Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
67/00.1IDSTB-B.L1-2
Relator: ONDINA CARMO ALVES
Descritores: DECISÃO SURPRESA
INCOMPETÊNCIA ABSOLUTA
TRIBUNAL CRIMINAL
TRIBUNAL CÍVEL
ACÇÃO
HONORÁRIOS
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 06/04/2009
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: AGRAVO
Decisão: ANULADA A DECISÃO
Sumário: 1. Visa o nº 3 do artigo 3º do CPC banir as decisões surpresa e, por isso, se defende que o Juiz não pode decidir questões de conhecimento oficioso sem que previamente tenha sido facultada ás partes a possibilidade de sobre elas se pronunciarem, não podendo igualmente decidir com base em qualificação substancialmente inovadora que as partes não hajam considerado, sem antes lhes ter dado a possibilidade de produzirem as suas alegações, perspectivando o enquadramento jurídico vislumbrado pelo tribunal.
2. Por força do princípio da auto responsabilidade das partes, e sendo as partes que conduzem o processo, poderá ser dispensada a exigência da sua audição, sempre que estas, agindo com a diligência devida, devessem, por sua vez, ter-se espontaneamente pronunciado sobre determinada questão, por ser razoável, no plano técnico-jurídico, contar com o conhecimento da mesma ou com determinado enquadramento ou qualificação jurídica.
3. As nulidades não sanadas ou concomitantes a uma decisão judicial, que se encontrem a coberto de decisão judicial podem ser impugnadas no recurso da decisão que lhes deu cobertura. Em relação às nulidades que não estejam a coberto de decisão judicial, o meio impugnatório será a reclamação perante o juiz que proferiu a decisão. E, do despacho que recair sobre essa reclamação caberá, então, recurso nos termos gerais.
4. O conhecimento oficioso sobre a questão da incompetência material do Tribunal, não obstante o decidido no despacho liminar, sem previamente se ter dado oportunidade às partes de se pronunciarem sobre a questão, nem se ter justificado que se tratava de um caso de manifesta desnecessidade do cumprimento do princípio do contraditório, integra uma nulidade com influência no exame ou decisão da questão.
5. A nulidade decorrente da preterição do contraditório, por ter sido cometida com a própria prolação da decisão recorrida, pode ser impugnada no recurso dessa decisão.
(Sumário da Relatora
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: ACORDAM OS JUÍZES DA 2ª SECÇÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA


I. RELATÓRIO

MARIA, intentou no Juízo Criminal do Tribunal de Família e Menores contra LUÍSA, por apenso ao processo crime, com o nº ..., a acção declarativa, através da qual pede se condene a ré a pagar-lhe os honorários que a autora, na qualidade de advogada, lhe prestou, quer no aludido processo crime, quer num processo de empréstimo na K... e em processos de execução fiscal, e resultantes do mandato que a ré lhe conferiu.
Apresentado o processo ao Exmo. Juiz do Juízo Criminal este proferiu, em 09.11.2004, o seguinte despacho:
Maria, apresentou um pedido de condenação de Luísa a pagar-lhe a quantia de 7.937,50 €, a título de honorários, por apenso ao presente processo comum singular.
Compulsando os autos verifico que a requerente foi mandatária da referida Luís, que, por sua vez, era arguida nos referidos autos.
Tratando-se de uma acção de honorários, de harmonia com o disposto no artigo 76º do CPCivil, deverá a mesma correr no tribunal da causa na qual foi prestado o serviço, devendo correr por apenso a este.
A requerente, no entanto, não peticiona apenas a condenação da requerida nos honorários devidos pelo seu trabalho neste processo, antes peticionando igualmente honorários devidos pela sua intervenção no processo de empréstimos da K....e nos processos de execução fiscal.
Há assim uma cumulação de pedidos. No entanto, apura-se que quanto ao pedido de honorários devidos pela intervenção da requerente enquanto advogada no p.c.singular como mandatária da arguida/requerida, é este Tribunal competente, em virtude do disposto no artigo 76º do CPC.
No entanto, este é um tribunal com competência na área criminal, sendo que apenas quanto a situações e matérias pontuais, nos é permitido decidir matéria cível.
Ora, os honorários devidos pelo seu trabalho nos processos de execução fiscal e no processo da K... não cabem na matéria em que este Tribunal se pode pronunciar, pelo que é materialmente incompetente para a sua decisão.
Assim e por violar regras de competência material, não é admissível a cumulação de pedidos – artigo 31º do CPC.
Nestes termos, notifique a autora/requerente para, em 10 dias, indicar se pretende continuar os presentes autos para apreciação do pedido quanto aos honorários devidos pelo seu trabalho no p.c.singular ..... (caso em que deverá juntar nova petição inicial em conformidade) sob pena de não o fazendo ser a ré/requerida absolvida da instância”.

Acatando o despacho proferido pelo Exmo. Juiz, a autora apresentou nova petição inicial, apenas enumerando o trabalho realizado com relação ao identificado processo crime, pedindo a condenação da ré a pagar-lhe, a título de honorários, a quantia de € 6.200,00, acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde 18.12.2003 e até integral e efectivo pagamento.
Citada, a ré apresentou contestação, impugnando os factos alegados pela autora e invocando que a autora havia fixado em € 5.000,00 os honorários e despesas atinentes ao processo-crime em causa.
Foi designada data para uma tentativa de conciliação, que foi realizada, sem êxito, em 23.03.2006.
Por despacho de 06.04.2006, o Exmo. Juiz proferiu despacho dispensando a realização de audiência preliminar, atenta a simplicidade da causa e, pelos mesmos fundamentos não procedeu à selecção da matéria de facto considerada assente e que constituiria a base instrutória, ordenando a notificação das partes para os termos do disposto no artigo 512º, nº 1 do CPC.
Apresentados os róis de testemunhas, foram os mesmos admitidos, por despacho de 22.05.2006, aí se consignando que a audiência de julgamento seria gravada, e foi ordenado que os autos aguardassem por 12 meses a fim de ser designada data para a realização de julgamento.
Por despacho de 20.08.2007, foi designada para o dia 18.11.2008, a realização do julgamento.
Nesse dia, foi aberta conclusão no processo, por ordem verbal, tendo o Exmo. Juiz proferido o seguinte despacho:
“Por apenso aos autos de processo n.º ...., que correu os seus termos neste juízo criminal, veio a ilustre advogada, Dr.ª Maria intentar acção de honorários contra Luísa, pelos serviços prestados, enquanto mandatária judicial naqueles autos, onde Luís foi arguida.
Ora, salvo melhor opinião, a competência para a acção de honorários em causa não pertence a este juízo criminal mas sim aos juízos de competência cível.
De facto, a competência material da referida acção há-de ser apurada da conjugação da previsão dos artigos 67.º, do Código de Processo Civil, 93.º, 94.º, 95.º, da Lei n.º 3/99, de 13 de Janeiro, e do Mapa VI, do Decreto-Lei n.º 186-A/99, de 31/05, na versão actualizada.
Com efeito, se é certo que o art.º 76.º, do Código de Processo Civil, dispõe que para a acção de honorários é competente o tribunal da causa na qual foi prestado o serviço, devendo correr por apenso a esta, não é menos certo que tal dispositivo legal se refere apenas à competência territorial e não à competência material, não sendo legítimo inferir do seu conteúdo a atribuição desta competência, desde logo, pela inserção sistemática do mesmo (Secção IV, do Capítulo III, do Livro II, Código de Processo Civil).
Para aquilatar da competência material para a acção de honorários aqui em análise dever-se-á atender, como se referiu, à previsão do art.º 67.º, do Código de Processo Civil, que remete para as leis da organização judiciária a determinação da competência material para os tribunais de competência especializada, como é o caso dos Juízos Criminais, conforme resulta do Mapa VI, do Decreto-Lei n.º 186-A/99, de 31/05, na versão actualizada.
Assim, do conteúdo dos artigos 93.ºe 95.º, da Lei n.º 3/99, de 13 de Janeiro, na versão dada pelo DL n.º 105/2003, de 10.12, extrai-se que os Juízos Criminais não têm competência material para a presente acção, mas apenas, no que ao caso importa, para a preparação, o julgamento e os termos subsequentes das causas crime não atribuídas a outros tribunais e para os julgamentos dos recursos das decisões das autoridades administrativas em processo de contra-
ordenação.
Na verdade, a competência material para a presente acção de honorários pertence aos Juízos Cíveis, como se infere dos artigos 93.º e 94.º, da Lei n.º 3/99, de 13 de Janeiro, na versão dada pelo DL n.º 105/2003, de 10.12, e do Mapa VI, do Decreto-Lei n.º 186-A/99, de 31/05, na versão actualizada.
Como se refere no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 8.03.2007 (proc. n.º 423/2007-8, in www.dgsi.pt) “A norma do artigo 76.º, do Código de Processo Civil respeita à competência territorial para a acção de honorários que deve ser intentada no tribunal da causa na qual foi prestado o serviço, devendo correr aquela correr por apensa a esta; pressupõe-se que o tribunal da causa tem competência, em razão da matéria, para conhecer da acção de honorários pois, se o não tiver, esta acção terá de ser proposta autonomamente”.
No mesmo sentido, vai o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 23.02.2006 (proc. n.º 391/2006-6, in www.dgsi.pt), ao considerar que “A acção de honorários só correrá por apenso ao processo onde foram prestados os serviços, quando o tribunal seja materialmente competente, tanto para a acção onde foram prestados os serviços como para a dos honorários»
Nestes termos, demonstrada que se encontra a incompetência material deste Juízo para a presente acção de honorários, não poderá a mesma correr por apenso ao processo criminal n.º .....
A incompetência em razão da matéria configura uma incompetência absoluta, nos termos do art.º 101.º, do Código de Processo Civil, a qual é de conhecimento oficioso, segundo a previsão dos artigos 102.º, do mesmo diploma legal.
Além disso, constitui uma excepção dilatória, que obsta a que o tribunal conheça do mérito da causa, implicando a absolvição do réu da instância, nos termos dos artigos 493.º, n.º 1 e 2, e 494.º, n.º 1, alínea a), e 105.º, n.º 3, todos do Código de Processo Civil.
Face ao exposto, atenta a previsão dos artigos supra referidos, julgo verificada a excepção dilatória da incompetência material deste tribunal, declarando, em consequência, este Juízo Criminal materialmente incompetente para a presente acção, absolvendo, por via disso, a ré Luísa da presente instância.
Custas pela autora, fixando-se a taxa de justiça em 1 UC”.

Inconformada com a decisão que declarou o Juízo Criminal materialmente incompetente para conhecer da presente acção e absolveu a ré da instância, a autora interpôs recurso de agravo incidente sobre o aludido despacho.

São as seguintes as CONCLUSÕES da agravante:

i) Por decisão proferida a fls.36 e 37 da acção de honorários proposta, pela ora recorrente, por apenso ao processo crime comum singular n° ...., o Tribunal " a quo", em 09 de Novembro de 2004, apreciou, em concreto, a excepção da incompetência absoluta, em razão da matéria, daquele tribunal, apurando que quanto ao pedido de honorários devidos pela intervenção da requerente enquanto advogada no p.c.singular como mandatária da arguida, aquele Tribunal era competente em razão da matéria em virtude do disposto no art.76º do CPCivil;

ii) Decisão esta que transitou em julgado;
iii) Pelo que, apreciada, em concreto, a excepção da incompetência absoluta, em razão da matéria, formou-se naquela acção e quanto á competência material daquele juízo Criminal para julgar aquela acção de honorários, caso julgado formal, nos termos do art. 672º do CPC;

iv) Na data e hora designada para a audiência de Julgamento, dessa mesma acção de honorários proposta pela ora recorrente, o Meritíssimo Juiz " a quo", sem abrir a audiência profere, acerca da mesma questão,

outra decisão na qual altera, na mesma acção, a decisão proferida em 09 de Novembro de 2004, já transitada em julgado;
v) Ao alterar, na mesma acção, a decisão anteriormente proferida acerca da excepção de incompetência absoluta daquele Tribunal em razão da matéria, o Meritíssimo Juiz " a quo" violou o disposto no artº 672º do CPC.

vi) E ao mandar notificar a recorrente na secretaria, através de funcionária desse juízo, do conteúdo dessa decisão, sem ter procedido à abertura da audiência de julgamento designada para o mesmo dia e hora, motivo pelo qual a recorrente se encontrava presente naquele Tribunal, o Meritíssimo Juiz " a quo" violou o preceituado no art. 3º , nº 3 do CPCivil;
vii) Já que preteriu à ora recorrente, que estava naquele Tribunal, porque notificada na qualidade de mandatária em causa própria, para a audiência de julgamento da acção de honorários em que era autora, a qual corria por apenso ao processo c.singular nº ..., o seu direito de exercício do contraditório, face à decisão surpresa com a qual foi confrontada;
viii) O disposto no art. 3º, n° 3 do CPCivil, visa evitar aquilo a que normalmente se apelida de decisões surpresa e consubstancia um afloramento do princípio do contraditório, querendo com ele, o legislador, precisamente impedir que a coberto do principio jus novit cúria, inserido no art. 664º e do principio da oficiosidade no conhecimento da generalidade das excepções dilatórias e peremptórias, as partes fossem confrontadas com soluções jurídicas inesperadas com as quais não podiam razoavelmente contar;
ix) Com efeito, a ora recorrente não podia razoavelmente contar, que no dia designado para a audiência de julgamento, o Tribunal " a quo" iria alterar, dentro da mesma acção, a decisão já proferida e transitada em julgado, que declarou competente aquele Tribunal, em razão da matéria, para conhecer daquela acção de honorários, com clara violação do caso julgado formal que aquela decisão havia formado dentro daquele processo;
x) Pelo que ao alterar, na mesma acção, a decisão proferida em 09 de Novembro de 2004 a qual transitou em julgado e declarou competente em razão da matéria o Juízo Criminal do Tribunal de Família e Menores, por outra, proferida em 18 de Novembro de 2008 , a qual vem a declarar incompetente aquele Tribunal, o Meritíssimo Juiz " a quo" ofendeu o caso julgado formal que a decisão proferida em 09 de Novembro de 2004, havia formado naquele processo;
xi) E ao não abrir a audiência com vista ao exercício do contraditório por parte da ora recorrente relativamente a esta decisão, o Meritíssimo Juiz " a quo" violou o disposto no art. 3º , nº 3 do CPCivil.

Pede, por isso, a agravante, que seja revogada a decisão recorrida, proferida em 18 de Novembro de 2008, que julgou incompetente em razão da matéria o Juízo Criminal do Tribunal de Família e Menores para julgar a acção de honorários que corre naquele juízo, por apenso ao processo crime comum singular nº ..., por esta ter ofendido o caso julgado formal, com todas as consequências daí advenientes.
A recorrida não apresentou alegações.
O Exmo. Juiz do Tribunal a quo manteve o decidido.
Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
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II. ÂMBITO DO RECURSO DE AGRAVO

Importa ter em consideração que, de acordo com o disposto nos artigos 684º, nº 3 e 690º, nº 1 do Código de Processo Civil, é pelas conclusões da alegação da recorrente que se define o objecto e se delimita o âmbito do recurso, sem prejuízo das questões de que o tribunal ad quem possa ou deva conhecer oficiosamente, apenas estando este tribunal adstrito à apreciação das questões suscitadas que sejam relevantes para conhecimento do objecto do recurso.

Assim, e face ao teor das conclusões formuladas são essencialmente duas as questões controvertidas a resolver, as quais terão de ser analisadas tendo em consideração a sua precedência lógica:

i) O CONCEITO DE DECISÃO SURPRESA
Ø A surpresa para a agravante ao conhecer, no dia designado para julgamento, o teor da decisão recorrida com relação à questão da competência do Tribunal, sem prévio convite às partes para sobre ela se pronunciarem.

ii) A OFENSA DO CASO JULGADO FORMAL
Ø Se, evidentemente, esta questão não ficar prejudicada pela decisão dada à primeira.

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III . FUNDAMENTAÇÃO

A - OS FACTOS

Com relevância para a decisão a proferir, importa ter em consideração a alegação factual referida no relatório deste acórdão, cujo teor aqui se dá por reproduzido.
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B - O DIREITO


i) O CONCEITO DE DECISÃO SURPRESA

Ø A surpresa para a agravante ao conhecer, no dia designado para julgamento, o teor da decisão recorrida com relação à questão da competência do Tribunal, sem prévio convite às partes para sobre ela se pronunciarem.


A reforma do Código de Processo Civil, operada em 1995/1996 pelos Dec.-Leis nºs 329°-A/95 de 12 de Dezembro e 180/96 de 25 de Setembro, acentuou a importância, designadamente, dos princípios da contraditório e da igualdade das partes, passando aquele a ter uma ampliada consagração legal, ao estatuir o nº 3 do artigo 3º do CPC que “O juiz deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito, salvo caso de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem”.
O princípio do contraditório é, com efeito, um dos princípios estruturantes do processo civil.
Decorre do aludido princípio que cada parte é chamada a apresentar as suas razões de facto e de direito, a oferecer as suas provas e a pronunciarem-se sobre o valor e resultado de umas e outras e, portanto, salvo caso de manifesta desnecessidade, não é lícito ao juiz decidir sobre questões de direito ou de facto, mesmo de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem.
O princípio do contraditório traduz-se na garantia das partes de uma efectiva participação em todos os actos do processo. Como já referia MANUEL DE ANDRADE, Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra

Editora, 1979, 379, cada uma das partes é chamada a deduzir as suas razões (de facto e de direito), a oferecer as suas provas, a controlar as provas do adversário e a discretear sobre o valor e resultados de uma e outras. Visa, em suma, dar a oportunidade às partes de influenciar a decisão judicial que vai ser tomada.
O Tribunal Constitucional tem considerado que o princípio do contraditório integra, ao cabo e ao resto, o direito de acesso aos tribunais, constitucionalmente consagrado no artigo 20º da CRP.
Com efeito, tem sido sucessivamente sublinhado na jurisprudência do Tribunal Constitucional que “o processo de um Estado de Direito (processo civil incluído) tem de ser um processo equitativo e leal. E, por isso, nele, cada uma das partes tem de poder fazer valer as suas razões (de facto e de direito) perante o tribunal, em regra, antes que este tome a sua decisão. É o direito de defesa, que as partes hão-de poder exercer em condições de igualdade. Nisso se analisa, essencialmente, o princípio do contraditório, que vai ínsito no direito de acesso aos tribunais, consagrado no artigo 20°, n. ° 1, da Constituição, que prescreve que “a todos é assegurado o acesso [...] aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos, não podendo a justiça ser denegada por insuficiência de meios económicos" – v. a título meramente exemplificativo, Acórdão n. ° 358/98 (publicado no Diário da República, II série, de 17 de Julho de 1998), repetindo o que se tinha afirmado no Acórdão n. ° 249/97 (publicado no Diário da República, II série, de 17 de Maio de 1997).
Como se reconhece, entre outros, no Acórdão do Tribunal Constitucional nº 259/2000 (DR, II série, de 7 de Novembro de 2000): “A norma contida no artigo 3° n.º 3 do CPC resulta, assim, de uma imposição constitucional, conferindo às partes num processo o direito de se pronunciarem previamente sobre as questões - suscitadas pela parte contrária ou de conhecimento oficioso - que o tribunal vier a decidir.”
E, o direito de acesso aos tribunais implica a vinculação ao princípio da igualdade, assente na ideia de que as partes têm de dispor, quer de idênticos meios processuais, quer de idênticos direitos processais.
Visa o nº 3 do citado artigo 3º do CPC banir as decisões surpresa e, por isso, se defende que o Juiz não pode decidir questões de conhecimento oficioso sem que previamente tenha sido facultada ás partes a possibilidade de sobre elas se pronunciarem, não podendo igualmente decidir com base em qualificação substancialmente inovadora que as partes não hajam considerado, sem antes lhes ter dado a possibilidade de produzirem as suas alegações, perspectivando o enquadramento jurídico vislumbrado pelo tribunal.
Há, todavia, que atender ao que resulta do princípio da auto responsabilidade das partes. Defendia já MANUEL DE ANDRADE, ob. cit., 378 que “as partes é que conduzem o processo a seu próprio risco. Elas é que têm de deduzir e fazer valer os meios de ataque e de defesa que lhes correspondam (incluindo as provas), suportando uma decisão adversa, caso omitam algum”.
Sendo as partes que conduzem o processo, poderá ser dispensada a exigência da sua audição, sempre que estas, agindo com a diligência devida, devessem, por sua vez, ter-se espontaneamente pronunciado sobre determinada questão, por ser razoável, no plano técnico-jurídico, contar com o conhecimento da mesma ou com determinado enquadramento ou qualificação jurídica – v. J. PEREIRA BATISTA, Reforma do Processo Civil, Princípios Fundamentais, pg. 39.
Ainda antes da invocada reforma do CPC, o Tribunal Constitucional, apreciando o que se deveria entender como “situação surpresa” deu relevância, nos Acs. 479/89, DR II s., de 24.04.92 e Ac. T.C. 367/96, DR II s. de 10.05.96, ao seu carácter insólito e imprevisível, afirmando que “não pode deixar de recair sobre as partes o ónus de considerarem as várias possibilidades interpretativas das normas de que se pretendem socorrer, e de adoptarem, em face delas, as necessárias cautelas processuais (por outras palavras), o ónus de definirem e conduzirem uma estratégia processual adequada”.
No caso vertente, invoca a agravante que, por decisão proferida a fls. 36 e 37 da acção de honorários proposta pela ora recorrente, por apenso ao processo crime comum singular n° ...., o Tribunal " a quo", em 09 de Novembro de 2004, apreciou, em concreto, a excepção da incompetência absoluta em razão da matéria daquele tribunal, determinando que, quanto ao pedido de honorários devidos pela intervenção da requerente enquanto advogada no p.c.singular como mandatária da arguida, era aquele Tribunal competente em razão da matéria em virtude do disposto no artigo 76º do CPCivil, não podendo a agravante razoavelmente contar, que no dia designado para a audiência de julgamento, o Tribunal a quo iria alterar, dentro da mesma acção, a decisão já proferida, declarando-se incompetente em razão da matéria, para conhecer daquela acção de honorários, com violação do disposto no nº 3 do artigo 3º do CPC, ao não permitir o contraditório.
Ora, sem aquilatar agora da admissibilidade ou inadmissibilidade da prolação do despacho recorrido, há que admitir a surpresa da agravante ao ser notificada do aludido despacho.
Violou, consequentemente, o Tribunal a quo o princípio ínsito no nº 3 do artigo 3º do CPC, ao não convidar as partes para tomarem posição sobre a questão abordada no aludido despacho com incidência na incompetência do tribunal criminal para apreciar da acção de honorários há muito interposta pela agravante.
A omissão praticada pelo Exmo. Juiz a quo integra uma nulidade processual.
Aponta ANSELMO DE CASTRO, Lições de Processo Civil, Actos e Nulidades Processuais, pág. 170, três princípios fundamentais em matéria de nulidades:

i. Princípio da nulidade meramente relativa - a nulidade que só pode ser invocada pelo interessado na observância da formalidade ou na repetição ou eliminação do acto;
ii. Princípio da redução da nulidade à mera irregularidade do acto, sem consequências, sempre que o acto haja atingido o seu fim;
iii. Princípio do aproveitamento, no possível, do próprio acto cuja nulidade tenha de ser declarada.
Das nulidades processuais, umas são principais, típicas ou nominadas, sendo-lhes aplicável a disciplina fixada nos artigos 139º a 200º e 202º a 204º do CPC; outras são secundárias, atípicas ou inominadas e têm a sua regulamentação genérica no artigo 201º, nº 1 do CPC, estando a sua arguição sujeita ao regime previsto no artigo 205º do mesmo diploma legal.
Das nulidades processuais principais, típicas ou nominadas - especificamente reguladas nos artigos 193º a 200º e 202º a 204º do CPC - aquelas a que se reportam os artigos 193º a 199º só podem ser arguidas até à contestação ou neste articulado; enquanto as previstas nos artigos 194º e 200º podem ser suscitadas em qualquer estado do processo, enquanto não devam considerar-se sanadas.
Mas, para além das nulidades principais ou insanáveis, só há nulidade – secundária - quando a lei o disser ou quando a irregularidade cometida poder influir no exame - instrução ou discussão - ou na decisão da causa - julgamento. Daí se falar em nulidades secundárias relevantes e irrelevantes, sendo que só daquelas se podendo reclamar.
O princípio que domina a matéria das nulidades em processo civil é o de que as nulidades se devem considerar meramente relativas.
Sempre que não esteja em causa uma nulidade principal, isto é, especialmente prevista e regulada nos supra mencionados normativos – artigos 193º a 200º, 202º a 204º do CPC - terá de se averiguar da verificação de qualquer nulidade secundária, cujo regime legal, como antes ficou dito, se encontra estabelecido no artigo 201º do C.P.C.
Prescreve o nº 1 do artigo 201º do CPC que, “a prática de um acto que a lei não admita, bem como a omissão de um acto ou de uma formalidade que a lei prescreva, só produzem nulidade quando a lei o declare ou quando a irregularidade cometida possa influir no exame ou na decisão da causa”.
De harmonia com o disposto no nº 2 do aludido normativo, “Quando um acto tenha de ser anulado, anular-se-ão também os termos subsequentes que dele dependam absolutamente”.
Como salienta ALBERTO DOS REIS, Comentário ao Código de Processo Civil, 2º, 485, “É ao tribunal que compete, no seu prudente arbítrio, decretar ou não a nulidade, conforme entenda que a irregularidade cometida pode ou não exercer influência no exame ou na decisão da causa”.
O tribunal conhece oficiosamente das nulidades principais, derivadas da ineptidão da petição inicial, da falta de citação, da omissão de formalidades na citação edital ou de indicação de prazo para a defesa, de erro na forma de processo e da falta de vista ou exame ao Ministério Publico como parte acessória (artigo 202º, 1ª parte, do Código de Processo Civil).
Das restantes nulidades – nulidades secundárias - o tribunal apenas as conhece, a reclamação dos interessados, salvo os casos especiais em que a lei permite o conhecimento oficioso (artigo 202º, 2ª parte, do Código de Processo Civil).

Fora dos casos de conhecimento oficioso referidos no artigo 202º do CPC, a nulidade só pode, com efeito, ser invocada pelo interessado na observância da formalidade ou na repetição ou eliminação do acto, não podendo arguir a nulidade a parte que lhe deu causa ou que, expressa ou tacitamente, renunciou à arguição, como resulta do artigo 203º, nº 1, do Código de Processo Civil.
No caso em apreciação incorreu o Tribunal a quo numa nulidade secundária, prevista no artigo 201º, nº 1 do CPC, já que a omissão verificada é, sem dúvida, susceptível de influir na decisão da causa.
Ao decidir oficiosamente, sem previamente ter dado oportunidade às partes de se pronunciarem sobre a questão, nem justificado que se tratava de um caso de manifesta desnecessidade de cumprimento do princípio do contraditório, cometeu o tribunal recorrido uma nulidade com influência no exame ou decisão da questão.
Estas nulidades não sanadas ou concomitantes a uma decisão judicial, que não sejam as nulidades da sentença, previstas no art. 668, n.º 1, alíneas a) a d) do Código de Processo Civil, e que terão de ser arguidas em recurso da decisão, se esta admitir recurso ordinário, ou arguidas perante o tribunal que proferiu a decisão se esta não admitir esse recurso (art. 668º, 3 do C. P. Civil), podem subdividir-se em duas espécies, sendo distinto o respectivo regime de arguição:
i) Nulidades processuais que se encontrem a coberto de decisão judicial e que igualmente poderão ser impugnadas no recurso da decisão que lhes deu cobertura;
ii) Nulidades processuais que não estejam a coberto de decisão judicial, sendo, neste caso, o meio impugnatório a reclamação perante o juiz que proferiu a decisão. E, do despacho que recair sobre essa reclamação caberá, então, recurso nos termos gerais.
A este propósito refere MANUEL DE ANDRADE, Noções Elementares de Processo Civil, 1976, pág. 182 que, se a nulidade está a coberta por uma decisão judicial que ordenou, autorizou ou sancionou, expressa ou implicitamente, a prática de qualquer acto que a lei não admite ou a omissão de um acto que a lei impõe, o meio próprio para a arguir não é a simples reclamação, mas o recurso competente a interpor e tramitar como qualquer outro do mesmo tipo. Trata-se, em suma, da consagração do brocardo: “ dos despachos recorre-se, contra as nulidades reclama-se”.
Do mesmo modo o entende ANTUNES VARELA, Manual de Processo Civil, 1985, pág. 393 que refere que: “Se entretanto, o acto afectado de nulidade for coberto por qualquer decisão judicial, o meio próprio de o impugnar deixará de ser a reclamação (para o próprio juiz) e passará a ser o recurso da decisão”.
Para J. ALBERTO DOS REIS, Comentário ao Código de Processo Civil, II, 507/508, “A arguição da nulidade só é admissível quando a infracção processual não está ao abrigo de qualquer despacho judicial; se há um despacho a ordenar ou autorizar a prática ou omissão do acto ou da formalidade, o meio próprio para reagir contra a ilegalidade que se tenha cometido, não é a arguição ou reclamação por nulidade, é a impugnação do respectivo despacho pela interposição do recurso competente”.
Salienta, mais adiante J. ALBERTO DOS REIS, ob cit, 510 que “nem mesmo é preciso que haja qualquer indicação mais ou menos concludente no sentido de o juiz ter considerado o ponto a que se refere a nulidade, bastando que assim o deva ter feito”.
E, um dos exemplos de nulidade que frequentemente a jurisprudência admite a sua impugnação através do recurso da respectiva decisão é, precisamente, a preterição do contraditório, nomeadamente no caso da condenação por litigância de má fé, por se entender que o incumprimento das regras processuais é cometida com o prolação da própria decisão, ao ser proferida sem contraditório (v. no entanto em sentido não inteiramente coincidente Ac. STJ de 14.05.2009 - Pº 09B0677 - acessível na Internet, no sítio www.dgsi.pt.).
Cometeu, consequentemente, o tribunal recorrido, a nulidade prevista no art. 201º, n.º 1, do Código de Processo Civil.
A irregularidade cometida, ao impossibilitar que, designadamente, a autora/agravante, se pronunciasse sobre a questão da incompetência material do Tribunal, não obstante o despacho liminar anteriormente proferido, teve influência na decisão da questão, considerando-se admissível a impugnação do incumprimento da regra processual ínsita no nº 3 do artigo 3º do CPC, através do recurso de agravo interposto da decisão proferida pelo Tribunal a quo - sendo um dos fundamentos do recurso - já que a preterição do contraditório foi cometida com a própria prolação da decisão recorrida.
Dá-se, pois, nesta parte, provimento ao que consta das alegações de recurso da agravante, razão pela qual se anula o despacho recorrido, determinando-se que no Tribunal “a quo” seja dado cumprimento ao artigo 3º, n.º 3, do Código de Processo Civil, para depois de estabelecido o contraditório ser decidido em conformidade.
Face ao ora decidido, fica prejudicado o conhecimento da segunda questão suscitada no recurso da agravante.
Não havendo vencimento no recurso, não será a recorrente responsável por quaisquer custas (artigo 446º, nºs 1 e 2, do CPC). Por outro lado, nos termos do artigo 2º, nº 1, alínea g) do C.C.J. não são devidas custas, já que o agravado não deu causa, nem expressamente aderiu à decisão recorrida.
IV. DECISÃO
Pelo exposto, dá-se provimento ao recurso, pelo que se anula o despacho recorrido, determinando-se que no Tribunal “a quo” seja dado cumprimento ao disposto no artigo 3º, n.º 3 do Código de Processo Civil, para depois de estabelecido o contraditório ser decidido em conformidade.
Sem custas.
Lisboa, 4 de Junho de 2009
Ondina Carmo Alves – Relatora
Ana Paula Boularot
Lúcia Sousa