Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
2412/16.9T8BRR.L1-4
Relator: MARIA LUZIA CARVALHO
Descritores: NULIDADE DA SENTENÇA
VÍCIOS DA DECISÃO DE FACTO
EXCESSO DE PRONÚNCIA
PROVA PERICIAL
PRINCÍPIO DA LIVRE APRECIAÇÃO DA PROVA
IPATH
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 02/21/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA EM PARTE
Sumário: 1–A motivação do julgamento da matéria de facto prevista no art.º 607.º nº 4 do CPC difere da fundamentação a que alude o nº 3 deste preceito, sendo que apenas a falta ou insuficiência desta última pode dar causa à arguição nulidade da decisão nos termos do art.º 615.º daquele diploma.

2–Tal nulidade não se confunde com os vícios da decisão da matéria de facto.

3–A nulidade da sentença por excesso de pronuncia só se verifica quando o tribunal se pronuncia sobre questões ou pretensões que não devesse apreciar e cuja apreciação não lhe foi solicitada, sendo que a expressão «questões» prende-se com as pretensões que os litigantes submetem à apreciação do tribunal e as respectivas causas de pedir e não se confunde com as razões (de facto ou de direito), os argumentos, os fundamentos, os motivos, os juízos de valor ou os pressupostos em que as partes fundam a sua posição na controvérsia.

4–A livre apreciação da prova traduz-se numa apreciação racional e criticamente fundamentada das provas de acordo com as regras da experiência comum e com corroboração pelos dados objetivos existentes, nada obstando a que o juiz divirja relativamente ao laudo pericial desde que de forma fundamentada em outros elementos probatórios que, por si ou conjugadamente com as regras da experiência comum, levem a conclusão contrária.

5–A IPATH (incapacidade permanente absoluta para o trabalho habitual), sendo uma modalidade de incapacidade permanente absoluta confere o direito ao subsídio por situações de elevada incapacidade nos termos do art.º 67.º, n.ºs 1 e 3 da LAT.


(Sumário da autoria da Relatora)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os juízes da 4.ª secção do Tribunal da Relação de Lisboa


Relatório


AA instaurou a presente ação para a efetivação de direitos resultantes de acidente de trabalho contra AGEAS Portugal - Companhia de Seguros de Vida, S.A. e Vigiexpert - Prevenção e Vigilância Privada, Lda., peticionando a condenação da 1.ª Ré ou da 2ª Ré, consoante o que se vier a apurar, no pagamento ao Autor de:
I.–pensão anual no valor de € 6.299,28, acrescida de juros de mora, sendo a pensão devida desde o dia seguinte à data da alta, ou seja, 09/11/2016;
II.–subsídio por situação de elevada incapacidade, no montante de € 5.533,70;
III.–a quantia de € 12.923,46, a título de indemnização por incapacidades temporárias;
IV.despesas com transportes o valor de € 24,00;
V. juros de mora à taxa legal, a incidir sobre as verbas em que forem condenadas, desde o seu vencimento até integral reembolso.
Alegou, em síntese ter sofrido acidente de trabalho quando se encontrava sob as ordens, direção e fiscalização da 2ª Ré, do qual lhe resultaram danos, estando a responsabilidade da empregadora transferida para a seguradora apenas parcialmente.
As Rés apresentaram contestação, alegando em síntese desconhecerem a ocorrência de qualquer acidente de trabalho e discordarem do exame médico realizado na fase conciliatória.
Procedeu-se à prolação de despacho saneador, onde foi fixada a matéria assente e identificados os temas da prova, mais se determinando o desdobramento do processo.
Foi proferida decisão no apenso de fixação de incapacidade, da qual se infere que a decisão da incapacidade foi relegada para a sentença a proferir no processo principal.

Realizada a audiência de julgamento foi proferida sentença na qual se decidiu:
1.Julgar o sinistrado afetado de uma IPP de 50% com IPATH desde 09.11.2016;
2.Condenar a 1.ª Ré no pagamento ao Autor de:
i.-98,72% do montante de € 6 299,28 a título de pensão anual e vitalícia;
ii.-98,72% do montante de € 13 303,27 a título de indemnização pelas incapacidades temporárias;
iii.-€ 24 a título de despesas de transporte;
iv.-Juros moratórios vencidos à taxa legal sobre a quantia referida em i. desde 10.11.2016 e vincendos até efetivo e integral pagamento.
v.-Juros moratórios vencidos sobre a quantia referida em ii. desde 07.02.2015   e vincendos até efetivo e integral pagamento;
vi.-Juros moratórios vencidos à taxa legal sobre a quantia referida em iii. desde a data da citação até efetivo e integral pagamento.
3. Condenar a 2.ª Ré no pagamento ao Autor de:
i.-1,28% do montante de € 6299,28 a título de pensão anual e vitalícia;
ii.-1,28% do montante de € 13303,27 a título de indemnização pelas incapacidades temporárias;
iii.-Juros moratórios vencidos à taxa legal sobre a quantia referida em i. desde 10.11.2016 e vincendos até efetivo e integral pagamento.
iv.-Juros moratórios vencidos sobre a quantia referida em ii. desde 07.02.2015   e vincendos até efetivo e integral pagamento;

4. Absolver as Rés do demais peticionado.

Desta sentença recorreu o sinistrado, patrocinado pelo Ministério Público, pugnando pela condenação da ré seguradora no pagamento do subsídio elevada incapacidade, formulado as seguintes conclusões:
«1.ª- A discordância do recorrente prende-se com o facto de entender que à situação dos autos não era aplicável o disposto no n.º 1, do art.º 67.º, da Lei dos Acidentes de Trabalho, mas sim o seu n.º 3.
2.ª- Atento o disposto no n.º 3 daquele preceito legal e que ficou provado que o recorrente padece de uma IPP de 50%, com IPATH, dúvidas não se suscitam que tem direito ao referido subsídio por situações de elevada incapacidade permanente.
3.ª-Neste contexto, afigura-se que na douta sentença recorrida, mais precisamente na parte em que se considerou que o recorrente não tinha direito ao aludido subsídio, se fez uma incorreta aplicação do direito, erro que se impõe suprir.
4.ª-Por todo o exposto, deverá a douta sentença recorrida ser revogada, nesta parte, proferindo-se, em sua substituição, douto acórdão em que se condene a R. seguradora a pagar ao recorrente/A. o aludido subsídio por situações de elevada incapacidade permanente, no montante de €4.703,65, acrescido dos respetivos juros de mora.»

As rés não apresentaram contra-alegações.

A seguradora, por sua vez, interpôs recurso da sentença, pretendendo ser absolvida de todos os pedidos contra ela formulados, formulando as seguintes conclusões:

«1.Ocorre divergência manifesta entre o exame médico singular e o resultado unânime da Junta Médica a qual se pronunciou (e reiterou em sede de esclarecimentos) pela inexistência de nexo de causalidade entre o evento ocorrido em 06-02-2015 e o quadro psiquiátrico pelo qual o Autor tem vindo a ser seguido em consulta de psiquiatria, por quatro ordens de fundamentos:
a)-As primeiras “queixas” só ocorrem dois meses após o “evento”, na consulta do dia 10 de Abril de 2015;
b)-Durante esse período, o Autor manteve-se em funções “a 100%”, sendo que à data da avaliação estaria a trabalhar “sem dificuldades de relevo”;
c)-Não foi feita qualquer participação de acidente de trabalho que, como se disse, sai completamente fora dos parâmetros da normalidade, ante a factualidade descrita, só o fazendo um ano depois, junto dos serviços do Ministério Público;
d)-A terapêutica medicamentosa cumprida pelo Autor (Valproato de Sódio e Quetiapina) não é a adequada para o tratamento da Perturbação de Stress Pós-Traumático, podendo indiciar melhoria ou remissão sintomática ou a existência de outra problemática não relatada.
2.Tendo o Tribunal dado acolhimento ao parecer singular, em detrimento do resultado da Junta, deveria ter sido devidamente fundamentada a razão pela qual o fez, o que não sucedeu.
3.A douta sentença é nula por falta de fundamentação, nos termos do artigo 615º, nº 1, alínea b) do CPC, devendo ser revogada.
4. A Sentença é igualmente nula uma vez que o Tribunal a quo conheceu de questões de que não podia tomar conhecimento, porque não foram trazidas pelas partes, em violação do artigo 615º nº 1, alínea d) do CPC.
5.Ou seja, não foram alegados quaisquer factos relativos ao local e tempo de trabalho do Autor, designadamente, se ocorreu no período normal de trabalho, mas ainda assim, o Tribunal considerou, erradamente, que o “acidente” ocorreu quando se encontrava ao serviço da 2ª Ré.
6.A Sentença violou, ainda, o artigo 414º do CPC, relativo às regras sobre a repartição do ónus da prova, resolvendo a dúvida que subsiste acerca da existência do acidente de trabalho, se o “acidente” ocorreu no período normal de trabalho, das despesas peticionadas, a favor da parte a quem o facto aproveita, precisamente o Autor, não obstante, nenhuma prova ter sido feita nesse sentido.
7.Por outro lado, ao colmatar a falta de alegação de um facto essencial, respeitante ao horário de trabalho do Autor e se este cumpria o período normal de trabalho na altura do “acidente”, a Sentença violou o artigo 20º nº 4 da CRP que salvaguarda a exigência de um processo equitativo.
8.Todavia, o processo contém todos os elementos que permitem alterar a decisão de facto e, como tal, também a decisão de mérito, como decorre do disposto no artigo 662º, nº 1 do CPC.
9.Atento o maior rigor e credibilidade que merece o resultado da junta médica, deveria o Tribunal prevalecer-se deste e decidindo que o Autor teve alta em 9.11.2016, curado, sem desvalorização ou IPATH.
10.Estando nos poderes deste Tribunal da Relação alterar a decisão de facto quanto às alíneas C, F, G, H e I dos factos provados, deles deverá passar a constar seguinte:
C. O Autor sofreu período de ITA de 07.02.2015 até 09.11.2016, datando a consolidação médica das lesões de 09.11.2016.
F.No dia 06 de fevereiro de 2015 o Autor sofreu um acidente que consistiu em ter sido vítima de um roubo, com sequestro, por parte de indivíduos encapuçados.
G.Não Provado.
H.Não Provado.
I.Não Provado.
11.Pelo que a Sentença deve ser alterada e, em consequência, não deve o Autor ser julgado como afectado de uma IPP de 50% com IPATH desde 09.11.2016 e a Recorrente absolvida de todos os pedidos contra ela formulados.
12.Por outro lado, uma vez que não seja arbitrada qualquer indemnização, não tem o Autor direito a ser compensado pelas despesas com deslocações para diligências a que compareceu, nos termos do artigo 39º, nº 2 – parte final - da LAT, pelo que também não deve ser proferida condenação a esse título, nem em juros de mora, (…).»

O sinistrado contra-alegou pugnando pela manutenção da sentença, apresentando as seguintes conclusões:

«Questão A)
1.ª-Na petição inicial o A. alegou, com interesse, que em 06 de fevereiro de 2015, trabalhava sob ordens, direção e fiscalização da 2ª Ré, em execução do contrato de trabalho com esta celebrado, bem como que, nesse dia, quando se encontrava ao serviço da 2ª Ré, exercendo funções de vigilante nos armazéns Logiteres, em Palmela, o Autor sofreu um acidente que consistiu em ter sido vítima de um roubo, com sequestro, por parte de indivíduos encapuçados.
2.ª-Nesta sequência, no despacho saneador proferido em 13.04.2021, foi dado como provado que em 06 de fevereiro de 2015, o Autor trabalhava sob ordens, direção e fiscalização da 2ª Ré, em execução do contrato de trabalho com esta celebrado.
3.ª-Nos temas de prova ficou a constar que no dia 06 de fevereiro de 2015, quando se encontrava ao serviço da 2ª Ré, exercendo funções de vigilante nos armazéns Logiteres, em Palmela, o Autor sofreu um acidente que consistiu em ter sido vítima de um roubo, com sequestro, por parte de indivíduos encapuçados, bem como que tais factos ocorreram em dia, hora e local em que o Autor se encontrava a trabalhar ao serviço da primeira Ré.
4.ª-O despacho saneador não foi objeto de qualquer reclamação, o que se compreende, por os factos elencados na alínea c) dos temas de prova serem uma derivação lógica dos factos a que se alude na alínea que a antecede.
5.ª-Em suma, e salvo o devido respeito por melhor opinião, os factos dados como provados em G) poder-se-ão considerar, desde logo, como instrumentais, que resultam da instrução da causa e foram sujeitos ao contraditório (art.º 5.°, n.º 2, al. a), do CPC, ex vi art.º 1.°, n.º 2, al. a), do CPT), pelo tinham de ser dados como provados.
6.ª-Por outro lado, e no que respeita às invocadas reservas quanto a ter ocorrido ou não o sinistro, verdadeiro assalto nas palavras da recorrente, importa ter em conta que a Mm.a Juíza a quo estribou a sua decisão, no que tange aos factos vertidos em F. e G., na conjugação de toda a prova produzida e oportunamente elencada.
7.ª -Atento o referido pelo sinistrado na audiência de julgamento, que mereceu credibilidade por parte do Tribunal, o referido pela testemunha BB que elaborou o auto de notícia que deu origem ao inquérito n.º 125/15.8GDSTB, que também mereceu credibilidade pelo Tribunal, e a demais prova documental junta aos autos, não se vislumbra por que motivo a Mm.a Juíza a quo deveria ter ficado com qualquer dúvida.
8.ª-Ora, não tendo a Mm.a Juíza a quo ficado com qualquer dúvida, por inexistir qualquer motivo para tal, não podia lançar mão do disposto no art.º 414.°, do CPC.
9.ª-Donde que, a douta sentença recorrida não enferma de qualquer vício nem violou qualquer disposição legal quanto à questão em apreço, pelo que deve ser mantida nesta parte.

Questão B)
10.ª-Atento o acima transcrito em B) da posição do sinistrado/recorrido, é manifesto que a douta sentença recorrida não padece de qualquer ambiguidade ou obscuridade que a tome ininteligível.
11.ª-Mais, é patente o esforço feito pela Mm.a Juíza a quo para que se consiga alcançar o seu pensamento, com o que nos devemos todos congratular, independentemente de concordarmos ou não com a decisão.
12.ª-Com efeito, dúvidas não se suscitam que, em conformidade com o disposto no art.º 601°, n.º 1, do CPC, ex vi art.º l.º, n.º 2, al. a), do CPC, a Mm.a Juíza apreciou livremente as provas segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto.
13.ª-Aqui chegados, importa frisar que na perícia médica singular se entendeu, desde logo, que existia nexo de causalidade entre o evento e o dano.
14.ª-Na junta médica da especialidade começou-se por ter dúvidas e, na sequência dos esclarecimentos requeridos, e apesar de referirem que é «(...) difícil estabelecer nexo de causalidade direto e total/exclusivo com o acidente de trabalho em apreço nos presentes autos (...), acabaram por concluir «(...) os dados juntos aos autos permitiram concluir que não existe encadeamento temporal entre o incidente e as queixas que vieram posteriormente a ser alegadas pelo sinistrado (...)».
15.ª-Neste contexto, a Mm.a Juíza a quo não tinha de atender ao teor da junta médica da especialidade, pois como se refere no acórdão oportunamente transcrito, e prescreve o art.º 489.°, do CPC, «(...) A segunda perícia não invalida a primeira, sendo uma e outra livremente apreciadas pelo tribunal. (...)».
16.ª-A Mm.a Juíza a quo não se limitou a opinar, sem o mínimo de sustentação científica e factual, pois sustentou a sua decisão, desde logo, na perícia singular e na demais documentação junta aos autos.
17.ª-Mais, apoiou-se, inclusivamente, no que consta na Tabela Nacional de Incapacidades, que não é, certamente, ininteligível para uma Mm.a Juíza da área laborai.
18.ª-A douta sentença recorrida também não padece de qualquer vício nem violou qualquer disposição legal quanto a esta questão, pelo que deve igualmente ser mantida nesta parte.

Questão C)
19.ª-Atenta a fundamentação de facto e de direito constante da douta sentença recorrida, afigura-se manifesto que inexiste falta absoluta de motivação.
20.ª-Na verdade, da fundamentação da douta sentença recorrida resulta claro a prova que a Mm.a Juíza a quo teve em conta para dar como provados os factos constantes em C), bem como o motivo por que atendeu a essa prova e desconsiderou, por exemplo, a perícia colegial de psiquiatria.
21.ª-Donde que, a douta sentença recorrida não enferma de qualquer vício ou violou qualquer disposição legal nesta parte.

Questão D)
22.ª-Para prova dos factos constante em I), da matéria de facto dada como provada na douta sentença recorrida, a Mm.a Juíza a quo teve em conta, como resulta da respetiva fundamentação, que o sinistrado/recorrido por duas vezes deslocou-se da sua residência a este Juízo do Trabalho do Barreiro a fim de ser sujeito a exames médicos, mais uma vez à tentativa de conciliação, uma outra vez a junta médica no Juízo do Trabalho do Barreiro e, ainda, a uma junta médica da especialidade em Lisboa.
23.ª-Conjugando toda a prova produzida, deu como provados os factos referidos em I), o que se nos afigura não ser merecedor de qualquer censura, pelo que a decisão recorrida também deverá ser mantida nesta parte.
24.ª-Pelo exposto, isto é, por a douta sentença recorrida não padecer de qualquer lapso e na mesma ter sido feita correta interpretação e aplicação dos preceitos legais aplicáveis, não é merecedora de qualquer censura, devendo, por isso, ser mantida quanto às questões suscitadas pela recorrente/Ré seguradora.»

Os recursos foram admitidos na forma adequada, incluindo quanto ao modo e efeito.

Neste tribunal o Ministério Público apôs visto.

Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
*

Delimitação do objeto do recurso

Resulta das disposições conjugadas dos arts. 639.º, nº 1, 635.º e 608.º, n.º 2, todos do Código de Processo Civil (doravante CPC), aplicáveis por força do disposto pelo art.º 1.º, n.º 1 e 2, al. a) do Código de Processo do Trabalho (doravante CPT), que as conclusões delimitam objetivamente o âmbito do recurso, no sentido de que o tribunal deve pronunciar-se sobre todas as questões  suscitadas pelas partes (delimitação positiva) e, com exceção das questões do conhecimento oficioso, apenas sobre essas questões (delimitação negativa).
Analisado o requerimento de interposição do recurso apresentado pela ré verifica-se, que apesar de no corpo das alegações haver menção à nulidade da sentença ao abrigo do art.º 615.º, n.º 1, al. c) do CPC, o qual se refere às situações em que a fundamentação está em oposição com a decisão ou em que ocorra ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível, tal questão não consta das conclusões, motivo pelo qual, o tribunal não se pronunciará sobre ela.
Verifica-se também que, apesar de a ré não o afirmar expressamente, não fazendo qualquer referência ao art.º 640.º do CPC, mas apenas ao art.º 662.º do mesmo código, pretende afinal que seja modificada a decisão da matéria de matéria de facto, como resulta da circunstância de começar, desde logo, por afirmar que o recurso tem por objeto a matéria de facto e a matéria de direito, bem como do teor da conclusão 10, questão sobre a qual, nos termos que melhor explicaremos adiante, o tribunal entende dever pronunciar-se.

Assim, as questões a decidir são as seguintes:

Do recurso da ré seguradora:
1–nulidade da sentença por falta de fundamentação nos termos do art.º 615.º, n.º 1, al. b) do CPC;
2–nulidade da sentença por excesso de pronuncia nos termos do art.º 615.º, n.º 1, al. d) do CPC;
3–alteração/impugnação da decisão da matéria de facto;
4–se a ré seguradora deve ser absolvida de todos os pedidos;
5–subsidiariamente, se o autor tem direito ao reembolso das despesas com transportes para as deslocações obrigatórias.
Do recurso do autor:
6–se o autor tem direito ao subsídio de elevada incapacidade.
*

Fundamentação de facto

Foram os seguintes os factos considerados provados pelo tribunal “a quo”:
«A.–A 2ª Ré desenvolve a sua atividade, além do mais, na área da vigilância privada.
B.–Em 06 de fevereiro de 2015, o Autor trabalhava sob ordens, direção e fiscalização da 2ª Ré, em execução do contrato de trabalho com esta celebrado, com a categoria de vigilante.
C.–O Autor sofreu período de ITA de 07.02.2015 até 09.11.2016, datando a consolidação médica das lesões de 09.11.2016, padecendo de uma IPP de 50%, com IPATH.
D.–A ré seguradora tinha transferida para a sua esfera jurídica a remuneração de € 10.364,00 através da apólice n° 001010218388, válida à data do acidente e na modalidade “prémio variável”.
E.–O Autor auferia a retribuição base mensal de € 651,56x14 meses, acrescido de € 5,69 x 242 dias, a título de subsídio de alimentação, a que corresponde a retribuição anual bruta de € 10.498,80.
F.–No dia 06 de fevereiro de 2015, quando se encontrava ao serviço da 2ª Ré, exercendo funções de vigilante nos armazéns Logiters, em Palmela, o Autor sofreu um acidente que consistiu em ter sido vítima de um roubo, com sequestro, por parte de indivíduos encapuçados.
G.–Os factos referidos no artigo anterior ocorreram em dia, hora e local em que o Autor se encontrava a trabalhar ao serviço da primeira Ré.
H.–Em consequência do acidente o Autor sofreu quadro de Perturbação Pós-Stress Traumático.
I.–O autor despendeu, com transportes em deslocações obrigatórias ao Tribunal o montante de € 24,00.»
*

Apreciação

Como decorre do elenco das questões a decidir, começaremos por nos pronunciar sobre o recurso interposto pela ré seguradora, já que na sua procedência, ficará prejudicada a apreciação do recurso interposto pelo autor (cfr. art.º 608.º, n.º 2 do CPC).
Assim, a primeira questão a decidir é a da nulidade da sentença por falta de fundamentação nos termos do art.º 615.º, n.º 1, al. b) do CPC, alegando a recorrente que tendo o tribunal dado acolhimento ao parecer singular, em detrimento do resultado da junta, deveria ter sido devidamente fundamentada a razão pela qual o fez, o que não sucedeu. Reporta-se, a recorrente, se bem compreendemos as suas alegações, à fundamentação da decisão da matéria de facto.
O art.º 615.º, n.º 1, al. b) do CPC, em consonância com o disposto pelos arts. 131º, n.º 1, 2.ª parte, 154.º, nº 1 e 607.º, n.º 3 do mesmo código e com o art.º 205.º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa, comina de nula a sentença que não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão.
As causas de nulidade de sentença, taxativamente enumeradas no art.º 615.º do CPC, visam o erro na construção do silogismo judiciário e não o chamado erro de julgamento, a injustiça da decisão ou a não conformidade dela com o direito aplicável.[1]
Como têm sido doutrina[2] e jurisprudência[3] correntes, a falta de fundamentação de facto ocorre quando, na sentença, se omite ou se mostre de todo ininteligível o quadro factual em que era suposto assentar.
A falta ou insuficiente motivação do julgamento da matéria de facto prevista no art.º 607.º nº 4 do CPC difere da fundamentação a que alude o nº 3 deste preceito, sendo que apenas esta última pode dar causa à arguição nulidade da decisão nos termos do art.º 615.º daquele diploma.[4]
Tal nulidade não se confunde com os vícios da decisão da matéria de facto, designadamente com o invocado erro do tribunal a quo ao acolher o resultado do exame singular em detrimento do parecer da junta médica, confundindo a recorrente duas realidades jurídicas distintas.
Assim, e porque, independentemente do seu acerto, é manifesto que a sentença contém os fundamentos de facto em que assentou a decisão, improcede a nulidade da sentença arguida pela recorrente.
O mesmo acontece, essencialmente pelos mesmos fundamentos, quanto à nulidade por excesso de pronuncia nos termos do art.º 615.º, n.º 1, al. d) do CPC.
A recorrente considera que tal nulidade se verifica porque o tribunal a quo conheceu de questões de que não podia tomar conhecimento, porque não foram trazidas pelas partes, na medida em que não foram alegados quaisquer factos relativos ao local e tempo de trabalho do autor, designadamente, se o acidente ocorreu no período normal de trabalho, mas ainda assim, o tribunal considerou, erradamente, que o “acidente” ocorreu quando se encontrava ao serviço da 2ª Ré.
Mais uma vez a recorrente confunde a nulidade da sentença com eventuais vícios da decisão da matéria de facto.
A nulidade em causa, em directa conexão com os comandos ínsitos dos arts. 608.º e 609.º do CPC, só se verifica quando o tribunal se pronuncia sobre questões ou pretensões que não devesse apreciar e cuja apreciação não lhe foi solicitada, sendo que a expressão «questões» prende-se com as pretensões que os litigantes submetem à apreciação do tribunal e as respectivas causas de pedir e não se confunde com as razões (de facto ou de direito), os argumentos, os fundamentos, os motivos, os juízos de valor ou os pressupostos em que as partes fundam a sua posição na controvérsia.[5]

Como pode ler-se no Ac. STJ de 23/03/2017[6] «o não atendimento de um facto que se encontre provado ou a consideração de algum facto que não devesse ser atendido nos termos do artigo 5.º, n.º 1 e 2, do CPC, não se traduzem em vícios de omissão ou de excesso de pronúncia, dado que tais factos não constituem, por si, uma questão a resolver nos termos do artigo 608.º, n.º 2, do CPC.»

Por isso, improcede igualmente a nulidade da sentença por excesso de pronúncia arguida pela ré.
*

Resulta do que afirmámos a propósito da delimitação do objeto do recurso que, apesar de a recorrente não o afirmar expressamente, não fazendo qualquer referência ao art.º 640.º do CPC, mas apenas ao art.º 662.º do mesmo código, pretende afinal que seja modificada a decisão da matéria de facto, como resulta da circunstância de começar, desde logo, por afirmar que o recurso tem por objeto a matéria de facto e a matéria de direito, bem como do teor da conclusão 10.
Na verdade a recorrente, deixa bem explícito que pretende a modificação da decisão da matéria de facto, quer ao longo das alegações quando convoca os meios de prova produzidos, rebatendo as ilações deles tiradas pelo tribunal “a quo”, quer nas conclusões do recurso, ao afirmar que está nos poderes deste Tribunal da Relação alterar a decisão de facto quanto às alíneas C, F, G, H e I dos factos provados, indicando qual a decisão que entende dever ser sobre eles proferida, pelo que, ainda que a recorrente não qualifique  tal pretensão como impugnação da matéria de facto, tendo o recorrido tomado posição sobre os fundamentos por esta invocados, tal não obsta a que este tribunal aprecie a questão com esse enquadramento, desde que se mostrem cumpridos os ónus impostos pelo referido art.º 640.º do CPC.
Vejamos, pois!
Nos termos do disposto pelo art.º 662.º, n.º 1 Código de Processo Civil «A Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.»
A Relação tem efectivamente poderes de reapreciação da decisão da matéria de facto decidida pela 1ª instância, impondo-se-lhe, a (re)análise dos meios de prova produzidos em 1ª instância, no que respeita à prova sujeita à livre apreciação do julgado, desde que o recorrente cumpra os ónus definidos pelo art.º 640.º CPC e, antes de mais, a consideração da matéria de facto que se encontre plenamente provada por acordo das partes nos articulados, por documentos ou por confissão reduzida a escrito nos termos do art.º 607º, nº 4 CPC, desde que relevantes para a decisão a proferir atentas todas as soluções jurídicas possíveis.

Tal atuação da Relação relativamente à matéria de facto que se encontre plenamente provada, pode ser da iniciativa do tribunal, em obediência à aplicação das regras de direito probatório material (cfr. arts. 354.º e 358.º, 371.º, n.º 1 e 376.º, n.º 1, todos do Código Civil e 574.º, nºs 2 e 3 e 587º, n.º 1 CPC) e pode ser suscitada pelo recorrente, o qual pode impugnar a decisão da matéria de facto quando os elementos fornecidos pelo processo possam determinar uma decisão diversa insuscetível de ser destruída por quaisquer outras provas.
Assim, estado em causa meios de prova subtraídos à livre apreciação do julgador, a impugnação da matéria de facto com esse fundamento não está sujeita aos ónus a que se refere o art.º 640.º CPC.
Já quando está em causa a apreciação de meios de prova sujeitos à livre apreciação do julgador, decorre da conjugação dos art.º 635.º, nº 4, 639.º, nº 1 e 640.º, nº 1 e 2, todos do Código de Processo Civil, que quem impugna a decisão da matéria de facto deve, nas conclusões do recurso, especificar quais os pontos concretos da decisão em causa que estão errados e, ao menos no corpo das alegações, deve, sob pena de rejeição, identificar com precisão quais os elementos de prova que fundamentam essa pretensão, sendo que, se esses elementos de prova forem pessoais, deverá ser feita a indicação com exatidão das passagens da gravação em que se funda o recurso (reforçando a lei a cominação para a omissão de tal ónus, pois que repete que tal tem de ser feito sob pena de imediata rejeição na parte respetiva) e qual a concreta decisão que deve ser tomada quanto aos pontos de facto em questão.

No caso em apreço, não está em causa qualquer meio de prova subtraído à apreciação do julgador, mas afigura-se-nos que a recorrente cumpriu os ónus a que se refere o mencionado art.º 640.º, pois, vêm especificados quais os pontos da matéria de facto que aquela considera erradamente julgados, quais os elementos de prova que fundamentam a pretensão, mostra-se feita a indicação por transcrição das passagens da gravação dos depoimentos considerados relevantes para modificação da decisão e consta das conclusões a concreta decisão que a recorrente pretende que seja tomada quanto aos pontos de facto em questão.
Nessa medida, conheceremos da impugnação nos termos que se seguem.

A recorrente pretende que seja alterada a redação do ponto C. dos factos provados, propondo que seja considerado provado apenas que:
«O Autor sofreu período de ITA de 07.02.2015 até 09.11.2016, datando a consolidação médica das lesões de 09.11.2016.».

Alega em abono da sua tese que ocorre divergência manifesta entre o exame médico singular e o resultado unânime da junta médica a qual se pronunciou (e reiterou em sede de esclarecimentos) pela inexistência de nexo de causalidade entre o evento ocorrido em 06/02/2015 e o quadro psiquiátrico pelo qual o Autor tem vindo a ser seguido em consulta de psiquiatria, por quatro ordens de fundamentos:
a)-As primeiras “queixas” só ocorrem dois meses após o “evento”, na consulta do dia 10 de Abril de 2015;
b)-Durante esse período, o Autor manteve-se em funções “a 100%”, sendo que à data da avaliação estaria a trabalhar “sem dificuldades de relevo”;
c)-Não foi feita qualquer participação de acidente de trabalho que, como se disse, sai completamente fora dos parâmetros da normalidade, ante a factualidade descrita, só o fazendo um ano depois, junto dos serviços do Ministério Público;
d)- A terapêutica medicamentosa cumprida pelo Autor (Valproato de Sódio e Quetiapina) não é a adequada para o tratamento da Perturbação de Stress Pós-Traumático, podendo indiciar melhoria ou remissão sintomática ou a existência de outra problemática não relatada.
A redação daquele ponto dada pelo tribunal a quo foi a seguinte:
«O Autor sofreu período de ITA de 07.02.2015 até 09.11.2016, datando a consolidação médica das lesões de 09.11.2016, padecendo de uma IPP de 50%, com IPATH.»
A discordância da recorrente que se baseia, essencialmente no valor probatório acrescido que deve ser dado ao laudo unanime da junta médica, é relativa à decisão do tribunal de considerar como provado que o autor está afectado de uma IPP de 50% com IPATH.
Pelos mesmos motivos a recorrente pretende que a matéria de facto constante do ponto H. seja considerada como não provada.
Sob o ponto H. o tribunal “a quo” considerou provado o seguinte:
«Em consequência do acidente o Autor sofreu quadro de Perturbação Pós-Stress Traumático.»

A Mm.ª juiz “a quo” fundamentou a decisão relativa aos mencionados pontos C. e H. (apesar de não constar da decisão menção expressa ao ponto H. resulta à saciedade que a fundamentação que se transcreve infra fundou a convicção do tribunal também quanto à matéria do ponto H.), nos seguintes termos:
«(…)  a convicção do tribunal resultou da análise do relatório de exame médico referido em a. [exame médico], com o relatório referido em b. [relatório pericial psiquiátrico] e com os documentos referidos em iii. [registo clínico de consultas] e vii. [registo de consulta externa].
Nos termos da conjugação destes elementos resulta:
-O sinistro ocorreu a 06.02.2015;
-No dia 23.03.2015 o Autor desloca-se ao Centro de Saúde apresentando como diagnóstico gastroenterite;
-No dia 10.04.2015 o Autor desloca-se ao Centro de Saúde apresentando como diagnóstico sensação de ansiedade, nervosismo, tensão e perturbação de sono, o que se mantém na consulta do dia 20.04.2015;
-No dia 20.05.2015 o Autor desloca-se ao Centro de Saúde apresentando como diagnóstico perturbações depressivas e alterações do metabolismo dos lípidos, sendo medicado com mexazolam;
-No dia 22.06.2015 o Autor desloca-se ao Centro de Saúde apresentando como diagnóstico perturbações depressivas e stress pós-traumático, sendo medicado com mexazolam e trazodona;
-Nos dias 11.08.2015, 18.08.2015, 18.09.2015 o Autor desloca-se ao Centro de Saúde apresentando como diagnóstico distúrbio ansioso/estado de ansiedade;
-No dia 19.10.2015 o Autor desloca-se ao Centro de Saúde apresentando como diagnóstico sensação de ansiedade, nervosismo, tensão/stress-pós traumático, orquite/epidimite há cerca de uma semana;
-Nos dias 18.11.2015, 17.12.2015 o Autor desloca-se ao Centro de Saúde apresentando como diagnóstico distúrbio ansioso/estado de ansiedade;
-No dia 18.01.2016 o Autor desloca-se ao Centro de Saúde apresentando como diagnóstico sensação de ansiedade/nervosismo/tensão;
-No dia 10.02.2016 o Autor é diagnosticado com perturbação de stress pós-traumático com grande incapacidade funcional, comportamentos de evicção, hiperatividade aos estímulos, estado de hipervigilância permanente;
-Em 15.02.2016 o Autor desloca-se ao Centro de Saúde aí se referindo que o Autor mantém vigilância em psiquiatria;
-Nos dias 10.03.2016, 19.04.2016, 29.04.2016, 14.06.2016 o Autor desloca-se ao Centro de Saúde apresentando como diagnóstico stress pós-traumático;
-A 15.09.2016, 09.11.2016, 24.11.2016 o Autor mantém o quadro de perturbação de stress pós-traumático;
-A 09.07.2018, e com base quer na entrevista ao Autor quer nos elementos clínicos anteriormente referidos, foi diagnosticado ao Autor perturbação de stress pós-traumático.
Em oposição a estes elementos consta dos autos o exame pericial realizado por junta médica de psiquiatria.
Neste documento os Srs. Peritos Médicos elencaram todos os elementos clínicos juntos aos autos, avaliando igualmente, em sede de exame objetivo, as declarações prestadas pelo Autor.
Identificam essencialmente quatro aspetos para concluírem pela impossibilidade técnica de aferir da existência de nexo de causalidade entre o evento e as lesões apresentadas pelo Autor: (i) hiato temporal entre a ocorrência do evento e a deslocação aos cuidados de saúde para emissão de certificado de incapacidade temporária para o trabalho; (ii) exercício das funções a 100% nesse hiato temporal; (iii) ausência de participação de acidente de trabalho e (iv) terapêutica farmacológica que não é compatível com a abordagem medicamentosa de uma Perturbação de Stress Pós-Traumático.
No que tange ao primeiro dos identificados aspetos, salienta-se que o quadro apresentado pelo Autor não assume carater imediato. Isto é, ao nível da psique as reações tendem a intensificar-se e a sentir-se com o decurso do tempo.
Efetivamente, salienta-se o que sobre este aspeto consta da Tabela Nacional de Incapacidades (Capítulo X. ponto 2) relativamente à descrição do stress pós-traumático, subsumindo a sintomatologia apresentada pelo Autor em tais definições:
“2- Perturbação de stresse pós-traumático (F43.1)
O sujeito deve ter estado exposto a um acontecimento ou situação (de curta ou longa duração) de natureza excepcionalmente ameaçadora ou catastrófica, susceptível de gerar reacções de stresse na esmagadora maioria das pessoas. Deve haver recordação ou «revivência» persistente do agente de stresse sob a forma flashbacks intrusivos, memórias vívidas, sonhos recorrentes ou experimentação de reacções de stresse quando exposto a circunstâncias semelhantes ou associadas ao agente de stresse. O indivíduo deve evidenciar um evitamento actual ou preferencial de circunstâncias semelhantes ou associadas ao agente de stresse, conduta esta inexistente antes da exposição ao agente de stresse. Além disso, devem estar presentes sintomas integrantes de uma das seguintes condições: (1) incapacidade de recordar, total ou parcialmente, aspectos importantes do período de exposição ao agente de stresse; (2) sintomas persistentes de aumento da sensibilidade e do estado de alerta (ausentes antes da exposição ao agente de stresse), evidenciados por, pelo menos, dois dos seguintes: (a) dificuldade em adormecer ou em dormir; (b) irritabilidade ou acessos de raiva; (c) dificuldade de concentração; (d) hipervigilância; (e) resposta de susto exagerada. As condições atrás referidas devem ocorrer no decurso dos seis meses subsequentes ao acontecimento gerador de stresse ou no termo do período de stresse
A par do que se expôs, e atentas as regras da experiência comum, as doenças do foro mental são aquelas que, por um lado, se manifestam gradualmente com maior intensidade; por outro lado, quando da sua manifestação inicial, são desvalorizadas pelo doente, nomeadamente por não associar os sentimentos e sensações experienciadas como reflexo de alguma doença.
Esta realidade, a que a ordem jurídica não pode ser alheia, não é sintomática de qualquer reserva relativamente à circunstância de o Autor não se ter deslocado de imediato ao centro de saúde.
No que tange ao aspeto relativo ao exercício de funções a 100% após o sinistro, este facto não corresponde ao que consta dos autos, uma vez que da análise do documento referido em x. resulta que o Autor se encontrou entre 06.02.2015 e 11.02.2015 com incapacidade temporária para o trabalho.
Relativamente à circunstância de não ter sido efetuada a participação de acidente de trabalho, resulta dos autos que no dia 06.02.2015, pelas 16hl3m, o Autor comunicou à 2.a Ré que se encontrava de baixa. Resulta igualmente do documento referido em ix. [certidão dos autos de inquérito que correm termos no DIAP de Setúbal sob o n.°125/15.8GDSTB fls. 124] que no mesmo dia do evento a 2.ª Ré foi contactada pelo órgão de polícia criminal para efeitos de preservação das imagens de videovigilância na sequência do evento em causa nos autos.
Do exposto resulta que, não obstante não ter sido efetuada de imediato a participação formal de acidente de trabalho, a 2.ª Ré tinha conhecimento do ocorrido, o Autor informou nessa sequência que se encontrava de baixa médica sendo que, como já se afirmou, não é compatível com as regras da experiência comum (i) que haja imediata manifestação de efeitos e (ii) que se conceba uma imediata relação entre um evento e efeitos que se manifestam psicologicamente.
Por fim, e no que tange à circunstância de a medicação prescrita ao Autor não ser adequada ao tratamento do diagnóstico feito, salienta-se que os Srs. Peritos subscritores do exame pericial se debruçaram relativamente ao nexo causal entre o acidente e o “quadro psiquiátrico pelo qual tem sido seguido em consulta de psiquiatria” (expressão retirada do referido relatório.
Ou seja, não são colocadas em causa as queixas do Autor, mas sim que estas estejam relacionadas com o evento em causa.
E aqui reitera-se o supra exposto no que tange à sintomatologia associada a este diagnóstico.
Por estes motivos, e por se encontrar sustentado pela demais documentação junta, o tribunal a sua convicção relativamente a este facto nos elementos de prova já identificados.»

A fundamentação é clara, minuciosa e exaustiva e, do ponto de vista deste tribunal, não merece qualquer censura.
A determinação das sequelas e da incapacidade tem a natureza de questão de facto relativamente à qual o tribunal não possui conhecimentos técnico-científicos e, conforme resulta da tramitação dos processos emergentes de acidente de trabalho fixada pelo CPT, deverá obrigatoriamente ser submetida a perícia médica (exame médico singular, na fase conciliatória do processo especial emergente de acidente de trabalho (art.º 105.º do Código de Processo do Trabalho) e/ou exame por junta médica, na fase contenciosa do mesmo (arts. 139.º e 140.º, ambos do Código de Processo do Trabalho), cujo laudo não tem, todavia, força vinculativa obrigatória, estando sujeito à livre apreciação do julgador (arts. 389º do Código Civil e 489º do CPC).

Como se lê no Ac. da RL de 26/05/2021[7] «Todas as perícias, em que se traduzem, designadamente, os exames médicos, efetuadas no quadro nas ações emergentes de acidente de trabalho, estão sujeitas à livre apreciação do julgador, independente da sua ordem lógica e cronológica e do seu carácter singular ou plural, não impondo ao tribunal, nessa medida e apesar de o exame ser plural e/ou final, a desvalorização por si atribuída, dado a mesma não se sobrepor às demais fixadas nos autos.»
A livre apreciação da prova não significa, apreciação arbitrária da prova, mas antes a ausência de critérios rígidos que determinem uma aplicação tarifada da prova, e traduz-se numa apreciação racional e criticamente fundamentada das provas de acordo com as regras da experiência comum e com corroboração pelos dados objetivos existentes, devendo a eventual divergência do juiz relativamente ao laudo pericial ser devidamente fundamentada em outros elementos probatórios que, por si ou conjugadamente com as regras da experiência comum, levem a conclusão contrária.

De facto, como há muito referido por Alberto dos Reis «É dever do juiz tomar em consideração o laudo dos peritos; mas é poder do juiz apreciar livremente esse laudo e portanto atribuir-lhe o valor que entenda dever dar-lhe em atenção à análise critica dele e à coordenação com as restantes provas produzidas. Pode realmente, num ou noutro caso concreto, o laudo dos peritos ser absorvente e decisivo (..); mas isso significa normalmente que as conclusões dos peritos se apresentam bem fundamentadas e não podem invocar-se contra elas quaisquer outras provas; pode significar, também que a questão de facto reveste feição essencialmente técnica, pelo que é perfeitamente compreensível que a prova pericial exerça influência dominante.»

Tudo para concluirmos como no Ac. RP de 20/01/2020 que «na prolação da decisão para fixação da incapacidade o juiz não pode deixar de servir-se da prova obtida por meios periciais. Poderá afastar-se do laudo médico, ainda que unânime, mas nesse caso será necessário que esteja sustentado em fundamentos bem precisos e concretos, que tenha entendido serem decisivos para a formação da sua convicção nesse sentido, os quais devem ser expressos na fundamentação.
Certo é, que num caso ou noutro, isso é, quer adira ou quer se desvie do laudo médico maioritário ou unânime, é necessário que o juiz conte com um resultado do exame pericial fundamentado, pois é a partir daí que desenvolverá toda a apreciação com vista à formulação do juízo crítico subjacente à formação da convicção do julgador.
Justamente por isso, o n.º 8, das Instruções Gerais, constantes do Anexo I, da Tabela Nacional de Incapacidades por Acidentes de Trabalho ou Doenças Profissionais, aprovada pelo Decreto-Lei n.º 352/2007, de 23 de Outubro, impõe aos senhores peritos o dever de fundamentarem “todas as suas conclusões”.»
Importa ainda salientar que do referido princípio da livre apreciação da prova resulta também que não existe qualquer hierarquia entre as provas, podendo, como tal, o juiz atribuir maior relevância a um elemento do que a outro.
Decisivo no caso dos autos é atender a que a questão do nexo causal entre o evento e as sequelas e entre estas e a incapacidade que determinem não constitui, em princípio, muito menos esgota, o objeto da junta médica, não tendo razão a recorrente quando afirma que o legislador previu a perícia médica no âmbito da fixação da incapacidade para o trabalho para estabelecer o nexo de causalidade entre as queixas e o evento.

Como se refere no Ac. RP de 08/06/2022 [8] «uma coisa são as lesões que o sinistrado apresenta, respectiva incapacidade (temporária e definitiva) e data da alta definitiva, questões sobre as quais compete à junta médica apreciar e pronunciar-se (arts. 20º e 21º da Lei 98/2009, de 04.09 e dos arts. 117º, nº 1, al. b), 118º, 126º, nº 1, 132º, nº 1 e 138º do CPT); outra, diferente, é o nexo causal entre as mesmas e o acidente, sendo que a competência para tal apreciação compete ao tribunal, realizada a audiência de julgamento e com base na prova que seja produzida.

Tendo, no entanto, a questão da causalidade entre o acidente e as lesões natureza também técnica, que poderá exigir conhecimentos especializados do foro médico, nada impede, sendo até pertinente, que a questão seja igualmente submetida à apreciação pela junta médica.

Não obstante, não está a junta médica dispensada de se pronunciar sobre a existência, ou não, das lesões que o sinistrado apresenta, respectivos coeficientes de desvalorização, data da alta definitiva/cura clínica e eventuais tratamentos de que careça independentemente da questão da existência, ou não, de nexo causal entre as mesmas e o acidente, devendo igualmente, estando em discussão o nexo de causalidade, pronunciar-se também (para além da questão relativa à existência, ou não, de tal nexo) sobre as aludidas questões prevendo ambas as situações de modo a habilitar e permitir ao juiz, quando posteriormente decidir da questão do nexo causal, fixar a incapacidade e determinar a alta definitiva e tratamentos que sejam necessários em conformidade com a decisão relativa ao nexo de causalidade que venha a ser tomada.»

No caso dos autos a junta médica da especialidade de psiquiatria apenas se pronunciou sobre a questão do nexo causal e tendo-lhe respondido negativamente, entendeu que ficava prejudicada a resposta aos demais quesitos que constituíam o seu objeto. Por esse motivo, erradamente, os srs. peritos médicos não se pronunciaram, sobre as lesões, sobre as sequelas, sobre a data da consolidação médico-legal, sobre os períodos de incapacidades temporárias.

Tal omissão, apesar do pedido de esclarecimentos efetuado pelo sinistrado, não foi suprida, tendo ao contrário sido reiterada e até acolhida pela junta médica final de avaliação de dano, que aderiu sem qualquer reserva à junta de especialidade. As juntas médicas a que o sinistrado foi submetido deixaram, pois, “em aberto” a determinação das sequelas e a fixação da incapacidade, motivo pelo qual a decisão terá sido relegada para a sentença, após a produção e apreciação das demais provas.

E destas, seja dos registos clínicos juntos aos autos, seja do exame pericial singular realizado na fase conciliatória do processo, com base nos quais, o tribunal a quo decidiu, resulta à saciedade o diagnóstico de stress pós-traumático.

Por outro lado, do exame médico-legal realizado na fase conciliatória, precedido de parecer de psiquiatria, os quais encerram juízos técnicos e científicos de igual valor ao da junta médica, resulta que o sinistrado apresenta como sequela “quadro de Perturbação Pós Stresse Traumático” e que a tal sequela corresponde face à TNI uma IPP de 50% com IPATH, pelo que bem andou a Mm.ª Juiz “a quo” ao decidir como decidiu no ponto C. dos factos provados, tratando-se de decisão cientificamente sustentada e adequada, senão mesmo a exigida pelos elementos constantes dos autos e que foram devidamente elencados pelo tribunal.

No que respeita ao nexo de causalidade reitera-se que se trata de questão a decidir pelo tribunal no processo principal e não no apenso de fixação de incapacidade. Na verdade, mais do que o nexo médico, está em causa o estabelecimento do nexo em sentido jurídico e do qual aquele é apenas um elemento a considerar.

Nesta parte, importa realçar que, em bom rigor, a recorrente, não pôs em causa a ocorrência do evento causal (cfr. a redação proposta para o facto F.), mas apenas a sua qualificação como acidente de trabalho.

As dúvidas que levanta (o sinistrado disse que foi ele que se libertou das abraçadeiras de plástico e a testemunha BB, militar da GNR que se deslocou ao local no decurso do assalto disse que julga que quando lá chegou o sinistrado ainda estava manietado, sendo que ouvimos os dois depoimentos), não têm qualquer razão de ser, pois, ouvida a prova, resulta que o militar da GNR nem sequer tinha a certeza relativamente a tal circunstância e, face ao que resulta da certidão do processo de inquérito - seja o auto de notícia, sejam as informações de serviço da PJ, seja o auto de visionamento das imagens de videovigilância - é inquestionável que o assalto ocorreu e que o sinistrado foi efetivamente manietado.

Por outro lado, afirmação da entidade empregadora de desconhecimento do evento enquanto acidente de trabalho, por o mesmo não lhe ter sido comunicado, só pode ser interpretada em sentido para a mesma desfavorável, já que não se trata de tomar conhecimento da qualificação do evento, mas do mesmo em sentido naturalístico e desse a empregadora não pode negar ter sabido, seja pelas autoridades que estiveram no local, seja pelos seus próprios trabalhadores da central de vigilância, que, tal como consta do auto de notícia, estiveram em contacto com a GNR a partir do momento em que esta se deslocou ao local, porque conseguiam visualizar tido o conteúdo do armazém, tendo o assalto sido visualizado em direto na central da empregadora, como também resulta da informação de serviço da PJ.

Portanto, o evento ocorreu.

Acresce que atenta a natureza do evento que se traduziu, num episódio violento, com presença de armas de fogo, durante o qual o sinistrado esteve manietado, é de esperar que se produzam consequências na integridade psicológica e psiquiátrica daquele, as quais, apesar das conclusões da junta médica da especialidade de psiquiatria, se manifestaram, quer quanto às queixas apresentadas (e retratadas nos registos clínicos juntos) quer quanto ao seu início e duração, de forma a subsumirem-se nos critérios enunciados pela TNI relativos ao Stress Pós-Traumático, como bem salientou a Mm.ª Juiz “a quo”, e como foi considerado quer pelo parecer de Psiquiatria, quer pelo exame singular na fase conciliatória.

Mal se compreende, de resto, que a junta médica da especialidade de psiquiatria, nem sequer se tenha pronunciado, pelo menos em abstrato, sobre a aptidão do evento enquanto causa de sequelas do foro psiquiátrico, tendo-se perdido em considerações que só ao tribunal competiria valorar, para estabelecer o nexo na sua dimensão jurídica, como o facto de o acidente ter ou não sido participado e afirmando a impossibilidade de aferição do nexo de causalidade, afinal com base nas dúvidas dos srs. peritos sobre a ocorrência do evento, matéria totalmente excluída do âmbito da sua intervenção.

Por outro lado, mesmo a verificar-se a circunstância a que os srs. peritos que integraram a junta médica da especialidade de psiquiatria fazem apelo, de que o quadro pelo qual o sinistrado vem sendo acompanhado em consultas de psiquiatria é o resultado do somatório de várias situações, tal não exclui, por si só, o nexo de causalidade, apenas indica que além das consequências do evento do autos, haveria outras causas para o quadro clínico psiquiátrico, não necessariamente para o stress pós traumático. De resto, nada nos autos revela que o sinistrado antes do acidente já tivesse qualquer patologia do foro psiquiátrico ou que, depois do acidente outras situações tenham ocorrido com consequências nesse domínio. A questão da medicação que os srs. peritos também invocaram para sustentar a inexistência de nexo causal, é também irrelevante, porquanto, como resulta dos registos clínicos, a medicação em causa (certa ou errada), foi a prescrita pelos médicos que acompanharam o sinistrado e que diagnosticaram o stress prós traumático.

Enfim, a decisão do tribunal de 1.ª instância de considerar provada a matéria dos pontos C. e H. mostra-se absolutamente correta e fundamentada exaustiva e laboriosamente nos elementos constantes dos autos, documentais, periciais e nas regras da experiência, pelo que o único comentário que merece deste tribunal é de total concordância.

A apelante pretende também que seja alterada a redação do facto provado F. e que a matéria de facto provada constante do ponto G. seja considerada não provada.

Propõe para o ponto F. a seguinte redação: «No dia 06 de fevereiro de 2015 o Autor sofreu um acidente que consistiu em ter sido vítima de um roubo, com sequestro, por parte de indivíduos encapuçados.»
Para tanto alega que não foram alegados quaisquer factos relativos ao local e tempo de trabalho do Autor, designadamente, se ocorreu no período normal de trabalho, mas ainda assim, o Tribunal considerou, erradamente, que o “acidente” ocorreu quando se encontrava ao serviço da 2ª Ré, violando o disposto pelo art.º 414.º do CPC e ainda o art.º 20.º, n.º 4 da Constituição da República Portuguesa.

É a seguinte a redação dos pontos F. e G. dada pelo tribunal:
«F.–No dia 06 de fevereiro de 2015, quando se encontrava ao serviço da 2ª Ré, exercendo funções de vigilante nos armazéns Logiters, em Palmela, o Autor sofreu um acidente que consistiu em ter sido vítima de um roubo, com sequestro, por parte de indivíduos encapuçados.
G.–Os factos referidos no artigo anterior ocorreram em dia, hora e local em que o Autor se encontrava a trabalhar ao serviço da primeira Ré.»


O tribunal fundamentou a sua decisão nos seguintes termos:
«No que tange aos factos vertidos em F. e G., a convicção do tribunal resultou da conjugação das declarações prestadas pelo Autor, o depoimento prestado pela testemunha inquirida e com o documento referido em ix.
Concretizando:
O Autor, em sede de declarações, confirmou o facto que ora se motiva. Não obstante não constar da factualidade alegada a hora a que o sinistro ocorreu, o Autor declarou que nessas circunstâncias se encontrava a exercer as suas funções nos termos do contrato celebrado com a 2.a Ré.
O depoimento prestado pela testemunha inquirida confirma os factos objetivos relatados pelo Autor, no que respeita à circunstância de o mesmo ter sido manietado e a intervenção dos indivíduos que o fizeram: os vestígios encontrados corroboraram a versão apresentada, na altura, pelo ora Autor, tendo a testemunha feito consignar todos os elementos no auto de notícia integrante do documento referido em ix..
Da análise das capturas de ecrã da videovigilância no local constata-se igualmente a versão apresentada pelo Autor, sendo ali visível que este se encontrava a usar o fardamento da 2a Ré e se encontrava manietado.
É, assim, convicção do tribunal que o Autor se encontrava no exercício das suas funções por conta da 2.a Ré nas circunstâncias de tempo e lugar referidos no facto que ora se motiva.»

A recorrente alega que o tribunal errou na decisão porque não foram alegados factos relativos ao local e ao tempo de trabalho, a existência do acidente de trabalho nunca foi aceite, o mesmo não foi participado quer à entidade empregadora, quer à seguradora, as imagens de videovigilância são insuficientes e do confronto das declarações do sinistrado, com o depoimento da testemunha BB, resultam incongruências e contradições quanto à versão do acidente.

Começamos por este último argumento da recorrente. Não só não se verifica a contradição invocada, como resulta do já afirmado supra, como não se percebe qual o alcance da afirmação da recorrente, que chega mesmo a questionar se se tratou de um verdadeiro assalto, mas aceita que está provado que «No dia 06 de fevereiro de 2015 o Autor sofreu um acidente que consistiu em ter sido vítima de um roubo, com sequestro, por parte de indivíduos encapuçados.»

Na petição inicial, mais concretamente no art.º 6.º, o Ministério Público alegou que no dia 6 de fevereiro de 2015, quando se encontrava ao serviço da 2ª Ré, exercendo funções de vigilante nos armazéns Logiters, em Palmela, o Autor sofreu um acidente que consistiu em ter sido vítima de um roubo, com sequestro, por parte de indivíduos encapuçados.

Tal afirmação foi corroborada pelo sinistrado nas suas declarações, incluindo quanto ao facto aqui em causa de que no momento do assalto estava a exercer funções como vigilante ao serviço da 2.ª ré, nos armazéns da Logiters.

Admitindo-se que, na falta de participação do acidente à recorrente, esta não tenha tido conhecimento das circunstâncias em que o mesmo aconteceu, já o mesmo não acontece relativamente à 2.ª ré, pois é evidente que a mesma tomou conhecimento do evento (foi, de resto, visualizado em direto pelos seus trabalhadores na central de vigilância como resulta do teor do ato de notícia elaborado pela testemunha BB, e dos autos de inquérito que correm termos no DIAP de Setúbal sob o n.º 125/15.8GDSTB, conforme certidão junta aos autos), quer o tenha ou não considerado como um acidente de trabalho, sendo que a 2.ª ré, enquanto entidade empregadora, não podia desconhecer se o sinistrado, no momento do assalto, estava ou não ao seu serviço, quais as funções que desempenhava e se o fazia no horário de trabalho determinados pela empregadora, não sendo, por isso, relevante a impugnação nos termos do disposto pelo art.º 574º, n.º 2 do CPC.

Nessa medida, não se vislumbra qualquer motivo para que o tribunal tivesse dúvidas ao considerar como provada a matéria constante do ponto F., não estando configurada a previsão do art.º 414.º do CPC, que como tal o tribunal não estava obrigado a aplicar, ou sequer qualquer violação do direito constitucional ao processo equitativo previsto pelo art.º 20.º, n.º 4 da Constituição da República.
Concede-se, embora, que do ponto G. da matéria de facto provada a Mm.ª Juiz “a quo” fez constar asserções que não foram alegadas nos exatos termos em que foram consideradas e que podem ser conclusivas. É o que acontece com a afirmação de que o evento ocorreu em dia, hora e local em que o Autor se encontrava a trabalhar ao serviço da primeira Ré.
Ainda assim, não se justifica a eliminação de tal matéria do elenco dos factos provados.

Não se ignora que, tal como afirmado, entre outros, no Ac. STJ de 28/01/2016[9], «sempre que um ponto da matéria de facto integre uma afirmação ou valoração de factos que se insira na análise das questões jurídicas a decidir, comportando uma resposta, ou componente de resposta àquelas questões, tal ponto da matéria de facto deve ser eliminado.»

Também não se ignora que afirmar que um acidente ocorreu no tempo e local de trabalho contém um juízo jurídico, numa ação como a dos autos em que se discute a qualificação do acidente como acidente de trabalho, sendo o local e o tempo de trabalho elementos integradores do conceito de acidente de trabalho, nos termos do art.º 8.º da Lei 98/2009 de 04/09 (doravante LAT).

Contudo, mesmo que uma determinada afirmação contenha uma componente conclusiva, se ainda assim tiver um substrato de facto relevante, não deve ser desatendida.

É o que resulta do Ac. STJ de 14/07/2021[10] no qual, se pode ler que « Mas mesmo sem ir tão longe e admitindo que o Tribunal possa excluir factos genuinamente conclusivos, importa ter em conta que, como já referiu este Supremo Tribunal: “Torna-se patente que o julgamento da matéria de facto implica quase sempre que o julgador formule juízos conclusivos, obrigando-o a sintetizar ou a separar os materiais que lhe são apresentados através das provas. Insiste-se: o que a lei veda ao julgador da matéria de facto é a formulação de juízos sobre questões de direito, sancionando a infração desta proibição com o considerar tal tipo “[de juízos como não escritos. Conforme já pusemos em relevo noutra ocasião (Ac. de 7.4.05, proferido na Revª 186/05, subscrito pelos mesmos juízes deste), não pode perder se de vista que é praticamente impossível formular questões rigorosamente simples, que não tragam em si implicados, o mais das vezes, juízos conclusivos sobre outros elementos de facto; e assim, desde que se trate de realidades apreensíveis e compreensíveis pelos sentidos e pelo intelecto dos homens, não deve aceitar se que uma pretensa ortodoxia na organização da base instrutória impeça a sua quesitação, sob pena de a resolução judicial dos litígios ir perdendo progressivamente o contacto com a realidade da vida e assentar cada vez mais em abstrações (e subtilezas jurídicas) distantes dos interesses legítimos que o direito e os tribunais têm o dever de proteger. E quem diz quesitação diz também, logicamente, estabelecimento da resposta, isto é, incorporação do correspondente facto no processo através da exteriorização da convicção do julgador, formada sobre a livre apreciação das provas produzidas” (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 13/11/2007, processo n.º 07A3060, NUNO CAMEIRA).

Importa, pois, verificar se o facto mesmo com uma componente conclusiva, não tem ainda um substrato relevante para o acervo dos factos que importam para uma decisão justa».

É o caso da matéria do ponto G. dos factos provados. Com efeito, além de o tempo e local de trabalho, serem elementos integrantes da noção jurídico de acidente de trabalho, trata-se de conceitos que não deixam de ter também um significado corrente ao alcance de qualquer cidadão. Por outro lado, tais afirmações decorrem de factos alegados pelo autor já referidos a propósito do ponto F., do qual consta que no momento do acidente o autor se encontrava ao serviço da 2ª Ré, exercendo funções de vigilante nos armazéns Logiters, em Palmela. Ora, para ser assim, o autor tinha que estar no seu local de trabalho (no sentido densificado pelo n.º 2, al. a) do art.º 8.º da LAT) e no seu tempo de trabalho (no sentido densificado pelo al. b) do mesmo preceito legal), pelo que, são afirmações que têm o necessário substrato relevante, que se retira de outros factos provados, dando sustento às afirmações neles contidas.

Nessa medida, não se justifica a sua exclusão dos factos provados, não se verificando também, neste particular qualquer violação do direito constitucional ao processo equitativo.

Finalmente a recorrente impugna a decisão relativa ao ponto I. dos factos provados que pretende que seja considerado como não provado, por entender que relativamente a ele não foi feita qualquer prova, não sendo relevante, ao contrário do que considerou o tribunal, as declarações do sinistrado.

A redação do ponto I da matéria de facto é a seguinte:
«O autor despendeu, com transportes em deslocações obrigatórias ao Tribunal o montante de € 24,00.»
E a decisão foi fundamentada nos seguintes termos:
«A convicção do tribunal relativamente ao facto vertido em I. resultou da análise de ambos os autos de exame médico, o auto de tentativa de conciliação, o relatório de psiquiatria e o relatório de exame por junta médica, onde resulta a comparência do Autor em todos estes autos.
Relativamente ao valor, este resulta da confissão do Autor expressa nos articulados.»

Ora, da análise dos autos, resulta que o sinistrado fez, pelo menos, 8 (oito) deslocações obrigatórias: 2 aos serviços do Ministério Público junto do juízo de trabalho do Barreiro, 1 (uma) ao Hospital do..., para o parecer de psiquiatria na fase conciliatória, 2 (duas) à tentativa de conciliação e 3 (três) às juntas médicas da fase contenciosa.
O sinistrado nas suas declarações disse que gastou cerca de € 4,00 (quatro euros) em cada ida e outro tanto no regresso.
Dos autos resulta também que o sinistrado reside na Rua ….
O valor de cada deslocação, afigura-se, absolutamente consentâneo com a distância entre a residência do sinistrado, o Tribunal, o Hospital do... e as instalações da Delegação Sul do INMLCF, pelo que o montante de € 24,00 se algum defeito tem é ser, eventualmente, inferior ao despendido, pois € 4,00 x 16 deslocações (8 de ida e oito de regresso) =  € 64,00.
Por isso, se compreende a afirmação da Mm.ª Juiz “a quo” de que o valor resulta da confissão do autor expressa nos articulados, onde reclama o pagamento da quantia de € 24,00 por lhe ser desfavorável (cfr. art.º 352.º do Código Civil).
Conclui-se, pois, que também nesta parte, a decisão do tribunal “a quo” se deve manter.
Improcede, assim, na íntegra, a impugnação da decisão da matéria de facto.
E porque estava absolutamente dependente da alteração da matéria de facto, improcedem as demais questões suscitadas pela recorrente, reiterando-se, na totalidade, com ressalva do que resultará da apreciação do recurso interposto pelo autor, o enquadramento jurídico efetuado na sentença recorrida e os valores, que nem sequer foram questionados e se mostram corretamente calculados, das prestações devidas ao sinistrado na sequência do acidente de trabalho de que foi vítima.
*

Improcedendo o recurso interposto pela ré, importa apreciar o recurso interposto pelo autor que se restringe à questão do subsídio de elevada incapacidade, do pagamento do qual a ré seguradora foi absolvida, por a Mm.ª Juiz “a quo” ter entendido que o autor não tinha direito a tal subsídio por não ter uma IPP igual ou superior a 70%.
Nas verdade, dispõe o art.º 67.º, n.º 1 da LAT que o subsídio por situações de elevada incapacidade previsto pelo art.º 47.º, n.º 1, al. d) do mesmo diploma, se destina a compensar o sinistrado, com incapacidade permanente absoluta ou incapacidade permanente parcial igual ou superior a 70%, pela perda ou elevada redução permanente da sua capacidade de trabalho ou de ganho resultante de acidente de trabalho.
Ora, a IPATH (incapacidade permanente absoluta para o trabalho habitual), como o próprio nome indica, é uma modalidade de incapacidade permanente absoluta e o direito ao subsídio em causa, resulta ainda expressamente do n.º 3 do art.º 67.º da LAT.
Por conseguinte, reconhecendo a sentença que o sinistrado está afetado de IPATH, com 50% de IPP (incapacidade permanente parcial), impunha-se também o reconhecimento de que o mesmo tem direito ao subsídio de elevada incapacidade a fixar entre 70% e 100% de 12 vezes o valor de 1,1 IAS, tendo em conta a capacidade funcional residual para o exercício de outra profissão compatível.
Sendo o valor do IAS para o ano de 2015 de € 419,22, apura-se um subsídio de elevada incapacidade no valor de € 4 704,63 (quatro mil setecentos e quatro euros e sessenta e três cêntimos), assim calculado:
€ 419,22 x 1,1 = € 461,142
€ 461,14 x 12 = € 5 533,704
€ 5 533,68 x 70% = € 3 873,5928
€ 5 533,68 x 30% x 50% = € 830,0556
€ 3 873,5928 + € 830,0556 = € 4 703,65.
A este valor acrescem juros de mora desde o dia 10/11/2016 (dia seguinte ao da alta), à taxa legal até integral pagamento.

Procede, assim, parcialmente, o recurso interposto pelo autor.
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Decisão

Por todo o exposto acorda-se:
- julgar o recurso interposto pela ré seguradora totalmente improcedente;
- julgar o recurso interposto pelo autor procedente e, em consequência revogar a sentença na parte em que absolveu a ré seguradora do pagamento do subsídio por situações de elevada incapacidade, condenando-se a ré a pagar ao autor a esse título a quantia de € 4 703,65 (quatro mil setecentos e três euros e sessenta e cinco cêntimos), acrescida de juros à taxa legal desde 10/11/2016 até integral pagamento.
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Custas dos recursos pela ré seguradora e custas na 1.ª instância pelas duas rés na proporção das respetivas responsabilidades – art.º 527.º do CPC.
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Nos termos do artigo 663.º, n.º 7, do CPC, anexa-se o sumário do presente acórdão.
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Notifique.
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Lisboa, 21/02/2024

(Maria Luzia Carvalho)                   
(Leopoldo Soares)                   
(Manuela Fialho)

[1]Cfr. Ac. STJ de 18/02/2021, acessível em www.dgsi.pt.
[2]Cardona Ferreira, Guia dos Recursos em Processo Civil, 6.a edição, Coimbra Editora, pág. 69, refere: «A hipótese da alínea b) do n.° 1 do art.° 615.° conjuga-se com o dever de fundamentar as decisões que impende sobre o Juiz. Omissão dos fundamentos de facto e de Direito que justificam a decisão (cfr. Art. 154.°), não é o mesmo que fundamentação insuficiente, inadequada ou, até errada; note-se que o art.° 154.° tem de ser entendido e aplicado sem prejuízo do alcance do art.° 205.°, n.º l, da CRP; As decisões dos Tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma prevista na lei».
[3]Entre outros, vd. os Acs. STJ de 02/06/2016, de 22/01/2019, 15/03/2019, 21/03/2019 e 18/02/2021, todos acessíveis em www.dgs.pt.
[4]Cfr. Ac. STJ de 21/06/2022, acessível em www.dgsi.pt.
[5]Cfr. Ac. STJ de 13/10/2017, proc. Revista n.º 2200/10.6TVLSB.P1.S1.
[6]Acessível em www.dgsi.pt.
[7]Idem.
[8]Idem.
[9]Idem.
[10]Idem.