Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1383/23.0T8TUD.L1-4
Relator: PAULA POTT
Descritores: CONTRA-ORDENAÇÃO
SEGURANÇA SOCIAL
INCONSTITUCIONALIDADE ORGÂNICA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 02/21/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: Contraordenação de segurança social prevista no DL 64/2007 – Vícios da sentença recorrida – Delegação de poderes do conselho directivo no centro distrital de segurança social – Inconstitucionalidade por violação da reserva relativa de lei – Conceito de creche – Aplicação da lei contraordenacional mais favorável – Suspensão da execução da coima


(Sumário da autoria da relatora)

Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam em conferência, na 4.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa


Recurso de decisão judicial em matéria de contraordenações

Tribunal de origem: Juízo do Trabalho de Torres Vedras – Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Norte

Recorrente/arguida

AA…

Recorrido

Ministério Público

Autoridade administrativa

Centro Distrital de Lisboa do Instituto de Segurança Social I.P., com sede na Avenida 5 de Outubro, n.º 175, 1069-451, Lisboa.

Sentença recorrida
1.A recorrente, veio interpor o presente recurso da sentença proferida em 11.10.2023 com a referência citius 158373660, pelo Juízo do Trabalho de Torres Vedras, Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Norte (doravante também Tribunal de primeira instância ou Tribunal a quo),cuja parte decisória a seguir se transcreve:

“III–DECISÃO

Pelo exposto, julgo a impugnação judicial parcialmente procedente e, em consequência:

1)-Declaro a nulidade da decisão impugnada na parte em que imputa e sanciona a Arguida pela prática de uma contraordenação p. e p. pelos artigos 3º, n.º 1, al. a), 9º, n.º 1, al. a), do D.L. n.º 156/2005, de 15 de setembro, absolvendo a Arguida relativamente à prática de tal infração;

2)-Condeno a Arguida pela prática de uma contraordenação muito grave p. e p. pelos artigos 11º, n.º 1, 39º-B, al. a), e 39º-E, al. a), e 39º-F e 39º-H, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 64/2007, de 14/03, na redação conferida pelo Decreto-Lei n.º 33/2014, de 04/03, no pagamento da coima no valor de €20.000,00 (vinte mil euros) e na sanção acessória de encerramento do estabelecimento (identificado no ponto 1) dos factos provados), por um período de 24 (vinte e quatro meses).

Custas a cargo da Arguida / recorrente, fixando a taxa de justiça em 3 Uc’s – artigo 94º, n.º 3, do RGCO, e artigo 8.º, n.º 7, do RCP e Tabela III, anexa ao mesmo, ex vi artigos 59º e 60º da Lei n.º 107/2009, de 14/09.
                  
Comunique de imediato ao ISS, IP. (artigo 45º, n.º 3, da Lei n.º 107/2009, de 14/09).”

Alegações da recorrente

2.No recurso, a recorrente, pede a revogação da sentença recorrida.

3.Nas alegações, vertidas nas conclusões, a recorrente invoca argumentos que o Tribunal sintetiza como se segue:

Conclusões 1 a 23

  • Erro de apreciação da sentença recorrida ao julgar que não existiu nulidade da decisão administrativa por falta de notificação da arguida para exercer o direito de defesa na fase administrativa;
  • Falta de factos provados para servir de base à apreciação dessa questão;
  • Reapreciação da matéria de facto constante dos factos provados 2 e 5 por terem sido erradamente considerados provados;
Conclusões 24 a 30
  • A actividade da recorrente não visa dar a resposta social de uma creche, mas de serviços de babysitting;
  • Nulidade da sentença recorrida por falta de análise de elementos de prova relevantes para a decisão, nomeadamente dos recibos que se referem à actividade de babysitting e por insuficiência da fundamentação;
Conclusões 31 a 45
  • Erro de direito por não ter sido aplicada a lei nova, mais favorável à arguida, nomeadamente as alterações introduzidas pelo DL 126-A/2021 e a disposição constante do artigo 31.º n.º 4 do DL 64/2007;
Conclusões 46 a 47
  • Erro da decisão ao não levar em conta, na fixação da medida concreta da coima em 20 000,00 euros, que esse montante é catastrófico para a capacidade financeira da arguida enquanto pessoa singular, que é inferior à de uma pessoa colectiva;
Conclusões 48 a 61
  • Nulidade da sentença recorrida à luz do disposto no artigo 379.º do Código de Processo Penal (CPP);
  • O Tribunal a quo devia ter averiguado quais os rendimentos e despesas da arguida, as suas declarações de IRS, e ter incluído na matéria de facto provada a sua situação económica;
  • O Tribunal a quo devia ter averiguado o benefício económico obtido pela arguida;
  • O Tribunal a quo devia ter suspendido a execução da coima, uma vez que a arguida agiu ao abrigo do estado de necessidade e a ameaça da aplicação da coima se mostra suficiente para alcançar as finalidades da punição, tendo em conta que a arguida não tem antecedentes contraordenacionais, cessou de imediato a infracção quando foi inspeccionada e não se provaram danos para a saúde e bem-estar das crianças em causa;
Conclusões 62 a 67
  • A deliberação e publicação da delegação de poderes de fiscalização e aplicação de sanções na directora do centro distrital de segurança social é nula porque não foi assinada por todos os membros do conselho directivo do Instituto de Segurança Social, o que contraria o disposto no artigo 5.º do DL 83/2012, uma vez que, tratando-se de um órgão colegial, não existe norma que dispense a assinatura de todos os seus membros;
  • Tal deliberação viola o disposto no artigo 198.º n.º 1 – a) da Constituição da República Portuguesa (CRP);
Conclusões 68 a 75
  • A sentença recorrida é nula e deve ser revogada porque viola os artigos 207.º e 208.º da CRP e os artigos 374.º e 375.º do CPP.

Resposta do Ministério Público

4.O digno magistrado Ministério Público junto ao Tribunal de primeira instância respondeu, pedindo que seja negado provimento ao recurso, defendendo, em síntese, que a sentença recorrida não padece de nulidade, insuficiência de fundamentação ou erro de direito.

Tramitação do recurso na segunda instância

5.Na segunda instância foi cumprido o disposto nos artigos 416.º e 417.º do CPP.

6.Admitido o recurso, mantido o seu efeito e corridos os vistos, cumpre decidir.

Delimitação do âmbito do recurso

7.As questões relevantes para a decisão do recurso, suscitadas nas alegações e vertidas nas conclusões, são as seguintes:

A.–Nulidades da sentença recorrida e preterição do direito de defesa

B.–Nulidade e inconstitucionalidade da delegação de poderes para proferir a decisão administrativa

C.–Erro na qualificação jurídica do estabelecimento como creche

D.–Aplicação da lei contraordenacional mais favorável

E.–Medida concreta da coima e suspensão da execução da coima

Factos

8.Nota preliminar:os factos provados e não provados, constantes da decisão recorrida, serão a seguir agrupados, respectivamente, em dois parágrafos, antecedidos da numeração que lhes foi atribuída na sentença recorrida, para facilitar a leitura e remissões.

9.Factos provados:

1)-Em 13/11/2020 uma equipa de fiscalização do NFES/UFLVT/DF do I.S.S., I.P. deslocou-se ao estabelecimento denominado "Pezinhos de Lã", propriedade da Arguida, sito na Rua ..... ....., n.º..., G____, ....-... P____ R___, T____ V____;
2)-Em tal data e pelo menos desde agosto de 2019, a Arguida desenvolvia no supra referido estabelecimento, com finalidade lucrativa, a resposta social de creche sem que para o efeito existisse licença de funcionamento ou autorização provisória de funcionamento, licença de utilização emitida pela Câmara Municipal de Torres Vedras, Parecer da Autoridade Nacional de Proteção Civil, e Parecer ou Auto de Vistoria Higio-Sanitário;
3)-À data da fiscalização o supra referido estabelecimento era frequentado por um total de 9 (nove) crianças inscritas, com idades compreendidas entre os 8 meses os 31 meses - das quais a admissão mais antiga remonta a agosto de 2019 - durante o período correspondente ao impedimento dos pais ou de quem exerça as responsabilidades parentais, mediante o pagamento de mensalidades no montante de €125,00 por criança;
4)-A Arguida não formalizou junto do ISS, I.P. qualquer pedido de licenciamento da resposta social de creche que operava no referido estabelecimento;
5)-Ao não diligenciar pela obtenção da licença de funcionamento ou autorização provisória de funcionamento em momento temporal anterior à abertura da resposta social de creche no respetivo estabelecimento e mantendo-a em funcionamento no estabelecimento sem o imperativo licenciamento, a Arguida atuou representando a prática do ilícito contraordenacional como resultado possível da sua conduta e ainda assim, levou-a a cabo de forma voluntária e consciente, conformando-se com o resultado.

10.Factos não provados:

1)-O quadro de pessoal da resposta social de creche que operava no referido estabelecimento era insuficiente para a prestação de serviços às 9 crianças inscritas;
2)-As instalações do estabelecimento não se encontravam adequadas e adaptadas aos requisitos específicos e imperativos para o funcionamento da resposta social de creche;
3)-A Arguida oferecia um serviço privado e pago que se traduzia na atividade denominada de “babysitting”, não possuindo ou explorando qualquer estabelecimento de apoio social onde era exercida a resposta social de “creche”, o qual nunca teve intenção de criar;
4)-A Arguida nada teve que ver com a elaboração e execução do projeto de abertura do estabelecimento, já que contratou terceiros para o efeito.

Quadro legal relevante
11.Tem relevo para a decisão, essencialmente, o seguinte quadro legal:

Constituição da República Portuguesa ou CRP

Artigo 161.º
(Competência política e legislativa)
Compete à Assembleia da República:
a)-Aprovar alterações à Constituição, nos termos dos artigos 284.º a 289.º;
b)-Aprovar os estatutos político-administrativos e as leis relativas à eleição dos deputados às Assembleias Legislativas das regiões autónomas;
c)-Fazer leis sobre todas as matérias, salvo as reservadas pela Constituição ao Governo;
d)-Conferir ao Governo autorizações legislativas;
e)-Conferir às Assembleias Legislativas das regiões autónomas as autorizações previstas na alínea b) do n.º 1 do artigo 227.º da Constituição;
f)-Conceder amnistias e perdões genéricos;
g)-Aprovar as leis das grandes opções dos planos nacionais e o Orçamento do Estado, sob proposta do Governo;
h)-Autorizar o Governo a contrair e a conceder empréstimos e a realizar outras operações de crédito que não sejam de dívida flutuante, definindo as respectivas condições gerais, e estabelecer o limite máximo dos avales a conceder em cada ano pelo Governo;
i)-Aprovar os tratados, designadamente os tratados de participação de Portugal em organizações internacionais, os tratados de amizade, de paz, de defesa, de rectificação de fronteiras e os respeitantes a assuntos militares, bem como os acordos internacionais que versem matérias da sua competência reservada ou que o Governo entenda submeter à sua apreciação;
j)-Propor ao Presidente da República a sujeição a referendo de questões de relevante interesse nacional;
l)-Autorizar e confirmar a declaração do estado de sítio e do estado de emergência;
m)-Autorizar o Presidente da República a declarar a guerra e a fazer paz;
n)-Pronunciar-se, nos termos da lei, sobre as matérias pendentes de decisão em órgãos no âmbito da União Europeia que incidam na esfera da sua competência legislativa reservada;
o)-Desempenhar as demais funções que lhe sejam atribuídas pela Constituição e pela lei.

Artigo 165.º
(Reserva relativa de competência legislativa)
1.É da exclusiva competência da Assembleia da República legislar sobre as seguintes matérias, salvo autorização ao Governo:
a)-Estado e capacidade das pessoas;
b)-Direitos, liberdades e garantias;
c)-Definição dos crimes, penas, medidas de segurança e respectivos pressupostos, bem como processo criminal;
d)-Regime geral de punição das infracções disciplinares, bem como dos actos ilícitos de mera ordenação social e do respectivo processo;
e)-Regime geral da requisição e da expropriação por utilidade pública;
f)-Bases do sistema de segurança social e do serviço nacional de saúde;
g)-Bases do sistema de protecção da natureza, do equilíbrio ecológico e do património cultural;
h)-Regime geral do arrendamento rural e urbano;
i)-Criação de impostos e sistema fiscal e regime geral das taxas e demais contribuições financeiras a favor das entidades públicas;
j)-Definição dos sectores de propriedade dos meios de produção, incluindo a dos sectores básicos nos quais seja vedada a actividade às empresas privadas e a outras entidades da mesma natureza;
l)-Meios e formas de intervenção, expropriação, nacionalização e privatização dos meios de produção e solos por motivo de interesse público, bem como critérios de fixação, naqueles casos, de indemnizações;
m)-Regime dos planos de desenvolvimento económico e social e composição do Conselho Económico e Social;
n)-Bases da política agrícola, incluindo a fixação dos limites máximos e mínimos das unidades de exploração agrícola;
o)-Sistema monetário e padrão de pesos e medidas;
p)-Organização e competência dos tribunais e do Ministério Público e estatuto dos respectivos magistrados, bem como das entidades não jurisdicionais de composição de conflitos;
q)-Estatuto das autarquias locais, incluindo o regime das finanças locais;
r)-Participação das organizações de moradores no exercício do poder local;
s)-Associações públicas, garantias dos administrados e responsabilidade civil da Administração;
t)-Bases do regime e âmbito da função pública;
u)-Bases gerais do estatuto das empresas públicas e das fundações públicas;
v)-Definição e regime dos bens do domínio público;
x)-Regime dos meios de produção integrados no sector cooperativo e social de propriedade;
z)- Bases do ordenamento do território e do urbanismo;
aa)Regime e forma de criação das polícias municipais.
2.As leis de autorização legislativa devem definir o objecto, o sentido, a extensão e a duração da autorização, a qual pode ser prorrogada.
3.As autorizações legislativas não podem ser utilizadas mais de uma vez, sem prejuízo da sua execução parcelada.
4.As autorizações caducam com a demissão do Governo a que tiverem sido concedidas, com o termo da legislatura ou com a dissolução da Assembleia da República.
5.As autorizações concedidas ao Governo na lei do Orçamento observam o disposto no presente artigo e, quando incidam sobre matéria fiscal, só caducam no termo do ano económico a que respeitam.

Artigo 198.º
(Competência legislativa)
1.Compete ao Governo, no exercício de funções legislativas:
a)-Fazer decretos-leis em matérias não reservadas à Assembleia da República;
b)-Fazer decretos-leis em matérias de reserva relativa da Assembleia da República, mediante autorização desta;
c)-Fazer decretos-leis de desenvolvimento dos princípios ou das bases gerais dos regimes jurídicos contidos em leis que a eles se circunscrevam.
2.É da exclusiva competência legislativa do Governo a matéria respeitante à sua própria organização e funcionamento.
3.Os decretos-leis previstos nas alíneas b) e c) do n.º 1 devem invocar expressamente a lei de autorização legislativa ou a lei de bases ao abrigo da qual são aprovados.

Lei 3/2004 de 15.1 ou Lei Quadro dos institutos Públicos

Artigo 6.º
Regime jurídico
1Os institutos públicos regem-se pelas normas constantes da presente lei e demais legislação aplicável às pessoas colectivas públicas, em geral, e aos institutos públicos, em especial, bem como pelos respectivos estatutos e regulamentos internos.
2São, designadamente, aplicáveis aos institutos públicos, quaisquer que sejam as particularidades dos seus estatutos e do seu regime de gestão, mas com as ressalvas estabelecidas no título iv da presente lei:
a)-O Código do Procedimento Administrativo, no que respeita à actividade de gestão pública, envolvendo o exercício de poderes de autoridade, a gestão da função pública ou do domínio público, ou a aplicação de outros regimes jurídico-administrativos;
b)-O regime jurídico aplicável aos trabalhadores que exercem funções públicas;
c)-O regime da administração financeira e patrimonial do Estado;
d)-O regime das empreitadas de obras públicas;
e)-O regime da realização de despesas públicas e da contratação pública;
f)-O regime das incompatibilidades de cargos públicos;
g)-O regime da responsabilidade civil do Estado;
h)-As leis do contencioso administrativo, quando estejam em causa actos e contratos de natureza administrativa;
i)-O regime de jurisdição e controlo financeiro do Tribunal de Contas.

Artigo 7.º
Ministério da tutela
1Cada instituto está adstrito a um departamento ministerial, abreviadamente designado como ministério da tutela, em cuja lei orgânica deve ser mencionado.
2No caso de a tutela sobre um determinado instituto público ser repartida ou partilhada por mais de um ministro, aquele considera-se adstrito ao ministério cujo membro do Governo sobre ele exerça poderes de superintendência.

Artigo 9.º
Formas de criação
1Os institutos públicos são criados por acto legislativo.
2O diploma que proceder à criação de um instituto ou Lei Orgânica define a sua designação, jurisdição territorial, fins ou atribuições, membro do Governo da tutela, órgãos e respectivas competências e os meios patrimoniais e financeiros atribuídos, bem como inclui as disposições legais de carácter especial que se revelem necessárias, em especial sobre matérias não reguladas na presente lei e nos diplomas legais genericamente aplicáveis ao novo instituto.
3A sede dos institutos públicos é definida no diploma que procede à sua criação ou nos respectivos estatutos.
4Os institutos públicos podem iniciar o seu funcionamento em regime de instalação, nos termos da lei geral.

Artigo 16.º
Reestruturação, fusão e extinção
1A reestruturação, a fusão e a extinção de institutos públicos são objecto de diploma de valor igual ou superior ao da sua criação.
2Os institutos públicos devem ser extintos:
a)-Quando tenha decorrido o prazo pelo qual tenham sido criados;
b)-Quando tenham sido alcançados os fins para os quais tenham sido criados, ou se tenha tornado impossível a sua prossecução;
c)-Quando se verifique não subsistirem as razões que ditaram a personificação do serviço ou fundo em causa;
d)-Quando o Estado tiver de cumprir obrigações assumidas pelos órgãos do instituto para as quais o respectivo património se revele insuficiente.
3A reestruturação, fusão ou extinção de institutos públicos são objecto de diploma de valor igual ou superior ao da sua criação.

DL 64/2007 de 14.3 [redacção dada pelo DL 33/2014 de 4.3 em vigor a partir de 13.5.2014]

Artigo 1.º
Objeto
O presente decreto-lei define o regime de licenciamento e de fiscalização da prestação de serviços e dos estabelecimentos de apoio social, adiante designados por estabelecimentos, em que sejam exercidas atividades e serviços do âmbito da segurança social relativos a crianças, jovens, pessoas idosas ou pessoas com deficiência, bem como os destinados à prevenção e reparação das situações de carência, de disfunção e de marginalização social, estabelecendo ainda o respetivo regime sancionatório.

Artigo 11.º
Início da atividade
1Os estabelecimentos abrangidos pelo presente decreto-lei só podem iniciar a atividade após a concessão da respetiva licença de funcionamento, sem prejuízo do disposto nos artigos 37.º e 38.º
2A instrução do processo e a decisão do pedido de licença de funcionamento são da competência do Instituto da Segurança Social, I.P.

Artigo 31.º
Avaliação e vistorias técnicas
1Compete aos serviços do Instituto da Segurança Social, I.P., avaliar o funcionamento do estabelecimento, designadamente:
a)-Verificar a conformidade das atividades prosseguidas com as previstas na licença de funcionamento;
b)-Avaliar a qualidade e verificar a regularidade dos serviços prestados aos utentes, nomeadamente, no que se refere a condições de instalação e alojamento, adequação do equipamento, alimentação e condições higiossanitárias.
2As ações referidas no número anterior devem ser acompanhadas pelo diretor técnico do estabelecimento e concretizam-se, através da realização de, pelo menos, uma vistoria de dois em dois anos e sempre que se justifique.
3[Revogado].

Artigo 39.º-B
Infrações muito graves
Constituem infrações muito graves:
a)-A abertura ou o funcionamento de estabelecimento que não se encontre licenciado nem disponha de autorização provisória de funcionamento válida;
b)-A inadequação das instalações, bem como as deficientes condições de higiene e segurança, face aos requisitos estabelecidos;
c)-O excesso da capacidade em relação à autorizada para o estabelecimento;
d)-O impedimento das ações de fiscalização, designadamente por falta de disponibilização, aos serviços competentes do Ministério que tutela a área da segurança social do acesso a todas as dependências do estabelecimento e das informações indispensáveis à avaliação e fiscalização do seu funcionamento;
e)-A inexistência de diretor técnico;
f)-A inexistência de pessoal com categoria profissional e afetação adequadas às atividades e serviços desenvolvidos em cada estabelecimento e indicado no respetivo mapa;
g)-A inexistência de regulamento interno;
h)-A não celebração, por escrito, de contratos de alojamento e de prestação de serviços, com os utentes ou seus familiares, quando exigida, dos quais constem os principais direitos e obrigações de ambas as partes;
i)-A inadequação ou falta dos cuidados e serviços à satisfação das necessidades dos utentes, designadamente higiene pessoal, alimentação e administração de fármacos de acordo com a devida prescrição médica;
j)-Inexistência de processo individual do utente;
k)-A inexistência de plano de intervenção.

Artigo 39.º-E
Coimas
Às infrações previstas nos artigos 39.º-B a 39.º-D são aplicáveis as seguintes coimas:
a)-Entre 20 000,00 EUR e 40 000,00 EUR, para a infração muito grave referida na alínea a) do artigo 39.º-B;
b)-Entre 5 000,00 EUR e 10 000,00 EUR, para as infrações muito graves referidas nas alíneas b) a k) do artigo 39.º-B;
c)-Entre 2 500,00 EUR e 5 000,00 EUR, para as infrações graves referidas no artigo 39.º-C;
d)-Entre 500,00 EUR e 1 000,00 EUR, para as infrações leves referidas no artigo 39.º-D.

Artigo 39.º-F
Negligência e tentativa
1Os ilícitos de mera ordenação social previstos no presente capítulo são punidos a título de dolo ou de negligência.
2A tentativa é punida nos ilícitos de mera ordenação social referidos nos artigos 39.º-B e 39.º-C.

Artigo 39.º-G
Limites máximos e mínimos das coimas
1Os limites máximos e mínimos das coimas previstas no presente decreto-lei aplicam-se quer às pessoas singulares quer às pessoas coletivas, sendo reduzidos a metade quando aplicáveis a entidades que não tenham finalidade lucrativa.
2Em caso de reincidência, os limites mínimo e máximo da coima são elevados em um terço do respetivo valor.

Artigo 39.º-H
Sanções acessórias
1Cumulativamente com as coimas previstas pela prática de infrações muito graves e graves, podem ser aplicadas ao infrator as seguintes sanções acessórias:
a)-Interdição temporária do exercício, direto ou indireto, de atividades de apoio social em quaisquer estabelecimentos de apoio social;
b)-Inibição temporária do exercício da profissão ou da atividade a que a contraordenação respeita;
c)-Privação do direito a subsídio ou benefício outorgado por entidades ou serviços públicos, nacionais ou comunitários, no âmbito do exercício da atividade de prestação de serviços e dos estabelecimentos de apoio social;
d)-Encerramento do estabelecimento e suspensão da licença ou da autorização provisória de funcionamento;
e)-Publicação, a expensas do infrator, em locais idóneos para o cumprimento das finalidades de prevenção geral do sistema jurídico, da condenação aplicada pela prática da contraordenação.
2No caso de ser aplicada a sanção prevista na alínea c) do número anterior, deve a autoridade administrativa comunicá-la, de imediato, à entidade que atribuiu o benefício ou subsídio com vista à suspensão das restantes parcelas dos mesmos.
3As sanções referidas nas alíneas a) e b) do n.º 1 têm a duração máxima de três anos a contar da data da decisão condenatória definitiva.
4A publicidade da condenação referida na alínea e) do n.º 1 consiste na publicação de um extrato, do qual consta a caracterização da infração, a norma violada, a identificação do infrator e a sanção aplicada.

Artigo 39.º-I
Determinação da medida da coima
1A determinação da medida da coima faz-se em função da gravidade da contraordenação, da culpa, da situação económica do agente e do benefício económico que este retirou da prática da contraordenação.
2Se o agente retirou da infração um benefício económico calculável superior ao limite máximo da coima, e não existirem outros meios de o eliminar, pode este elevar-se até ao montante do benefício, não devendo todavia a elevação exceder um terço do limite máximo legalmente estabelecido.

Artigo 39.º-K
Regime processual
1Às contraordenações previstas no presente decreto-lei é aplicável, com as devidas adaptações, o regime processual aprovado pela Lei n.º 107/2009, de 14 de setembro, alterada pela Lei n.º 63/2013, de 27 de agosto.
2Para efeitos do número anterior, considera-se autoridade administrativa o Instituto da Segurança Social, I.P.

DL 64/2007 de 14.3 [redacção dada pelo DL 126-A/2021 de 31.12, em vigor a partir de 10.1.2021]

Artigo 31.º
Avaliação e vistorias técnicas
1Compete aos serviços de proximidade do ISS, I. P., avaliar o funcionamento do estabelecimento, com base nas disposições legais aplicáveis, designadamente:
a)-Verificar a conformidade das atividades prosseguidas com as previstas na autorização de funcionamento;
b)-Avaliar a qualidade e verificar e regularidade dos serviços e cuidados prestados aos utentes, nomeadamente, no que se refere a condições de instalação e alojamento, adequação do equipamento, rácios de recursos humanos, alimentação e condições de higiene e segurança.
2As ações de acompanhamento e apoio técnico referidas no número anterior, devem ser acompanhadas pelo diretor técnico do estabelecimento e concretizam-se, através da realização de, pelo menos, uma vistoria de dois em dois anos e sempre que se justifique.
3[Revogado].
4Os serviços de proximidade do ISS, I. P., concedem um prazo adequado, não inferior a 10 dias, para serem corrigidas eventuais desconformidades detetadas nas visitas realizadas, desde que salvaguardada a segurança de pessoas e bens, quando aplicável.

Portaria 262/2011 de 14.12 (Normas reguladoras das condições de instalação e funcionamento das creches)

Artigo 1.º
Objecto
A presente portaria estabelece as normas reguladoras das condições de instalação e funcionamento da creche, quer seja da iniciativa de sociedades ou empresários em nome individual, quer de instituições particulares de solidariedade social ou equiparadas e outras de fins idênticos e de reconhecido interesse público.

Artigo 2.º
Âmbito de aplicação
1As disposições constantes no presente diploma aplicam-se:
a)-A novas creches a desenvolver em edifícios a construir de raiz ou em edifícios já existentes a adaptar para o efeito;
b)-Sem prejuízo do disposto no n.º 2, a creches já em funcionamento ou àquelas cujo processo de licenciamento de construção ou da actividade se encontre em curso à data da entrada em vigor da presente portaria.
2O disposto nos artigos 16.º a 22.º da presente portaria não é aplicável às creches mencionadas na alínea b).

Artigo 3.º
Conceito
A creche é um equipamento de natureza socioeducativa, vocacionado para o apoio à família e à criança, destinado a acolher crianças até aos 3 anos de idade, durante o período correspondente ao impedimento dos pais ou de quem exerça as responsabilidades parentais.

DL 83/2012 de 30.3 (Lei Orgânica do Instituto da segurança Social, IP)

Artigo 5.º
Conselho diretivo
1O conselho diretivo é composto por um presidente, por um vice-presidente e por dois vogais, cabendo ao presidente voto de qualidade.
2Sem prejuízo das competências conferidas por lei ou que nele sejam delegadas ou subdelegadas, compete ao conselho diretivo, no âmbito da orientação e gestão do ISS, I. P.:
a)-Dinamizar e gerir as prestações do sistema de segurança social e dos seus subsistemas;
b)-Assegurar a regularidade da relação contributiva de segurança social, bem como constituir hipotecas legais e autorizar o respetivo distrate, com exceção das que se inserem no âmbito do processo executivo;
c)-Promover a ação inspetiva e fiscalizadora do cumprimento dos direitos e obrigações dos beneficiários e contribuintes do sistema de segurança social, das instituições particulares de solidariedade social e de outras entidades privadas que exerçam atividades de apoio social;
d)-Assegurar a aplicação dos instrumentos internacionais em matéria de segurança social;
e)-Promover medidas de modernização administrativa, colaborar na definição do sistema de informação da segurança social e avaliar a respetiva eficácia e assegurar, em articulação com o Instituto de Informática, I. P., o funcionamento do sistema de informática e comunicações do ISS, I. P.;
f)-Aplicar coimas e sanções acessórias às contraordenações praticadas por beneficiários, contribuintes e estabelecimentos de apoio social.

Artigo 10.º
Organização interna
A organização interna do ISS, I. P., é a prevista nos respetivos estatutos.

Código do Procedimento Administrativo ou CPA

Artigo 44.º
Delegação de poderes
1Os órgãos administrativos normalmente competentes para decidir em determinada matéria podem, sempre que para tal estejam habilitados por lei, permitir, através de um ato de delegação de poderes, que outro órgão ou agente da mesma pessoa coletiva ou outro órgão de diferente pessoa coletiva pratique atos administrativos sobre a mesma matéria.
2Para efeitos do disposto no número anterior, considera-se agente aquele que, a qualquer título, exerça funções públicas ao serviço da pessoa coletiva, em regime de subordinação jurídica.
3Mediante um ato de delegação de poderes, os órgãos competentes para decidir em determinada matéria podem sempre permitir que o seu imediato inferior hierárquico, adjunto ou substituto pratiquem atos de administração ordinária nessa matéria.
4O disposto no número anterior vale igualmente para a delegação de poderes dos órgãos colegiais nos respetivos presidentes, salvo havendo lei de habilitação específica que estabeleça uma particular repartição de competências entre os diversos órgãos.
5Os atos praticados ao abrigo de delegação ou subdelegação de poderes valem como se tivessem sido praticados pelo delegante ou subdelegante.

Artigo 47.º
Requisitos do ato de delegação
1No ato de delegação ou subdelegação, deve o órgão delegante ou subdelegante especificar os poderes que são delegados ou subdelegados ou os atos que o delegado ou subdelegado pode praticar, bem como mencionar a norma atributiva do poder delegado e aquela que habilita o órgão a delegar.
2Os atos de delegação ou subdelegação de poderes estão sujeitos a publicação, nos termos do artigo 159.º.

Artigo 151.º
Menções obrigatórias
1Sem prejuízo de outras referências especialmente exigidas por lei, devem constar do ato:
a)-A indicação da autoridade que o pratica e a menção da delegação ou subdelegação de poderes, quando exista;
b)-A identificação adequada do destinatário ou destinatários;
c)-A enunciação dos factos ou atos que lhe deram origem, quando relevantes;
d)-A fundamentação, quando exigível;
e)-O conteúdo ou o sentido da decisão e o respetivo objeto;
f)-A data em que é praticado;
g)-A assinatura do autor do ato ou do presidente do órgão colegial que o emana.
2As menções exigidas no número anterior devem ser enunciadas de forma clara, de modo a poderem determinar-se de forma inequívoca o seu sentido e alcance e os efeitos jurídicos do ato administrativo.

Artigo 159.º
Termos da publicação obrigatória
Quando a lei impuser a publicação do ato, mas não regular os respetivos termos, deve a mesma ser feita no Diário da República ou na publicação oficial da entidade pública, e na Internet, no sítio institucional da entidade em causa, no prazo de 30 dias, e conter todos os elementos referidos no n.º 1 do artigo 151.º

Portaria 135/2012 de 8.5 (Estatutos do Instituto de Segurança Social I.P.)

Artigo 17.º
Centros distritais do ISS, I. P.
1Compete aos centros distritais a responsabilidade pela execução, ao nível de cada um dos distritos, das medidas determinadas pelo Conselho Diretivo necessárias ao desenvolvimento e gestão das prestações, das contribuições e da ação social.
2Compete, ainda, aos centros distritais, nas suas áreas de intervenção:
(...)
m)-Desenvolver as ações necessárias à aplicação dos regimes sancionatórios às infrações de natureza contraordenacional relativas a estabelecimentos de apoio social e a beneficiários e contribuintes;
(...)
3As competências referidas no número anterior são exercidas pelos diretores de segurança social dos centros distritais, por delegação de competências do conselho diretivo, com a faculdade de as poderem subdelegar.

Deliberação n.º 1295/2020 de 31.12 (publicada no Diário da República série C de 31.12.2020)

Nos termos do disposto conjugadamente no n.º 1 do artigo 44.º do Código do Procedimento Administrativo (CPA), e no n.º 3 do artigo 17.º dos Estatutos do Instituto da Segurança Social, I. P., (ISS, I. P.), aprovados pela Portaria n.º 135/2012, de 8 de maio, na sua redação atual, o Conselho Diretivo delibera delegar nos diretores de segurança social dos Centros Distritais de Aveiro, Beja, Braga, Bragança, Castelo Branco, Coimbra, Évora, Faro, Guarda, Leiria, Lisboa, Portalegre, Porto, Santarém, Setúbal, Viana do Castelo, Vila Real e Viseu, com a faculdade de subdelegação, os poderes necessários para, no âmbito geográfico de atuação dos respetivos serviços, praticar os seguintes atos:
(...)
4.2Aplicar admoestações, coimas e sanções acessórias pela prática de contraordenações no âmbito dos estabelecimentos de apoio social, bem como despachar e arquivar os mesmos processos.
(...).

Portaria 262/2011 de 31.8 (Estabelece as normas reguladoras das condições de instalação e funcionamento das creches)

Artigo 3.º
Conceito
A creche é um equipamento de natureza socioeducativa, vocacionado para o apoio à família e à criança, destinado a acolher crianças até aos 3 anos de idade, durante o período correspondente ao impedimento dos pais ou de quem exerça as responsabilidades parentais.

Lei 107/2009 de 14.9 (Regime Processual Aplicável às Contraordenações laborais e de Segurança Social)

Artigo 18.º
Notificação ao arguido das infracções de segurança social
1O arguido é notificado dos factos que lhe são imputados para, no prazo de 15 dias, proceder ao pagamento voluntário da coima, ou para contestar, querendo, devendo apresentar os documentos probatórios de que disponha e arrolar testemunhas, até ao máximo de duas por cada infracção.
2Quando tiver praticado três ou mais contra-ordenações a que seja aplicável uma coima única, o arguido pode arrolar até ao máximo de cinco testemunhas por todas as infracções.

Artigo 50.º
Regime do recurso
1O recurso é interposto no prazo de 20 dias a partir da sentença ou do despacho, ou da sua notificação ao arguido, caso a decisão tenha sido proferida sem a presença deste.
2Nos casos previstos no n.º 2 do artigo anterior, o requerimento segue junto ao recurso, antecedendo-o.
3Nestes casos, a decisão sobre o requerimento constitui questão prévia, que é resolvida por despacho fundamentado do tribunal, equivalendo o seu indeferimento à retirada do recurso.
4O recurso segue a tramitação do recurso em processo penal, tendo em conta as especialidades que resultem desta lei.

Artigo 51.º
Âmbito e efeitos do recurso
1Se o contrário não resultar da presente lei, a segunda instância apenas conhece da matéria de direito, não cabendo recurso das suas decisões.
2A decisão do recurso pode:
a)-Alterar a decisão do tribunal recorrido sem qualquer vinculação aos termos e ao sentido da decisão recorrida;
b)-Anulá-la e devolver o processo ao tribunal recorrido.

Artigo 60.º
Direito subsidiário
Sempre que o contrário não resulte da presente lei, são aplicáveis, com as devidas adaptações, os preceitos reguladores do processo de contra-ordenação previstos no regime geral das contra-ordenações.

Regime Geral das Contraordenações ou RGCO

Artigo 3.º
Aplicação no tempo
1A punição da contra-ordenação é determinada pela lei vigente no momento da prática do facto ou do preenchimento dos pressupostos de que depende.
2Se a lei vigente ao tempo da prática do facto for posteriormente modificada, aplicar-se-á a lei mais favorável ao arguido, salvo se este já tiver sido condenado por decisão definitiva ou transitada em julgado e já executada.
3Quando a lei vale para um determinado período de tempo, continua a ser punida a contra-ordenação praticada durante esse período.

Artigo 32.º
(Do direito subsidiário)
Em tudo o que não for contrário à presente lei aplicar-se-ão subsidiariamente, no que respeita à fixação do regime substantivo das contra-ordenações, as normas do Código Penal.

Artigo 41.º
Direito subsidiário
1Sempre que o contrário não resulte deste diploma, são aplicáveis, devidamente adaptados, os preceitos reguladores do processo criminal.
2No processo de aplicação da coima e das sanções acessórias, as autoridades administrativas gozam dos mesmos direitos e estão submetidas aos mesmos deveres das entidades competentes para o processo criminal, sempre que o contrário não resulte do presente diploma.

Código Penal ou CP

Artigo 34.º
Direito de necessidade
Não é ilícito o facto praticado como meio adequado para afastar um perigo actual que ameace interesses juridicamente protegidos do agente ou de terceiro, quando se verificarem os seguintes requisitos:
a)-Não ter sido voluntariamente criada pelo agente a situação de perigo, salvo tratando-se de proteger o interesse de terceiro;
b)-Haver sensível superioridade do interesse a salvaguardar relativamente ao interesse sacrificado; e
c)-Ser razoável impor ao lesado o sacrifício do seu interesse em atenção à natureza ou ao valor do interesse ameaçado.

Artigo 35.º
Estado de necessidade desculpante
1Age sem culpa quem praticar um facto ilícito adequado a afastar um perigo actual, e não removível de outro modo, que ameace a vida, a integridade física, a honra ou a liberdade do agente ou de terceiro, quando não for razoável exigir-lhe, segundo as circunstâncias do caso, comportamento diferente.
2Se o perigo ameaçar interesses jurídicos diferentes dos referidos no número anterior, e se verificarem os restantes pressupostos ali mencionados, pode a pena ser especialmente atenuada ou, excepcionalmente, o agente ser dispensado de pena.

Artigo 50.º
Pressupostos e duração
1O tribunal suspende a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a cinco anos se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.
2O tribunal, se o julgar conveniente e adequado à realização das finalidades da punição, subordina a suspensão da execução da pena de prisão, nos termos dos artigos seguintes, ao cumprimento de deveres ou à observância de regras de conduta, ou determina que a suspensão seja acompanhada de regime de prova.
3Os deveres e as regras de conduta podem ser impostos cumulativamente.
4A decisão condenatória especifica sempre os fundamentos da suspensão e das suas condições.
5O período de suspensão é fixado entre um e cinco anos.

Código de Processo Penal ou CPP

Artigo 4.º
Integração de lacunas
Nos casos omissos, quando as disposições deste Código não puderem aplicar-se por analogia, observam-se as normas do processo civil que se harmonizem com o processo penal e, na falta delas, aplicam-se os princípios gerais do processo penal.

Artigo 410.º
Fundamentos do recurso
1Sempre que a lei não restringir a cognição do tribunal ou os respectivos poderes, o recurso pode ter como fundamento quaisquer questões de que pudesse conhecer a decisão recorrida.
2Mesmo nos casos em que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum:
a)-A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada;
b)-A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão;
c)-Erro notório na apreciação da prova.
3O recurso pode ainda ter como fundamento, mesmo que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, a inobservância de requisito cominado sob pena de nulidade que não deva considerar-se sanada.

Código de Processo Civil ou CPC

Artigo 130.º
Princípio da limitação dos atos
Não é lícito realizar no processo atos inúteis.


Doutrina e jurisprudência que o Tribunal leva em conta

12.O Tribunal leva em conta os seguintes elementos, que serão mencionados infra na fundamentação:

Doutrina
  • Augusto Silva Dias, Direito das Contraordenações, Almedina
  • Jorge de Figueiredo Dias, Direito penal, Parte Geral, Tomo I, 3.ª Edição, Gestlegal
  • Lei da Concorrência, Comentário Conimbricense, 2.ª Edição, Almedina
  • Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Regime Geral das Contraordenações, 2.ª Edição, Universidade Católica Portuguesa
Jurisprudência
  • Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 268/2021 de 29.4.2021, disponível em tribunalconstitucional.pt
  • Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, processo 2490/22.1T8CSC.L1, disponível em dgsi.pt

Apreciação do recurso

Nota preliminar

13.A título liminar importa recordar que o presente recurso tem por objecto uma contraordenação de segurança social muito grave, praticada dolosamente, prevista e punida pelos artgos 11.º n.º 1, 39.º B - a), 39.º E-  a), 39.º F e 39.º H n.º 1 do DL 64/2007, com as alterações introduzidas pelo DL 33/2014, constituindo os factos uma infracção permanente praticada entre Agosto de 2019 e 13.11.2020. Os factos consistem na abertura e funcionamente de um estabelecimento de creche sem estar licenciado, nem dispor de autorização provisória de funcionamento válida,

14.Por remissão do artigo 39.º K do DL 64/2007, aplica-se à contraordenação de segurança social aqui em causa o regime processual sectorial previsto na Lei 107/2009 e, sempre que o contrário dele não resulte, aplica-se o regime geral, constante do Regime Geral das Contraordenações (RGCO) com as necessárias adaptações (cf. artigo 60.º da Lei 107/2009). O regime processual subsidiário é o previsto no CPP (cf. artigo 41.º do RGCO).

15.Convém também recordar que, por força do disposto nos artigos 50.º n.º 4 e 51.º n.º 1 da Lei 107/2009, o presente recurso segue a tramitação do recurso em processo penal mas a segunda instância apenas conhece da matéria de direito sem prejuizo de poder apreciar as nulidades previstas no artigo 410.º do CPP, desde que invocadas e que se verifiquem as condições previstas nesse preceito legal.

A.–Nulidades da sentença recorrida e preterição do direito de defesa

16.Segundo o Tribunal julga perceber, a recorrente defende que a sentença recorrida enferma de nulidades cuja qualificação jurídica se afigura ser a seguinte:
  • Erro notório na apreciação da prova no que respeita aos factos provados 2 e 5 (actividade desenvolvida pela recorrente) e aos factos que fundamentam a alegada preterição dos direitos de defesa da arguida – cf. artigo 410.º n.º 2 – c) do CPP;
  • Insuficiência da matéria de facto apurada para a fixação da medida concreta da coima – cf. artigo 410.º n.º 2 – a) do CPP.

17.No que respeita ao erro notório na apreciação da prova, para que o Tribunal possa conhecer desse vicio o mesmo tem de resultar do texto da sentença recorrida, como exige o artigo 410.º n.º 2 do CPP.  Assim, para apreciar se tal requisito se verifica o Tribunal transcreve a seguir o texto da sentença posta em crise, na parte que aqui releva.

18.Quanto à alegada preterição do direito de defesa é a seguinte a fundamentação de facto constante da sentença recorrida:

“No caso em apreço a improcedência da arguição da nulidade é ainda mais flagrante por manifestamente não serem verdadeiras os factos alegados para a sustentar.
Efetivamente, ao contrário do que alega a Arguida, os autos demonstram por prova documental - conforme documentos a fls. 47 a 54 dos autos - que a mesma foi notificada por carta registada com AR, datada de 16.11.2021 (remetida para a residência que a própria indicou aquando da visita inspetiva e fez consignar na procuração que juntou aos autos) e recebida em 18.11.2021, com a descrição dos factos que lhe são imputados e informando-a da possibilidade de, até ao dia 28.12.2021, os contestar e apresentar documentos e/ou arrolar testemunhas, nos termos e para os efeitos do artigo 18.º da Lei n.º 107 /2009, de 14/09, e de, até à prolação da decisão final pode ainda proceder ao pagamento voluntário da coima, a liquidar pelo mínimo, sem prejuízo das custas devidas, nos termos do artigo 50.º-A do Decreto-Lei n.º 433/82, de 17/10 (aplicável por força do disposto no artigo 60.º da Lei n.º 107 /2009, de 14/09), sendo aliás justamente na sequência de tal notificação que o Sr. mandatário da Arguida veio juntar a procuração aos autos e requerer a consulta dos mesmos!
Face ao exposto, julgo manifestamente improcedente a arguição da nulidade em apreço.

19.Quanto à fundamentação da convicção do Tribunal sobre a realidade dos factos provados 2 e 5, é o seguinte o texto da sentença recorrida:
“ (...)
- Pontos 1) a 4): A prova dos factos em apreço estriba-se no teor do próprio auto de notícia que deu início aos autos e do relatório final do inspetor encarregado da fiscalização, constantes a fls. 1 a 30 dos autos, cuja autoria e teor foram confirmados em audiência de julgamento pela testemunha BB, o qual, de resto, no seu depoimento confirmou a realização da fiscalização e o local da mesma e a constatação de que a Arguida exercia no estabelecimento alvo da fiscalização uma atividade de creche, acolhendo nesse local, que não era o da sua habitação, 9 crianças à data da fiscalização, durante os períodos de impedimento dos pais ou de quem exercesse as responsabilidades parentais (relevando para tal facto também a listagem de crianças utentes anexa ao auto (fls. 43)), cuidando de distinguir tal realidade da atividade de ama (tendo em conta a delimitação legal dos conceitos, a que infra se fará referência) e assegurando a comprovação da falta de licenciamento para o exercício de tal atividade, falta esse que, de resto, a Arguida não só não nega, como, pelo contrário reconhece face à sua alegação de que a atividade exercida não era de creche.
Não foi tal depoimento infirmado pelos prestados pelas demais testemunhas, arroladas pela Arguida, e que no essencial pretenderam vir afirmar que a atividade desenvolvida pela Arguida no estabelecimento fiscalizado não era uma atividade de creche mas sim de “babysitting”, tal como a Arguida alegou na sua impugnação, pois que na realidade não explicitaram quaisquer diferenças relevantes entre a alegada atividade de “babysitting” e a de creche, assim como nada releva a nomenclatura que a própria Arguida dava à atividade exercida (referida de “babysitting” por exemplo nos panfletos que juntou aos autos na audiência de julgamento), aferindo-se a natureza da atividade pelas características de facto em que a mesma é exercida e pelas normas legais que a caracterizam e que, como de consignará na fundamentação de direito, permitem concluir que é de configurar o estabelecimento da Arguida como de apoio social, com exercício da resposta social de creche.
- Ponto 5): Os factos em apreço inferem-se a partir da factualidade objetiva vertida nos pontos anteriores, e tendo presente – e acompanhando - a argumentação que a decisão impugnada tece a propósito do enquadramento subjetivo dos factos, nomeadamente porque se entende que a Arguida não podia deixar de saber que o exercício da atividade de creche, que exercia num estabelecimento distinto da sua morada própria, estava necessariamente sujeito a licenciamento e que o seu funcionamento sem a obtenção do mesmo seria ilícita, pois que estão em causa factos que são conhecidos pela generalidade das pessoas, frequentemente assinalados em notícias dos órgãos da comunicação social e que necessariamente melhor conhecidos serão ainda por quem se dedica a tal atividade, sendo que, no caso em apreço, como afirmou a testemunha CC, a Arguida até teria trabalhado como educadora numa creche pública, estando assim certamente elucidada da necessidade de licenciamento da atividade, o qual era exigido por legislação vigente há muitos anos à data dos factos.”

20.Convém sublinhar que os requisitos da sentença proferida em primeira instância, no que respeita à fundamentação e à apreciação da prova, estão especificamente regulados no artigo 39.º n.º 4 da Lei 107/2009 (regime processual sectorial), não sendo, por isso, de aplicar nessa parte o regime subsidiário previsto nos artigos 374.º e 375.º do CPP.

21.Da análise do texto da sentença citado nos parágrafos 18 e 19 extrai-se que o Tribunal a quo indicou os meios de prova documental e testemunhal em que baseou a sua convicção, analisou criticamente esses elementos de prova nos termos previstos pelo artigo 39.º n.º 4 da Lei 107/2009 e, nessa análise, observou as regras de direito probatório previstas, nomeadamente, nos artigos 127.º e 164.º do CPP, aplicaveis ex vi artigos 60.º da Lei 107/2009 e 41.º n.º 1 do RGCO.

22.Motivos pelos quais se afigura que não resulta do texto da sentença impugnada o alegado erro notório na apreciação da prova capaz de gerar a nulidade prevista no artigo 410.º n.º 2 – c) do CPP. Acresce que, tendo o Tribunal a quo julgado provado que a arguida foi notificada nos termos previstos no artigo 18.º da Lei 107/2009, ex vi artigo 39.º K do DL 64/2007, não se verifica a alegada preterição do direito de defesa, nem a  insuficiência dos factos (processuais) provados para apreciar essa questão.

23.No que respeita à insuficiência da matéria de facto provada para a decisão de mérito (nulidade prevista no artigo 410.º n.º 2 – a) do CPP), a recorrente defende que o Tribunal a quo devia ter indagado qual a situação económica da arguida, ordenando a junção das suas declarações de rendimentos mais recentes, indagado quais as suas despesas, o seu agregado familiar e que beneficios obteve com a prárica da infracção.

24.Na fixação da medida concreta da coima o Tribunal deve levar em conta os seguintes factores: a gravidade da contraordenação, a culpa, a situação económica do agente e o benefício que retirou da prática da contraordenação – cf. artigo 30.º I n.º 1 do DL 64/2007.

25.A este propósito, importa sublinhar que a arguida não alega que a exploração do estabelecimento de creche aqui em causa não tivesse finalidade lucrativa, o que teria por efeito reduzir a metade os limites minimos e máximos da medida da coima – cf. artigo 39.º G do DL 64/2007. Pelo contrário, apurou-se que a exploração da creche pela arguida tinha finalidade lucrativa (cf. factos provados 1 a 5). Nesse contexto, afigura-se que a prova da situação económica da arguida e do benefício económico que retirou, apesar de não terem relevo enquanto condições de punibilidade, podiam ter sido abrangidos pelo âmbito da prova, se o Tribunal o tivesse ordenado oficiosamente ou a requerimento da arguida ou do Ministério Público – cf. artigo 47.º n.ºs 1, 2 e 3 da Lei 107/2009.

26.Porém, apesar de o âmbito da prova não ter abrangido tais factos, é forçoso constatar que o Tribunal a quo fixou a medida da coima em 20 000,00 euros que é o limite mínimo previsto no artigo 39.º E – a) do DL 64/2007, aplicável às infracções dolosas e com finalidade lucrativa, como a que aqui está em causa. Pelo que, fica afastada a aplicação, quer do disposto no artigo 39.º G do DL 64/2007 (que prevê a redução dos limites minimos e máximos da coima aplicável quando não existe finalidade lucrativa), quer do disposto no artigo 17.º n.º 4 do RGCO (ex vi artigos 39.º E, 39.º G, 39.º K do DL 64/2009 e 60.º da Lei 107/2009), que prevê a redução a metade do montante máximo da coima aplicável quando a infracção é negligente e a lei, relativamente ao montante máximo, não distinguir o comportamento negligente do doloso. Isto porque, por um lado, provou-se a finalidade lucrativa da creche explorada pela arguida e, por outro lado, provou-se o dolo (eventual) da arguida.

27.Nesse contexto, tendo o Tribunal a quo optado por fixar a medida concreta da coima no limite minimo abstractamente aplicável, a produção de prova sobre a situação económica da arguida e sobre o benefício que retirou da prática da infracção tornou-se inutil por não ser possível, com base nessa prova, caso viesse a ser produzida, fixar a medida concreta da coima abaixo do limite minimo legalmente previsto em que já foi fixada.

28.Em consequência, nos termos do artigo 130.º do Código de Processo Civil (aplicável ex vi artigos artigo 4.º do CPP, 50.º n.º 4 e 60.º da Lei 107/2009, 39.º K n.º 1 do DL 64/2007 e 41.º n.º 1 do RGCO), é inutil a produção da prova aqui em causa. Com efeito, ainda que essa prova viesse a ser produzida, a medida concreta da coima não poderia ser fixada em valor inferior ao que já foi.

29.Motivos pelos quais não existe a alegada falta de fundamentação da sentença recorrida, nem a mesma infringe os artigos 207.º e 208.º da CRP ou os artigos 374.º e 375.º do CPP, improcedendo, assim, este segmento da argumentação da recorrente.

B.–Nulidade e inconstitucionalidade da delegação de poderes para proferir a decisão administrativa

30.A recorrente alega que a delegação de poderes para proceder a acções de fiscalização e aplicar as respectivas sanções, feita pelo conselho directivo do Instituto de Segurança Social I.P., por Deliberação n.º 1295/2020 de 31.12, na directora do Centro Distrital de Segurança Social, é nula por estar assinada apenas pelo presidente do conselho directivo do Instituto de Segurança Social IP e é inconstitucional porque viola o disposto no artigo 198.º n.º 1 – a) da CRP.

31.Esta argumentação suscita duas questões diversas, que o Tribunal apreciará a seguir:
  • A questão dos requisitos formais da publicação da deliberação do órgão colegial;
  • A questão da inconstitucionalidade orgânica dos diplomas que regulam a orgânica do Instituto de Segurança Social IP, ao abrigo dos quais foi adoptada a deliberação que delegou poderes para a aplicação da sanção aqui em causa, por violação do disposto no artigo 198.º n.º 1 –  a) da CRP.

32.No que respeita aos requisitos formais da publicação, é forçoso constatar que, mediante a deliberação n.º 1295/2020 de 31.12, o conselho directivo do Instituto de Segurança Social I.P. delegou poderes nos centros distritais para exerecerem a acção sancionatória aqui em causa. Tal delegação de poderes tem obrigatóriamente de ser publicada como prevê o artigo 47.º n.º 2 do Codigo do Procedimento Administrativo (CPA). Nesse contexto, a deliberação aqui em causa foi publicada no Diário da República série C de 31.12.2020, devendo essa publicação ser assinada, como foi, unicamente pelo presidente do órgão colegial (o conselho directivo), como prevêm os artigos, 151.º n.º 1 – g) e 159.º do CPA.

33.Pelo que, carece de fundamento a alegada nulidade da deliberação n.º 1295/2020 de 31.12 e/ou da sua publicação, com base na falta das assinaturas dos restantes membros do órgão colegial.

34.Quanto à alegada inconstitucionalidade orgânica, a recorrente defende que a deliberação do conselho directivo que delega poderes sancionatórios no centro distrital de segurança social viola a reserva relativa de lei ressalvada pelo artigo 198.º n.º 1 – a) da CRP. Para resolver este problema o Tribunal começa por apreciar se os diplomas legais que prevêm a orgânica do Instituto de Segurança Social I.P. foram adoptados pelo Governo com respeito pelas competências legislativas que lhes são atribuídas pelo artigo 198.º da CRP ou se essa actividade legislativa violou a reserva de lei da Assembleia da República prevista nos artigos 164.º (reserva absoluta), ou 165.º (reserva relativa), da CRP, ou se existe competência legislativa concorrente do Governo e da Assembleia da República nessa matéria.

35.Antes de mais, fica afastada a aplicação, neste caso, da reserva absoluta de lei prevista no artigo 164.º da CRP uma vez que a matéria aqui em causa não está incluída nesse preceito constitucional. No que respeita à reserva relativa de lei, a que poderia estar aqui em causa seria a prevista no artigo 165.º n.º 1 – f) da CRP, relativa às bases gerais do sistema de segurança social. Porém, não se afigura ser esse o caso porque, por um lado, a delegação de poderes cuja inconstitucionalidade é alegada pela recorrente não diz respeito às bases gerais do sistema de segurança social mas antes à orgânica e funcionamento de um instituto público, o Instituto de Segurança Social I.P. e, por outro lado, ainda que assim não fosse,  quod non,  o artigo 165.º n.º 1 – f) da CRP não impede o Governo de, mediante decreto lei, exercer competência legislativa com o objectivo de desenvolver as Bases Gerais do Sistema de Segurança Social consagradas na Lei 4/2007 de 16.1, nas condições previstas no artigo 198.º - n.º 1 - c) e n.º 3 da CRP.

36.Dito isto, os contornos do caso em análise são diversos dos do desenvolvimento, pelo Governo, das Bases Gerais da Segurança Social definidas pela Assembleia da República. O que releva para a regulamentação da orgânica do Instituto da Segurança Social I.P. é a adopção, pela Assembleia da República, da Lei 3/2004 de 15.1 ou Lei Quadro dos Institutos Públicos, que cabe ao Governo concretizar, nomeadamente mediante a criação e/ou restruturação do Institudo de Segurança Social I.P., como sucedeu através do DL 83/2012. Ora, do preambulo da Lei 3/2004 ou Lei Quadro dos Institutos Públicos, resulta que a Assembleia da República adoptou esssa lei ao abrigo da sua competência legislativa concorrente com a do Governo, nos termos do artigo 161.º n.º 1 – c) da CRP.  Pelo que, nos termos do artigo 198.º n.º 1 – a) e c) e n.º 3 da CRP, no que respeita à criação, restruturação, orgânica e funcionamento do Instituto de Segurança Social I.P. o Governo tem, não só competência legislativa concorrente com a da Assembleia da república, como também, tendo sido aprovada a lei quadro, pode desenvolvê-la através da criação ou restruturação de institutos públicos mediante decreto lei – cf. artigos 7.º, 9.º, 16.º e 41.º da Lei 3/2004.

37.Com efeito, o preâmbulo do DL 83/2012 alude à lei quadro que desenvolve e à competencia legislativa concorrente do Governo, nos seguintes termos: Ao abrigo do disposto no n.º 1 do artigo 16.º da Lei nº 3/2004, de 15 de janeiro, e nos termos da alínea a) do n.º 1 do artigo 198.º da Constituição, o Governo decreta o seguinte:

38.A este propósito, convém também recodar que a administração da componente pública, o financiamento e a organização da estrutura orgânica do sistema de segurança social, a criação e a tutela dos institutos públicos, enquanto órgãos de administração indirecta do Estado, a regulação e a supervisão dos regimes complementares de segurança social de natureza não púbilica, a adopção do regime de licenciamento e de fiscalização da prestação de serviços e de estabelecimentos de apoio social, assim como a competência para o procedimento de contraordenações de segurança social, fazem parte do domínio de actuação própria do Governo, por força  das seguintes disposições legais: artigo 199.º da CRP; artigos 24.º, 93.º e 94.º da Lei 4/2007 (Bases Gerais do Sistema de Segurança Social); artigos 7.º, 9.º, 12.º e 16.º da Lei 3/2004 (Lei Quadro dos Institutos Públicos); artigos 2.º n.º 1 – b) e 3.º n.º 1 – b) da Lei 107/2009 (Regime Processual Aplicável às Contraordenações Laborais e de Segurança Social).

39.Pelo que, afigura-se que não enferma de inconstitucionalidade orgânica a adopção, pelo Governo, do DL 83/2012, que aprovou a lei orgânica do Instituto de Segurança Social I.P., instituto público integrado na administração indirecta do Estado e sob a tutela  do Ministro da Solidadriedade, Emprego e Segurança Social (cf. artigo 1.º do DL 83/2012, que concretiza o artigo 7.º da Lei 3/2004).

40.Feito este enquadramento, é forçoso constatar que também não enferma de insconstitucionalidade orgânica a Portaria  135/2012 uma vez que, por um lado, o artigo 12.º da Lei 3/2004 prevê expressamente que os estatutos dos institutos públicos devem ser adoptados mediante portaria, como sucede com a Portaria 135/2012 que aprova os Estatutos do Instituto de Segurança Social I.P., cujo preâmbulo faz alusão à Lei 3/2004. Nesse contexto,  o artigo 17.º da Portaria 135/2012 prevê que os directores de segurança social dos centros distritais têm competência para exercer a acção sancionatória aqui em causa, por delegação de poderes do conselho directivo. Ou seja, existindo lei primária da Assembleia da República, a Lei 3/2004, que prevê e regula os aspectos essenciais a que deve obedecer a criação de institutos públicos, a Portaria 135/2012 limita-se concretizar o disposto no artigo 12.º dessa lei para atingir os objectivos por ela visados (cf. Acórdão do Tribunal Constitucional 268/2021, de 29.4.2021, parágrafo 20).

41.Por outro lado, sendo o conselho directivo do Instituto da Segurança Social I.P. o órgão normalmente competente para exercer a acção sancionatória, como resulta do artigo 5.º do DL 83/2012, esse órgão pode delegar o poder sancionatório no centro distrital de segurança social, nos termos previstos nos artigos 44.º e 47.º do CPA, como sucedeu. A esse propósito, convém recordar que o artigo 6.º n.º 2 – a) da Lei 3/2004 (lei quadro) prevê expressamente que o CPA se aplica aos institutos públicos no que respeita à actividade de gestão pública, envolvendo o exercício de poderes de autoridade, a gestão da função pública ou do domínio público, ou a aplicação de outros regimes jurídico-administrativos.

42.Motivos pelos quais não existem as alegadas nulidade e inconstitucionalidade orgânica da deliberação do conselho directivo do Instituto da Segurança Social I.P. que delegou no centro distrital os poderes sancionatórios aqui em causa, improcedendo, assim, este segmento da argumentação da recorrente.

C.–Erro na qualificação jurídica do estabelecimento como creche

43.Questão diversa do alegado erro notório na apreciação da prova, que já foi acima analisado em A, é a da qualificação jurídica dos factos. A este propósito, segundo o Tribunal julga perceber, a recorrente defende que o Tribunal de primeira instância, com base nos factos provados 2 e 5, qualificou erradamente a sua actividade como creche quando se tratava de actividade de babysitting.

44.Para resolver esta questão importa começar por recordar que o artigo 3º da Portaria 262/2011, que estabelece as normas reguladoras das condições de instalação e funcionamento das creches, consagra o seguinte conceito de creche:
“Artigo 3.º
Conceito
A creche é um equipamento de natureza socioeducativa, vocacionado para o apoio à família e à criança, destinado a acolher crianças até aos 3 anos de idade, durante o período correspondente ao impedimento dos pais ou de quem exerça as responsabilidades parentais.”

45.Resulta dos factos provados 1 a 5 que a arguida explorava, com fins lucrativos, um estabelecimento situado em Torres Vedras (Ponte de Rol), denominado “Pézinhos de Lã”, onde estavam inscitas 9 crianças, com idades compreendidas entre os 8 e os 31 meses, que frequentavam esse estabelecimento durante o período de impedimento dos pais ou de quem exercia as responsabilidades parentais, mediante o pagamento à arguida da mensalidade de 125 euros por cada criança.

46.Ora, tendo em conta os factos acima mencionados, é forçoso constatar que os mesmos se enquadram no conceito de creche consagrado no artigo 3.º da Portaria 262/2011.

47.Pelo que, não merece censura a qualificação jurídica do estabelecimento da arguida, como creche, feita na sentença recorrida, improcedendo este segmento da argumentação da recorrente.

D.–Aplicação da lei contraordenacional mais favorável

48.A recorrente defende que deviam ter-lhe sido aplicáveis as alterações introduzidas pelo DL 126-A/2021, nomeadamente a disposição constante do artigo 31.º n.º 4 do DL 64/2007, que entraram em vigor em 10.1.2022, posteriormente à prática dos factos (ocorridos entre Agosto de 2019 e 13.11.2020/cf. factos provados 1 e 2), uma vez que tais disposições lhe são mais favoráveis.

49.Com efeito, o DL 126-A/2021, que entrou em vigor a partir de 10.1.2022, alterou o DL 64/2007 (diploma que prevê a contraordenação aqui em causa), tendo aditado ao artigo 31.º do DL  64/2007, o n.º 4 e passando esse preceito legal a ter a seguinte redacção:

“Arigo 31.º
Avaliação e vistorias técnicas
1–Compete aos serviços de proximidade do ISS, I. P., avaliar o funcionamento do estabelecimento, com base nas disposições legais aplicáveis, designadamente:
a)- Verificar a conformidade das atividades prosseguidas com as previstas na autorização de funcionamento;
b)- Avaliar a qualidade e verificar e regularidade dos serviços e cuidados prestados aos utentes, nomeadamente, no que se refere a condições de instalação e alojamento, adequação do equipamento, rácios de recursos humanos, alimentação e condições de higiene e segurança.
2–As ações de acompanhamento e apoio técnico referidas no número anterior, devem ser acompanhadas pelo diretor técnico do estabelecimento e concretizam-se, através da realização de, pelo menos, uma vistoria de dois em dois anos e sempre que se justifique.
3–[Revogado].
4–Os serviços de proximidade do ISS, I. P., concedem um prazo adequado, não inferior a 10 dias, para serem corrigidas eventuais desconformidades detetadas nas visitas realizadas, desde que salvaguardada a segurança de pessoas e bens, quando aplicável.”

50.Segundo o Tribunal julga pereceber, a recorrente defende que a entidade fiscalizadora da segurança social deveria ter-lhe concedido um prazo de 10 dias para corrigir as desconformidades detectadas na visita mencionada supra no facto provado 1, por tal estar previsto no artigo 31.º n.º 4 do DL 64/2007, uma vez tal regime lhe é concretamente mais favorável.

51.Esta questão convoca a aplicação do artigo 3.º n.º 2 do RGCO, ex vi artigo 60.º da Lei 107/2009, segundo o qual, se a lei vigente à data da prática dos factos for posteriormente alterada, deve aplicar-se o regime que for concretamente mais favorável.

52.–Porém, o problema que se coloca é o de saber se a situação em análise estaria coberta pela previsão do artigo 31.º n.º 4 do DL 64/2007, ainda que tal regime legal fosse aplicável ratione temporis. A resposta que o Tribunal dá a esta pergunta é negativa pelos motivos seguintes.

53.Com efeito, resulta da epígrafe do artigo 31.º do DL 64/2007 e da redacção das alíneas a) e b) do número 2 desse preceito legal, que o mesmo regula as avaliação e vistorias técnicas que incidem sobre dois aspectos: a)- a conformidade das atividades prosseguidas com as previstas na autorização de funcionamento; b)- e a qualidade e a regularidade dos serviços e cuidados prestados aos utentes, nomeadamente, no que se refere a condições de instalação e alojamento, adequação do equipamento, rácios de recursos humanos, alimentação e condições de higiene e segurança.

54.–Em consequência, no caso de se verificar uma desconformidade que diga respeito a um dos aspectos mencionados no artigo 31.º n.º 2 – a) e b) do DL 64/2007 aplica-se o n.º 4 desse preceito, devendo então os serviços de proximidade do Instituto de Segurança Social I.P. , ao fazer a avaliação ou vistoria, conceder um prazo adequado, não inferior a 10 dias, para serem corrigidas tais desconformidades.

55.Sucede que no caso em análise não foi verificada nenhuma desconformidade que incida sobre os aspectos previstos no artigo 31.º n.º 2 – a) e b) do DL 64/2007.

56.Na verdade, o que resulta dos factos provados 3 e 4 é que a arguida foi sujeita a uma acção de fiscalização (não de vistoria ou avaliação) do seu estabelecimento, prevista no artigo 32.º do DL 64/2007, à qual não se aplica o regime consagrado no arrigo 31.º n.º 4 do mesmo diploma legal. Ou seja, os artigos 31.º e 32.º do DL 64/2007 têm objectivos e regimes diversos: enquanto o objectivo do artigo 31.º é verificar, através de acções de avaliação e vistorias técnicas, a conformidade do funcionamento do estabelecimento (de creche) com determinados aspectos previstos no n.º 2 desse preceito; o objectivo do artigo 32.º  é, através de acções de fiscalização, detectar “actuações ilegais” e promover e acompanhar a execução das medidas propostas e a consequente aplicação de coimas e sanções acessórias”, não prevendo o artigo 32.º o recurso a uma solução idêntica à consagrada no artigo 31.º n.º 4, do DL 64/2007.

57.Ora, foi no contexto de uma acção de fiscalização que se enquadra no disposto no artigo 32.º do DL 64/2007, que foi detectada a falta de autorização para o funcionamento da creche explorada pela arguida, sendo o pedido de autorização de funcionamento uma exigência prevista no artigo 15.º A do DL 64/2007. Foi por falta de cumprimento dessa condição de funcionamento, que a arguida incorreu na contraordenação prevista no artigo 11.º n.º 1 do DL 64/2007 em que foi condenada, não estando esta situação coberta pelo disposto no artigo 31.º n.º 4 mas antes pelo disposto no artigo 32.º do DL 64/2007.

58.De onde resulta que, não há que verificar se o regime previsto no artigo 31.º n.º 4 do DL 64/2007 é concretamente mais favorável à arguida porque o mesmo não se plica à situação objecto dos autos.

59.Motivos pelos quais improcede este segmento da argumentação da recorrente.


E.–Medida concreta da coima e suspensão da execução da coima

60.A arguida defende que o valor da coima é excessivo tendo em conta que a capacidade económica de uma pessoa singular é inferior à de uma pessoa colectiva.

61.A este propósito, convém recordar que o artigo 39.º G do DL 64/2007 estabelece que os limites máximos e mínimos das coimas previstas nesse diploma se aplicam quer às pessoas singulares quer às pessoas coletivas, sendo reduzidos a metade apenas quando aplicáveis a entidades que não tenham finalidade lucrativa. Daqui resulta que, contrariamente ao que pretende a arguida, o critério pelo qual optou o legislador para fixar a moldura abstracta da coima, na área das contraordenações cometidas por estabelecimentos de apoio social explorados por entidades privadas, não é o da natureza de pessoa singular ou colectiva do infractor mas antes o da finalidade lucrativa ou não do infractor.

62.Dito isto, tendo o Tribunal a quo fixado a medida concreta da coima no limite minimo, pelos motivos explicados nos parágrafos 25 a 28 e 72 a 74, que aqui se dão por reproduzidos, não existe fundamento legal que permita determinar que a medida concreta da coima fique abaixo do limite mínimo em que foi fixada.

63.Adicionalmente, a recorrente defende que o Tribunal devia ter optado pela suspensão da execução da coima uma vez que a arguida/recorrente não tem antecedentes contraordenacionais, cessou de imediato a infracção, não se provaram danos na saúde e bem estar das crianças e, por isso, a ameaça da coima é suficiente para alcançar as finalidades da punição.

64.A este propósito, o Tribunal reafirma o já decidido noutro caso comparável (cf. acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, processo 2490/22.1T8CSC.L1), começando por sublinhar que o regime sectorial aplicável à contraordenação aqui em causa não prevê a suspensão da execução da coima (cf. artigos 39.º A a 39.º K do DL 64/2007 e regime processual aplicável às contraordenaões laborais e da segurança social previsto na Lei 107/2009).

65.Acresce que, segundo a doutrina que o Tribunal aqui acompanha (cf. Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Regime Geral das Contraordenações, 2.ª Edição, Universidade Católica Portuguesa, página 153):

“A suspensão da execução da coima não está prevista no RGCO, nem é aplicável por via do artigo 32.º (...)”

66.Com efeito, na falta de previsão especial sobre a suspensão da execução da coima no regime primário, sectorial, das contraordenações de segurança social aqui em causa, o Tribunal só poderá  aplicar a suspensão da execução da coima se isso estiver previsto no regime primário geral (RGCO, aplicavel ex vi artigo 60.º da Lei 107/2009) ou, na sua falta, no regime subsidiário previsto no CP, aplicável por força do disposto no artigo 32.º do RGCO, se se verificarem as condições exigidas para essa aplicação subsidiária do CP. 

67.Neste contexto, não estando prevista no regime contraordenacional sectorial, nem no RGCO, a suspensão da execução da coima, a aplicação subsidiária do CP é um meio para colmatar os espaços deixados vazios pela regulamentação primária (sectorial ou geral). A dificuldade que se apresenta ao Tribunal consiste em saber se, existindo uma omissão da regulamentação primária, essa ausência de regra expressa (sobre a suspenção da execução da coima) tem o sentido de regular a questão. Perante uma remissão, como a do artigo 32.º do RGCO, para normas do CP que foram pensadas para outro sector e para outra realidade, para que o regime previsto no CP seja aplicável subsidiáriamente é necessário que se verifique uma analogia substancial de regimes, sob pena de se desvirtuar a regulamentação primária (vide, no mesmo sentido, para o sector das contraordenações da concorrência, Lei da Concorrência, Comentário Conimbricense, 2.ª Edição, Almedina, páginas 281 e 282).

68.Ora, por um lado, os artigos 47.º a 48.º do CP não prevêem a possibilidade de suspender a pena de multa (que tem em comum com a coima a natureza pecuniária). Por outro lado, a suspensão da execução da pena de prisão depende, entre outros pressupostos, da realização de exigências de prevenção especial (cf. artigo 50.º n.ºs 1 e 2 do CP) que não fazem parte das finalidades da coima. Com efeito, as finalidades da coima podem resumir-se na ideia de prevenção geral positiva ou integradora complementada pela prevenção geral negativa ou dissuasora. (cf. Augusto Silva Dias, Direito das Contraordenações, Almedina, página 165).

69.Pelo que, afigura-se não existir analogia substancial entre o regime da suspensão da pena de prisão previsto no CP e o regime contraordenacional aqui em causa, capaz de justificar a aplicação subsidiária do CP para suspender a execução da coima.

70.A omissão de previsão legal sobre a suspensão da execução da coima aqui em causa tem o sentido de regular a questão. Em consequência, não se verificam as condições da aplicação subsidiária do regime da suspensão da execução da pena de prisão previsto no CP.

71.Adicionalmente, no contexto da argumentação sobre a suspensão da execução da coima, a recorrente invoca a figura juridica do estado de necessidade (cf. conclusões 59 a 61). Para facilitar a compreensão da argumentação da recorrente o Tribunal cita as seguintes passagems das alegações de recurso :

“O bem jurídico económico igualmente protegido pela norma tem necessariamente que ceder perante a salvaguarda do direito fundamental da protecção das crianças.
Direito fundamental esse que a recorrente protegeu e sempre tentou proteger. E como tal, não deve ser aplicada à Recorrente qualquer coima de forma efectiva.
Pois esta agiu ao abrigo do estado de necessidade, pois não havia[m] respostas por parte do Estado para acolher as crianças (...)”

72.–A este propósito, o Tribunal começa por sublinhar que são aplicáveis à contraordenação aqui em análise as causas de justificação e de exclusão da culpa previstas no CP, por força dos artigos 39.º K n.º 1 do DL 64/2007, 60.º da Lei 107/2009 e 32.º do RGCO (cf. no sentido de que as causas de justificação previstas no CP se aplicam no domínio contraordenacional, Augusto Silva Dias, Direito das Contra-Ordenações, Almedina, página 117).

73.–O CP distingue o estado (direito) de necessidade como causa de justificação que exclui a ilicitude (cf. artigo 34.º do CP) do estado de necessidade como causa de exclusão da culpa (cf. artigo 35.º do CP). A aplicação de qualquer destas duas figuras está sujeita à verificação de um denominador comum:  o afastamento de um perigo actual que ameaça bens jurídicos do agente ou de terceiro, através da prática de um facto típico. Verificada essa condição, se o interesse salvaguardado for sensívelmente superior ao sacrificado, o facto está justificado por direito de necessidade, sendo excluída a ilicitude; se o interesse salvaguardado não for sensívelmente superior ao sacrificado, o facto é ilícito mas, mediante certos pressupostos, a culpa pode ser excluída (cf. Jorge de Figueiredo Dias, Direito penal, Parte Geral, Tomo I, 3.ª Edição, Gestlegal, página 516).

74.Ora, no caso em análise, ainda que se provasse a alegada falta de respostas do Estado para acolher as crianças que frequentavam a creche da arguida, quod non, dai não resultaria que tais crianças estivessem numa situação de perigo actual que ameaçasse os seus interesses jurídicamente protegidos, o que, como foi explicado no parágrafo anterior, é condição da aplicação do direito de necessidade, seja como causa de exclusão da iliciude, seja como causa de exclusão da culpa. Em consequência, por falta de verificação desse pressuposto, não há lugar à aplicação de nenhuma das figuras do estado de necessidade acima enunciadas.

75.Motivos pelos quais improcede este segmento da argumentação da recorrente.

Em síntese

76.Não se verifica o erro notório na apreciação da prova previsto no artigo 410.º n.º 2 – c) do CPP, nem houve preterição do direito de defesa por incumprimento do artigo 18.º da Lei 107/2009.

77.Quanto à Insuficiência da matéria de facto apurada para a fixação da medida concreta da coima (cf. artigo 410.º n.º 2 – a) do CPP), a produção de prova complementar sobre a situação económica e o beneficio financeiro da recorrente seria um acto inútil, uma vez que a coima concreta foi fixada no limite minimo previsto na lei – cf. artigo 130.º do CPC (ex vi artigos 4.º do CPP, 50.º n.º 4 e 60.º da Lei 107/2009 e 41.º n.º 1 do RGCO).

78.À luz do disposto nos artigos 47.º n.º 2, 151.º n.º 1 – g) e 159.º do CPA carece de fundamento a alegada nulidade da deliberação n.º 1295/2020 de 31.12 e/ou da sua publicação, com base na falta das assinaturas dos restantes membros do conselho directivo do Instituto da Segurança social I.P..

79.O DL 83/2012 e a Portaria 135/2012, concretizam a Lei 3/2004 ou Lei Quadro dos Institutos Públicos, adoptada pela Assembleia da República ao abrigo da sua competência legislativa concorrente com a do Governo, nos termos previstos  no artigo 161.º n.º 1 – c) da CRP. Pelo que, não existe a alegada insconstitucionalidade orgânica, por violação do disposto no artigo 198.º n.º 1 – a) da CRP, da deliberação n.º 1295/2020 de 31.12, adoptada pelo  conselho directivo do Instituto de Segurança Social I.P. que, nos termos previstos no quadro legal acima referido, delegou os poderes sancionatórios aqui em causa no centro distrital da segurança social.

80.Acresce que, sendo o conselho directivo do Instituto de Segurança Social I.P. o órgão normalmente competente para exercer a acção sancionatória, como resulta do artigo 5.º do DL 83/2012, esse órgão pode delegar o poder sancionatório no centro distrital de segurança social, nas condições previstas nos artigos 44.º e 47.º do CPA, ex vi artigo 6.º n.º 2 – a) da Lei 3/2004, como sucedeu.

81.Os factos provados enquadram-se no conceito de creche consagrado no artigo 3.º da Portaria 262/2011.

82.Foi no contexto de uma acção de fiscalização prevista no artigo 32.º do DL 64/2007 e não no contexto de uma vistoria e avaliação prevista artigo 31.º desse diploma, que foi detectada a falta de autorização para o funcionamento da creche explorada pela arguida. Em consequência, não há que verificar se o regime previsto no artigo 31.º n.º 4 do DL 64/2007 é mais favorável à arguida, por força do artigo 3.º n.º 2 do RGCO ex vi artigos 60.º da Lei 107/2009 e 39.º K do DL 64/2007, porque não se plica à situação objecto dos autos o artigo 31.º mas antes o artigo 32.º do DL 64/2007.

83.Não está prevista, no regime contraordenacional sectorial aqui em causa (cf. DL 64/2007 e Lei 107/2009), a suspensão da execução da coima. A suspensão da execução da coima não resulta da remissão feita pelo artigo 32.º do RGCO para o regime subsidiário previsto no CP. Não existe analogia substancial entre o regime da suspensão da pena de prisão, previsto no CP e o regime contraordenacional, aqui em causa, capaz de justificar a aplicação subsidiária do CP para suspender a execução da coima.

84.Embora a figura complexa do estado (direito) de necessidade prevista no CP seja de aplicar em matéria contraordenacional ex vi artigo 32-º do RGCO, contrariamente ao que defende a arguida, não se apurou a existência de uma situação de  perigo actual para os interesses jurídicamente protegidos de terceiros (as crianças que frequentavam a creche), que  é o denominador comum para a aplicação da figura do estado de necessidade, quer como causa de justificação (artigo 34.º do CP), quer como causa de exclusão da culpa (cf. artigo 35.º do CP).

85.Motivos pelos quais improcede totalmente o recurso, mantendo-se a decisão recorrida.

Custas

86.–A recorrente/arguida decaiu pelo que, é responsável pelas custas  do recurso – artigo 513.º do CPP, ex vi artigo 50.º n.º 4 da Lei 107/2009.

87.–A recorrente/arguida juntou às alegações de recurso cópia do requerimento de protecção jurídica, incluindo o pedido de dispensa do pagamento de taxa de justiça, que enviou ao Instituto de Segurança Social I.P. em 23.10.2023 (cf. referência citius 14367546), ao qual se aplica o regime previsto no artigo 44.º n.º 1 da Lei 34/2004.

88.–Sem prejuízo de lhe vir a ser concedido o apoio judiciário que requereu, a recorrente deve ser condenada em custas.

89.–Pelo que, nos termos do artigo 8.º n.º 9 do Regulamento das Custas Processuais (RCP) e da tabela iii anexa ao mesmo, o Tribunal fixa a taxa de justiça em 4 UC, que é o valor mínimo.


Decisão

Acordam as juízes que compõem a presente secção em:

I.–Negar provimento ao recurso.

II.–Condenar a arguida nas custas do recurso, fixando em 4 UC a taxa de justiça, sem prejuizo do apoio judiciário que requereu.


Lisboa, 21 de Fevereiro de 2024


Paula Pott - (relatora)
Manuela Fialho - (1.ª adjunta)
Paula de Sousa Novais Penha - (2.ª adjunta)