilidade, insuscetível de ser ultrapassada através da própria decisão recorrida, entre os factos provados, entre estes e os não provados ou entre a fundamentação probatória e a decisão. O que ocorre quando um mesmo facto com interesse para a decisão da causa seja julgado como provado e não provado, ou quando se considerem como provados factos incompatíveis entre si, de modo a que apenas um deles pode persistir, ou quando for de concluir que a fundamentação conduz a uma decisão contrária àquela que foi tomada (há contradição entre os fundamentos e a decisão quando haja oposição entre o que ficou provado e o que é referido como fundamento da decisão tomada, ou seja, quando é de concluir que não é perfeita a compatibilidade de todos os factos provados).
Conforme bem refere, a este propósito, o Acórdão do STJ, de 23.03.2022, Proc. nº 4/17.4SFPRT.P1.S1, “o vício da contradição insanável da fundamentação – al. b) do n.º 2, do art. 410.º/CPP – invocado pelo recorrente, perfectibiliza-se quando, através de um raciocínio lógico, se conclua pela existência de oposição insanável entre os factos provados, entre estes e os não provados, ou até entre a fundamentação probatória da matéria de facto. Como se esclarece no acórdão do STJ, de 19.11.2008 (Proc. n.º 3453/08-3.ª), “a contradição insanável da fundamentação, ou entre esta e a decisão, supõe que no texto da decisão, e sobre a mesma questão, constem posições antagónicas ou inconciliáveis, que se excluem mutuamente ou não possam ser compreendidas simultaneamente dentro da perspectiva de lógica interna da decisão…”. Assim, há manifesta contradição porquanto, sobre o mesmo ponto, fazem-se afirmações inconciliáveis que se excluem mutuamente”.
Os recorrentes alegam que “sempre entregaram ao registo contabilístico todos os documentos, que estavam convictos de estarem correctos, que sempre tiveram conhecimento, pela Contabilidade, que as declarações fiscais eram entregues dentro dos respectivos prazos e pagos os impostos devidos … não praticaram o referido crime p.p. pelo artº 103º/104º do RGIT, visto que sempre foram entregues as declarações fiscais atempadamente e sempre foram pagos os impostos devidos, desconhecendo que estavam incorrectos, defraudando o Estado” e que “o Tribunal a quo fez uma interpretação errada e uma aplicação incorrecta, quer da norma prevista no nº. 1 do artigo 103º e também do 104º do RGIT, quer dos artigos 6º nº. 1 e 7º. nº. 3, do mesmo diploma legal (RGIT) e artigos 26º e 28º do C.P.”.
Ora, não ocorre o vício da contradição insanável entre a fundamentação e a decisão quando o resultado a que o juiz chegou na sentença decorre, não de qualquer oposição entre os fundamentos e a decisão, mas da subsunção legal que entendeu corresponder aos factos provados, podendo verificar-se aqui, sim, um eventual erro de subsunção dos factos ao direito (questão de direito).
E, nada do alegado pelos recorrentes é suscetível de se integrar neste concreto vício ou sequer a apontada contradição entre a fundamentação e a decisão de facto, pois que nada no texto da decisão (relembrando que estes concretos vícios não se podem alicerçar em elementos de prova, ou na particular apreciação que desta os recorrentes façam) permite sustentar a ausência de aptidão causal do comportamento dos recorrentes (o recorrente, por si e em representação da recorrente, criou um circuito documental de faturas que não correspondiam a serviços que tivessem sido efetivamente prestados à AA, por parte das empresas ..., D___ – Sociedade de Representações, Lda.., R___, Lda. e T___, Lda., criando assim artificialmente valores a deduzir a título de IVA e IRC) para a obtenção de vantagens indevidas pela sociedade recorrente, em sede fiscal, e o consequente prejuízo causado aos cofres do Estado.
Por outro lado, do texto da decisão não ressaltam posições antagónicas ou inconciliáveis, que se excluam mutuamente ou não possam ser compreendidas simultaneamente dentro da perspetiva da lógica interna da decisão. Pelo texto da decisão consegue-se perceber o motivo pelo qual se chega à factualidade provada e à não provada, não existindo contradições entre estes segmentos e entre os mesmos e a fundamentação, sendo a factualidade consentânea entre si e com a respetiva decisão.
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c) Erro notório na apreciação da prova
O erro notório na apreciação da prova, vício previsto no art. 410º, nº 2, al. c) do C.P.Penal, verifica-se quando um homem médio, perante o teor da decisão recorrida, por si só ou conjugada com o senso comum, facilmente percebe que o tribunal, na análise da prova, violou as regras da experiência ou que efetuou uma apreciação manifestamente incorreta, desadequada, baseada em juízos ilógicos, arbitrários ou mesmo contraditórios.
O erro notório também se verifica quando se violam as regras sobre prova vinculada ou das legis artis. Esse vicio do erro notório na apreciação da prova existe quando o tribunal valoriza a prova contra as regras da experiência comum ou contra critérios legalmente fixados, aferindo-se o requisito da notoriedade pela circunstância de não passar o erro despercebido ao cidadão comum, ao homem médio ou, talvez melhor dito, ao juiz “normal”, ao juiz dotado da cultura e experiência que deve existir em quem exerce a função de julgar (cf. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. III, Verbo, 2ª ed. pág. 341).
Este vício distingue-se, assim, do erro de julgamento da matéria de facto pois que este último apenas é percetível através da análise da prova produzida.
Trata-se de um erro de raciocínio na apreciação das provas que se evidencia aos olhos do homem médio pela simples leitura da decisão, e que consiste basicamente, em decidir-se contra o que se provou ou não provou ou dar-se como provado o que não pode ter acontecido (Simas Santos e Leal Henriques, in “Recursos em Processo Penal”, 9ª ed., pág. 81). Não se verifica tal erro se a discordância resulta da forma como o tribunal teria apreciado a prova produzida – o simples facto de a versão do recorrente sobre a matéria de facto não coincidir com a versão acolhida pelo tribunal não conduz ao referido vício.
Quanto a este vicio – erro notório na apreciação da prova – importa referir que o tribunal decide, salvo no caso de prova vinculada, de acordo com as regras da experiência e a livre convicção.
O art. 127º do C.P.Penal dispõe que “salvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente”.
Rege, pois, o princípio da livre apreciação da prova, significando este princípio, por um lado, a ausência de critérios legais predeterminados de valor a atribuir à prova (salvo exceções legalmente previstas, como sucede com a prova pericial) e, por outro lado, que o tribunal aprecia toda a prova produzida e examinada com base exclusivamente na livre convicção da prova e na sua convicção pessoal.
No entanto, tal não significa apreciação arbitrária ou valoração puramente subjetiva da prova, mas antes apreciação motivada de acordo com critérios lógicos e objetivos em função da razoabilidade e das regras da experiência comum.
Por conseguinte, os erros da decisão, para poderem ser apreciados ou mesmo conhecidos oficiosamente, devem detetar-se, sem esforço de análise, a partir do teor da própria sentença, sem recurso a elementos externos como seja o cotejo das provas disponíveis nos autos e/ou produzidas em audiência de julgamento.
Os recorrentes invocam a existência de erro notório, concretamente no julgamento dos factos a que se reportam os pontos 6 a 26 dos factos provados.
No entanto, o que, na realidade, os recorrentes pretendem com esta invocação é questionar a apreciação que o Tribunal fez dos elementos probatórios perante si produzidos, sustentando uma particular visão do evento que deverá prevalecer.
Mas, na verdade, não se deteta na decisão recorrida uma irrazoabilidade patente a qualquer observador comum – não se podendo afirmar que o raciocínio do julgador se opõe à normalidade dos comportamentos e às regras da experiência comum (sem análise das provas sobre as quais aquele se fundamenta e para as quais os recorrentes sempre vão apelando).
Do texto da decisão recorrida não se deteta qualquer erro de raciocínio, conclusão ilógica, arbitrária ou contraditória, ou sequer violadora das regras de apreciação da prova.
A convicção do tribunal recorrido, para além de se mostrar congruente com a prova produzida (tal como enunciada na decisão recorrida), aferida segundo juízos de normalidade decorrentes das regras da experiência comum (e, portanto, com o princípio da livre apreciação da prova), é perfeitamente suportada pelo principio in dubio pro reo (sendo certo que o tribunal recorrido não enunciou qualquer dúvida relativamente à verificação da factualidade dada como provada, que pudesse ter resolvido de forma desfavorável aos recorrentes, nem se evidencia qualquer possibilidade de que a prova legitimamente conduzisse o julgador a uma dúvida razoável e insuperável quanto à sua verificação)1.
Os recorrentes não concordam com o juízo probatório do Tribunal a quo. Mas tal constitui uma discordância dos recorrentes face ao resultado da apreciação da prova. Nessa medida, já não nos movemos no âmbito do erro notório na apreciação da prova, que tem de resultar do próprio texto da decisão recorrida (o que, no caso, não se verifica), mas antes em contexto de impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto, com base em erro de julgamento, nos termos do preceituado no art. 412º nº 3 e 4 do C.P.Penal.
Em suma, concluímos pela inexistência de erro notório na apreciação da prova, não decorrendo igualmente da leitura do acórdão recorrido a violação do princípio in dubio pro reo, improcedendo, nesta parte, o recurso em análise.
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3. Erro de julgamento de facto quanto aos pontos 6 a 29 dos factos provados
Os recorrentes manifestam a sua intenção de recorrer da matéria de facto e sustentam existir erro de julgamento. Mas manifestamente confundem a invocação dos vícios decorrentes do art. 410º, nº 2 do C.P.Penal com as exigências de especificação que a impugnação ampla da matéria de facto exige.
E não observam o disposto no art. 412º, nº 3 do C.P.Penal que determina que, em caso de impugnação da decisão proferida sobre matéria de facto, o recorrente deve especificar os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados (al. a)), as concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida (al. b)) e as provas que devem ser renovadas (al. c)).
Como bem refere o Acórdão deste TRL de 11.03.2021, Proc. nº 179/19.8JDLSB.L1-9 “a garantia do duplo grau de jurisdição em sede de matéria de facto nunca poderá envolver, pela própria natureza das coisas, a reapreciação sistemática e global de toda a prova produzida em audiência - visando apenas a detecção e correcção de pontuais, concretos e seguramente excepcionais erros de julgamento, incidindo sobre pontos determinados da matéria de facto … normalmente, os erros de julgamento capazes de conduzir à modificação da matéria de facto pelo tribunal de recurso consistem no seguinte: dar-se como provado um facto com base no depoimento de uma testemunha que nada disse sobre o assunto; dar-se como provado um facto sem que tenha sido produzida qualquer prova sobre o mesmo; dar-se como provado um facto com base no depoimento de testemunha, sem razão de ciência da mesma que permita a referida prova; dar-se como provado um facto com base em prova que se valorou com violação das regras sobre a sua força legal; dar-se como provado um facto com base em depoimento ou declaração, em que a testemunha, o arguido ou o declarante não afirmaram aquilo que na fundamentação se diz que afirmaram; dar-se como provado um facto com base num documento do qual não consta o que se deu como provado; dar-se como provado um facto com recurso à presunção judicial fora das condições em que esta podia operar”.
Por conseguinte, o recurso amplo da matéria de facto não visa a realização de um segundo julgamento nem a reapreciação total dos elementos de prova produzidos e que serviram de fundamento à decisão recorrida, mas antes uma reapreciação sobre a matéria impugnada, com base na audição ou análise das provas concretamente indicadas, sem prejuízo de o tribunal de recurso poder ouvir e visualizar outras passagens que não as indicadas (nº 6 do artº 412º do C.P.Penal), procurando indagar sobre a razoabilidade da decisão do tribunal a quo quanto aos concretos pontos de facto impugnados que o recorrente especifique como incorretamente julgados.
No caso em apreço, os recorrentes, pese embora anunciem a sua intenção de recorrer da matéria de facto (e de direito) do acórdão condenatório, nas conclusões apresentadas, no que se reporta à matéria de facto, ainda que se possa entender que identificam os concretos pontos de facto que entendem terem sido incorretamente julgados (pontos 6 a 29 mencionados a propósito da invocação dos vícios previstos no art. 410º, nº 2 do C.P.Penal), não indicam as concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida.
A este propósito referem Simas Santos e Leal-Henriques, in “Recursos Penais”, 9ª edição, pág.113 que “se o recorrente não retoma nas conclusões as questões que desenvolveu no corpo da motivação (porque se esqueceu ou porque pretendeu restringir o objecto do recurso), o Tribunal Superior só conhecerá das que constam das conclusões”.
Por conseguinte, não tendo os recorrentes indicado, nas conclusões, as concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida (antes se limitando a discorrer sobre a prova produzida e a apontar as razões pelas quais o Tribunal deveria ter valorado de modo distinto os depoimentos das testemunhas CC, contabilista, DD e EE, inspetoras tributárias, e a informação constante da documentação junta aos autos, sustentando a inexistência de prova de que os recorrentes tivessem delineado um esquema para obterem vantagens patrimoniais indevidas à custa do Estado, prejudicando-o em virtude da diminuição das receitas tributárias), não poderá este Tribunal debruçar-se sobre tal questão.
É certo que o art. 417º, nº 3 do C.P.Penal dispõe que “Se das conclusões do recurso não for possível deduzir total ou parcialmente as indicações previstas nos ns 2 a 5 do artigo 412.º, o relator convida o recorrente a completar ou esclarecer as conclusões formuladas, no prazo de 10 dias, sob pena de o recurso ser rejeitado ou não ser conhecido na parte afetada”.
Porém, o nº 4 da mesma disposição legal estabelece que “O aperfeiçoamento previsto no número anterior não permite modificar o âmbito do recurso que tiver sido fixado na motivação”.
No caso concreto, na motivação apresentada pelos recorrentes, descreve-se apenas o que foi dito, em audiência de julgamento, pelo recorrente, transcrevem-se os depoimentos das testemunhas CC (em 6 páginas), DD (em 10 páginas) e EE (em 11 páginas) e expõem-se as suas perspetivas pessoais relativamente a tais depoimentos.
A motivação não contém nenhum dos outros elementos legalmente exigidos para que o recurso possa ser conhecido, pois os recorrentes não referem as concretas passagens/excertos (das gravações) em que se funda a impugnação (limitando-se a transcrever vários depoimentos) e sempre se revelaria inútil promover a correção formal das conclusões.
Como referem Simas Santos e Leal-Henriques, in obr. Cit. 114 “o texto da motivação é o limite do aperfeiçoamento possível: do que dele não consta não pode ser levado às conclusões” porquanto a motivação é insuscetível de correção (sob pena de nunca estar determinado o objeto do recurso) na medida em que é por ela que se afere o limite da legalidade de correção ou aditamento das conclusões em falta.
Não contendo, quer a motivação, quer as conclusões apresentadas pelos recorrentes, os elementos legalmente impostos para que se possa conhecer do erro de julgamento da matéria de facto - sobretudo por não terem referido as concretas passagens/excertos das declarações/depoimentos que, no seu entender, obrigam à alteração da matéria de facto, transcrevendo-as ou mediante a indicação do segmento ou segmentos da gravação áudio que suportam o seu entendimento divergente, com indicação do início e termo desses segmentos – não pode o Tribunal apreciar da mesma.
Na verdade, com o presente recurso, os recorrentes pretendem questionar a apreciação da prova feita pelo Tribunal a quo (consideram que nada se pode imputar diretamente aos recorrentes, restando, quando muito a dúvida), o que não configura uma verdadeira impugnação da matéria de facto.
O ónus de indicação das concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida só se satisfaz com a indicação do conteúdo específico do meio de prova ou de obtenção de prova e com a explicitação da razão pela qual essas provas impõem decisão diversa da contestada.
No que concerne aos meios de prova genericamente elencados pelos recorrentes importa, desde logo, sublinhar que os mesmos não podem ser analisados isoladamente, de forma segmentada, mas têm que ser apreciados concatenadamente (como o fez o tribunal recorrido), devendo ser conjugados e estabelecidas correlações internas entre todos os meios de prova produzidos, confrontando-os de forma que, ainda que de sinal contrário, daí resulte uma decisão linear, fazendo-se inferências ou deduções de factos conhecidos, desde que tal se justifique, e tendo sempre presentes as regras da lógica e as máximas da experiência.
A prova é analisada conjuntamente e não basta indicar provas que permitam uma diferente convicção para alterar a decisão do tribunal sobre a matéria de facto, antes exigindo a lei provas que imponham uma convicção diferente.
Na verdade, as razões pelas quais se confere credibilidade a determinadas provas, e não a outras, não dependem do critério de cada um, mas antes do juízo de valoração livremente realizado por quem compete julgar os factos, de acordo com a imediação (que se traduz no contacto pessoal entre o juiz e os diversos meios de prova) e tendo por base as regras da experiência comum.
E, a imediação confere ao julgador em 1.ª instância meios de apreciação da prova pessoal de que o tribunal de recurso não dispõe. É essencialmente a esse julgador que compete apreciar a credibilidade das declarações e depoimentos, com fundamento no seu conhecimento das reações humanas, atendendo a uma vasta multiplicidade de fatores: as razões de ciência, a espontaneidade, a linguagem (verbal e não verbal), as hesitações, o tom de voz, as contradições, etc.
O exposto não significa “que o tribunal de recurso não possa pôr em causa essa credibilidade através da análise dos depoimentos prestados e com base neles escrutinar a aplicação das máximas da experiência comum que estiveram na base da opção do julgador. Ou seja, o tribunal superior não pode criticar a opção pela valoração da credibilidade de um determinado meio de prova; não pode dizer que rejeita o convencimento do juiz de 1.ª instância porque este optou por um determinado depoimento por ser mais credível. Porém, já tem o dever de analisar o depoimento prestado em si mesmo considerado e concluir se a versão que apresenta é objectivável, ou seja, se qualquer um aceitaria o raciocínio explanado como compatível com o sentido comum. Não se trata de o tribunal superior se convencer do depoimento e da sua certeza mas de o considerar como uma conclusão razoável” (cfr. Acórdão do STJ de 19.12.2007, Proc. nº 07P4203).
O que se pretende num julgamento é conhecer um acontecimento pretérito e por isso, a valoração das provas sobre o mesmo tem de traduzir uma atividade racional, objetivada e motivada, para além de toda a dúvida razoável, consistente na eleição da hipótese mais provável entre as diversas reconstruções possíveis dos factos.
Ora, quando a atribuição de credibilidade ou falta de credibilidade a uma fonte de prova pelo julgador se basear em opção assente na imediação e na oralidade, o Tribunal de recurso só a poderá criticar se ficar demonstrado que essa opção não tem uma justificação lógica e é inadmissível face às regras da experiência comum.
Os recorrentes alegam, nomeadamente, que sempre cumpriram com as suas obrigações fiscais, recebiam as faturas, procediam ao pagamento em dinheiro e entregavam-nas à contabilidade que as inseria nos registos contabilísticos da recorrente sociedade.
Mais alegam que as inspetoras tributárias, ouvidas como testemunhas, nada disseram, em concreto, sobre os factos que pudessem ser imputados diretamente aos recorrentes, restando a prova documental que não demonstra qualquer ação por parte dos recorrentes resultante de qualquer plano previamente engendrado com o intuito de defraudar os cofres do Estado e de tirar benefícios económicos.
Desta forma, os recorrentes expõem a interpretação que fazem da prova produzida, o que não é manifestamente a forma de alterar a matéria de facto, pela via da impugnação ampla.
Da leitura da motivação, verificamos que acórdão recorrido está bem fundamentado, neste segmento específico, pois conclui que os valores das faturas emitidas pela … não tinham correspondência com a realidade, com base na conjugação dos depoimentos das testemunhas FF (sócio gerente desta sociedade de 2009 a 2012), HH, II e JJ (prestaram serviços para essa sociedade, que tinham como empresa de trabalho temporário, na área da …), KK (cunhada de GG que consta como adquirente de uma quota da sociedade em abril de 2012 e que explicou as razões pelas quais o seu cunhado nunca poderia ter sido gerente desta sociedade) e EE que “relatou ao tribunal, por referência ao Relatório de inspeção constante de fls. 853 a 860 dos autos, as diligências efetuadas no âmbito da inspeção, esclarecendo como chegou às conclusões do relatório relativamente à sociedade ..., designadamente como foram efetuadas as correções aos valores que constavam nas faturas, sublinhando que não houve recurso a métodos indireto”.
Também se baseia no documento intitulado “Relatório Final”, subscrito pela testemunha EE, cujo teor foi por si confirmado, e consta de fls. 853 a 860 dos autos, onde se diz, de forma direta, que:
a) em 2013, a “AA” concentra a maioria das suas aquisições de bens e serviços apenas no fornecedor “...”;
b) a ... encontra-se em situação de incumprimento fiscal generalizado desde o final do ano de 2012;
c) desde 31.07.2013 que, formalmente, o seu gerente é um cidadão de nacionalidade … LL, o qual não foi possível contactar nem respondeu a qualquer notificação;
d) a ... não se encontra no local declarado pois na sede formal da empresa não foi encontrada qualquer pessoa nem foi possível verificar a existência de qualquer estrutura operacional, sendo certo que, em 2013, estão registadas na aplicação “E-Fatura”, em seu nome, faturas no montante total de € 3.212.10,81 o que, a ser verdadeiro, exigia uma estrutura operacional significativa;
e) em 2013, nenhum operador económico declarou ter vendido quaisquer bens ou prestado qualquer serviço à ..., a qual não dispunha de qualquer capacidade produtiva;
f) as faturas destinadas à AA não foram emitidas por programa de faturação certificado;
g) formalmente, por cada fatura emitida pela ..., foi emitido um recibo declarando ter recebido a totalidade do valor da fatura correspondente e, ao mesmo tempo, foram emitidas declarações dizendo que recebeu entregas parcelares da AA por conta de cada fatura, o que é manifestamente contraditório;
h) algumas dessas faturas emitidas à AA referem-se a transmissão de bens quando a ... não adquiriu tais bens a nenhum fornecedor nem tinha capacidade para os produzir;
i) na sequência da derrogação do sigilo bancário, analisou-se a informação proveniente dos bancos da qual se concluiu que, em 2013, a AA tinha apenas uma conta bancária e, em regra, as saídas da conta correspondem a levantamentos em numerário entregues ao recorrente e não há qualquer evidência de que alguma das saídas da conta tenha tido como beneficiário a ...;
j) as faturas emitidas em nome da ... não identificam o correspondente programa certificado de faturação e todos os pagamentos foram formalmente efetuados em numerário.
Por isso, se concluiu que as alegadas aquisições efetuadas pela AA à ... não correspondem a efetivas operações económicas.
No que respeita ao IVA, a AA deduziu o IVA com base nas referidas faturas, o que não é aceite fiscalmente.
E, a AA era obrigada a proceder à retenção na fonte dos rendimentos pagos ao sócio até ao dia 20 do mês seguinte àquele em que foram deduzidos, o que não fez, sendo certo que as entregas feitas ao sócio gerente/recorrente resultaram da simulação de aquisições de bens e/ou serviços e também da simulação de pagamentos ao seu alegado fornecedor ....
Conforme resulta da motivação da matéria de facto, a testemunha EE confirmou, em audiência de julgamento, o teor deste mesmo relatório, “explicou e concretizou, relativamente às faturas em causa nos autos, que não estavam suficientemente detalhadas a nível contabilístico - ou seja, não descreviam de forma suficiente o serviço prestado, já que a designação que delas constava era angariação clientes para telecomunicações, descritivo que não exprime a natureza concreta do trabalho executado - e não tinham sido emitidas por programa certificado pela AT, o que levantou desde logo suspeitas de que as faturas apresentadas pela AA não corresponderiam a operações reais”. Mais se diz que ”a análise aos extratos da conta bancária da sociedade AA, movimentada pelo arguido, mostraram que, em regra, as saídas da conta daquele período correspondem a levantamentos em numerário ao balcão, assim se perdendo o rasto ao dinheiro, quando é do conhecimento comum que, para efeitos fiscais, o pagamento de faturas aos fornecedores tem que ser efetuado por um meio que permita comprovar o pagamento (como cheque ou transferência bancária). Por seu turno, da análise à contabilidade da sociedade e à informação constante das aplicações informáticas da AT, inexistiam elementos de outros fornecedores da ..., sendo que esta sociedade, pelas diligências que fizeram ao longo da inspeção, não tinha estrutura operacional que suportasse serviços prestados na ordem dos €200.000,00.
O Tribunal a quo baseia-se ainda no relatório subscrito pela testemunha DD, cujo teor foi por si confirmado, que consta de fls. 1245 a 1291, onde se diz, de forma direta, que:
a) em 2014, a AA contabilizou faturas emitidas em nome da … e, da informação recolhida do Balancete de 2014 da AA, verifica-se que esta sociedade efetuou compras de bens e serviços à … e declarou ter efetuado compras à sociedade … que teve como atividade “…, iniciou atividade declarada em 2015 e cessou nesse mesmo ano, não tendo tido trabalhadores nem fornecedores;
b) à data dos factos, a gerência da ..., foi formalmente exercida por MM (cujo paradeiro é desconhecido), em 2014 tinha um trabalhador (o seu gerente de direito), não foi declarada qualquer remuneração referente a esse ano, e foi proposta por parte da Direção de Serviços de Investigação da Fraude e de Ações Especiais (DSIFAE), a cessação oficiosa de atividade do sujeito passivo ...;
c) das conclusões resultantes do procedimento inspetivo realizado à sociedade ..., e vertidas no respetivo relatório, extrai- se que as faturas emitidas pela sociedade ... não correspondem a operações reais, não tendo sido recolhidos quaisquer elementos que demonstrassem a efetiva realização das operações faturadas por aquela sociedade;
d) à data dos factos, a gerência da empresa ... foi formalmente exercida por NN, não teve fornecedores e apenas teve um trabalhador ao qual não foi paga remuneração;
e) à data dos factos, a gerência da empresa ... era formalmente exercida por OO, cujo paradeiro é desconhecido;
f) da informação elaborada em sede de cooperação administrativa n.° ..., que originou o Despacho n.° …, aberto na Direção de Finanças da ..., extrai-se (fls. 823 a 840) a suspeita de que a … possa estar envolvida em redes de fraude ao IVA, existe uma empresa … com o mesmo nome cujo representante é o cidadão romeno OO e a empresa foi cancelada no …;
g) na sequência da derrogação do sigilo bancário, analisou-se a informação proveniente dos bancos da qual se concluiu que, em 2014, a AA tinha apenas uma conta bancária, em regra, as saídas da conta correspondem a levantamentos em numerário entregues ao recorrente e não há qualquer evidência de que alguma das saídas da conta tenha tido como beneficiário a … a … ou a …;
h) a AA era obrigada a proceder à retenção na fonte dos rendimentos pagos ao sócio até ao dia 20 do mês seguinte àquele em que foram deduzidos, o que não fez, sendo certo que as entregas feitas ao sócio gerente/recorrente resultaram da simulação de aquisições de bens e/ou serviços e também da simulação de pagamentos aos seus alegados fornecedores …, a … ou a ….
A respeito do depoimento da testemunha DD, o Tribunal a quo refere que “confirmou, de forma isenta e credível, os autos de diligência externa de fls. 435, 471, 513 e 514, dos quais resulta que na sede da ..., localizada num edifício de habitação, não foi encontrada qualquer pessoa, não há registos de consumos (água), nem tão pouco estrutura operacional. Além das diligências relativamente ao exercício de 2013, relativas à ..., também pediu e analisou elementos contabilísticos da sociedade …, relativamente a 2014 e fez deslocações à alegada sede. Concretizou ainda que, apesar das diligências empreendidas, não foi possível localizar ou inquirir os gerentes das sociedades …., …. e sociedade …., o que, em face da constatada ausência de existência ... destas sociedades e da inexistência ou praticamente inexistência de trabalhadores, relativamente a 2014, verificada nos elementos fornecidos pela segurança social, levou à conclusão inevitável de que as faturas que estas sociedades emitiram não representam efetivas prestações de serviços.
Resulta do exposto que a atribuição de credibilidade aos depoimentos das testemunhas EE e DD conjugados com os documentos juntos aos autos (prova que apreciou em concatenação e à luz das regras da experiência e do normal suceder), em detrimento fundamentado das declarações do arguido, baseia-se na imediação e na oralidade e está assente numa justificação lógica e admissível face às regras da experiência comum, pelo que o tribunal de recurso não a poderá criticar.
Com efeito, o Tribunal a quo partiu de um conjunto de factos conhecidos (precisos e concordantes), demonstrativos do modus operandi do arguido BB, para concluir que este “em nome e representação da sociedade arguida, contabilizou faturas emitidas pelas sociedades ... e ... que não correspondiam a qualquer prestação de serviço efetivamente realizada, tendo aquelas sido entregues e posteriormente integradas na contabilidade da sociedade AA com a única intenção de obtenção de benefícios fiscais que o arguido sabia serem indevidos”. Tal ilação baseia-se num juízo de normalidade (de probabilidade) alicerçado na lógica e em regras da experiência comum que permite chegar a um resultado verdadeiro (próximo da certeza ou para além de toda a dúvida razoável).
É manifesto que as declarações do recorrente mencionadas na motivação são notoriamente insuficientes e inidóneas para que se possa concluir que o Tribunal a quo devia ter concedido credibilidade às mesmas e concomitante supremacia destas sobre todos os demais meios probatórios em sentido contrário produzidos nos autos.
Na ausência de confissão, a prova do elemento subjetivo, por via de regra, faz-se de forma indireta, com recurso a inferências lógicas e presunções ligadas às regras da experiência comum, a partir dos factos conhecidos que são os modos de execução dos tipos de crime, associados à capacidade de discernimento e à liberdade de vontade do autor desses factos (neste sentido, cfr. Acórdão do TRP de 27.01.2021, Proc. nº 473/14.4JAPRT.P1).
E vemos que, nomeadamente, as seguintes circunstâncias são demonstrativas de que os recorrentes (únicos beneficiários da contabilização das faturas que, por si ou por interposta pessoa, a seu pedido, fabricaram) ficcionaram custos que não correspondiam a serviços prestados ou a bens fornecidos com o objetivo de obterem vantagens patrimoniais em prejuízo do Estado:
- a conta bancária da AA era movimentada pelo recorrente, em regra, através de levantamentos em numerário (inexistindo qualquer evidência de que alguma das saídas da conta tenha tido como beneficiário a ..., a …, a … ou a …);
- nenhuma destas empresas tinha estrutura operacional ou capacidade produtiva (constatou-se a ausência de existência ... e a inexistência ou praticamente inexistência de trabalhadores) que suportasse os serviços prestados/os bens fornecidos;
- não foi possível localizar ou inquirir os gerentes de nenhuma das sociedades;
- as faturas não descreviam de forma suficiente o serviço prestado/bem fornecido e não foram emitidas por programa de faturação certificado,
Resulta do exposto que o Tribunal a quo, na sua estrutura de fundamentação da decisão da matéria de facto, fundamentou a sua decisão quanto à factualidade julgada provada, nos termos supra transcritos, dissecou, individualmente e em conjunto, todos os meios de prova produzidos em audiência de julgamento, e esclareceu em que medida é que cada um deles foi considerado credível ou não, expondo de forma clara as razões que levaram a que se convencesse, ou não, da veracidade dos relatos que relacionou com a prova documental, fazendo, para o efeito, apelo às regras da razoabilidade e da experiência comum.
Assim sendo, os recorrentes limitaram-se a impugna a matéria de facto de uma forma genérica, não particularizada, e a manifestar o seu desacordo relativamente à leitura que o Tribunal recorrido fez da prova produzida, tecendo considerações vagas sobre essa prova e sobrepondo a sua interpretação relativamente ao que foi dito à interpretação do Tribunal recorrido pelo que não se mostra integralmente cumprido o ónus de impugnação da matéria de facto imposto pelo artº 412º, nº 3, 4 e 6 do C.P.Penal.
Em conclusão, analisada a prova produzida em audiência, os juízos dados como assentes apresentam-se plenamente legítimos, face ao conteúdo do princípio da livre apreciação da prova, sendo a versão dada como provada plenamente plausível, face às provas em análise, não revelando ter havido qualquer arbítrio, ou discricionariedade na sua apreciação, nem atentado contra a lógica, ou as regras da experiência comum.
Por conseguinte, não tendo a sua tese a virtualidade para abalar a fundamentação de facto da decisão recorrida (não logrou demonstrar que a convicção do tribunal de 1ª instância sobre a veracidade dos factos provados acima descritos é inadmissível - não é sustentada em dados objetivos - ou que existem outras hipóteses dadas pelas provas tão ou mais plausíveis do que aquela adotada pelo tribunal recorrido), impõe-se julgar improcedente o recurso da matéria de facto e assente a factualidade provada, cumpre apreciar o recurso da matéria de direito.
*
4. Qualificação jurídica da conduta dos recorrentes
Os recorrentes alegam que não se verificam os pressupostos legais necessários à imputação, na forma qualificada, do crime de fraude fiscal pois, mesmo que se entenda que a qualidade do recorrente se deva equiparar à pessoa coletiva, deve entender-se, mesmo com base nos factos provados, que os recorrentes não praticaram tal crime na medida em que as declarações fiscais foram entregues atempadamente e foram pagos os impostos devidos, desconhecendo que estavam incorretos.
Dispõe o art. 103º da Lei n.º 15/2001, de 05 de AA (RGIT) que:
“1 - Constituem fraude fiscal, punível com pena de prisão até três anos ou multa até 360 dias, as condutas ilegítimas tipificadas no presente artigo que visem a não liquidação, entrega ou pagamento da prestação tributária ou a obtenção indevida de benefícios fiscais, reembolsos ou outras vantagens patrimoniais susceptíveis de causarem diminuição das receitas tributárias. A fraude fiscal pode ter lugar por:
a) Ocultação ou alteração de factos ou valores que devam constar dos livros de contabilidade ou escrituração, ou das declarações apresentadas ou prestadas a fim de que a administração fiscal especificamente fiscalize, determine, avalie ou controle a matéria colectável;
b) Ocultação de factos ou valores não declarados e que devam ser revelados à administração tributária;
c) Celebração de negócio simulado, quer quanto ao valor, quer quanto à natureza, quer por interposição, omissão ou substituição de pessoas.
2 - Os factos previstos nos números anteriores não são puníveis se a vantagem patrimonial ilegítima for inferior a (euro) 15000.
3 - Para efeitos do disposto nos números anteriores, os valores a considerar são os que, nos termos da legislação aplicável, devam constar de cada declaração a apresentar à administração tributária”.
“O legislador quis prever todas as formas de afetação das receitas tributárias; assim, previu no final do corpo do artigo 103.º, n.º 1, uma cláusula geral que pretende abranger tudo o que não esteja compreendido na obtenção indevida de benefícios fiscais, de reembolsos ou pagamento de menos imposto, como resulta do uso do pronome indefinido «outras»” (PP “Do crime de fraude fiscal: em particular o uso de faturas falsas em casos práticos”, JULGAR Online, fevereiro de 2024, pág. 4).
Por conseguinte, o comportamento típico deverá ter como objetivo a redução do valor dos montantes que o Estado poderia arrecadar mas esse proveito não tem de chegar a ocorrer, podendo a fraude ser detetada pela Autoridade Tributária antes de aquele se consolidar na esfera jurídica do seu beneficiário.
E, dispõe o art. 104º da Lei n.º 15/2001, de 05 de AA (RGIT) que:
“1 - Os factos previstos no artigo anterior são puníveis com prisão de um a cinco anos para as pessoas singulares e multa de 240 a 1200 dias para as pessoas colectivas quando se verificar a acumulação de mais de uma das seguintes circunstâncias:
a) O agente se tiver conluiado com terceiros que estejam sujeitos a obrigações acessórias para efeitos de fiscalização tributária;
b) O agente for funcionário público e tiver abusado gravemente das suas funções;
c) O agente se tiver socorrido do auxílio do funcionário público com grave abuso das suas funções;
d) O agente falsificar ou viciar, ocultar, destruir, inutilizar ou recusar entregar, exibir ou apresentar livros, programas ou ficheiros informáticos e quaisquer outros documentos ou elementos probatórios exigidos pela lei tributária;
e) O agente usar os livros ou quaisquer outros elementos referidos no número anterior sabendo-os falsificados ou viciados por terceiro;
f) Tiver sido utilizada a interposição de pessoas singulares ou colectivas residentes fora do território português e aí submetidas a um regime fiscal claramente mais favorável;
g) O agente se tiver conluiado com terceiros com os quais esteja em situação de relações especiais.
2 - A mesma pena é aplicável quando:
a) A fraude tiver lugar mediante a utilização de facturas ou documentos equivalentes por operações inexistentes ou por valores diferentes ou ainda com a intervenção de pessoas ou entidades diversas das da operação subjacente; ou
b) A vantagem patrimonial for de valor superior a (euro) 50 000.
3 - Se a vantagem patrimonial for de valor superior a (euro) 200 000, a pena é a de prisão de 2 a 8 anos para as pessoas singulares e a de multa de 480 a 1920 dias para as pessoas colectivas.
4 - Os factos previstos nas alíneas d) e e) do n.º 1 do presente preceito com o fim definido no n.º 1 do artigo 103.º não são puníveis autonomamente, salvo se pena mais grave lhes couber”.
Trata-se de um tipo qualificado, ligado ao tipo base vertido na forma simples de fraude fiscal, pelo que é exigível o preenchimento de todos os elementos do tipo objetivo e subjetivo do crime de fraude fiscal previsto no art. 103º do RGIT.
Os recorrentes foram responsabilizados pela prática do referido crime por força do estatuído nos arts. 6º, nº 1 e 7º, nº 1 do RGIT, tendo resultado provado que o recorrente era gerente de facto e de direito da recorrente e que, nessa qualidade, delineou um esquema para obter vantagens patrimoniais indevidas à custa do Estado e de o prejudicar diminuindo as receitas tributárias (cfr. pontos 21º a 26º dos factos provados).
No Acórdão do TRG de 11.06.2019, Proc. nº 20/15.0IDVCT.G1, considera-se que se trata “de um crime de execução vinculada que só pode ser cometido através de uma das formas típicas descritas nas alíneas a), b) e c) do art.º 103º do RGIT, ou seja, o tipo objectivo apenas se preenche com a adoçam de condutas que visem a obtenção de uma situação tributária mais favorável, como sejam o não pagamento de um imposto, a sua redução ou a obtenção de benefícios fiscais, de reembolsos ou outras vantagens patrimoniais susceptíveis de causarem diminuição das receitas tributárias. Assim, para a punição do agente basta comprovar que este quis a respectiva acção ou omissão e que elas eram adequadas à obtenção das pretendidas vantagens patrimoniais e à consequente diminuição da receita tributária. O artigo 104º do RGIT acolhe a forma qualificada do crime de fraude fiscal, prevendo o nº 2 a fraude que tiver lugar mediante a utilização de facturas ou documentos equivalentes por operações inexistentes … Quanto à natureza do crime de fraude fiscal, o STJ tem entendido tratar-se de um crime de perigo na modalidade de crime de aptidão. Isto porque não se exige a obtenção da vantagem patrimonial em prejuízo do fisco, mas apenas a conduta tipificada que vise essa vantagem ou prejuízo. Deste modo, o crime consuma-se ainda que nenhum dano ou vantagem patrimonial indevida venha a ocorrer efectivamente. É o que resulta da expressão susceptíveis de causarem diminuição das receitas tributárias (corpo do nº1 do art.º 103º do RGIT). Também a doutrina tem referenciado o crime de fraude fiscal como um crime de resultado cortado, em que o dano patrimonial enquanto tal é estranho ao tipo, mas está a ele associado pela mediação de um específico elemento subjectivo, pelo que o referido dano patrimonial figura como uma referência expressa da intervenção do agente e a produção efectiva de um dano ao património fiscal ou à obtenção de um benefício fiscal ilegítimo, que se configura como indispensável à consumação da infracção” (também neste sentido, PP in JULGAR Online, fevereiro de 2024, pág. 5).
No Acórdão do TRP de 22.02.2023, Proc. nº 1/15.4IDPRT.P2 é considerado que ”o momento da consumação do crime de fraude fiscal ocorre em muitas situações em momentos anteriores ao da entrega da declaração de imposto, como, por exemplo, acontece com a emissão e escrituração de facturas falsas ou com a celebração de negócio simulado. Nestes casos, a finalidade da conduta, no sentido de se alcançar a não liquidação, entrega ou pagamento da prestação tributária ou a obtenção indevida de benefícios fiscais, reembolsos ou outras vantagens patrimoniais e a susceptibilidade da mesma para a verificação do resultado (diminuição das receitas fiscais) é tão evidente que o legislador entendeu antecipar a esse momento o da consumação do crime. E caso ocorra entrega de declaração com menção desses elementos deturpadores da verdade em consonância com as facturas falsas ou o negócio simulado estaremos apenas perante o exaurimento de um crime já consumado, representando esse o último acto de execução”.
Transpondo o exposto para a situação em análise, face à factualidade provada, consideramos que a decisão recorrida se mostra correta pois, tal como dela consta, o esquema delineado pelo recorrente se consubstanciava “na criação de um circuito documental de faturas, que serviu de base a transações inexistentes, em sacrifício do Imposto Sobre o Valor Acrescentado (IVA) e do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas (IRC) que deixou de ser entregue nos cofres do Estado, criando artificialmente valores a deduzir a título de IVA e IRC. Dessa forma, a sociedade arguida contabilizou custos que lhe permitiram diminuir o valor do IRC e do IVA a liquidar junto da Fazenda Nacional, o que quis e conseguiu.
Concretamente, o arguido fez inscrever nas declarações periódicas apresentadas à Autoridade Tributária, valores inscritos na contabilidade como IVA dedutível, constantes de faturas que não correspondiam a serviços que tivessem sido efetivamente prestados à AA, por parte das empresas ..., ….., …. e … cuja contabilização como custos efetivamente suportados pela AA fez, além do mais, diminuir a matéria tributável em sede de imposto sobre pessoas coletivas e originou uma vantagem patrimonial à custa do Estado em montantes superiores a € 15.000 nos exercícios de 2013 a 2014.
O arguido agiu dolosamente (com conhecimento e vontade de agir nos moldes descritos), por si, em representação e no interesse da sociedade arguida”.
Face ao exposto, ficando o crime consumado com a elaboração da declaração e remessa ao Fisco2, consideramos assim preenchidos todos os elementos - objetivos e subjetivos - de um crime de fraude fiscal qualificada3.
Não se verifica qualquer causa de exclusão da ilicitude ou da culpa.
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5. A não aplicação da atenuação especial da pena na determinação da moldura penal da pena abstrata do crime
O crime de fraude qualificada previsto nos arts. 103º, nº 1 e 104º, nº 2 e 3 do RGIT é punido com pena de dois a oito anos de prisão para as pessoas singulares e multa de 480 a 1920 dias para as pessoas coletivas.
A recorrente foi condenada na pena de 960 (novecentos e sessenta) dias de multa à taxa diária de € 50,00 (cinquenta euros) e o recorrente foi condenado na pena de quatro anos de prisão, suspensa por cinco anos, condicionada ao pagamento, até ao limite de cinco anos subsequentes à condenação, da prestação tributária e acréscimos legais, do montante dos benefícios indevidamente obtidos, € 369.684,27 sendo, pelo menos, a quantia de € 21.633,82€ (vinte e um mil seiscentos e trinta e três euros e quinze cêntimos) no prazo de 12 meses e metade da quantia total no prazo de 2 anos e 6 meses).
Os recorrentes alegam que o Tribunal a quo desconsiderou que passaram mais de 10 anos sobre a data dos factos e que a manifesta diminuição das exigências de prevenção impõe a atenuação especial das penas.
O Tribunal atenua especialmente a pena quando existirem circunstâncias anteriores, contemporâneas ou ulteriores ao crime que diminuam de forma acentuada a ilicitude do facto, a culpa do agente ou necessidade da pena (art. 72º, nº 1 do C.Penal).
Como escreve Figueiredo Dias (in “As consequências Jurídicas do Crime”, pág 302): “Quando, em hipóteses especiais, existam circunstâncias que diminuam por forma acentuada as exigências de punição de facto, deixando aparecer a sua imagem global especialmente atenuada, relativamente ao complexo “normal” de casos que o legislador terá tido ante os olhos quando fixou os limites da moldura penal respectiva, aí teremos mais um caso especial de determinação da pena, conducente à substituição da moldura penal prevista para o facto por outra menos severa. São estas as hipóteses de atenuação especial da pena”.
No caso vertente, atenta a sofisticação da atuação dos recorrentes (espelhada nos factos provados), o montante global do prejuízo causado (€ 369.684,27) e o número de empresas envolvidas na obtenção de faturas falsas, não se vislumbram circunstâncias anteriores, contemporâneas ou ulteriores ao crime que diminuam de forma acentuada a ilicitude do facto, a culpa do agente ou necessidade da pena.
Na verdade, apesar de terem passado mais de 10 anos sobre a data dos factos, tal circunstância, per si, não constitui circunstância que diminua (e muito menos de forma acentuada) a ilicitude do facto, a culpa do agente ou a necessidade da pena.
Nestes termos, não há lugar à pretendida atenuação especial das penas na determinação das molduras penais abstratas e consequentemente improcede, nesta parte, o recurso.
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6. Medida concreta das penas aplicadas aos recorrentes
Importa graduar a pena de prisão a aplicar ao recorrente que a considera excessiva e desproporcional pois, na sua perspetiva, deverá manter-se a suspensão na sua execução, sem qualquer condição, por um período não superior a 3 anos.
Em matéria de escolha e determinação da medida da pena, o acórdão recorrido discorreu o seguinte:
“Assim, considerando:
- o desvalor da ação que é elevado, já que a conduta foi praticada com o recurso às chamadas “faturas falsas”, titulando operações inexistentes com o objetivo de obter vantagens fiscais no âmbito das deduções do IVA e do lucro tributável em sede de IRC, revela alguma sofisticação;
- o dolo, ocorreu na sua modalidade mais intensa, pois foi direto;
- o prejuízo causado pelo crime, de natureza patrimonial, a que manda também atender o artigo 13.º do RGIT, é elevado, no montante global de € 369.684,27.
- o modo de execução dos factos, a revelar não só elaboração, mas também confiança na impunidade da sua conduta;
- O arguido mostra-se integrado familiar e socialmente; economicamente, não tendo trabalho fixo, apresenta uma situação débil.
- Relativamente à sociedade AA, atendendo a que as quotas foram penhoradas e que não matem atividade; que cessou em AA, desconhece-se a atual situação financeira.
O arguido apresenta condenações pela prática de crimes de condução de veículo em estado de embriaguez e abuso de confiança fiscal, porém, à data da prática dos factos, não tinha sofrido qualquer condenação.
A sociedade arguida tem uma condenação pela prática, em AA, de um crime de abuso de confiança fiscal.
São muito fortes as exigências de prevenção geral que se fazem sentir no caso, justificadas pelo interesse preponderantemente público que acautela e pela necessidade de eficácia do sistema penal tributário.
Tudo visto e ponderado, entende-se como justo e adequado, condenar:
- a arguida AA pela prática de um crime de fraude qualificada, p. e p. pelo artigo 103.º, n.º1, al. a) e 104.º, nº2 e 3, e 7.º, n.º1 do RGIT, na pena de 960 dias de multa.
Considerando a situação de inatividade da sociedade arguida e desconhecendo-se a existência de património que lhe esteja adstrito, nos termos do artigo 15.º do RGIT, fixa-se por razoável e adequado o montante diário da multa em € 50,00 (cinquenta Euros).
- o arguido BB, pela prática de um crime de fraude qualificada, p. e p. pelo artigo 103.º, n.º1, al. a) e 104.º, nº2 e 3 e 6.º, n.º1 do RGIT, a pena de quatro anos de prisão.
(…)
Ora, considerando que o arguido era primário à data dos factos e, bem assim, que se mostra familiar e socialmente integrado, decide-se, pois, pela aplicabilidade ao caso da suspensão da execução da pena de prisão aplicada, por um prazo de 5 anos.
A suspensão da pena de prisão será condicionada, todavia, nos termos do artigo 14.º, do RGIT, ao pagamento da vantagem patrimonial obtida.
(…)
Assim, suspende-se a pena aplicada ao arguido BB pelo prazo de cinco anos a contar do trânsito da presente condenação, devendo o arguido comprovar nos autos a liquidação do montante global de €369.684,27, em tal prazo, sendo, pelo menos, a quantia de € 21.633,82€ (vinte e um mil seiscentos e trinta e três euros e quinze cêntimos) no prazo de 12 meses e metade da quantia total no prazo de 2 anos e 6 meses”.
De acordo com os quadros normativos relativos à finalidade das penas (a aplicação das penas visa a proteção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade e em caso algum poderá ultrapassar a medida da culpa – art. 40º, nº 1 e 2 do C.Penal) e determinação da sua medida (em função da culpa e das exigências de prevenção – art. 71º, nº 1 do C.Penal), deve à pena (destinada a proteger o mínimo ético-jurídico fundamental) ser imputada uma dinâmica para que cumpra o seu especial dever de prevenção.
Entre aquele limite mínimo de garantia da prevenção e máximo da culpa do agente, a pena é determinada em concreto por todos os fatores do caso, previstos nomeadamente no nº 2 do referido art. 71º, que relevem para a adequar tanto quanto possível à ilicitude da ação e culpa do agente.
Neste sentido, a culpa (pressuposto-fundamento da pena que constitui o princípio ético-retributivo), a prevenção geral (negativa, de intimidação ou dissuasão, e positiva, de integração ou interiorização) e a prevenção especial (de ressocialização, reinserção social, reeducação mas que também apresenta uma dimensão negativa, de dissuasão individual) representam três exigências atendíveis na escolha da pena, principio este tendencial uma vez que podem apresentar incompatibilidade.
Entendemos, assim, que, por força da ponderação das variáveis supra expostas (nomeadamente, as elevadas necessidades de prevenção geral que importa acautelar decorrentes de os crimes fiscais terem atingido uma dimensão tal que reclama uma eficaz e severa perseguição criminal dos prevaricadores, o dolo direto, o valor do prejuízo que não se mostra, total ou parcialmente, reparado, apesar do tempo decorrido, a ausência de antecedentes criminais e o facto de se encontrar familiar e socialmente inserido) e de acordo com os referidos critérios de determinação da pena concreta, a aplicação das penas de 960 (novecentos e sessenta) dias de multa, à taxa diária de € 50,00 (cinquenta euros), e de 4 (quatro) anos de prisão, suspensa na sua execução por cinco anos, correspondem a penas justas, adequadas e proporcionais.
Cumpre ainda referir que, contrariamente ao alegado pelos recorrentes, no âmbito da determinação da medida da pena, não é feita qualquer referência à alegada circunstância de o recorrente “não ter claramente confessado os factos ou demonstrado arrependimento” pelo que nem sequer se suscita a inconstitucionalidade invocada na conclusão AI.
No entanto, impõe-se ponderar se é razoável, e até eventualmente inconstitucional, a imposição, decorrente do art. 14º, nº 1 do RGIT, de que a suspensão da execução da pena de prisão aplicada é sempre condicionada ao pagamento, em prazo a fixar até ao limite de cinco anos subsequentes à condenação, da prestação tributária e acréscimos legais, do montante dos benefícios indevidamente obtidos e, caso o juiz o entenda, ao pagamento de quantia até ao limite máximo estabelecido para a pena de multa.
O Acórdão do STJ para fixação de jurisprudência nº 8/2012, de 12.09.2012, publicado no DR nº 206, Série I, de 24.10.2012, decidiu que “no processo de determinação da pena por crime de abuso de confiança fiscal, p. e p. no artigo 105.º, n.º 1, do RGIT, a suspensão da execução da pena de prisão, nos termos do artigo 50.º, n.º 1, do Código Penal, obrigatoriamente condicionada, de acordo com o artigo 14.º, n.º 1, do RGIT, ao pagamento ao Estado da prestação tributária e legais acréscimos, reclama um juízo de prognose de razoabilidade acerca da satisfação dessa condição legal por parte do condenado, tendo em conta a sua concreta situação económica, presente e futura, pelo que a falta desse juízo implica nulidade da sentença por omissão de pronúncia”.
No entanto, neste acórdão uniformizador está em causa um crime de abuso de confiança fiscal enquanto que, nestes autos, é imputada ao recorrente a prática de um crime de fraude fiscal qualificada, e ali existia a aplicação alternativa entre as penas de prisão e multa (art. 105º, nº 1 do RGIT), permitindo a ponderação das alternativas existentes face às condições económicas do arguido, enquanto que in casu apenas pode ser aplicada ao recorrente pena de prisão (arts. 103º, nº 1, al. a), e 104º, nº 2 e 3 do RGIT), o que afasta por natureza a metodologia ali prevista.
A respeito do exposto, como bem se definiu no Acórdão do TRP de 30.04.2018, Proc. nº 7815/15.3T9PRT.P2 “a exigência do pagamento da prestação tributária como condição da suspensão da execução da pena de prisão, à margem da avaliação do quadro económico do responsável tributário, nada tem de desmedida, mostrando-se inteiramente justificada pelo interesse preponderantemente público que acautela e pela necessidade de eficácia do sistema penal tributário … esta aplicação automática da sujeição da pena de prisão cuja execução é suspensa, ao pagamento do valor global em dívida, ainda que fora do condicionalismo gizado pelo mencionado art. 51.º n.ºs 1 al. a) e 2, não contende com os princípios da necessidade das sanções penais, igualdade e proporcionalidade, pelo que não é inconstitucional o dispositivo do art. 14.º, n.º 1, quando interpretado desse modo”.
Efetivamente, o juízo quanto à impossibilidade de pagar não é impedimento legal da suspensão pois sempre pode ocorrer alteração das condições económicas do visado (nada garante que no período temporal de duração da suspensão da execução da pena de prisão, o mesmo não adquira bens ou rendimentos suficientes para o efeito) e a revogação da suspensão da execução da pena não é automática, dependendo de uma posterior avaliação judicial da culpa no incumprimento da condição (o tribunal só poderá revogar a suspensão da execução, por incumprimento da condição fixada, se este for culposo, se não forem viáveis as soluções alternativas enumeradas pelo art. 14º nº 2 al. a) e b) do RGIT e 55º do C.Penal e se forem infringidos, de forma grosseira ou repetida, os deveres impostos, tal como resulta do art. 56º, nº 1, al. a) do C.Penal, aplicável ex vi art. 3º, al. a) do RGIT).
Desta forma, decidida a aplicação da pena de prisão suspensa, a lei não permite que se pondere a fixação ou não da aludida condição, ou tão pouco que se opere qualquer ajustamento do montante a pagar em função das condições socioeconómicas do arguido ou ainda que, como infundadamente peticiona o recorrente, a suspensão da execução da pena de prisão não fique subordinada a qualquer condição.
Face à posição exposta, que se acolhe integralmente, nenhuma alteração importa introduzir à condição fixada para suspensão da execução da pena aplicada ao recorrente.
Pelo que, improcede, também nesta parte, o recurso.
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IV- DECISÃO
Pelo exposto, acorda-se em negar provimento ao recurso interposto e, em consequência, confirma-se o Acórdão recorrido.
Custas pelos recorrentes, fixando a taxa de justiça em 4 UCS (art. 513º, nº 1 do C.P.Penal e art. 8º, nº 9, do RCP, com referência à Tabela III).
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Lisboa, 19 de março de 2024
Luísa Oliveira Alvoeiro
Carla Francisco
Sandra Oliveira Pinto
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1. Se, após a ponderação da prova (toda a prova), o julgador se convenceu, com base numa análise objetiva e racional, de acordo com os critérios legais e doutrinais de valoração da prova, sem que no seu espírito se tenha instalado a dúvida consistente ou razoável, não se verifica a violação de tal princípio.↩︎
2. A própria letra da lei faz referência a utilização de fatura, a qual consubstancia um documento comercial destinado a atestar a prática de uma operação (provar um facto, uma despesa ou um provento) pelo que o seu conteúdo apenas será fiscal e penalmente relevante se for transmitido ao Fisco – mediante o uso na declaração fiscal/inscrevendo o seu teor na contabilidade/utilizando-a no negócio simulado. Conforme refere o Acórdão do TRG 6.3.2023, processo n.º 372/04.8IDBRG.G1 “III - O crime de fraude fiscal consuma-se no momento da entrega da declaração defraudada, já que este é o documento que estriba o apuramento do rendimento tributável e, em conformidade, apresenta-se como determinante ao apuramento do imposto devido. Por conseguinte, é nesse momento que as condutas constantes do tipo legal assumem a exigível suscetibilidade ou aptidão para causarem a diminuição das receitas fiscais através, designadamente, do não pagamento do imposto devido ou obtenção indevida de benefícios fiscais, reembolsos ou outras vantagens de cariz patrimonial”.↩︎
3. Sendo certo que há quem entenda que estando em causa declarações distintas, por impostos diversos (IRC e IVA), a apresentar em momentos distintos, não se estará perante uma única resolução criminosa (neste sentido, Ac. TRP de 28.9.2011, processo n.º 67/09.6IDPRT.P1 mencionado por PP, JULGAR Online, fevereiro de 2024, pág.7). “Logo, o uso das mesmas faturas em declarações diversas, uma respeitante a IVA e outra a IRS ou IRC, configura, por um lado, a prática de um crime de fraude fiscal por cada declaração, sem prejuízo da figura do crime continuado, e, por outro, não permite que as vantagens ilegítimas que se visou obter por cada desses impostos se some para efeitos do requisito dos 15000€, sob pena de violação do princípio da legalidade.”- PP, JUGAR Online, fevereiro de 2024, pág. 67.↩︎