Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
69/23.0YTLSB-A.L1-5
Relator: MAFALDA SEQUINHO DOS SANTOS
Descritores: CONEXÃO DE PROCESSOS
SEPARAÇÃO DE PROCESSOS
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 02/20/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NÃO PROVIDO
Sumário: (da responsabilidade da relatora)
I - As vantagens próprias da conexão objetiva e subjetiva, relacionadas com a facilitação da produção da prova e descoberta da verdade material, não se constituem em princípios absolutos, podendo ter que ceder em circunstâncias excecionais, como no caso de existir prejuízo para a celeridade processual e para o interesse dos arguidos e ofendidos.
II – A par dos direitos do recorrente, incumbe ao Tribunal salvaguardar os direitos processuais dos demais arguidos, em especial dos sujeitos a medidas privativas da liberdade e salvaguardar a eficácia na administração da justiça, o que se traduz no reconhecimento da existência de motivo ponderoso e atendível, que constituirá exceção ao apuramento conjunto da responsabilidade penal.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam em conferência na 5ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:
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I – RELATÓRIO
Em 23/10/2023, no Proc. n.º 53/22.OJELSB, sob promoção do MINISTÉRIO PÚBLICO, foi proferido despacho pela Mma. Juíza de Instrução Criminal, determinando a separação de processos relativamente a AA, na sequência do qual foram instaurados os autos principais.
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Não se conformando com a decisão, interpôs o arguido o presente recurso, com o qual pretende a revogação da mesma. Extraí da respetiva motivação as seguintes conclusões:
«I
Em 27/09/2023 foi o Recorrente foi notificado da Acusação e bem assim para requerendo em 20 dias requerer a Abertura de instrução.
II
Em 02/10/2023, por despacho datado de 29/09/2023 foi designado para debate instrutório o dia 23/10/2023;
III
Em 23/10/2023 teve lugar audiência para Debate Instrutório, durante a qual, a Senhora Juíza de Instrução, ao abrigo do artigo 30º do C.P.P., determinou que o processo em relação ao Arguido fosse separado dos presentes autos.
IV
O Despacho recorrido está ferido de vício por violação do art.º 30º CPP, conjugado com os art.ºs 24º n.º 1 e), 28º n.º 1 a) e c) e 29º n.º 1, todos do CPP, procedendo a uma errada separação processual.»
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Foi admitido o recurso, a subir em separado, imediatamente e com efeito devolutivo, tendo o Tribunal a quo sustentado a decisão.
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O MINISTÉRIO PÚBLICO junto do Tribunal de primeira instância respondeu ao recurso interposto pelo arguido, pugnando pela respetiva improcedência e consequente manutenção da decisão proferida, extraindo da respetiva motivação as seguintes conclusões:
«1. O arguido/recorrente foi constituído como arguido com a dedução da acusação e apenas foi dela pessoalmente notificado no decurso da instrução e, a três dias da realização do debate instrutório, veio requerer a abertura da instrução.
2. Perante este quadro havia duas possibilidades, a primeira, declarava-se sem efeito a data do debate instrutório, designava-se data para a inquirição das testemunhas apresentadas pelo arguido ora recorrente e também nova data para a realização do debate instrutório, possibilidade que determinava o prolongamento da prisão preventiva dois arguidos até ao seu limite e a sua possível libertação, ou, segunda possibilidade, ordenava a separação de processos, realizava o debate instrutório e procedia à leitura da respectiva decisão;
3. A separação permitiu a rápida leitura da decisão instrutória, determinado a passagem do processo para a fase de audiência de discussão e de julgamento, assim, tutelado a posição dos diversos arguidos que não viram o seu julgamento retardado, em especial, dos arguidos em situação de prisão preventiva que não viram esta situação prolongada;
4. O despacho ora em crise procedeu a uma concreta tutela dos valores constitucionais do acesso ao direito e à tutela jurisdicional efectiva, na dimensão de decisão razoável e de processo equitativo (cfr. art.º 20.º da Constituição da República Portuguesa);
5. Ao ordenar a separação processual a Mm.ª Sr.ª JIC levou em consideração que o eventual prolongamento da prisão preventiva poderia conduzir a uma situação de excesso dessa mesma medida de coacção assim determinado ope legis a sua cessação. Se os arguidos estavam em prisão preventiva tal sujeição destinava-se a acautelar os perigos enunciados no art.º 204.º do Código de Processo Penal, razão pela qual a sua eventual libertação lesaria o interesse comunitário na aplicação da justiça e na tutela de bens jurídicos dotados de dignidade penal;
6. Um dos arguidos em prisão preventiva está acusado e pronunciado pela prática de um crime de coacção e um crime de ofensas à integridade física, ambos praticados contra um indivíduo que o mesmo arguido suspeitava ser seu concorrente no mercado da venda ilícita de produtos estupefacientes. Logo, a eventual libertação do arguido e o retardamento do seu julgamento corresponderia a um grave atentado ao interesse do ofendido;
7. O despacho em crise obteve o, difícil e louvável, mérito de conciliar interesses aparentemente antagónicos entre si razão pela qual é uma excelente lição de justiça concreta e merece toda a nossa concordância;
8. Tal como decorre do corpo do n.º 1 do art.º 30.º do Código de Processo Penal, a separação de processos corresponde a uma excepção à conexão, razão pela qual apenas há a verificar se é de aplicar a excepção;
9. A posição defendida pelo recorrente que a separação corresponde a uma violação das normas da conexão, corresponde à perene não aplicação do mencionado artigo 30.º que ficara sem utilidade;
10. A questão do eventual tratamento diferenciado de arguidos, resulta das vicissitudes próprias dos processos judiciais e da prova que resulta produzida em cada processo. A autonomia probatória dos processos pode resultar em diferentes decisões judiciais, mas tal não atinge o caso julgado, uma vez que os arguidos não são os mesmos;
11. 0 despacho recorrido, mas não fez que aplicar - bem - o disposto no art.30.º, n.1, ais. a), b) e c) do Código de Processo Penal, razão pela qual se deve manter.»
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Nesta Relação, o Exmº Sr. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer, pugnando pela improcedência do recurso e acompanhando a argumentação já apresentada na primeira instância, apenas adiantando que deverá ser considerado o limite à conexão processual resultante do n.º 2 do art.º 34.º do Cód. Processo Penal, atendendo a que foi designada a data de 3 de novembro de 2023 para leitura da decisão instrutória.
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Foi dado cumprimento ao disposto no artigo 417.º, n.º 2 do Código de Processo Penal, não tendo o arguido apresentado resposta.
Proferido despacho liminar e colhidos os “vistos”, teve lugar a Conferência.
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II. QUESTÕES A DECIDIR NO RECURSO
O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões da motivação que o recorrente produziu para fundamentar a sua impugnação da decisão da primeira instância (artigos 403.º, 410.º e 412.º, n.º 1, do Cód. Processo Penal), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (AUJ de 19/10/1995, D.R. 28/12/1995) pelo que, no presente caso, cumpre apreciar e decidir se se mostra justificada a cessação da conexão processual.
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III. FUNDAMENTAÇÃO
Decisão recorrida (transcrição)
«Considerando que o arguido BB não se afigura regularmente notificado da acusação na morada constante do Termo de Identidade e Residência, prestado nas folhas 2.525, e verificando-se, por outro lado, que o arguido AA só foi notificado da acusação no passado dia 27 de setembro de 2023 e que, nesse sentido, beneficiando do prazo de 20 dias para requerer a abertura de instrução, só agora o veio fazer, entende o Tribunal que é justificado que se proceda à separação de processos relativamente a estes arguidos, uma vez que os princípios da boa gestão e economia processual que justificam o instituto da conexão de processos impõem também que, verificado o circunstancialismo previsto no artigo 30.º do Código de Processo Penal, se ordene a separação de processos designadamente, quando tal conexão afeta gravemente e de forma desproporcionada a posição dos arguidos e quando exista na separação um interesse ponderoso e entendível por parte dos arguidos designadamente os ora requerentes na separação dos processos.
Face ao exposto, e afigurando-se desnecessário conceder aos demais arguidos o requerido prazo de cinco dias para o exercício do direito ao contraditório, ao abrigo das disposições conjugadas dos artigos 30.º, n.ºs 1 alíneas a) e c) e 31.º, alínea b), ambos do Código de Processo Penal, ordeno a separação de processos por forma a que os presentes autos prossigam nesta fase de instrução para apreciação dos requerimentos de abertura de instrução, apresentados pelos arguidos CC e DD, determinando a extração de certidão de todo o processado e ordenando a sua remessa ao Departamento Central de Investigação e Ação Penal para os fins tidos por convenientes, designadamente, os ora requeridos pelo Digno Magistrado do Ministério Público, no que concerne à notificação do arguido BB e para oportuna distribuição como Instrução no que concerne ao arguido AA e também ao arguido BB, se porventura este vier a exercer esse direito de requerer a abertura de instrução.
Notifique e mais D.N.»
Para a apreciação da questão concreta que nos vem colocada, importa, ainda, ponderar as seguintes circunstâncias processuais:
- No processo onde foi proferida a decisão recorrida, em 4/07/2023, foi deduzida acusação, entre outros, contra o aqui recorrente AA, sendo-lhe imputada a prática, como autor material, de um crime de associações criminosas, na forma consumada, p.p. no art.28.º, n.º 2 do Decreto-lei n.15/93 de 22/1 e, como coautor material, de um crime de tráfico de estupefacientes agravado, na forma consumada, p.p. nos art.ºs 21.º, n.1 e 24.º, al, j) do Decreto-lei n.15/93 de 22/1, com referência as tabelas I-A, I-B e I-C, anexas ao mesmo diploma;
- O aqui recorrente não foi constituído arguido na fase de inquérito, por não ter sido encontrado nas moradas conhecidas nos autos;
- Foi requerida a abertura de instrução pelos arguidos CC e DD;
- Em 27/09/2023, o aqui recorrente compareceu em juízo, foi constituído arguido e prestou TIR.
- Também nessa data, foi notificado da acusação, nos termos do art.º 283º do C. P. Penal, e de que dispunha do prazo de vinte dias, nos termos do disposto no art.º 287º do mesmo diploma, para requerer, caso queira, a abertura da instrução, o que o recorrente veio a fazer por requerimento de 23/10/2023;
- Nessa sequência, na data anteriormente designada para realização de debate instrutório (por despacho de 29/9/2023), foi proferida a decisão recorrida;
- À ordem dos referidos autos dois dos arguidos estão sujeitos a medida de coação privativas da liberdade.
- No processo principal, resultante da separação determinada pela decisão recorrida, foi proferida decisão instrutória em 20/12/2023, pronunciando o arguido e determinando a remessa dos autos para a fase de julgamento.
Da conexão de processos
Sustenta o recorrente que o Tribunal recorrido fez uma incorreta aplicação do art.º 30.º do Cód. Processo Penal, mas a fundamentação do recurso reconduz-se, na verdade, apenas à afirmação da verificação dos pressupostos na conexão.
Estes, contudo, não foram questionando na decisão recorrida.
No âmbito das respetivas competências processuais em fase de inquérito, o MINISTÉRIO PÚBLICO, titular da ação penal, considerou a existência de conexão, deduzindo acusação contra vários arguidos, nos termos do disposto nos art.ºs 24.º a 30.º e 264.º, n.º 5 do Cód. Processo Penal.
Pretendeu-se, certamente, com a opção pelo exercício conjunto da ação penal, viabilizar o julgamento simultâneo de tais agentes, em face da verificação de elementos, designadamente de motivação e de prova, que são comuns, em face das inegáveis vantagens de concentração probatória para a descoberta da verdade material, de economia processual e de uniformidade de julgados.
Mas as vantagens próprias da conexão objetiva e subjetiva, relacionadas com a facilitação da produção da prova e descoberta da verdade material, não se constituem em princípios absolutos, podendo ter que ceder em circunstâncias excecionais, como no caso de existir prejuízo para a celeridade processual e para o interesse dos arguidos e ofendidos.
A ponderação a fazer para a separação de processos deverá tomar em consideração os parâmetros do art.º 30.º do Cód. Processo Penal, que determina que «oficiosamente, ou a requerimento do Ministério Público, do arguido, do assistente ou do lesado, o tribunal faz cessar a conexão e ordena a separação de algum ou alguns processos sempre que:
a) Houver na separação um interesse ponderoso e atendível de qualquer arguido, nomeadamente no não prolongamento da prisão preventiva;
b) A conexão puder representar um grave risco para a pretensão punitiva do Estado, para o interesse do ofendido ou do lesado;
c) A conexão puder retardar excessivamente o decurso do processo, nomeadamente o julgamento de qualquer dos arguidos; ou,
e) Houver declaração de contumácia, ou o julgamento decorrer na ausência de um ou alguns dos arguidos e o tribunal tiver como mais conveniente a separação de processos.
A decisão sindicada considerou existir na separação um interesse ponderoso e atendível dos arguidos, nomeadamente dos sujeitos a medidas privativa da liberdade (als. a) e c) do n.º 1, do art.º 30.º do Cód. Processo Penal) em ver decidida de modo célere a instrução.
E a pretensão punitiva do Estado reconheceu a existência de motivo ponderoso e atendível, que constitui exceção ao apuramento conjunto da responsabilidade dos arguidos.
Certamente que ponderou os riscos da quebra de harmonia, da unidade coerente que sempre resultaria do julgamento conjunto, pois que a separação de processos implica repetições de atos jurisdicionais, de produção de prova, de decisões e recursos autónomos, pelo que deve ser encarada como uma opção claramente excecional.
Assim o dita o valor da eficácia da Justiça, também ele com consagração constitucional, emanação que é do Estado de Direito Democrático, consagrado no art.º 2.º da Constituição da República Portuguesa (CRP).
Mas, na situação concreta, como refere o titular da ação penal, a separação de processos permitiu a rápida leitura da decisão instrutória, determinando a passagem do processo para a fase de audiência de discussão e de julgamento, assim tutelando os direitos dos demais arguidos (nomeadamente dos sujeitos a medidas privativas da liberdade) que não viram o seu julgamento retardado.
Concorda-se, por isso, que o Tribunal a quo fez uma ponderação equilibrada dos diversos valores e direitos tutelados – como sejam o do acesso ao direito e à tutela jurisdicional efetiva, na dimensão de decisão célere, razoável, com recurso a um processo equitativo (cfr. art.º 20.º da CRP), o da salvaguarda dos direitos dos arguidos, com inteira lealdade processual e o da tutela dos interesses da comunidade.
O recorrente apenas se apresentou em juízo na fase de instrução, impondo a salvaguarda dos respetivos direitos a sua notificação da acusação e a concessão de prazo para requerer, querendo, a abertura de instrução. Isto, com inteira lealdade processual e respeito pelos direitos de defesa constitucionalmente consagrados, ao contrário do que afirma o recorrente.
O arguido optou por requerer a abertura de instrução.
Ora, a par dos direitos do recorrente, incumbe ao Tribunal salvaguardar os direitos processuais dos demais arguidos, em especial dos sujeitos a medidas privativas da liberdade e salvaguardar a eficácia na administração da justiça.
Na concertação concreta dos direitos e deveres constitucionais que incumbe ao Tribunal salvaguardar, nenhum reparo merece a opção pela separação de processos, permitindo a rápida conclusão da instrução que se encontrava já na fase de debate.
E a circunstância de o recorrente estar indiciado da prática de um dos crimes em coautoria não constitui impedimento ao funcionamento das circunstâncias previstas no art.º 30.º do Cód. Processo Penal, nem inviabiliza o julgamento, pois o julgador sempre saberá, com isenção, imparcialidade e sem contradições, apurar a responsabilidade penal do recorrente, ainda que com maior encargo probatório.
E, na realidade, podendo a autonomia probatória dos processos resultar em diferentes decisões judiciais, tal não constitui qualquer violação do caso julgado, uma vez que os arguidos são necessariamente distintos.
Nestes termos se conclui pela improcedência do recurso interposto.
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IV. DECISÃO
Pelo exposto acordam os Juízes desta Relação em julgar totalmente improcedente o recurso interposto pelo arguido AA, mantendo-se na íntegra a decisão do Tribunal a quo.
Custa pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 4 UC.
Notifique.
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Lisboa, 20 de fevereiro de 2024
Mafalda Sequinho dos Santos
Maria José Machado
João Ferreira