Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
6962/21.7T8LSB.L1-6
Relator: ADEODATO BROTAS
Descritores: PROVA DOS FACTOS
JUÍZO DE PROBABILIDADE
AÇÃO DE REIVINDICAÇÃO
SANÇÃO PECUNIÁRIA COMPULSÓRIA
PRESTAÇÃO FUNGÍVEL
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 02/22/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE PROCEDENTE
Sumário: 1-A prova stricto sensu é aquela que se fundamenta na convicção ou realidade do facto. Isto significa que a prova stricto sensu não é compatível com a admissão de que a realidade possa ser distinta daquela que se considera provada. Na prova strictu sensu o tribunal só tem a opção de considerar o facto verdadeiro ou não verdadeiro.
2- A convicção do juiz tem de ser suportada segundo juízos de probabilidade séria, baseado no resultado da prova apreciado à luz das regras da experiência comum e atentas as particularidades do caso. A probabilidade respeita à existência de razões válidas para julgar um enunciado de facto como verdadeiro ou falso
3- Há um limite mínimo de probabilidade a partir do qual opera a probabilidade lógica prevalecente. Ou seja, é necessário que a versão positiva de um facto seja, em si mesma, mais provável que a versão negativa simétrica.
4-Se após a valoração da prova, não for atingido esse patamar de probabilidade lógica prevalecente, ou se as provas produzidas pelas partes forem equivalentes, no sentido de que inexistem parâmetros concretos que justifiquem a prevalência da credibilidade de umas sobre as da contraparte, entra em campo a solução prescrita no artº 414º do CPC.
5- Se o Atestado de Residência emitido pela Junta de Freguesia, declarar determinada factualidade, mas com base em testemunho oral ou escrito de cidadãos ou mediante declaração do próprio interessado, o atestado só faz prova plena de que os declarantes produziram aquelas afirmações perante o emitente do atestado. Não faz prova plena da veracidade, sinceridade ou eficácia de tais declarações emitidas perante o emitente.
6- A tarefa do autor, na acção de reivindicação, no que toca à invocação da causa de pedir, está facilitada por efeito da presunção de titularidade derivada do registo predial: estando o direito do reivindicante inscrito no registo em seu nome, goza da presunção de titularidade pelo que fica dispensado de da prova do facto presumido.
7- O artº 829º-A do CC consagra providências compulsórias de natureza pecuniária. O instituto é aplicável em termos limitados: só podendo funcionar relativamente a obrigações de facto infungível, positivo ou negativo, e desde que o cumprimento não exija especiais qualidades científicas ou artísticas do devedor.
8- A possibilidade de aplicação de sanção pecuniária compulsória depende da fungibilidade ou infungibilidade da prestação. Se o cumprimento da obrigação é possível por intermédio de terceiro, ainda que coercivamente, trata-se de obrigação fungível e, por isso, insusceptível de condenação do devedor em sanção pecuniária compulsória. Se o cumprimento da prestação in natura não é possível de ser satisfeito por intermédio de terceiro, então, estamos perante uma obrigação infungível, permitindo, então, a condenação em sanção pecuniária compulsória.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam neste colectivo da 6ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa:

I-RELATÓRIO
1-BCF, instaurou acção declarativa, com processo comum, contra BQ:
- A condenação do réu a:
i)- Reconhecer o direito de propriedade do autor sobre o prédio sito na Av. de Roma, nºs…, descrito na Conservatória do Registo Predial de Lisboa sob o nº 2…, freguesia de Campo Grande, inscrito na matriz sob o nº 3…daquela freguesia e restituí-lo livre de pessoas e bens;
ii)- Pagar ao autor uma indemnização pela ocupação, sem título, entre 28/08/2015 e 28/02/2021, de 66 000€;
iii)- Pagar ao autor uma indemnização diária de 33,33€ até à devolução.
Alegou, em síntese, ser proprietário do prédio referido, por o ter adquirido como único e universal herdeiro de MHS, falecida a 02/07/2015; o réu vem ocupando, sem título, o R/C Dto do prédio e, desde 05/10/2015 vem depositando em conta bancária da falecida MHS a importância mensal de 12,61€; apesar de interpelado para sair do prédio, o réu recusa-se a fazê-lo; a ocupação pelo réu impede o autor de retirar do referido fogo o rendimento mensal de 1 000€, valor da renda praticado na área onde se situa a fracção.
2- Citado, o réu contestou.
Alega que vive na fracção desde 1995 e vivia com os seus avós, enquanto foram vivos, em regime de economia comum; com o falecimento do seu avô em 02/05/2003, o réu continuou a viver no local e a depositar a renda de 12,61€ mensais; e que o autor se dirigiu ao réu na qualidade de inquilino. Pagando o réu a renda, não existe motivo para sair da fracção. O prédio tem várias fracções desabitadas; além disso, o valor de renda alegado só seria aplicado se a fracção estivesse remodelada e, no caso, não recebe obras desde 1953. O contrato de arrendamento foi celebrado em 02/01/1995 e, com o óbito da inquilina, avó do réu, foi efectuado um aditamento ao contrato de arrendamento e o avô do réu, com uma renda de 2 074€$00/mês. Com o falecimento do avô do réu, em 02/05/2003, o contrato de arrendamento transmitiu-se para o réu nos termos do artº 85º nº 1, al. ab) do RAU; a anterior proprietária, D. MHS, aceitou a transmissão do contrato para ao réu; o réu alterou os contratos de fornecimento de água e de luz para o seu nome.
3- Notificado para o efeito, o autor respondeu à matéria de excepção.
Pugna pela improcedência das excepções. Diz que o réu sempre viveu com a sua mãe que reside no 2º andar do prédio; com a morte do seu avô, o réu ocupou a fracção onde viveram os seus avós.
4- Teve lugar a audiência prévia, com saneamento tabelar dos autos, indicação do objecto o litígio e dos temas de prova.
5- Realizada a audiência final, foi proferida sentença, datada de 06/02/2023, com o seguinte teor decisório:
VI - DECISÃO
Nos termos e pelos fundamentos expostos, julgo a presente ação parcialmente procedente, por provada, e, consequentemente:
1. Reconhece-se que o Autor é proprietário do prédio urbano sito na Av. de Roma n….da freguesia de Campo Grande, inscrito na matriz com o n.º 3…descrito na Conservatória do Registo Predial de Lisboa, n.º 2…, registado a seu favor pela inscrição AP 3… de 2015/08/28.
2. Condena-se o Réu, BQ, a entregar ao Autor, BCF, o r/c direito do prédio referido em 1.
3. Condeno o Réu a pagar ao Autor a quantia mensal de € 200,00 (duzentos euros), desde 28/08/2015 até à propositura da presente ação.
4. Condeno o Réu no pagamento de € 20,00 (vinte euros) diários, a título de sanção pecuniária compulsória, por cada dia de atraso na entrega do r/c direito do prédio referido em 1.
6- Inconformado, o réu interpôs o presente recurso, formulando as seguintes CONCLUSÕES:
a) O presente recurso vem interposto da douta sentença no processo em epígrafe de que resultou a procedência parcial da presente acção.
b) O Réu/ora Recorrente não se conforma igualmente com a decisão proferida sobre a matéria de facto, pois considera que os pontos de facto abaixo referidos foram incorrectamente julgados, por não terem sido tomados em devida consideração os meios de prova constantes da gravação, assim como os elementos juntos aos autos, mormente o atestado de residência emitido pela Junta de Freguesia de Alvalade, junto com o requerimento do R. de 23.11.2021 (ref.ª 40554052) (art. 640.º do CPC)
c) O Tribunal da Relação pode alterar a decisão do Tribunal de 1.ª instância sobre a matéria de facto, uma vez que do processo constam todos os elementos de prova que serviram de base à decisão sobre os pontos de matéria de facto sub judice, tendo ocorrido gravação dos depoimentos prestados, a decisão proferida com base neles é impugnada, nos termos do art. 640.º do CPC, e os elementos constantes no processo impõem decisão diversa (art. 662.º do CPC).
d) O ponto n.º 1 dos factos não provados “O Réu vive no r/c direito do prédio referido em 1. Da Matéria de Facto, desde 1995, com os seus avós” – deve ser considerado como FACTO PROVADO.
e) Nesse sentido, veja-se as declarações prestadas pela testemunha JMM, cfr. depoimento a partir das 15:39h, por referência à acta de julgamento de 26/01/2023, id. 20230126152553_20164395_2871020: 00:18min-00:36min; 01:44min-01:48min; 01:49min-02:14min; 02:49min- 02:53min; 02:53min-02:59min; 06:16min-06:23min; 06:24min-06:38min),
f) Veja-se também, nesse sentido, as declarações prestadas pela testemunha JPB, cfr. depoimento a partir das 15:51h, por referência à acta de julgamento de 26/01/2023, id. 20230126154001_20164395_2871020: 01:08min-01:19min; 01:38min-02:06min; 02:50min-03:12min; 03:14min-03:44min; 03:45min-04:08min; 04:40min- 04:50min).
g) Mais, a confirmar o que as testemunhas JMM e JPB declararam, juntou o Réu aos autos, em 23.11.2021 (ref.ª 40554052) um atestado de residência, emitido pela Junta de Freguesia de Alvalade, que não foi impugnado pelo A.
h) O Tribunal a quo assentou a sua convicção, entre outros, no depoimento da testemunha MMA, tendo desvalorizado o depoimento das testemunhas JMM e JPB.
i) Apesar de ter ficado provado que a partir de 02.01.1995 os avós do Réu foram morar para o r/c direito do prédio dos autos, de a avó ter falecido em 1996 e o avô em 02.05.2003, a testemunha MMA não se lembra de nenhum dos avós do Réu, apenas de uma Sra. D. V (cfr. depoimento a partir das 15:13h, por referência à acta de julgamento de 26/01/2023, id. 20230126144928_20164395_2871020: 03:23min-03:59min; 04:00min-04:10min; 04:11min-04:22min; 04:23min-04:59min).
j) Na verdade, a testemunha MMA só se consegue recordar de uma Sra. D. V que, por acaso, viveu e faleceu antes de MHS ter dado de arrendamento, em 02/01/1995, o r/c direito a MGS – cfr. depoimento a partir das 15:13h, por referência à acta de julgamento de 26/01/2023, id 20230126144928_20164395_2871020: 19:57min-20:13min.
k) O ponto n.º 2 dos factos não provados “Desde 1995 que o Réu aí dorme, confecciona e toma as suas refeições e recebe os seus familiares e amigos” deve ser considerado como FACTO PROVADO.
l) Nesse sentido, veja-se as declarações da testemunha JMM, cfr. depoimento a partir das 15:39h, por referência à acta de julgamento de 26/01/2023, id 20230126152553_20164395_2871020: 04:06min- 04:12min; 04:12min-04:45min).
m) Veja-se também as declarações, nesse sentido, da testemunha JPB, cfr. depoimento a partir das 15:51h, por referência à acta de julgamento de 26/01/2023, id 20230126154001_20164395_2871020: 04:58min-05:32min.
n) O ponto n.º 3 dos não provados “A tia-avó do Réu (por lapso o Tribunal a quo terá colocado Autor), MHS, aceitou a transmissão do arrendamento do avô do Réu para este” deverá ser considerado como FACTO PROVADO.
o) Analisando criticamente as declarações da testemunha MMA (cfr. depoimento a partir das 15:13h, por referência à acta de julgamento de 6/01/2023, id 20230126144928_20164395_2871020: 19:57min-20:13min;05:03min- 05:56min; 06:06min-06:21min; 06:41min07:10min; 07:10min-07:27min; 07:34min- 07:52min; 20:25min-21:20min; 21:49min-22:10min), esta coloca o R. a residir no r/ direito, após a Sra. D. V falecer, sendo que esta faleceu antes de 1995.
p) E, considerando que o avô do R. faleceu em 02/05/2003 e que a Sra. D. MHS faleceu em 02/07/2015 – cerca de 12 anos depois – não existe nos autos nenhuma prova que a Sra. D. MHS tenha interposto qualquer acção contra o Réu, por este continuar a residir no r/c direito do prédio dos autos, após o falecimento do seu avô.
q) Aliás, o que está provado nos autos é que foi o Réu quem passou a pagar, depois do falecimento do avô, o valor mensal dos 12,61€ a título de rendas do r/c direito, numa conta bancária titulada em nome da sua tia avó MHS (v. docs. 2 a 16 juntos com a contestação).
r) E mesmo após o falecimento da sua tia-avó, MHS, o Réu continuou a pagar mensalmente o valor da renda (v. docs. 17 a 23 juntos com a contestação do Réu), e posteriormente, a partir de 16.04.2016, o Réu transfere mensalmente o valor da renda para a conta indicada pelo Autor e titulada por este (docs. 18 a 23 e 25, juntos com a contestação do Réu), que as recebe e faz suas.
s) Não havendo nenhuma prova nos autos que a senhoria, MHS, tenha recusado receber essas rendas pagas pelo Réu.
t) Nem esta, alguma vez, interpôs qualquer acção contra o Réu para o despejar do locado arrendado (e teve, pelo menos, 12 anos para o fazer).
u) O ponto n.º 4 dos factos não provados “A fracção dos presentes autos, onde o Réu vive, nunca teve qualquer intervenção por parte do(a) senhorio(a), desde 1953” deve ser considerado como FACTO PROVADO.
v) Na verdade, não consta nos autos qualquer prova que alguma vez o(a) senhorio(a) tenham feito algumas obras no r/c direito do prédio dos autos.
w) Do ponto n.º 10 dos factos provados DEVERIA CONSTAR “Não se fez prova do valor locativo do r/c direito do prédio referido em 1., a não ser os €12,61 que o Réu paga actualmente” ou, em alternativa, nem sequer deveria constar esse facto n.º 10 nos factos provados.
x) O Tribunal baseou-se apenas no depoimento prestado pela testemunha AG, (cfr. depoimento a partir das 15:24h, por referência à acta de julgamento de 26/01/2023, id 20230126151421_20164395_2871020: 09:52min-10:01min; 10:02min- 10:08min; 10:12min-10:22min), sendo que esta testemunha desconhece o r/c direito, se é ou não semelhante, sendo que o A. não fez qualquer prova do valor locativo do r/c direito, nem se preocupou em fazer prova.
y) Com base no acima alegado, e dos factos que, consequentemente, se devem considerar como provados, o Réu invocou e provou que sucedeu na posição de arrendatário do avô, aquando do falecimento deste, ao contrário do que considerou o Tribunal a quo na sua douta sentença. Pois que:
z) Resultou provado que, por escrito particular, de 02/01/1995, MHS deu de arrendamento o r/c direito a MJS, casada com JRS.
aa) Após o falecimento de MJS, foi feito, em 26/02/1996, um aditamento ao contrato de arrendamento entre MHS e JJS, “na qualidade de inquilino que adquiriu após o falecimento da sua mulher MJS” – o direito de arrendamento sobre o prédio reivindicado transferiu-se, por falecimento de MJS, para o seu esposo, e avô do Réu, JRS (primeira transmissão do contrato de arrendamento).
bb) Em 02/05/2003 faleceu JRS.
cc) Ao contrário do que consta na douta sentença, o Réu conseguiu fazer prova dos requisitos da transmissão do arrendamento, designadamente que convivia há mais de um ano com o seu avô, aquando do respectivo falecimento – vejam-se as declarações das testemunhas JMM e JPB(para onde se remete), bem como o atestado de residência emitido pela Junta de Freguesia de Alvalade, junto aos autos com o requerimento do Réu de 23.11.2021 (ref.ª 40554052) para onde se remete, e que o A. não impugnou.
dd) Assim, vivendo o Réu, neto dos arrendatários, no locado com estes desde 1995 e até ao falecimento do seu avô, em 2003, não se pode deixar de considerar que o contrato de arrendamento, celebrado em 02/01/1995 se transmitiu para o Réu, nos termos do art. 85.º, n.º 1, al. b) do RAU, com as legais consequências, nomeadamente
ser o Réu absolvido de ter de restituir o r/c direito do prédio em causa ao Autor, caso
contrário estar-se-á a violar o disposto nesta norma.
ee) Consequentemente, deverá o Réu também ser absolvido de pagar ao A. qualquer indemnização, uma vez que tem direito a estar a residir e continuar a residir no r/c direito do prédio em questão e está a pagar a renda mensal estipulada na altura, nomeadamente 12,61€/mês, pois que até à data o(a) senhorio(a) não requereram o aumento da mesma, nos termos das disposições legais a que se aplica tal contrato de arrendamento.
ff) Mas mesmo que assim não se entenda, o A. não logrou fazer prova do valor de tal indemnização, nem dos € 1000,00 mensais peticionados, nem dos 200,00€ mensais a que o Tribunal a quo condenou o Réu, conforme acima alegado, violando desta forma os arts. 414.º do CPC e n.º 1 do art. 342.º do CC.
gg) Mais, deverá o Réu ser também absolvido de pagar qualquer sanção pecuniária ao A.
hh) Se assim não se entender estarão a ser violadas as disposições acima citadas, nomeadamente o art. 85.º, n.º 1, al. b) do RAU, art. 414.º do CPC e n.º 1 do art. 342.º do CC.
Nestes termos e nos mais de direito, com o douto provimento de V. Excelências que se requer, deve ser dado provimento ao presente recurso e ser a douta sentença revogada e substituída por outra em que se reconheça que ao Recorrente se transmitiu o contrato de arrendamento, celebrado em 02/01/1995, entre MHS e MJS, após o falecimento do seu avô, JRS, nos termos do art. 85.º, n.º 1, al. b) do RAU, com as legais consequências; mais em que o Recorrente seja absolvido de entregar ao Autor, BCF, o r/c direito do prédio sito na Av. de Roma n.º … em que o Recorrente seja absolvido de pagar ao Autor a quantia mensal de € 200,00, desde 28/08/2015 até à propositura da presente acção; assim como deve o Recorrente ser absolvido no pagamento de 20,00€ diários, a título de sanção pecuniária compulsória.
***
7- O autor/apelado contra-alegou, oferecendo as seguintes CONCLUSÕES:

1ª- O Tribunal julgou a matéria de facto de forma correta e segundo a sua convicção formada na livre apreciação da prova, artº 607º nº 5 do CPC.
2º- Sobre os factos n/s 1, 2 e 3 dados como não provados e sobre cada um deles, o tribunal entendeu esclarecedor para fazer fé em juízo os depoimentos das testemunhas MMA e AG que habitavam o prédio desde 1975 por força do imediato conhecimento dos factos da causa.
3ª- Quanto ao facto nº 10 dado como provado, o tribunal formou a sua convicção no depoimento da testemunha AG que pagava em 1975 a renda de 196€ e actualmente a renda de 200€.
4ª- O atestado de residência do recorrente emitido pela Junta de Freguesia não foi apreciado pelo Tribunal por não merecer credibilidade ao atestar factos reportados antes da sua emissão em 15/11/2021.
4ª- Os depósitos das rendas, que não foram movimentados, não satisfazem o pressuposto da consignação em depósito prevista no artº 23 do RAU.
6ª- A sentença recorrida interpretou e aplicou correctamente a lei, não se verificando qualquer violação ao direito no artº 607º do CPC.
Termos em que deverá o recurso interposto ser julgado improcedente e não provado, mantendo-se integralmente a decisão recorrida.
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II-FUNDAMENTAÇÃO.
1-Objecto do Recurso.
1-É sabido que o objecto do recurso é balizado pelo teor do requerimento de interposição (artº 635º nº 2 do CPC) pelas conclusões (artºs 635º nº 4, 639º nº 1 e 640º do CPC) pelas questões suscitadas pelo recorrido nas contra-alegações em oposição àquelas, ou por ampliação (artº 636º CPC) e sem embargo de eventual recurso subordinado (artº 633º CPC) e, ainda pelas questões de conhecimento oficioso cuja apreciação ainda não se mostre precludida.
Assim, em face das conclusões apresentadas pelo recorrente, são as seguintes as questões que importa analisar e decidir:
a)- A Impugnação da Matéria de Facto;
b)- A revogação da sentença, com a consequente improcedência da acção.
***
2- Matéria de Facto.
A 1ª instância decidiu a seguinte Matéria de Facto:
A. FACTOS PROVADOS
1. O Autor é proprietário do prédio urbano sito na Av. de Roma n.º… da freguesia de Campo Grande, inscrito na matriz, com o n.º 3… e descrito na Conservatória do Registo Predial de Lisboa, n.º 2…, registado a seu favor pela inscrição AP 3… 2015/08/28.
2. O Autor adquiriu o prédio por sucessão testamentária, como único herdeiro de MHS.
3. Por escrito particular, datado de 2 de janeiro de 1995, MHS cedeu o gozo do r/c direito a MJS.
4. MJS era, na data referida em 3., casada com JRS.
5. Após o falecimento de MJS foi feito, em 26.02.1996, um aditamento ao contrato de arrendamento referido em 3., entre MHS JRS, “na qualidade de inquilino, título que adquiriu após o falecimento da sua mulher MJS”, tendo a renda sido atualizada para o valor de 10,35€/mês.
6. Em 02 de Maio de 2003, faleceu JRS.
7. O Réu é neto de MJS e de JRS.
8. O Réu vem depositando, desde 05/10/2015, o valor mensal de € 12,61 numa conta bancária do BPI, que era titulada por MHS.
9. O Réu alterou os contratos de fornecimento de água e eletricidade para o seu nome.
10. O valor locativo do r/c direito do prédio referido em 1. é de, pelo menos, € 200,00 (duzentos euros).
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B. Factos Não Provados
1. O Réu vive no r/c direito do prédio referido em 1. da Matéria de Facto Provada, desde 1995, com os seus avós.
2. Desde 1995 que o Réu aí dorme, confeciona e toma as suas refeições e recebe os seus familiares e amigos.
3. A tia-avó do Autor, MHS, aceitou a transmissão do arrendamento do avô* do Réu para este.
4. A fração dos presentes autos, onde o Réu vive, nunca teve qualquer intervenção por parte do(a) senhorio(a), desde 1953.
5. O valor da renda praticada na área de Lisboa onde se situa o prédio, é de cerca de 1.000,00 € por mês.
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3- As Questões Enunciadas.
3.1- A Impugnação da Matéria de Facto.
O réu/apelante pretende que os pontos 1, 2, 3 e 4 dos factos não provados passem a considerar-se provados e, que o ponto 10 dos factos não provados passe a ter-se como não provado.
Fundamenta-se, no essencial, nos depoimentos das testemunhas JMM e JPB, no atestado de residência emitido pela junta de freguesia e, na alegação de que o depoimento da testemunha MMA foi hesitante e pouco convincente e, na circunstância de, segundo ele, não existir depoimento ou outro meio de prova que demonstre o valor da renda do R/C Dto.
Já o autor/apelado defende que deve manter-se a decisão da 1ª instância sobre a matéria de facto.
Vejamos cada um dos pontos de facto impugnados.
Previamente, porém, importa consignar que se procedeu à audição, integral, dos depoimentos das duas testemunhas do autor e das duas testemunhas do réu. E, por isso, antes de avançarmos para análise de cada um dos pontos de facto elaborar-se-á um resumo desses depoimentos.
Assim:
AG (enfermeiro), disse que conhece o autor por ser o dono do prédio e, por isso, seu senhorio. Reside no prédio desde 1975. A anterior senhoria era D. MHS. O réu passou a ser o vizinho do R/C Dto.; antes, quem vivia no R/C Dto. eram os avós do réu. Os avós dos réus estavam lá há 15/16 anos e, faleceu, o avô, há 15/16 anos. Viveu lá, no R/C Dto, a D. V e faleceu no prédio. Não sabe se a D. V foi ou não companheira do avô do réu. Ele, testemunha, tinha uma clínica na cave esquerda. O réu viveu sempre com a mãe, que mora também no prédio, no 2º andar; via-o a entrar no prédio e ia para a casa da mãe. Não sabe se o réu vivia no R/C Dto. Soube que o réu passou a viver no R/C Dtº há 15/16 anos; o réu infernizou-lhe a vida durante anos: ele (testemunha) tinha uma clínica na cave do prédio, com um alarmezinho para dar sinal quando as pessoas entravam; era rara a semana em que o réu não fazia queixa à polícia ou aos fiscais da Câmara, isto aconteceu quando o réu passou a viver no R/C Dto porque antes ninguém se queixava. Anteriormente o réu vivia com o pai e com a mãe e com o irmão, que é um excelente rapaz. A mãe do réu vive no prédio; pensa que a mãe do réu se separou do marido talvez há 15/20 anos. O agregado familiar da mãe, pensa, que era ele (réu) a mãe e um irmão. Pensa que o R/C Dtº tem três ou quatro quartos, mas nunca lá entrou. Vive no R/C Esq. e pagava 196€ e agora paga 200€.
MMA Disse que mora no 6º Esq. do prédio. Conhece o autor por ser seu senhorio e porque viveu no 7º Esq. durante alguns anos. Antes viveu no 1º Esq. e o BQ (o réu) vivia no 2º Esq. A D. V vivia no R/C Dtº. Não se recorda dos avós do BQ (réu). Do que se lembra é que a D. V estar muitas vezes a falar com a porteira. Quando essa senhora faleceu (a D. V) passados uns tempos a D. MHS (anterior proprietária do prédio) veio pedir à minha mãe se queria ser testemunha por a casa haver sido tomada. Sempre conheceu a D. V a viver sozinha; faleceu há 15/20 anos. O BQ introduziu-se na casa após o óbito da D. V. Não se recorda do avô do BQ. Mudou-se para o 6º Esq. há 5/6 anos. A mãe do BQ vive no 2º Dtº, no 2º Esq. vivia a mãe do BCF (autor). A mãe do BQ, D. AC, chegou a viver no 2º Esq. Os andares têm quatro quartos, uma sala, duas casas de banho e uma cozinha. Ao R/C são mais pequenos e os 7ºs também são mais pequenos. A mãe do BQ vive ali há muitos anos. Vivia com o marido e os filhos, depois, o pai divorciou-se, não podendo precisar em que data. Sempre conheceu a D. V a viver sozinha. Só depois de a D. V ter falecido é que o BQ foi para a casa. A D. A, porteira, comentava que a casa tinha sido usurpada. Ela (testemunha) saiu do prédio em 2009/2010 e voltou em 2017. Talvez a D. Violeta tenha falecido há mais anos. Recorda-se que quando a D. V faleceu, ela (testemunha) ainda não tinha filhos e, as suas filhas, actualmente, uma tem 28 anos e a outra 25 anos. Admite que a D. V tenha falecido há cerca de 28 anos. Entre a morte da D. V e a ida do BQ para a fracção não se recorda se viveu lá mais alguém antes. O R/C tem três quartos, uma sala e casa de banho. Só se lembra da D. V não se lembra do avô do BQ.
JMM (advogado). Disse que conhece o réu desde que entraram para a faculdade em 1997. Passado pouco tempo começou a ir a casa do BQ, ainda em 1997. Foi lá diversas vezes, no R/C Dtº com o avô. Casa normal, relativamente pequena; encontravam-se lá para irem sair, ou ver a bola. Nunca o conheceu noutra casa. A mãe vive no prédio. O avô vivia sozinho, era viúvo e “bem ou mal” tinha ali o BQ, era um apoio e a casa tinha mais espaço. Tinha lá quarto e casa de banho só para ele. A casa tinha duas entradas e o BQ ajudava o avô. Em 97 vivia no R/C o BQ e o avô que era viúvo. Nunca ouviu falar em D. V; nunca a viu, não a conhece. Confraternizavam na tal salinha que era separada, com um quarto e a casa de banho do BQ. Conhece a D. AC, de a ver cá fora, a passear o cão. Conheceu o irmão do BQ, o D, em 1997. Hoje em dia não visita o BQ, mas a última vez que esteve com o BQ na casa foi há uma semana e meia.
JPB (médico veterinário). Disse que conheceu o BQ porque é grande amigo do irmão dele desde os 13/14 anos. Conhece o BQ desde 1992/93 quando foi para o Liceu. O BQ vivia com os avós na Parede. Não vivia com a mãe; só o D é que vivia com a mãe no 2º andar; depois, os avós mudaram-se para a Av. de Roma em 1995. O BQ vivia com os avós, não se dava bem com a mãe. Mas às vezes aparecia lá em casa da mãe quando ele (testemunha) lá estava. Não se recorda da avó do BQ. O BQ viveu sempre com o avô, no R/C e ainda lá continua a viver e de vez em quando ia ao andar da mãe. Nunca viu a D. V. Ainda chegou a conhecer a avó do BQ. Actualmente visita mais o BQ que o D. A mãe sempre tolerou que o BQ vivesse com os avós.
Feita esta síntese dos depoimentos das testemunhas, importa ainda que se teçam algumas considerações sobre prova e a formação da convicção do tribunal.
Ora, como é sabido, a finalidade da prova é a formação da convicção do tribunal sobre a verdade de um facto. O artº 341º do CC diz mesmo que “As provas têm por função a demonstração da realidade de um facto.
Segundo a lição de Casto Mendes/Teixeira de Sousa (Manual de Processo Civil, Vol. I, AAFDL, 2022, pág. 475 e seg.) “A finalidade da prova é a formação da convicção do tribunal sobre a verdade de um facto. Em certos casos, em vez de uma convicção sobre a verdade do facto, pode ser suficiente uma convicção sobre a verosimilhança do facto.”
Quer dizer, a convicção que é exigida ao tribunal relativamente ao objecto da prova, pode dividir-se entre prova stricto sensu, ou seja a exigência da convicção da verdade do facto, ou a mera justificação, que se basta com a prova da verosimilhança do facto.
A prova stricto sensu toma como referência a verdade do facto; a mera justificação toma como referência a verosimilhança do facto.
A verosimilhança, porque é um grau de prova menos exigente do que a prova stricto sensu, só é suficiente nas situações previstas na lei. É o que acontece com o artº 368º nº 1, relativo ao decretamento de providências cautelares que exige apenas uma verosimilhança da existência do direito. E idêntica verosimilhança também é suficiente na apreciação liminar dos embargos de terceiro (artº 345º). (Cf. Castro Mendes/Teixeira de Sousa, ob. Cit., pág. 478).
No âmbito do princípio da livre apreciação da prova não é exigível que a convicção do julgador, sobre a realidade de um facto alegado pelas partes, equivalha a uma certeza absoluta, aliás, raramente exigível pelo conhecimento humano. Ou seja, o critério da livre apreciação da prova deve ter presente que o convencimento do julgador se deve fundar numa certeza relativa dotada de um grau de probabilidade adequado às exigências práticas da vida.
A prova stricto sensu é aquela que se fundamenta na convicção ou realidade do facto. Isto significa que a prova stricto sensu que não é compatível com a admissão de que a realidade possa ser distinta daquela que se considera provada. Na prova strictu sensu o tribunal só tem a opção de considerar o facto verdadeiro ou não verdadeiro.
A convicção do juiz tem de ser suportada segundo juízos de probabilidade séria, baseado no resultado da prova apreciado à luz das regras da experiência comum e atentas as particularidades do caso (Tomé Gomes, Um olhar sobre a demanda da verdade em processo civil, Revista do CEJ, 2005, nº 3, pág. 158 e seg.).
A probabilidade respeita à existência de razões válidas para julgar um enunciado de facto como verdadeiro ou falso. E obtém-se quer por recurso a meios de prova quer mediante presunções: ambos servem a mesma finalidade que é a da formação da convicção do juiz sobre factos relevantes para a solução do litígio.
Há um limite mínimo de probabilidade a partir do qual opera a probabilidade lógica prevalecente e que Taruffo situa em 0,51. (Cf. Luís Pires de Sousa, Prova por Presunção no Direito Civil, 2012, pág. 145). Ou dito de outro modo: “…para que um enunciado sobre os factos possa ser escolhido como a versão relativamente melhor é necessário que, além de ser mais provável que as demais versões, tal enunciado em si mesmo seja mais provável que a sua negação. Ou seja, é necessário que a versão positiva de um facto seja em si mesma mais provável que a versão negativa simétrica.” (Luís Pires de Sousa, A Prova por Presunção..., cit., pág. 145, sublinhado nosso).
Em processo civil cada parte apresenta a sua versão dos factos e promove as diligências de prova no intuito de convencer o julgador acerca da realidade da sua versão. Um standard de prova consiste numa regra de decisão que indica o nível mínimo de corroboração de uma hipótese de facto para que tal hipótese possa considerar-se provada, ou seja, para que possa ser aceita como verdadeira. Em regra, no processo civil, esse standard é o da probabilidade prevalecente. Se após a valoração da prova, não for atingido tal patamar ou se as provas produzidas pelas partes forem equivalentes, no sentido de que inexistem parâmetros concretos que justifiquem a prevalência da credibilidade de umas sobre as da contraparte, entra em campo a solução prescrita no artº 414º do CPC (Cf. Geraldes/Pimenta/Sousa, CPC anotado, vol. I, 2ª edição, pág. 506). * (sublinhados nossos).
Dito isto, voltemos ao caso dos autos.
- Quanto ao ponto 1 dos factos não provados.
Segundo o réu/apelante, o ponto 1 dos factos não provados deve ser considerado provado. Baseia-se nos depoimentos das testemunhas JMM e JPB e no atestado de residência emitido pela junta de freguesia.
Terá razão?
Recordemos a redacção do ponto 1dos factos não provados:
1. O Réu vive no r/c direito do prédio referido em 1. da Matéria de Facto Provada, desde 1995, com os seus avós.
Será que o atestado de residência emitido pela Junta de Freguesia de Alvalade, datado de 15/11/2021 é prova suficiente para, conjugado com os depoimentos das testemunhas, permitir formar a convicção de que o réu vive no R/C Dto, desde 1995 com os seus avós?
Vejamos.
Nos termos do artº 16º nº 1, al. rr) e 18º nº 1 al. l) e nº 2, al. c) da Lei 75/2013, de 12/09, compete às Juntas de Freguesia passar atestados nos termos da lei e que devem ser assinados pelo respectivo Presidente. De entre as leis que preveem a emissão ou a passagem de atestados pelas juntas de freguesia, está o artº 34º nº 1, do DL 135/99, de 22/04,  na redacção do DL 73/2014, de 13/05 que determina, além do mais “Os atestados de residência …devem ser emitidos desde que qualquer membro do respectivo executivo ou da assembleia de freguesia tenha conhecimento directo dos factos a atestar, ou quando a sua prova for feita por testemunho oral ou escrito de dois cidadãos eleitores recenseados na freguesia, ou ainda por outro meio legalmente admissível.”
Como refere Luís Filipe de Sousa (Direito Probatório Material, 3ª edição, pág. 155 e seg.)O atestado da Junta de Freguesia é um documento autêntico que faz, assim, prova plena dos factos que refere como praticados pelo oficial público respectivo, assim como dos factos que neles estão atestados com base em percepções da entidade documentadora (artº 371º nº 1 do CC). Assim, se o subscritor do mesmo invocar, expressamente, o seu conhecimento directo e pessoal como razão de ciência, os factos atestados ficarão revestidos de força probatória plena porquanto estão baseados nas percepções directas da entidade documentadora. Se o atestado declarar determinada factualidade, mas com base em testemunho oral ou escrito de cidadãos ou mediante declaração do próprio interessado, o atestado só faz prova plena de que os declarantes produziram aquelas afirmações perante o emitente do atestado. Não faz prova plena da veracidade, sinceridade ou eficácia de tais declarações emitidas perante o emitente.
Aliás, no mesmo sentido, se tem pronunciado a jurisprudência, como decorre, entre outros:
-Ac. TRL, de 10/10/2002 (Manuela Gomes):
I - O atestado da Junta de Freguesia é um documento autêntico que faz prova plena dos factos que refere como praticados pela autoridade ou oficial público respectivo e quanto aos factos referidos no documento com base nas percepções da entidade documentadora.
II - Consequentemente o atestado da Junta de Freguesia faz prova plena apenas de que o declarante produziu aquelas afirmações perante o Oficial Público.
III - Estando em causa a "residência permanente" o dito documento - uma vez que não faz prova plena desse facto está sujeito à livre apreciação do julgador que o valorará como mais um elemento de prova.”
-Ac. TRL, de 02/12/1999 (Urbano Dias):
I - A lei só dá competência às juntas de freguesia para atestar a residência, mas já não a residência permanente.
III - O atestado de residência não prova a residência, prova, sim, que a Junta de Freguesia, com base nas informações directas dos seus membros ou com base em testemunho ou declaração próprio, atestou a residência.”
Ora, no caso dos autos, o atestado emitido pela Junta de Freguesia de Alvalade, menciona:
A Junta de Freguesia de Alvalade, em Lisboa, no uso das competências conferidas pela lei, atesta, com fundamento em prova testemunhal, cujas declarações de encontram arquivadas nesta Junta de Freguesia, que: BQ, nascido a 09/04/1975…é residente nesta freguesia na Avenida de Roma,… desde setembro de 1995.
(…)”
O que significa que esse atestado não faz prova plena de que o réu seja residente na Avenida de Roma, nº… desde Setembro de 1995. Ou seja, aquele atestado de residência não prova a residência, prova, sim, que a Junta de Freguesia, com base em testemunhos, atestou a residência.
Assim, esse atestado da Junta de Freguesia apenas pode ser valorado livremente, mormente conjugado com os demais elementos de prova.
Vejamos então.
A questão em causa nos autos apresenta-se com versões contraditórias: de um lado, a versão do autor que defende que o réu vem ocupando a fracção (R/C Dtº) sem qualquer título; do outro lado, o réu afirma que vive na fracção desde 1995, convivendo com os seus avós, até à morte de estes, que eram arrendatários da fracção.
Pois bem, importa proceder a uma análise crítica da prova testemunhal produzida.
Afigura-se-nos que as testemunhas do réu, apesar de afirmarem que o réu vive no dito R/C Dtº desde 1995, em convivência com os avós enquanto estes foram vivos, apresentam algumas contradições e elementos ilógicos que os tornam pouco convincentes.
Na verdade, a testemunha JPB disse que conhece o BQ (o réu) desde 1992/93 quando foi para o Liceu e se tornou amigo do irmão do BQ, o D. O BQ vivia com os avós na Parede. Não vivia com a mãe; só o D é que vivia com a mãe no 2º andar; depois, os avós mudaram-se para a Av. de Roma em 1995. O BQ vivia com os avós, não se dava bem com a mãe.
Ora, salvo o devido respeito, há incongruência neste depoimento: se o BQ vivia com os avós, na Parede, que apenas vieram viver para o edifício em 1995, não parece verosímil que a testemunha, JPB, conhecesse o réu desde 1992/1993 quando se tornou amigo do irmão do réu.
Além disso, disse que o BQ não se dava bem com a mãe mas, igualmente disse que o BQ, ia a casa da mãe. A certo momento do depoimento disse que não se recorda da avó do réu e, noutra passagem do depoimento, referiu que ainda chegou a conhecer a avó do réu.
Por sua vez, a testemunha JMM, disse que conhece o réu desde que entraram para a faculdade em 1997. Passado pouco tempo começou a ir a casa do BQ, ainda em 1997. Foi lá diversas vezes, no R/C Dtº, com o avô; encontravam-se lá para irem sair, ou ver a bola. Nunca o conheceu noutra casa. A mãe vive no prédio. O avô vivia sozinho, era viúvo e “bem ou mal” tinha ali o BQ, era um apoio e a casa tinha mais espaço. Tinha lá quarto e casa de banho só para ele. A casa tinha duas entradas e o BQ ajudava o avô. Confraternizavam na tal salinha que era separada, com um quarto e a casa de banho do BQ. Conhece a D. AC (mãe do BQ), de a ver cá fora, a passear o cão.
Ora, deste depoimento não resulta que se possa ter segurança mínima sobre se o BQ convivia com o avô no sentido em que o refere a alínea b) do nº 1 do artº 85º do RAU: a convivência tem implícita a ideia de que os descendentes têm residência habitual, o seu lar com carácter de estabilidade e permanência no locado, há mais de um ano. Na verdade, este depoimento realça mais a circunstância de o quarto, salinha e casa de banho que o BQ utilizava serem separados da restante parte da casa que era habitada pelo avô; e a fracção tinha duas entradas independentes. Além disso, também resulta do depoimento, que o BQ tinha ali aquele espaço para apoiar o avô. E afigura-se-nos pouco verosímil que a testemunha apenas conhecesse a mãe do BQ, que disse que morava no edifício, por a ver cá fora, a passear o cão.
Por outro lado, o depoimento da testemunha AG refere circunstâncias que se mostram relevantes: depois de mencionar que o réu viveu sempre com a mãe, que mora também no prédio, no 2º andar, disse que via-o a entrar no prédio e ia para a casa da mãe. Não sabe se o réu vivia no R/C Dto, afirmou saber que o réu passou a viver no R/C Dtº há 15/16 anos porque passou a “infernizou-lhe a vida durante anos”: ele (testemunha) tinha uma clínica na cave do prédio, com um alarmezinho para dar sinal quando as pessoas entravam e era rara a semana em que o réu não fazia queixa à polícia ou aos fiscais da Câmara, isto aconteceu quando o réu passou a viver no R/C Dto porque antes ninguém se queixava. Este depoimento que nos pareceu sincero, alicerça-se numa circunstância que lhe confere credibilidade: que o réu, depois de ir viver para o R/C Dtº passou a chamar a polícia e os fiscais da Câmara (por causa do aviso sonoro de entrada na clínica) quase todas as semanas, o que anteriormente à ida para o R/C Dtº não acontecia.
Ora, como é bom de ver, são claras as contradições entre os depoimentos e, os documentos nada clarificam sobre a veracidade do facto 1 dos factos não provados, criando, assim, dúvidas, no espírito do julgador, que não permitem que se forme uma convicção de certeza mínima ou de prevalência da versão do réu sobre a versão do autor.
Recorde-se o que acima se referiu: a convicção do juiz tem de ser suportada segundo juízos de probabilidade séria, baseado no resultado da prova apreciado à luz das regras da experiência comum e atentas as particularidades do caso. Se após a valoração da prova, não for atingido o patamar da probabilidade prevalecente ou se as provas produzidas pelas partes forem equivalentes, no sentido de que inexistem parâmetros concretos que justifiquem a prevalência da credibilidade de umas sobre as da contraparte, entra em campo a solução prescrita no artº 414º do CPC.
O mesmo é dizer que não vislumbramos fundamento para considerar provado o ponto 1 dos factos não provados.
- Quanto ao ponto 2 dos factos não provados.
O réu/apelante pretende que o ponto 2 dos factos não provados passe a considerar-se como provado.
Invoca, para o efeito, os depoimentos de JMM e de JPB.
Vejamos então, começando por recordar a redacção desse ponto 2 dos factos não provados:
2. Desde 1995 que o Réu aí dorme, confeciona e toma as suas refeições e recebe
os seus familiares e amigos.”
Pois bem, naqueles dois depoimentos nada é referido acerca de o réu confecionar refeições no R/C Dto; apenas é mencionado, por JMM, que se encontrava com o réu (no quarto e sala independente) para saírem à noite ou à bola; nada foi, por essas testemunhas, mencionado acerca de o réu ali receber familiares. E a dúvida que se instalou acerca da veracidade da factualidade do ponto 1 dos factos não provados inquina, do mesmo modo, a convicção deste tribunal sobre a certeza, ainda que mínima, da veracidade do ponto 2 dos factos não provados.
A esta luz, mantém-se a decisão de considerar o mencionado ponto 2 como não provado.
- O ponto 3 dos factos não provados.
Pretende o apelante que o ponto 3 dos factos não provados passe a provado.
Invoca, para o efeito, que desde a morte do avô que vem depositando a renda, que a anterior proprietária do prédio, tia-avó do autor, jamais recusou o recebimento da renda.
Será assim?
Recordemos a redacção do ponto 3 dos factos não provados:
3-A tia-avó do Autor, MHS aceitou a transmissão do arrendamento do avô do Réu para este.”
Pois bem, em primeiro lugar importa ter em consideração que o contrato de arrendamento celebrado entre a anterior proprietária, D. HHS e a avó do réu, MJS, em 1995, estabelecia, na Cláusula 12ª que “Caso o arrendamento se transmita nos termos do artº 85 do RAU, deverá igualmente ser celebrado um aditamento ao contrato em que se mencione esse facto e a identificação daquele para quem o arrendamento se transmite, só após o que os recibos da renda passarão a ser emitidos em nome deste.”
E, na sequência do falecimento da primitiva arrendatária, a avó do réu, MJS, em 26/02/1996, foi celebrado o aditamento ao contrato, entre a senhoria, D. MHS e o avô do réu, referido no ponto 5 dos factos provados: “Após o falecimento de MJS foi feito, em 26.02.1996, um aditamento ao contrato de arrendamento referido em 3., entre MHS e JRS, “na qualidade de inquilino, título que adquiriu após o falecimento da sua mulher MJS”, tendo a renda sido atualizada para o valor de 10,35€/mês.”
Inequivocamente, a anterior senhoria reconheceu o avô do réu como inquilino.
Curiosamente, não fez esse aditamento ao contrato relativamente ao réu. E, de resto, segundo a testemunha MMA, a DMHS quereria instaurar acção contra o réu, por ocupação da casa e, a porteira, comentava que o réu usurpou a casa.
Pois bem, estes meios de prova contrariam a versão do réu. E a circunstância de ter depositado valores, alegadamente correspondentes aos da renda, não significa aceitação tácita do réu como inquilino.
Em suma, não vislumbramos que possa ser dado como provado o ponto 3 dos factos não provados.
- O ponto 4 dos factos não provados.
O réu pretende que o facto 4 dos factos não provados passe a constar como facto provado. Invoca para o efeito que nenhuma testemunha mencionou se o senhorio fez obras no locado.
Vejamos.
É a seguinte a letra do ponto 4 dos factos não provados:
4. A fração dos presentes autos, onde o Réu vive, nunca teve qualquer intervenção por parte do(a) senhorio(a), desde 1953”.
Ora, efectivamente, nenhuma testemunha, ou outro meio de prova, referiu a circunstância de o senhorio ter feito, ou não, obras no edifício. E, tratando-se de facto alegado pelo réu, no ponto 20 da contestação, caber-lhe-ia provar esse facto.
Seja como for, a verdade é que, como o réu reconhece, não foi feita qualquer prova sobre esse facto. E, sem a produção de prova sobre o facto, mais não resta que considerá-lo não provado.
Se necessidade de outros considerandos, mantém-se o ponto 4 dos factos não provados.
- O ponto 10 dos factos provados.
Pretende o apelante que o ponto 10 dos factos provados, passe a considerar-se como não provado.
Invoca que o tribunal se baseou, somente, no depoimento da testemunha AGo, que disse que pagava 200€ mensais pelo R/C Esq. e, não foi feita prova de o R/C Dto ser semelhante ao R/C Esq.
Vejamos então.
O ponto 10 dos factos provados tem a seguinte redacção:
10. O valor locativo do r/c direito do prédio referido em 1. é de, pelo menos, € 200,00 (duzentos euros).
A 1ª instância, efectivamente, baseou a formação da sua convicção no depoimento de AG, escrevendo: “Ao considerar demonstrado o facto referido no ponto n.º 10 da Matéria de Facto Provada, o Tribunal valorou o depoimento prestado pela testemunha AG, a qual mencionou ser o arrendatário do r/c esq. do prédio reivindicado, pelo qual paga uma renda no valor de € 200,00 (duzentos euros) mensais.
Na petição inicial o autor afirmava que o valor locativo de fracção como o R/C Dto. seria, na zona, cerca de 1 000€/mensais.
A única testemunha que mencionou valores de renda foi o AG que disse que pelo R/C Esq. paga 200€/mensais.
É do conhecimento geral que as rendas praticadas na Avenida de Roma são elevadas. Mas, à falta de melhor prova apenas pode aceitar-se o valor mencionado por AG e, por isso, como decidiu a 1ª instância, o valor locativo será “pelo menos” 200€/mês.
A esta vista, mantém-se o ponto 10 dos factos provados.
Em suma, improcede totalmente a impugnação da matéria de facto.
***
3.2- A revogação da sentença, com a consequente improcedência da acção
O apelante pede seja revogada a sentença em termos de ser absolvido dos pedidos a que foi condenado pela 1ª instância.
Funda-se, no essencial, na alteração da matéria de facto que se propunha alcançar, concretamente, na invocada convivência no locado, há mais de um ano, com os seus avós, anteriores inquilinos da fracção, transmitindo-se-lhe, assim, a posição de inquilino. Mais pretendia que não se desse como provado que o valor locativo do R/C Dtº seja de 200€/mensais. E, com estes fundamentos, peticionava a revogação da sentença com a improcedência da acção.
Vejamos então.
Ora, como se verificou acima, a impugnação da matéria de facto foi totalmente improcedente. O mesmo é dizer que se consolidou a factualidade decidida pela 1ª instância quer em termos de factos provados, que no que respeita aos factos não provados.
Assim sendo, é com base na factualidade assim fixada que terão de ser apreciadas as decisões do tribunal a quo expressas no dispositivo da sentença para verificar se devem ser revogadas
Ora bem, no dispositivo da sentença a 1ª instância decidiu:
VI - DECISÃO
Nos termos e pelos fundamentos expostos, julgo a presente ação parcialmente procedente, por provada, e, consequentemente:
1. Reconhece-se que o Autor é proprietário do prédio urbano sito na Av. de Roma n.º … da freguesia de Campo Grande, inscrito na matriz com o n.º 3…, e descrito na Conservatória do Registo Predial de Lisboa, n.º 2…, registado a seu favor pela inscrição AP 3….
2. Condena-se o Réu, BQ, a entregar ao Autor, BCF, o r/c direito do prédio referido em 1.
3. Condeno o Réu a pagar ao Autor a quantia mensal de € 200,00 (duzentos euros), desde 28/08/2015 até à propositura da presente ação.
4. Condeno o Réu no pagamento de € 20,00 (vinte euros) diários, a título de sanção pecuniária compulsória, por cada dia de atraso na entrega dor/c direito do prédio referido em 1.”
Vejamos se há fundamento para revogar alguma destas decisões.
3.2.1- Quanto à primeira: reconhecer-se o autor como proprietário do prédio.
Relativamente a este trecho do dispositivo, tendo em conta o ponto 1 dos factos provados -1. O Autor é proprietário do prédio urbano sito na Av. de Roma n.º …da freguesia de Campo Grande, inscrito na matriz, com o n.º 3…e descrito na Conservatória do Registo Predial de Lisboa, n.º 2…, registado a seu favor pela inscrição AP 3…2015/08/28. – não pode haver qualquer dúvida sobre o acerto da decisão da 1ª instância.
 Na verdade, o artº 1311º do CC, com epígrafe “Acção de reivindicação”, determina:
1. O proprietário pode exigir judicialmente de qualquer possuidor ou detentor da coisa o reconhecimento do seu direito de propriedade e a consequente restituição do que lhe pertence.
2. Havendo reconhecimento do direito de propriedade, a restituição só pode ser recusada nos casos previstos na lei.”
Na estrutura da acção de reivindicação, identificam-se dois pedidos: (i) o pedido de reconhecimento do direito e, (ii) o pedido de restituição da coisa objecto desse direito.
Por sua vez, quanto à causa de pedir, a expressão “facto jurídico de que deriva o direito real”, constante do artº 581º nº 4 do CPC, abrange quaisquer factos a partir dos quais possa ser estabelecido o direito real invocado na acção, ou porque são causa de aquisição originária dele, ou porque são causa da sua aquisição derivada (Cf. Nuno Pissarra, Das Ações Reais, vol. II, pág. 1978).
A tarefa do autor, na acção de reivindicação, no que toca à invocação da causa de pedir, está facilitada por efeito da presunção de titularidade derivada do registo predial: estando o direito do reivindicante inscrito no registo em seu nome, goza da presunção de titularidade pelo que fica dispensado de da prova do facto presumido (Cf. Elsa Sequeira Santos, CC anotado, coord. Ana Prata, vol. II, pág. 109). De resto, é o que se retira, directamente
do artº 7º do Código do Registo Predial que, como é sabido, sob epígrafe “Presunções derivadas do registo” estabelece: “O registo definitivo constitui presunção de que o direito existe e pertence ao titular inscrito, nos termos em que o registo o define.”. Preceito este conjugado com o que dispõe o artº 350º nº 1 do CC: “Quem tiver a seu favor a presunção legal escusa de provar o facto a que ela conduz.”. Sendo certo que as presunções legais podem ser ilididas mediante prova do contrário (artº 350º nº 2 do CC).
A esta luz, no caso dos autos, mostrando-se definitivamente registado, a favor do autor, o direito de propriedade do prédio mencionado e, não tendo o réu ilidido esses facto, resta concluir pelo acerto da decisão da 1ª instância quando decidiu:Reconhece-se que o Autor é proprietário do prédio urbano sito na Av. de Roma n.º…da freguesia de Campo Grande, inscrito na matriz com o n.º 3…, e descrito na Conservatória do Registo Predial de Lisboa, n.º 2…, registado a seu favor pela inscrição AP 3… 2015/08/28.”
Do que se expôs, sem necessidade de outras considerações, mantém-se aquele trecho decisório da sentença sob impugnação.
3.2.2- Condenação do réu a entregar ao autor o R/C Dtº do referido prédio.
O réu insurgiu-se também contra esta decisão da 1ª instância baseando-se, no essencial, no pressuposto de facto que pretendia ver alterado: que vive no R/C Dtº desde 1995, com os avós, aí dormindo, confecionando e tomando as suas refeições e, recebendo familiares e amigos; e invocava o disposto no artº 85º nº 1, al. b) e nº 4 do RAU.
Ora bem, em primeiro lugar, relembre-se que a impugnação da matéria de facto foi totalmente improcedente e, por isso, mantiveram-se como não provados os pontos 1 e 2 dos factos não provados. Ou seja, o réu não conseguiu demonstrar que: “1. O Réu vive no r/c direito do prédio referido em 1. da Matéria de Facto Provada, desde 1995, com os seus avós. 2. Desde 1995 que o Réu aí dorme, confeciona e toma as suas refeições e recebe os seus familiares e amigos.”.
Como é sabido, o artº 85º do RAU – aplicável ao caso como se refere, e bem, na sentença – com epígrafe “Transmissão por morte”, determina:
1 - O arrendamento para habitação não caduca por morte do primitivo arrendatário ou daquele a quem tiver sido cedida a sua posição contratual, se lhe sobreviver:
a) …;
b) Descendente com menos de um ano de idade ou que com ele convivesse há mais de um ano;
c)…;
d)…;
e) …;
2 - ….
3 -… .
4 - A transmissão a favor dos parentes ou afins também se verifica por morte do cônjuge sobrevivo quando, nos termos deste artigo, lhe tenha sido transmitido o direito ao arrendamento.
Deste preceito decorre que, por regra, a transmissão do arrendamento só opera em um grau, excepto se a primeira transmissão for para o cônjuge sobrevivo, pois, por morte deste, a posição jurídica de inquilino pode transmitir-se, além do mais, aos descendentes que com ele convivessem há mais de um ano. Ora a convivência a que alude a alínea b) do nº 1 do artº 85º do RAU tem implícita a ideia de que as pessoas ali referidas têm no locado o seu lar, a sua residência habitual com carácter de estabilidade e permanência, no imóvel/fracção, que era habitado pelo falecido arrendatário (Cf. Aragão Seia, Arrendamento Urbano, 6ª edição, pág. 555; veja-se ainda, sobre o assunto, Januário Gomes, Arrendamento Para Habitação, 1994, pág. 167 e seg.). De resto, a jurisprudência vai no mesmo sentido, como decidiram, a título exemplo:
-Ac. TRL, de 02/12/99 (Urbano Dias):
“- A convivência a que alude o artigo 85 nº1 alínea b) do RAU tem de ser efectiva no arrendado, sendo indispensável que a casa arrendada seja a sede do agregado familiar e que como tal funcione; o que pressupõe a comunidade da vida familiar e a instalação do trem de vida doméstica unicamente no arrendado.” (www.dgsi.pt).
- Ac. TRP, de 05/11/1998 (Camilo Moreira Camilo)
A convivência a que aludem as als. b), c) e d) do nº 1 do artº 85º do RAU, têm implícita a ideia de que os parentes ou afins têm o seu lar, a sua residência habitual, com carácter de estabilidade e permanência, no prédio que foi habitado pelo defunto arrendatário, sob o mesmo tecto.” (CJ, ano XXIII, tomo V, pág. 177 e segs.).
Por outro lado, como decorre do nº 2 do artº 1311º do CC, supra transcrito, havendo reconhecimento do direito de propriedade, a restituição só pode ser recusada nos casos previstos na lei. Quer dizer, decorre deste preceito que apesar do autor da reivindicação demonstrar o seu direito, pode não lograr a restituição da coisa se o réu dispuser de qualquer título que legitime a sua detenção; será o caso, por exemplo, de o autor proprietário reivindicar a coisa de um arrendatário (Cf. Elsa Sequeira Santos, CC anotado, coord. Ana Prata, vol. II, pág. 110). Portanto, uma vez que o autor demonstrou ser o proprietário do edifício onde se insere a fracção reivindicada, apenas podia obstar à condenação do réu a devolver-lha se este demonstrasse que possuía título legítimo para permanecer na fracção. O réu invocou a transmissão da posição de inquilino por óbito do seu avô. Mas, como vimos, não provou os factos que lhe permitiriam lançar mão do regime de transmissão por morte previsto no artº 85º nº 1, al. b) e nº 4 do RAU.
O mesmo é dizer que não há fundamento para revogar o trecho decisório da sentença que condenou o réu a entregar o R/C Dtº ao autor.
3.2.3- A condenação do réu no pagamento de indemnização de 200€/mês.
Segundo o réu apelante deve ser revogada a parte da decisão da 1ª instância que o condenou a pagar uma indemnização mensal 200,00 € (duzentos euros), desde 28/08/2015 até à propositura da presente ação, porque, segundo alegou, não pode considerar-se provado que o R/C Dtº tenha um valor locativo de 200€ mensais.
Só que, como se verificou, não existe fundamento para dar como não provado o ponto 10 dos factos provados, justamente o ponto de facto que entendeu ser aquele o valor locativo mensal do R/C Dtº.
A esta vista, e só por aqui, face a permanência do ponto 10 no elenco dos factos provados, tanto bastaria para concluir pela falta de fundamento da revogação da sentença neste trecho decisório.
Reforça-se o que foi argumentado pela 1ª instância quanto a esta condenação do réu a pagar ao autor indemnização, pela privação do gozo e fruição do R/C Dto, remetendo para a doutrina e jurisprudência que, sinteticamente, se enuncia.
Assim, Henrique Mesquita (Obrigações Reais e Ónus Reais, pág. 106 e seg.) expressamente admite que o proprietário esbulhado possa cumular a condenação do esbulhador na restituição com pretensões indemnizatórias.
Pires de Lima e Antunes Varela (CC anotado, vol. III, 2ª edição, 1984, pág. 113) mencionam que o autor da acção de reivindicação pode cumular pedido de indemnização, designadamente pelo valor do uso que o demandado fez da coisa.
Carvalho Fernandes (Lições de Direitos Reais, 4ª edição, pág. 262) refere que nada obsta a que o autor da acção de reivindicação, peça ainda a condenação do réu no pagamento de indemnização por danos sofridos por efeito de privação indevida da coisa.
Igualmente, Nuno Pissarra (Das Ações Reais, vol. II, 2021, pág. 2175) menciona a possibilidade de cumulação de pedido de condenação na restituição da coisa com pedido de indemnização.
Na jurisprudência, além da que vem enunciada na sentença, podem ver-se, entre outros:
-Ac. TRE, de 13/01/2013 (Rui Mora):
Tendo ficado provado que, se a parte do prédio ocupada pelos RR. fosse arrendada, os AA. obteriam uma renda mensal de € 150,00 (cento e cinquenta euros), estão os RR., inequivocamente, constituídos na obrigação de pagar aos AA., a título de indemnização por lucros cessantes, a quantia equivalente a € 150,00 (cento e cinquenta euros) por cada mês em que os RR. ocuparem parcialmente o prédio ora reivindicado.”
-TRL, de 15/12/2013 (Ilídio Sacarrão Martins):
IV - Com os pedidos próprios da acção de reivindicação (reconhecimento do direito de propriedade e restituição da coisa) podem cumular-se outros pedidos acessórios, v.g. o pedido de indemnização.
V - A privação do uso de uma coisa, inibindo o proprietário ou detentor de exercer sobre a mesma os inerentes poderes, constitui um perda patrimonial que deve ser considerada, tudo se resumindo à detecção do método mais adequado para a quantificação da indemnização compensatória.
VI - A ocupação ilícita de um anexo, causadora de dano para o proprietário, que consiste em ter sido temporariamente privado do gozo pleno e exclusivo dos direitos de uso e fruição, origina a obrigação de indemnizar.”
-TRG, de 20/10/2009 (Rosa Tching):
“2°- Nada impede, na acção de reivindicação, que aos dois indicados pedidos se acrescentem outros pedidos acessórios, desde que caibam neste tipo de acção, como, por exemplo, o de indemnização dos danos causados na coisa pelo demandado, ou do valor do uso que este dela fez, e o de condenação do demandado na demolição de obra por ele feita, indevidamente, na coisa reivindicada.”
-STJ, de 27/11/1991 (Meneres Pimentel):
I - Há ocupação ilegítima do locado, posteriormente ao falecimento do arrendatário em 6 de Dezembro de 1979, se os ocupantes não possuem recibos de renda passados pelo titular do domínio, nem provam novo arrendamento.
III - Tal ocupação da ao titular do domínio o direito a restituição do locado, e as vantagens da ocupação direito a indemnização.”
STJ, de 15/01/2004 (Luís Fonseca):
V- Tendo o réu fruído o andar, pelo menos desde 1/3/93, sem retribuir a fruição pois não paga qualquer renda ou outra prestação, deve indemnizar o autor, dono e possuidor do andar, pelo prejuízo que este teve, o qual, enquanto existiu título válido (direito a novo arrendamento) corresponde ao valor que o autor receberia, caso tivesse celebrado o novo contrato de arrendamento de renda condicionada.
A partir da extinção do título, o réu deve indemnizar o autor pelo valor mensal pedido que é inferior ao valor comercial do arrendamento da referida fracção, até efectiva entrega ao autor.
Portanto, em face da doutrina e da jurisprudência mencionadas e tendo sido provado que o R/C Dtº tem o valor de arrendamento de pelo menos 200€ mensais, resta concluir que a 1ª instância decidiu bem ao condenar o réu na indemnização de 200€ por mês.
Assim, improcede o recurso quanto ao pedido de revogação da sentença na parte em que condenou o réu a pagar a mencionada indemnização.       
3.2.4- A condenação do réu a pagar sanção pecuniária compulsória.
A 1ª instância condenou o réu a pagar sanção pecuniária compulsória de 20€ diários por cada dia de atraso na restituição do R/C Dto.
Fundamentou, a 1ª instância, a sua decisão, escrevendo:
Peticiona, ainda, o Autor que seja fixada sanção pecuniária compulsória, no valor de € 33,33 (trinta e três euros e trinta e três cêntimos), por cada dia de atraso na entrega da fração reivindicada.
Estatui o mencionado art. 829.º-A, do Código Civil, “nas obrigações de prestação de facto infungível, positivo ou negativo, salvo nas que exigem especiais qualidades científicas ou artísticas do obrigado, o tribunal deve, a requerimento do credor, condenar o devedor ao pagamento de uma quantia pecuniária por cada dia de atraso no cumprimento ou por cada infração, conforme for mais conveniente às circunstâncias do caso” (nº 1); estabelecendo o respetivo no nº. 4, que “quando for estipulado ou judicialmente determinado qualquer pagamento em dinheiro corrente, são automaticamente devidos juros à taxa de 5% ao ano, desde a data em que a sentença de condenação transitar em julgado, os quais acrescerão aos juros de mora, se estes forem também devidos, ou à indemnização a que houver lugar”. A sanção pecuniária estabelecida no nº. 1, tem que ser aplicada pelo Tribunal, sustentada em critérios de razoabilidade, na própria sentença condenatória, a sanção pecuniária compulsória a que alude o nº. 4, do enunciado preceito, é de aplicação automática, nos casos em que tenha sido estipulado judicialmente determinado pagamento em dinheiro corrente.
Considerando o valor locativo da fração reivindicada, fixa-se em € 20,00 (vinte
euros) a sanção pecuniária compulsória devida pelo Réu por cada dia de atraso na
entrega da mesma.”
A questão que se coloca é a de saber se haverá fundamento para condenar o réu em sanção pecuniária compulsória.
Pois bem, como é sabido, ao artº 829º-A do CC consagra providências compulsórias de natureza pecuniária. O instituto é aplicável em termos limitados: só podendo funcionar relativamente a obrigações de facto infungível, positivo ou negativo, e desde que o cumprimento não exija especiais qualidades científicas ou artísticas do devedor.
Trata-se de uma “…condenação pecuniária decretada pelo juiz para constranger e determinar o devedor recalcitrante a cumprir a sua obrigação. É, pois, um meio de constrangimento judicial que exerce pressão sobre a vontade lassa do devedor, apto para triunfar da sua resistência e para determiná-lo a acatar a decisão do juiz e a cumprir a sua obrigação, sob a ameaça ou compulsão de uma adequada sanção pecuniária, distinta e independente da indemnização…” (Cf. Calvão da Silva, Cumprimento e Sanção Pecuniária Compulsória, 1995, pág. 355).
Porém, a fixação da sanção pecuniária compulsória só é possível nos termos em que, segundo o artº 829º-A, nº 1, CC, tal é legalmente permitido: obrigação de prestação de facto infungível que não exija especiais qualidades científicas ou artísticas do obrigado. (Cf. Teixeira de Sousa, CPC online, Livro II, pág. 18, anotação 5 ao artº 365º CPC, consultado a 09/02/2024; no mesmo sentido, Geraldes/Pimenta/Sousa, CPC anotado, Vol. I, 2ª edição pág. 44 anotação 6 ao artº 365º CPC).
Portanto, a aplicação de sanção pecuniária compulsória apenas é possível relativamente a obrigações de facto infungível, positivo ou negativo, e desde que o cumprimento não exija especiais qualidades científicas ou artísticas do devedor.
Calvão da Silva, na mencionada obra, explica como se deve aferir da possibilidade de aplicação de sanção pecuniária compulsória: depende da fungibilidade ou infungibilidade da prestação. Se o cumprimento da obrigação é possível por intermédio de terceiro, ainda que coercivamente, trata-se de obrigação fungível e, por isso, insusceptível de condenação do devedor em sanção pecuniária compulsória. Se o cumprimento da prestação in natura não é possível de ser satisfeito por intermédio de terceiro, então, estamos perante uma obrigação infungível, permitindo, então, a condenação em sanção pecuniária compulsória.
Refere o mencionado autor “Por definição e por função, a sanção pecuniária compulsória não é um fim em si mesmo: a sua utilização visa obter a realização de uma prestação, judicialmente reconhecida, a que o credor tem direito, consistindo, apenas, uma forma de protecção do credor contra o devedor relapso e um reforço da tutela específica do direito daquele à realização in natura da prestação que lhe é devida.” (Calvão da Silva, Cumprimento e Sanção Pecuniária Compulsória, 1995, pág. 355). Por tanto, a sanção pecuniária compulsória visa “…colmatar a insuficiência ou lacuna do processo executivo…e é destinada a fazer pressão sobre a vontade do devedor e a vencer a sua resistência, a fim de o decidir a cumprir voluntariamente as obrigações não susceptíveis de cumprimento forçado, isto é, de execução in natura por falta de correspondente de acção executiva que efective e actue a sentença de condenação no cumprimento.” (A. e ob. Cit., pág, 356).
Em suma: se a prestação é susceptível de ser executada judicialmente, não pode haver lugar à aplicação de sanção pecuniária compulsória.
Ora, no caso dos autos a condenação do réu a entregar ao autor o R/C Dto pode ser judicialmente executada mediante execução para entrega de coisa certa; pelo que não é admissível cumular com aquela condenação de entrega do R/C Dto com condenação em sanção pecuniária compulsória.
A esta luz, sem necessidade de mais considerandos, conclui-se que, quanto a este ponto, a decisão da 1ª instância deve ser revogada, não havendo lugar a condenação em sanção pecuniária compulsória.
Em conclusão, o recurso procede parcialmente.
***
III-DECISÃO.
Em face do exposto, acordam neste colectivo da 6ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa, julgar o recurso parcialmente procedente e, consequentemente, revogam a parte da sentença que condenou o réu no pagamento de sanção pecuniária compulsória (de 20€ por cada dia de atraso na entrega do R/C Dtº do prédio sito no nº … da Avenida de Roma, Lisboa, ao autor), absolvendo, assim, o réu quanto a este pedido e, no mais, mantêm a sentença sob impugnação.
Custas na instância de recurso, pelo autor e pelo réu, na proporção de 1/10 para o autor e, de 9/10 para o réu, havendo lugar à aplicação do disposto no artº 26º nº 6 do RCP, dado que o réu litiga com benefício de apoio judiciário na modalidade de dispensa de pagamento de taxas de justiça e demais encargos.

Lisboa, 22/02/2024
Adeodato Brotas
João Brasão
Octávia Viegas.