Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
458/23.0GCMFR-A.L1-5
Relator: ESTER PACHECO DOS SANTOS
Descritores: MEDIDA DE COAÇÃO
PRINCÍPIO DA SUBSIDIARIEDADE DA PRISÃO PREVENTIVA
FINALIDADES CAUTELARES DAS MEDIDAS DE COAÇÃO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 02/20/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NÃO PROVIDO
Sumário: (da responsabilidade da relatora)
1 – O recurso relativo à não aplicação de uma medida de coação reporta-se a uma decisão pretérita, mas o efeito do seu eventual provimento implica a aplicação de uma nova medida de coação.
2- Em conexão com os princípios da necessidade, adequação e proporcionalidade está também o princípio da subsidiariedade da prisão preventiva, consagrado pelo artigo 193.º, n.º 2, do CPP e em conformidade com o artigo 28.º, n.º 2, da CRP.
3 - Às medidas de coacção correspondem finalidades estritamente cautelares e não de satisfação de exigências de prevenção, geral e especial.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Em conferência, acordam os Juízes na 5ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:

I – Relatório
1. No Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Oeste, após primeiro interrogatório judicial, foram impostas ao arguido AA, por despacho judicial de 14 outubro de 2023, as medidas de coação de:
a) TIR, já prestado;
b) Proibição de contactar por qualquer meio com a ofendida e seus filhos;
c) Proibição de permanecer e de se aproximar da residência e local de trabalho, (art.ºs 200.º, n.º 1, alíneas a) e d), e 204.º, alínea c), do Código de Processo Penal), medidas as fiscalizar com recurso a meios eletrónicos.
2. Recorreu o Ministério Público, retirando da respetiva motivação as conclusões que se transcrevem:
1. No dia 14-10-2023, o Ministério Público apresentou o arguido AA a primeiro interrogatório judicial de arguido detido, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 141.º, do Código do Processo Penal, pela forte indiciação dos factos aí constantes, susceptíveis de integrar a prática de 1 (um) crime de violência doméstica, previsto e punido pelo artigo 152.º, n.º 1, alínea b) e n.º 2, alínea a), do Código Penal.
2. Após tomada de declarações ao arguido, em sede de primeiro interrogatório judicial de arguido detido, o Ministério Público, considerando que havia perigo concreto de perturbação do decurso do Inquérito ou da Instrução do Processo e, nomeadamente, perigo para a aquisição, conservação e veracidade da prova, e perigo concreto de continuação da actividade criminosa, promoveu a aplicação ao arguido das seguintes medidas de coacção:
a. TIR;
b. Prisão Preventiva; e
c. Proibição de contactar, por qualquer meio, com a ofendida.
3. A Meritíssima Juiz de Instrução decidiu que o arguido ficaria apenas sujeito às medidas de coacção de proibição de contactos com a ofendida e seus filhos por qualquer meio e forma; e proibição de permanecer e de se aproximar da residência e do local de trabalho da ofendida, medidas a fiscalizar com recurso a meios electrónicos, nos termos do disposto nos artigos 191.º, 192.º, 193.º, 196.º, 200.º, n.º 1, alínea a) e d) e 204.º, alínea c), todos do Código de Processo Penal.
4. Como fundamento dessa decisão tomada, a Meritíssima Juiz de Instrução considerou que as exigências cautelares estariam asseguradas com a aplicação de medida não privativa da liberdade, considerando a relativa gravidade das condutas (atento o dano potencial que pode ser causado no bem jurídico protegido pela incriminação).
5. Salvo melhor entendimento, consideramos que a decisão proferida violou o disposto nos artigos 191.º, 193.º, n.º 1 e 202.º, alínea b), todos do Código de Processo Penal.
6. No caso dos autos existe concreto e intenso perigo de continuação da actividade criminosa, perigo de perturbação do inquérito, nomeadamente perigo para a conservação da prova, e perigo, em razão da natureza e das circunstâncias do crime e da personalidade do arguido, de que o mesmo perturbe gravemente a ordem e tranquilidade públicas.
7. Os perigos enunciados não poderão ser adequadamente acautelados através da aplicação ao arguido de medida de coacção não privativa da liberdade.
8. Pese embora tendo presente ser a prisão preventiva a última ratio, quando já não é possível o recurso a outras medidas menos gravosas, concluímos ser esta a única medida de coação que se mostra, `in casu´ necessária e adequada às exigências cautelares que o caso requer e proporcional à gravidade do crime imputado ao arguido e respectivo contexto em que o mesmo tem sido praticado.
9. Resulta patente que o arguido não interiorizou o mal que fez, não só à ofendida, mas também à Sociedade.
10. Com efeito, o arguido continua a persegui-la, tentando cruzar-se com ela várias vezes, projectando o carro que conduzia contra ela, quando ela se encontrava a caminhar apeada na via pública, e que só por circunstâncias alheias à sua vontade não a atingiu corporalmente.
11. O arguido continua a remeter mensagens intimidatórias para a ofendida e para pessoas próximas da ofendida, que bem sabe que lhe vão transmitir o que ele lhes tem veiculado, até para que a ofendida fique de sobreaviso e se consiga proteger melhor de mais algum mal que ele tente fazer-lhe, o que a atemoriza diariamente.
12. O arguido apresentou em sede de primeiro interrogatório judicial um discurso desculpabilizante e desresponsabilizante dos actos que tem vindo a praticar, o que é revelador de que continua com uma enorme fixação e obsessão pela pessoa da aqui ofendida, culpabilizando-a pelos males que ele diz que lhe aconteceram.
13. Não nos esqueçamos que, sem motivo aparente, e apenas porque a ofendida era habitual frequentadora do bar "Insólito", o arguido decidiu incendiá-lo, situação que originou o processo n.º 446/22.3GCMFR pelo qual o arguido ficou em prisão preventiva e foi posteriormente condenado numa pena de prisão suspensa.
14. E nesse processo crime de incêndio, o arguido actuou sem pensar nas consequências que daí poderiam advir, nomeadamente para a vida de terceiros que se encontrassem a residir junto do bar.
15. As próprias declarações prestadas pelo arguido em sede de primeiro interrogatório judicial, em que, referindo-se ao bar que incendiou, disse, "paguei-lhes a esplanada toda. Fui o melhor cliente do bar!", são demonstrativas ao mesmo tempo de uma frieza de ânimo, de um completo desprezo pelas consequências nefastas que os seus actos provocam no outro e bem assim de uma completa falta de interiorização das graves condutas que têm vindo a praticar, demonstrativo de uma personalidade fortemente contrária ao direito e ao dever ser social.
16. No caso em concreto, existe fundado receio para crer que ficando em liberdade, o arguido possa atentar de forma grave e irreversível contra a integridade física, ou contra a própria vida da ofendida, que tal actuação possa abranger terceiros, o que não seria inédito, uma vez que ele já o fez no passado ao incendiar há um ano atrás o bar que a ofendida frequentava.
17. Mais uma vez vincamos, no âmbito do processo com o n.º 446/22.3GO/1TR o arguido foi condenado na prática do crime de incêndio, tendo-lhe ali sido aplicada a medida de coacção mais gravosa de prisão preventiva, e passado pouco mais de dois meses após ter saído em liberdade nesse processo, o arguido voltou a ter o mesmo tipo de comportamento persecutório e de intimidação para com a ofendida e para com pessoas próximas da mesma, o que é revelador que as finalidades de prevenção e de ressocialização que se pretenderam naquele processo não surtiram qualquer efeito no arguido, actuando o mesmo à revelia e em total desrespeito pela anterior condenação.
18. As medidas de coacção a que o arguido se encontra presentemente sujeito, não são, pois, as necessárias, adequadas e proporcionais, às exigência cautelares que o caso requerer, atento o elevado grau de ilicitude e censurabilidade das condutas do arguido; a imprevisibilidade da sua actuação; o descontrolo emocional do mesmo revelado pelas suas condutas, aliado a uma fixação e obsessão incompreensíveis que o mesmo demonstra ter pela ofendida; a repercussão social do tipo de crime em apreço; o elevado perigo de continuação da actividade criminosa; e a forte probabilidade de em sede de julgamento ser- -lhe aplicada pena de prisão efectiva.
19. A ofendida vive diariamente amedrontada e com receio justificado que o arguido atente contra a sua integridade física, contra a sua vida e contra a sua liberdade, encontrando-se desprotegida e impedida de fazer as suas tarefas diárias dentro da normalidade.
20. A não actuação por parte do Tribunal para fazer cessar essa situação de desprotecção da vítima irá criar um ainda maior sentimento de impunidade por parte do arguido, traindo desse modo a protecção que a Justiça deveria providenciar.
21. Termos em que se requer que o recurso seja julgado procedente e consequentemente seja a decisão recorrida revogada e substituída por decisão que determine a aplicação ao arguido das medidas de coacção promovidas pelo Ministério Público, em sede de 1.º interrogatório de arguido detido, nos seus exactos termos.
3. O arguido apresentou resposta ao recurso interposto pelo Ministério Público, pugnando pela sua improcedência e formulando as conclusões que se transcrevem:
a. Vem o Ministério Público apresentar Recurso da douta decisão proferida no dia 14 de Outubro de 2023.
b. O Arguido entende que o Recurso apresentado não tem qualquer fundamento, senão vejamos.
c. O Arguido entende que não se encontra fortemente indiciada a matéria constante do despacho de apresentação do Arguido.
d. O Arguido não praticou qualquer crime.
e. Basta analisar o teor das comunicações escritas para se perceber que não configuram a prática de qualquer crime.
f. Acresce que não são conhecidos fundamentos para alterar as medidas de coação aplicadas, visto que já decorreu cerca de um mês e meio desde a aplicação e tais medidas vislumbraram-se suficientes para acautelar os perigos, mesmo potenciais, invocados pelo Ministério Público.
g. Assim sendo, sem mais delongas, desde já se requer o indeferimento do recurso.
4. Nesta Relação, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer, secundando a posição expressa pelo Ministério Público em 1.ª instância.
5. Cumprido o disposto no art.º 417.º, n.º 2 do Código de Processo Penal (adiante designado CPP), não foi apresentada resposta.
6. Colhidos os vistos, foram os autos à conferência.
Cumpre apreciar e decidir.
II – Fundamentação
1. Objeto do recurso
De acordo com o estatuído no art.º 412.º do CPP e com a jurisprudência fixada pelo Acórdão do Plenário da Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça n.º 7/95, de 19 de outubro de 1995, o âmbito do recurso é definido pelas conclusões que o recorrente extrai da respetiva motivação, que delimitam as questões que o tribunal ad quem deve apreciar, sem prejuízo das que sejam conhecimento oficioso, mormente os vícios enunciados no art.º 410.º n.º 2 CPP.
No caso concreto, face às conclusões extraídas pelo Ministério Público da motivação do recurso interposto, cumpre apreciar a seguinte questão:
• Das medidas de coação impostas ao arguido, pugnando pela respetiva substituição e aplicação da medida de coação de prisão preventiva.
2. Elementos relevantes
2.1. É do seguinte teor o despacho recorrido, conforme consta do auto de 1.º interrogatório judicial de arguido detido (transcrição):
Julgo válida a detenção do arguido AA porque efetuada a coberto de mandado de detenção fora de flagrante delito emitido pela autoridade judiciária, com respeito pelas formalidades legais, e tempestiva a sua apresentação em juízo – artigo 254.º n.º 1 al a) e 257.º do CPP.
Indiciam os autos a prática pelo arguido dos factos narrados no despacho de apresentação cujo teor, por razões de economia e celeridade processual aqui se dá integralmente por reproduzido.
A convicção do tribunal fundamenta-se nos elementos de prova arrolados pelo Ministério Público, com particular relevância para o depoimento da ofendida e sua filha, em conjugação com as declarações parcialmente confessórias do arguido.
Com efeito, quando confrontado com os factos o arguido assumiu ter dirigido à filha da ofendida as mensagens transcritas no despacho de apresentação, mas negou que veiculassem qualquer tipo de ameaça velada e a tentativa de atropelamento da ofendida. Admitiu que foi ele quem pôs termo ao relacionamento com a ofendida, por esta lhe ser infiel, e lhe dirigiu em algumas ocasiões as expressões injuriosas que lhe são atribuídas.
Atualmente reside em ... com a sua mãe, doente oncológica, sendo seu cuidador. Não frequenta o ..., nem o bar .... É licenciado em sociologia e encontra-se a realizar um curso de “Técnico de apoio psicossocial” patrocinado pela ..., com grande empregabilidade.
Os factos de que o arguido se encontra indiciado consubstanciam a prática de um crime de violência doméstica p e p pelo artigo 152.º n.º 1, alíneas b) n.º 2 C. Penal.
Ora, os crimes de violência doméstica integram o conceito de criminalidade violenta (artº 1º al. j) do CPP). Socialmente os casos de violência doméstica encontram uma crescente reprovação não só pela consciência do seu elevado número e frequência, mas também pelas graves consequências na saúde das pessoas que dele são vítimas. É, por isso, grande o alarme que estas condutas suscitam na sociedade que reclama por parte dos tribunais uma atitude firme que proteja as vítimas.
Nos crimes relacionados com violência doméstica está sempre presente um intenso perigo de continuação da atividade criminosa potenciado pela proximidade existencial entre a vítima e agressor.
No caso vertente arguido e ofendida estão separados e atualmente não vivem, sequer, na mesma localidade.
Apesar do arguido negar veementemente os factos o certo é que está convicto que foram a ofendida e filhos quem vandalizou o seu veículo automóvel enquanto esteve estacionado junto ao bar ...” quando esteve em prisão preventiva. A convicção do arguido é, seguramente, um elemento catalisador para a continuidade dos contactos e alguns comentários que, para a ofendida e sua filha, têm um caráter ameaçador, ainda que de forma velada. Nestas circunstâncias há que reconhecer a existência de um foco de conflito a fazer temer pela segurança e tranquilidade da ofendida.
Considerando a relativa gravidade das condutas (atento o dano potencial que pode ser causado no bem jurídico protegido pela incriminação) considera o tribunal que as exigências cautelares serão asseguradas mediante a aplicação de medida que o não prive da liberdade, artigos 191.º, 192.º, 193.º, 200.º n.º 1 al a) e
d) e 204.º al b) e c) do CPP, devendo o arguido aguardar os ulteriores termos sujeito a;
a) TIR, já prestado;
b) Proibição de contactar por qualquer meio com a ofendida e seus filhos
c) Proibição de permanecer e de se aproximar da residência e local de trabalho,
(arts. 200.º, n.º 1, alíneas a) e d), e 204.º, alínea c), do Código de Processo
Penal), medidas as fiscalizar com recurso a meios eletrónicos.
Notifique, sendo o arguido com a expressa advertência que o incumprimento destas medidas legitima o seu agravamento com a imposição de medida privativa da liberdade.
Solicite com nota de urgente a realização de relatório à DGRSP.
Comunique à ofendida a aplicação desta medida.
Restitua o arguido à liberdade.
Notifique.
2.2. Factos que o Ministério Público imputou ao arguido – despacho de apresentação (transcrição):
1. O arguido e BB (doravante designada por BB) iniciaram uma relação de namoro no mês de Julho de 2015 e passaram a viver comunhão de leito, mesa e habitação, como se de marido e mulher se tratassem, cerca de dois meses depois.
2. A relação entre o casal terminou no mês de Abril de 2022, por vontade do arguido.
3. No início da relação o casal fixou residência numa habitação sita na ..., em ..., e cerca de dois anos depois passou a residir na habitação sita na ....
4. A partir do ano de 2019 e até ao final da relação, com uma periodicidade praticamente diária, na sequência de discussões motivadas porque ele não queria que BB saísse à noite para o estabelecimento comercial denominado ...” snack bar localizado no ..., em ..., o arguido dirigia- -se a BB e dizia-lhe:
“És burra, pouco inteligente! Puta! Não vales nada!”.
5. No dia 05-09-2022, após o final da relação, entre as 23h00m e as 23h30m, o arguido deslocou se ao estabelecimento comercial denominado “...”, onde sabia que BB se encontrava.
6. Ali chegado, o arguido, dirigiu-se a BB, que se encontrava na esplanada daquele estabelecimento comercial, e, em tom de voz sério e grave, e junto da cara daquela, disse-lhe:
“Eu faço-te a folha! Olha bem quando andas na estrada! Tu és uma cabra, vens para aqui para arranjares homens. És uma puta! És uma vaca! Filha da puta! Olha bem para onde andas, quando andares na rua!”.
7. Entretanto, ao se perceber do barulho e das movimentações que se faziam sentir no exterior do seu estabelecimento comercial, CC deslocou- -se ao pátio do mesmo e pediu ao arguido que abandonasse o local.
8. Nessa altura o arguido afastou-se do referido estabelecimento comercial, mas continuou a gritar, dirigindo-se a BB, dizendo-lhe:
“És uma puta! Tu é que andas a querer arranjar estas confusões todas!”.
9. No dia 06-09-2022, o arguido deslocou-se novamente ao estabelecimento comercial denominado “insólito”, e dirigiu-se -se a BB, que ali se encontrava, e acusou-a de lhe ter riscado o carro.
10. Em data não concretamente apurada, mas situada entre o dia 07-09-2022 e o dia 10-09-2022, BB estava a deslocar-se apeada para o seu local de trabalho, sito em ....
11. Nessa ocasião, o arguido, que conduzia o seu carro, e a viu a caminhar junto da Igreja, sita no ..., em ..., deu a volta à ..., e acelerou a marcha do veículo que conduzia na direcção de BB.
12. O arguido só não atropelou BB porque esta se desviou para o meio de veículos automóveis que se encontravam parqueados no local.
13. Nessa altura, o arguido imobilizou o veículo que conduzia e, em tom de voz sério e grave, dirigiu-se a BB e disse-lhe:
“Desta vez escapastes! Para a próxima não sei se te escapas! Cona da mãe! Puta! Vaca! Filha da puta!”.
14. No dia 10-09-2022, às 21h14m, o arguido remeteu uma mensagem escrita para o telemóvel de DD, filha de BB, dizendo que ia bloquear os contactos daquela e de BB, e acusou-as de lhe terem riscado o carro dele.
15. Ainda na mesma mensagem, o arguido, referindo-se a BB, escreveu que ela era uma puta e mentirosa e que numa ocasião quando chegou a casa vinda do estabelecimento comercial “ Insólito”, que cheirava a homem, e que era uma puta de merda e que só não a atropelou porque tinha o gato e não o queria deixar sozinho.
16. No dia seguinte, 11-09-2022, da parte da tarde, DD deslocou-se à residência do arguido para ir buscar uma carta dirigida ao seu irmão que tinha sido remetida para casa do arguido.
17. Já no interior da residência dele, na sequência de uma conversa que estavam a ter, o arguido, referindo-se a BB, disse a DD:
“Eu sei o horário da tua mãe, sei a hora a que ela vai trabalhar, ela vai sempre com os fones na cabeça, e vai a pé, eu podia atropelá-la, passar-lhe com o carro por cima! Se injectasse um pouco de heroína, não iria sentir dor mesmo que ela tentasse agredir-me. Posso espetar com a cabeça dela contra a parede até ela morrer”.
18. Preocupada com aquelas palavras proferidas pelo arguido, DD, contou a BB o que aquele lhe tinha dito e pediu-lhe para ter cuidado quando andasse na rua.
19. Entretanto, no dia 12-09-2022, cerca da 01h20m, na sequência dos factos ocorridos em 6. a 8., e por saber que BB era frequentadora daquele estabelecimento comercial, o arguido deslocou- se ao snack bar denominado ...” e ateou fogo ao mesmo, factos esses que deram origem ao Processo crime n.º 446/22.3GCMFR.
20. E, no âmbito desse Processo, que corre termos no Tribunal de Sintra JC Criminal, Juiz 5, foi ao arguido, no dia 15-09-2022, aplicada a medida de coacção de prisão preventiva e, posteriormente, sujeito a julgamento foi o mesmo condenado, por sentença datada de ...-...-2023, transitada em julgado no dia 05-07-2023, na pena de quatro anos prisão, suspensa na sua execução por igual período, sujeita a regime de prova.
21. Sucede que, apesar da medida de coacção que lhe foi aplicada nesse processo e do acórdão condenatório ali proferido, o arguido continua a amedrontar BB e os que a rodeiam.
22. Com efeito, no dia 01-09-2023, às 17h15m, o arguido mandou a seguinte mensagem escrita para DD:
- “Olá tudo bem contigo e com a família, só para informar-te que as comemorações do mês de Setembro já começaram. Começou por um comentário irónico no facebook de BB "A vedeta". Mais eventos serás informada. E sei que lá estarás no dia ... à 01h30m da manhã
23. Ainda no mesmo dia, o arguido remeteu uma mensagem para o facebook de BB e fez o seguinte comentário escrito ao perfil dela que tinha uma imagem do mar:
- “A fotografia tinha muita água assim como a tua vida. Devias estar muito feliz no dia 27-09-2022 porque ele tinha sido preso poucos dias antes
24. Novamente, no dia 03-09-2023, às 11h57m, o arguido remeteu uma mensagem escrita para DD, em que se referiu ao facto de a ter visto, através de uma transmissão emitida pelo facebook por parte do respectivo dono, a trabalhar no dia anterior no snack bar ...”, com o seguinte teor:
- Boa folga, ontem no facebook vi a transmissão e tu fartaste-te de aparecer na câmara a trabalhar”.
25. No dia 10-09-2023, cerca das 21h00m, quando conduzia o seu carro na ..., sentido ..., o arguido viu BB a caminhar a pé, na zona pedonal delimitada por pinos, a atravessar o cruzamento para a ..., em ..., perpendicular à ..., no sentido ....
26. Então, o arguido fez inversão de marcha, e de seguida acelerou o veículo automóvel que conduzia na direcção de BB.
27. O arguido não atropelou BB uma vez que ela se conseguiu desviar do veículo automóvel que ele conduzia.
28. Nessa altura, o arguido abriu o vidro da porta do veículo que conduzia e dirigiu-se a BB e disse-lhe “Brevemente estaremos todos juntos!”, atemorizando-a.
29. Com medo dos comportamentos que o arguido tem vindo a perpetrar contra ela, BB deixou de fazer caminhadas regulares na via pública e deixou de se deslocar para o seu local de trabalho apeada, solicitando sempre a terceiros que a conduzam de carro.
30. BB vive diariamente com receio que o arguido atente contra a sua integridade física e contar a sua vida.
31. Com as condutas acima descritas o arguido quis e conseguiu ofender BB na sua honra e dignidade, na sua integridade física, e na sua liberdade pessoal, para que esta se sentisse lesada na sua dignidade, bem sabendo que praticando parte desses actos no interior da residência comum do casal, estava a privá-la de qualquer possibilidade de reacção, causando-lhe um profundo sentimento de insegurança.
32. O arguido actuou com o propósito de atingir e lesar o corpo e saúde de BB, apenas não o tendo logrado por motivos alheios à sua vontade.
33. Sabia o arguido que as expressões dirigidas a BB eram insultuosas e que a ofendiam na sua honra e consideração, o que logrou conseguir.
34. As expressões ameaçadoras que o arguido dirigiu a BB, considerando todas as circunstâncias que as rodearam, nomeadamente o facto de o arguido se encontrar num estado de extrema exaltação quando as anunciava e de já ter anteriormente ateado fogo a estabelecimento comercial frequentado por aquela, foram proferidas de forma a provocar-lhe receio e inquietação, o que logrou conseguir.
35. O arguido actuou sempre com intenção de maltratar física e psiquicamente BB, o que de facto veio a conseguir.
36. O arguido agiu sempre de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas pela lei penal.
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3. Apreciando
O Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 16/2014 - Diário da República n.º 3/2015, Série I de 2015 - fixou jurisprudência no sentido de que: «É admissível recurso do Ministério Público de decisão que indefere, revoga ou declara extinta medida de coacção por ele requerida ou proposta.»
Sendo essa a leitura a realizar do art.º 219.º, n.º 1 do CPP, certo é que só em casos excecionais o tribunal de recurso poderá divergir da decisão da 1ª instância, isto porque o recurso reporta-se a uma decisão pretérita, mas o efeito do seu eventual provimento implica a aplicação de uma nova medida de coação.
No entanto, considera o Ministério Público que a decisão proferida, ao não ter aplicado ao arguido a medida de coação de prisão preventiva, violou o disposto nos artigos 191.º, 193.º, n.º 1 e 202.º, alínea b), todos do CPP.
Como é sabido, as necessidades processuais de natureza cautelar a que as medidas de coação procuram dar resposta resultam da existência dos perigos elencados nas três alíneas do artigo 204.º do CPP, sendo que no caso dos autos o despacho recorrido fundamentou a aplicação das medidas de coação ao arguido naqueles a que se referem as alíneas b) e c) da disposição legal em apreço. Fez ainda apelo à “relativa gravidade das condutas (atento o dano potencial que pode ser causado no bem jurídico protegido pela incriminação)”.
Ora, olhando à situação em apreço, e considerando, no essencial, que “no caso vertente arguido e ofendida estão separados e atualmente não vivem, sequer, na mesma localidade”, afigura-se-nos que as medidas de coação impostas não se mostram desproporcionadas à gravidade dos factos e às sanções que previsivelmente venham a ser aplicadas.
Na verdade, da análise que realizamos do despacho recorrido não verificamos qualquer excepção, que permita ultrapassar a circunstância de que a prisão preventiva só pode ser aplicada quando se revelarem inadequadas ou insuficientes outras medidas de coação constantes do catálogo legal.
Com efeito, em conexão com os princípios da necessidade, adequação e proporcionalidade está também o princípio da subsidiariedade da prisão preventiva, consagrado pelo artigo 193.º, n.º 2, do CPP e em conformidade com o artigo 28.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa, que se impõe no caso concreto.
Por conseguinte, e sendo ponto assente que às medidas de coacção correspondem finalidades estritamente cautelares e não de satisfação de exigências de prevenção, geral e especial, certo é que decorridos que se mostram quase quatro meses sobre a sua aplicação, não são conhecidos fundamentos para alterá-las.
Sopesando, e sem prejuízo da existência de novos elementos que justifiquem que o Ministério Público venha a requerer a aplicação da prisão preventiva, nenhum reparo cumpre realizar ao despacho recorrido, sendo o mesmo de manter.
III – Decisão
Pelo exposto, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação de Lisboa em julgar improcedente o recurso interposto pelo Ministério Público, confirmando a decisão recorrida.
Sem custas, por delas estar isento o Ministério Público.
Notifique.
*
Lisboa, 20 de fevereiro de 2024
(texto processado e integralmente revisto pela relatora – artigo 94.º, n.º 2 do Código de Processo Penal)
Ester Pacheco dos Santos
João Ferreira
Luísa Oliveira Alvoeiro