Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
4917/22.3T8FNC-B.L1-2
Relator: JOSÉ MANUEL MONTEIRO CORREIA
Descritores: INCIDENTE
VALOR DA CAUSA
ACÇÃO DE REIVINDICAÇÃO
ARBITRAMENTO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 02/22/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: 1.- A utilidade económica do pedido relevante para a fixação do valor da causa afere-se em função do pedido formulado, mas, se este não for suficiente para o efeito, afere-se em função da conjugação do pedido com a causa de pedir que o suporta.
2.- A utilidade económica de um pedido de reivindicação de imóvel corresponde ao valor da coisa reivindicada, valor esse que, devido à desatualização das matrizes prediais, pode não corresponder ao valor do prédio para efeitos fiscais, mas sim ao seu valor real.
3.- Se a reivindicação disser respeito, não à totalidade do prédio, mas a uma parcela do mesmo, a utilidade económica do pedido corresponde, em princípio, ao valor desta; todavia, se, mercê da ocupação, resultar, de acordo com o alegado, a alteração radical das características do prédio, aniquilando a sua aptidão construtiva e tornando-o um prédio encravado, é no valor real da totalidade do prédio que se encontra o respetivo valor processual.
4.- Sendo a certidão predial do imóvel reivindicando o único elemento constante dos autos a atestar o valor (no caso, patrimonial) do prédio, mas sendo esse valor, objetivamente considerado, desajustado da realidade, impõe-se a sua fixação por intermédio de arbitramento (art.º 309.º do CPC).
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: .- Acordam na 2.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa os Juízes Desembargadores abaixo identificados,

I.- Relatório
… e esposa … instauraram a presente ação declarativa constitutiva e de condenação contra …, pedindo que, pela sua procedência:
i.- se declare os Autores donos e legítimos proprietários do prédio rústico, com a área de 720m2, inscrita na matriz sob o art.º 14661.º;
ii.- se declare nula e de nenhum efeito a escritura de justificação, concretamente na parte da retificação da área, que aumentou a área de 460m2, para 714 m2, bem como a alteração dos confinantes e se ordene o cancelamento do registo da mesma, passando o prédio do Réu (art.º 10271.º) a ter a área de 460m2 e com os confinantes originais;
iii.- se condene o Réu justificante a pagar aos Autores todos os prejuízos, morais e materiais, decorrentes da sua atividade delituosa, a liquidar em execução de sentença, nos termos dos art.ºs 471.º, n.º 2 e 661.º, n,.º 2, ambos os CPC;
iv.- se condene o Réu a restituir-lhes o prédio em causa livre e devoluto de pessoa e bens, em bom estado de conservação e em perfeitas condições.
v.- se condene o Réu ao pagamento de uma indemnização correspondente ao valor da ocupação do imóvel, calculada nos termos do art.º 661.º, n.º 2 do CPC, que nunca poderá ser inferior a € 10.000,00;
vi.- se condene o Réu ao pagamento da reparação das paredes e reposição das terras, no valor de €4.250,00.
Para tanto, e em síntese, alegam que são proprietários, por o terem adquirido por contrato de compra e venda celebrado com a anterior proprietária, de um prédio rústico, no sítio da ….
Tal prédio, originariamente, tinha a área de 935m2, confrontava do norte e do sul com a vereda, do nascente com … e do poente com … e estava inscrito na matriz predial sob o art.º … e descrito na CRP de … sob o n.º ….
Em 2011, a sua anterior proprietária submeteu-o a divisão administrativa junto da …, pelo facto de ter sido atravessado pela estrada municipal, dando, assim, origem a duas parcelas de terreno: (i) uma com a área de 720m2, inscrita na matriz sob o art.º …, confrontando do norte com vereda, do sul com estrada, do nascente com … e do Poente com …; (ii) outra com a área de 98m2, inscrita na matriz sob o art.º …, confrontando do norte com estrada, do sul com a vereda, do nascente com … e outros e do poente com … .
 Em fevereiro de 2020, puseram à venda, por €47.500,00, a primeira das referidas parcelas de terreno, mas, no dia 8 de fevereiro de 2020, o Réu invadiu-a, destruindo algumas das paredes de pedra aparelhada e dela retirando terra.
Outrossim, apresentaram junto da Câmara Municipal um projeto para construção de uma moradia a implantar sobre parte da parcela e instruiu o pedido com o registo predial de um prédio rústico localizado no sítio da …, com a área de 714m2, inscrito na matriz sob o art.º … e descrito na CRP sob o n.º ….
A área deste último prédio rústico resulta, contudo, de alteração de 460m2 para 714m2 à custa do seu prédio inscrito na matriz sob o art.º …, bem como da alteração das suas confrontações reais, pelo que são falsos os documentos de que o Réu se serviu para titular a sua pretensa propriedade sobre o prédio.
Acresce que o Réu, por escritura pública de justificação, declarou que o prédio rústico inscrito na matriz sob o art.º … veio à sua posse por compra verbal a … ocorrida em 1988, mas tal compra e tal posse são falsos, pelo que a dita escritura pública de justificação padece de nulidade.
Concluem, assim, pela necessidade de recurso à presente ação, por forma a verem reconhecido o seu direito de propriedade sobre o prédio em causa, com a inerente anulação da escritura pública de justificação outorgada pelo Réu e, bem assim, por forma a serem ressarcidos dos prejuízos sofrido com a ocupação indevida do terreno, a liquidar ulteriormente e com a destruição das paredes, cuja reparação e reposição de terras tem o custo de €4.250,00.
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Válida e regularmente citado, apresentou o Réu a sua contestação, juntamente com a qual começou por deduzir incidente de valor.
Neste, invocaram que os Autores atribuíram à ação o valor de €51.000,01, o que, em face dos pedidos que deduziram, não é compreensível.
Pediram, assim, a notificação dos Autores para explicarem e quantificarem devidamente o valor atribuído à causa.
Seguidamente, defenderam-se por exceção, designadamente, por exceção dilatória, consubstanciada na nulidade de todo o processo fundada em ineptidão da petição inicial, e por impugnação motivada, pondo em causa os factos alegados pelos Autores na petição inicial e contrapondo-lhes a sua versão dos factos, argumentando que as declarações prestadas na escritura pública de justificação notarial impugnada corresponderam à verdade e concluindo não haver violação de qualquer direito de propriedade dos Autores.
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Responderam os Autores, invocando, no que ao incidente de valor deduzido pelo Réu diz respeito, que o valor que atribuíram à ação corresponde ao valor comercial do prédio rústico de que são proprietários, com a área de 720m2 e inscrito na matriz sob o art.º …, que, numa área de 287m2, foi ocupado pelo Réu.
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Por despacho proferido pelo tribunal a quo em 14 de junho de 2023, foi o Réu convidado a, no prazo de cinco dias, indicar nos autos o valor da causa que propunha em substituição do atribuído pelos Autores, devendo estes, depois, também no prazo de cinco dias, acordar ou não com o valor indicado pelo Réu.
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Acedendo ao convite do tribunal, o Réu veio indicar como valor da causa o de €24.250,00, sendo:
.- €10.000,00, relativos ao valor da parcela de terreno reivindicada pelos Autores, correspondente a 40% do valor comercial do prédio destes, que é de €25.000,00;
.- € 14.250,00, correspondentes à soma dos restantes pedidos dos Autores, relativos ao pedido de indemnização dos prejuízos sofridos.
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Os Autores opuseram-se ao valor proposto pelo Réu, mantendo o valor indicado na petição inicial.
Argumentaram que o valor comercial do seu prédio é superior a €70.000,00 e que, sem os 287m2 ocupados pelo Réu, perderia a sua capacidade de construção, por ficar encravado, sem acesso ao caminho municipal, transformando-se em prédio tão somente apto à agricultura.
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Seguidamente, em 3 de julho de 2023, foi proferido o seguinte despacho, conhecendo, além do mais, o incidente de valor deduzido pelo Réu:
“Os autores atribuíram à presente ação declarativa o valor de 51.000 euros.
O réu impugnou, na respetiva contestação, o referido valor e, em sua substituição indicou o valor de 24.250 euros, por entender ser esse o valor da parcela em discussão nos presentes autos.
Os autores responderam ao incidente suscitado, mantendo o valor atribuído à causa.
Nos termos do disposto no n.º 1 do artigo 296º do Código de Processo Civil a toda a causa deve ser atribuído um valor certo, expresso em moeda legal, o qual representa a utilidade económica imediata do pedido.
Prevê tal preceito, em termos de critério geral, sobre o valor de qualquer causa, e estatui, por um lado, que lhe deve ser atribuído um valor certo, expresso em moeda legal e, por outro, que ele representa a utilidade económica imediata do pedido.
O pedido é o efeito jurídico que se pretende obter com a demanda.
A utilidade económica do pedido, ou seja, o benefício visado com a ação ou com a reconvenção, afere-se, segundo a expressão legal, à luz do pedido, que se não limita a enunciar o objeto imediato da demanda, mas também o efeito jurídico que com ela se pretende obter.
No caso de não bastar para o efeito, a análise do pedido, deve ter-se em conta o confronto dele com a causa de pedir.
Para se determinar o valor da causa e se os pedidos são ou não distintos deve atender-se a estes e aos interesses que os litigantes se propõem fazer valer e aos efeitos jurídicos que visam conseguir.
A expressão causa, utilizada em sentido processual amplo, significa demanda ou litígio, abrangente da ação, da reconvenção, dos incidentes e dos procedimentos cautelares.
Estabelece o artigo 297º do Código de Processo Civil o critério geral para a determinação do valor da causa, dispondo o n.º 1 de tal preceito que se pela ação se pretende obter certa quantia em dinheiro, é esse o valor da causa, não sendo atendível impugnação nem acordo em contrário; se pela ação se pretende obter um benefício diverso, o valor da causa é a quantia em dinheiro equivalente a esse benefício.
Assim, segundo o enunciado preceito, se o pedido consubstanciar uma prestação diversa de um pagamento em quantia certa, o valor processual da causa há-de determinar-se pelo confronto entre o pedido e a causa de pedir e pela utilidade imediata expressa em moeda legal que o autor ou o réu reconvinte vise conseguir com a demanda.
Prevê o n.º 1 do artigo 301º do Código de Processo Civil o valor processual da causa que tiver por objeto a apreciação da existência, da validade, do cumprimento, da modificação ou da resolução de um ato jurídico, e estatui, como regra, que ele corresponde ao valor do ato determinado pelo preço ou pela estipulação das partes.
Cumulando-se na mesma ação vários pedidos, o valor da causa é a quantia correspondente à soma dos valores de todos eles (cfr. n.º 2 do citado artigo 297º do Código de Processo Civil), sendo que, tratando-se de pedidos alternativos atende-se unicamente ao pedido de maior valor e, no caso de pedidos subsidiários, atender-se-á ao pedido formulado em primeiro lugar (n.º 3 do citado preceito).
No caso de pluralidade de pedidos, caso a pluralidade respeite a uma única relação jurídica, a cumulação não releva para determinação do valor processual da causa (SALVADOR DA COSTA, os Incidentes da Instância, 3ª ed., pág. 27).
E “se apenas estiver em causa parte de uma coisa, ainda que se peça a declaração do direito de propriedade sobre toda ela é o valor da parte em litígio que marca o valor processual da causa” - artigos 296º, n.º 1 e 297º, n.º 1 do Código de Processo Civil ((SALVADOR DA COSTA, os Incidentes da Instância, 3ª ed., pág. 43).
No presente caso, tendo em conta, em conjunto, os pedidos e a causa de pedir formulados pelos autores, elementos a considerar-se, como se disse, para determinar a utilidade económica do pedido e, portanto, o valor da causa, resulta que os autores, com a presente ação pretendem, a apreciação da validade da escritura de justificação que invocam, designadamente na parte em que aí se aumentou a área do prédio do réu e se alterou a respetiva confinância, repondo-se, assim, a área primitiva de tal prédio, sendo que, na verdade, os pedidos de reconhecimento da respetiva propriedade, de restituição do prédio aos autores, bem como de cancelamento de registos, não mais traduzem que uma decorrência do efeito jurídico efetivamente pretendido pelos autores de invalidação do mencionado ato jurídico, na parte mencionada.
Para além do referido, pretendem os autores a condenação do réu no pagamento de indemnizações nos montantes mínimos que indicam.
Face ao que ficou dito, conclui-se que se terá que atender ao critério previsto no artigo 301º, n.º 1 do Código de Processo Civil, devendo corresponder o valor da ação ao valor do ato atribuído pelos outorgantes na escritura em causa, qual seja 20,99 euros, acrescido dos montantes reclamados a título de indemnização, nos termos do artigo 297º do Código de Processo Civil, quais sejam, 10.000 euros e 4.250 euros, sem consideração de qualquer outro pedido, uma vez que, como se disse, o efeito jurídico que os autores pretendem conseguir, por via da ação é a invalidação da escritura de justificação invocada.
Vencidos no incidente, são autores e os réus responsáveis pelo pagamento das custas respetivas, na proporção do decaimento (artigo 527º, n.ºs 1 e 2 do Código de Processo Civil).
Assim sendo, fixa-se o valor processual da ação em 14.270,99 euros (catorze mil duzentos e setenta euros e noventa e nove cêntimos).
Custas do incidente pelos autores e pelos réus na proporção do decaimento.
(…)”.
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Inconformados com este despacho, dele vieram os Autores interpor o presente recurso, formulando as seguintes conclusões, que assim se transcrevem:
1. Os autores atribuíram à ação declarativa o valor de 51.000 euros e o réu impugnou, na respetiva contestação, o referido valor e, em sua substituição indicou o valor de 24.250 euros, por entender ser esse o valor da parcela em discussão nos presentes autos.
2. Os autores responderam ao incidente suscitado, dizendo que o valor comercial do prédio dos AA é superior a 70.000,00 euros.
3. Em suma, o Tribunal a quo proferiu o seguinte despacho:
i) No presente caso, tendo em conta, em conjunto, os pedidos e a causa de pedir formulados pelos autores, elementos a considerar-se, como se disse, para determinar a utilidade económica do pedido e, portanto, o valor da causa, resulta que os autores, com a presente ação pretendem, a apreciação da validade da escritura de justificação que invocam, designadamente na parte em que aí se aumentou a área do prédio do réu e se alterou a respetiva confinância, repondo-se, assim, a área primitiva de tal prédio, sendo que, na verdade, os pedidos de reconhecimento da respetiva propriedade, de restituição do prédio aos autores, bem como de cancelamento de registos, não mais traduzem que uma decorrência do efeito jurídico efetivamente  pretendido pelos autores de invalidação do mencionado ato jurídico, na parte mencionada.
ii) Face ao que ficou dito, conclui-se que se terá que atender ao critério previsto no artigo 301.º, n.º 1 do Código de Processo Civil, devendo corresponder o valor da ação ao valor do ato atribuído pelos outorgantes na escritura em causa, qual seja 20,99 euros, acrescido dos montantes reclamados a título de indemnização, nos termos do artigo 297º do Código de Processo Civil, quais sejam, 10.000 euros e 4.250 euros, sem consideração de qualquer outro pedido, uma vez que, como se disse, o efeito jurídico que os autores pretendem conseguir, por via da ação é a invalidação da escritura de justificação invocada.
iii) Assim sendo, fixa-se o valor processual da ação em 14.270,99 euros (catorze mil duzentos e setenta euros e noventa e nove cêntimos).
4. O Tribunal a quo atribuiu o valor de 20,99 euros ao prédio rústico (prédio objecto da ação), com o fundamento que foi esse o valor atribuído na escritura de usucapião.
5. Na Ilha da Madeira (RAM) não existe prédios rústicos com o valor comercial de 20,99 (vinte euros e noventa e nove cêntimos), e muito menos com capacidade construtiva que apresenta o prédio em pleito, um lote de terreno com 720m2, numa zona urbana.
5. O valor que consta na matriz (20,99) foi o valor atribuído pela fazenda Nacional nos anos vinte do século XX.
5. Cumpre ordenar o arbitramento, a que alude o art.º 309º, do CPC, para fixação do valor da causa, quando se verificar falta de prova suficiente para determinar tal valor. Trata-se de um poder-dever (poder vinculado, não discricionário) que só pode deixar de ser exercido quando aquela diligência probatória for objetivamente desnecessária ou inútil;
6. Com o devido respeito e que é muito pelo Tribunal a quo, mas o valor de 20,99 euros…, parecemos manifestamente desajustado com a realidade, quando o valor comercial por um (1) metro quadrado anda nos 100,00 euros.
7. Salvo melhor opinião, devia o Tribunal a quo mandar proceder o arbitramento através de um perito.”
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O Réu não respondeu ao recurso.
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O recurso foi admitido como apelação, com subida em separado e com efeito meramente devolutivo e assim recebido nesta Relação, que o considerou corretamente admitido e com o efeito legalmente previsto.
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Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
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II.- Das questões a decidir
O âmbito dos recursos, tal como resulta das disposições conjugadas dos art.ºs 635.º, n.º 4, 639.º, n.ºs 1 e 2 e 641.º, n.º 2, al. b) do Código de Processo Civil (doravante, CPC), é delimitado pelas conclusões das alegações do recorrente.
Isto, com ressalva das questões de conhecimento oficioso que ainda não tenham sido conhecidas com trânsito em julgado ou das que se prendem com a qualificação jurídica dos factos (cfr., a este propósito, o disposto nos art.ºs 608.º, n.º 2, 663.º, n.º 2 e 5.º, n.º 3 do CPC).
Neste pressuposto, a questão que, neste recurso, importa apreciar e decidir é a seguinte:
i.- saber em que termos deve ser fixado o valor da presente ação.
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III.- Da Fundamentação
III.I.- Da Fundamentação de facto
.- Os factos que aqui importa considerar e que, em função dos elementos constantes dos autos, se mostram provados, são os acima descritos no relatório desta decisão, os quais, por razões de economia processual, se dão aqui por integralmente reproduzidos.
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III.II.- Do objeto do recurso
.- Da fixação do valor da causa
Está em causa neste recurso a fixação do valor da presente ação.
Os Autores/Recorrentes atribuíram à causa o valor de €51.000,00, ao passo que o Réu/Recorrido, em incidente de valor adrede deduzido, bateu-se pela sua fixação em €24.250,00.
 O tribunal a quo, na decisão do incidente, fixou-o em €14.270,99, contra o que, reputando-o insuficiente, se insurgiram os Autores/Recorrentes neste recurso, pugnando pela sua fixação por via de arbitramento.
Analisemos, pois, a questão suscitada.

Dispõe o art.º 296.º, n.º 1 do CPC que a toda a causa deve ser atribuído um valor certo, expresso em moeda legal, o qual representa a utilidade económica imediata do pedido.
Estabelece-se neste normativo o critério geral de fixação do valor da causa, dele decorrendo que tal valor deve corresponder a um valor pecuniário exato e, bem assim, que esse valor representa a utilidade económica do pedido.
A utilidade económica do pedido corresponde, como refere Salvador da Costa, ao “benefício visado com a acção ou com a reconvenção [e] afere-se, segundo a expressão legal, à luz do pedido, que se não limita a enunciar o objecto imediato da demanda, mas também o efeito jurídico que com ele se pretende obter” (in Os Incidentes da Instância, Coimbra, 1999, p. 18).
A análise do pedido poderá, contudo, não ser suficiente para se aferir da sua utilidade económica concreta, pelo que, em último termo, esta será, como referia Alberto dos Reis, a resultante “do pedido combinado com a causa de pedir” (in Comentário ao Código de Processo Civil, Vol. III, p. 593).
Sem prejuízo, a utilidade económica do pedido atendível na fixação do valor da causa está, relativamente a determinado tipo de ações, fixado de antemão nos art.ºs 298.º, 300.º, 301.º, 302.º, 303.º e 304.º, pelo que, enquadrando-se em algum deles a causa carecida de fixação do valor, é à luz de tais preceitos que tal valor deve ser encontrado.
Nesta tarefa, há que seguir, também, critérios gerais também eles fixado de antemão, dos quais cumpre destacar, com relevo para o caso que nos ocupa, os previstos nos n.ºs 1 e 2 do art.º 297.º do CPC.
Assim, de acordo com o primeiro, se pela ação se pretende obter qualquer quantia certa em dinheiro, é esse o valor da causa, não sendo atendível impugnação nem acordo em contrário; se pela ação se pretende um benefício diverso, o valor da causa é a quantia em dinheiro equivalente a esse benefício.
De harmonia com o segundo, cumulando-se na mesma ação vários pedidos, o valor é a quantia correspondente à soma dos valores de todos eles.

No caso em apreço, pediram os Autores na presente ação que, pela sua procedência:
i.- se declare os Autores donos e legítimos proprietários do prédio rústico, com a área de 720m2, inscrita na matriz sob o art.º …;
ii.- se declare nula e de nenhum efeito a escritura de justificação, concretamente na parte da retificação da área, que aumentou a área de 460m2, para 714 m2, bem como a alteração dos confinantes e se ordene o cancelamento do registo da mesma, passando o prédio do Réu (art.º …) a ter a área de 460m2 e com os confinantes originais;
iii.- se condene o Réu justificante a pagar aos Autores todos os prejuízos, morais e materiais, decorrentes da sua atividade delituosa, a liquidar em execução de sentença, nos termos dos art.ºs 471.º, n.º 2 e 661.º, n,.º 2, ambos os CPC;
iv.- se condene o Réu a restituir-lhes o prédio em causa livre e devoluto de pessoa e bens, em bom estado de conservação e em perfeitas condições.
v.- se condene o Réu ao pagamento de uma indemnização correspondente ao valor da ocupação do imóvel, calculada nos termos do art.º 661.º, n.º 2 do CPC, que nunca poderá ser inferior a €10.000,00;
vi.- se condene o Réu ao pagamento da reparação das paredes e reposição das terras, no valor de €4.250,00.
Da sua análise, podemos aglutinar tais pedidos em três grupos distintos: um, integrando os pedidos elencados em i e iv; outro, integrando o pedido elencado em ii; e outro integrando os restantes pedidos, isto é, os elencados em iii, v e vi.
O primeiro grupo diz respeito à pretensão dos Autores/Recorrentes de verem reconhecido o seu direito de propriedade sobre o prédio que, de acordo com o alegado, foi parcialmente ocupado pelo Réu/Recorrido e de obterem a condenação deste a restituir a parte ocupada.
Tais pedidos enquadram-se na ação de reivindicação prevista no art.º 1311.º do CC, nos termos do qual o proprietário pode exigir judicialmente de qualquer possuidor ou detentor da coisa o reconhecimento do seu direito de propriedade e a consequente restituição do que lhe pertence.
O segundo grupo diz respeito à pretensão dos Autores/Recorrentes de verem anulada a escritura pública de justificação outorgada sob impulso do Réu/Recorrido, por via da qual este integrou alegadamente integrou em prédio seu a área que os Autores afirmam integrar o seu próprio prédio.
Tal pedido corresponde, assim, a uma ação de impugnação de justificação notarial, ação essa que, constituindo, na sua essência, uma ação declarativa de simples apreciação negativa, mais não visa do que a declaração de inexistência do direito de que o Réu/Recorrido se arrogou naquela escritura pública.
Finalmente, o terceiro grupo diz respeito à pretensão indemnizatória dos Autores/Recorrentes em consequência do ato alegadamente ilícito e culposo perpetrado pelo Réu/Recorrido sobre o prédio daqueles e, portanto, a uma pretensão recondutível ao instituto jurídico da responsabilidade extracontratual, previsto no art.º 483.º, n.º 1 do CC.

Ora, relevando o que acaba de ser dito na fixação do valor da presente causa, cumpre começar por referir que, quanto ao último grupo de pedidos formulado, atinente à pretensão indemnizatória dos Autores, nenhuma questão se coloca neste recurso.
Na verdade, tratando-se de pretensões quantificáveis em dinheiro, o tribunal a quo seguiu o critério fixado de antemão no art.º 297.º, n.º 1 do CPC para tais casos, definindo o valor correspondente em função da soma dos valores peticionados e já vencidos à data da propositura da ação, obtendo, assim, o valor de €14.250,00 que não foi posto em causa pelos Autores/Recorrentes neste recurso.
Importa referir, também, que, como se viu, em caso de cumulação de pedidos na mesma ação, o valor desta é a quantia correspondente à soma de todos eles, pelo que este último valor, o de € 14.250,00, terá, aquando da fixação definitiva do valor da presente causa, de ser somado ao valor dos restantes pedidos dos Autores.
Dito isto, há que aferir, então, o valor de tais pedidos.

A este respeito, o tribunal a quo norteou a fixação do valor de tais pedidos em função do pedido atinente à impugnação da escritura pública de justificação notarial.
Ou seja, na ótica do tribunal a quo, “o efeito jurídico que os autores pretendem conseguir por via da ação é a invalidação da escritura de justificação invocada”, pelo que o pedido de reconhecimento da propriedade sobre o prédio identificado na petição inicial como que assumiria caráter instrumental relativamente a este último.
Discorda-se, contudo, desta linha de raciocínio.
Na verdade, devidamente analisada a causa de pedir e o pedido dos Autores/Recorrentes temos por certo que aquilo que estes verdadeiramente pretendem é o reconhecimento do seu direito de propriedade sobre o prédio que identificam na petição inicial, com a consequente condenação do Réu a desocupar a parte desse prédio de que alegadamente se apropriou.
Nesse pressuposto, cabendo-lhes provar os factos constitutivos do seu direito (art.º 342.º, n.º 1 do CC), cabe-lhes, consequentemente, provar o facto jurídico de que emerge o direito real que invocam, o mesmo é dizer o título de aquisição do prédio com as características (nomeadamente, em termos de área e confrontações) que, na petição inicial, lhe atribuem.
Ora, com a pretensão de impugnação da escritura pública de justificação notarial outorgada pelo Réu/Recorrido pretendem eles invalidar um título de aquisição obtido por este sobre parte do seu prédio, mas da procedência dessa pretensão não resulta imediata e forçosamente o reconhecimento do direito dos Autores/Recorrentes sobre essa parcela de terreno.
Com a impugnação da justificação notarial mais não se visa do que a declaração de inexistência do direito de que o Réu/Recorrido se arrogou naquela escritura pública, mas da inexistência desse direito não resulta a existência de outro, designadamente do dos Autores/recorrentes, tanto mais que este foi especificadamente impugnado pelo Réu/Recorrido na contestação.
A pretensão de anulação (parcial) da escritura pública de justificação outorgada pelo Réu é que é, por conseguinte, instrumental relativamente ao pedido de reivindicação formulado pelos Autores/Recorrentes, sendo em função deste, por conseguinte, que o valor da ação deve ser aferido.

Ora, dispõe a este propósito o n.º 1 do art.º 302.º do CPC que se a ação tiver por fim fazer valer o direito de propriedade sobre uma coisa, o valor desta determina o valor da causa.
Neste preceito, como refere Salvador da Costa, “[é] o valor real da coisa que está em causa, ainda que não seja pedida a sua entrega”; “o valor da acção de reivindicação corresponde ao da coisa reivindicada”; e “[p]or virtude, além do mais, da desactualização dos elementos patrimoniais das matrizes prediais, o valor real dos prédios que deve relevar (…) não corresponde, necessariamente, ao seu valor para efeitos tributários ou fiscais” (ibidem, p. 40).
Note-se, todavia, ainda segundo o mesmo Autor, que “se apenas estiver em causa parte de uma coisa, ainda que se peça a declaração do direito de propriedade sobre toda ela, é o valor da parte em litígio que marca o valor processual da causa”, pelo que, “por exemplo, na acção em que se peça a demarcação das estremas de um prédio, o respectivo valor corresponde ao da parcela em litígio” (ibidem, p. 40).

In casu, o prédio reivindicando diz respeito a uma parcela de terreno com a área de 720m2, inscrita na matriz sob o art.º …, que alegadamente confronta do norte com vereda, do sul com estrada, do nascente com … e outros e do Poente com ….
O núcleo principal da pretensão dos Autores/Recorrentes diz respeito, não à totalidade da área da parcela de terreno, mas só a uma parte dela, que terá sido ocupada pelo Réu/Recorrido e por este integrada na área do seu próprio prédio na escritura pública de justificação também impugnada.
Como quer que seja, afigura-se-nos que o valor da ação deve ser aferido, não em função dessa parte da parcela de terreno alegadamente ocupada pelo Réu/Recorrido, mas da totalidade da parcela de terreno, isto é, dos referidos 720m2.
Na verdade, os Autores/Recorrentes invocaram, no âmbito do incidente de valor aqui em apreço, que, apesar de a alegada apropriação de terreno seu por parte do Réu/Recorrido se ter limitado a uma porção do seu prédio, todavia, daí resultaria uma alteração radical das características deste, transformando-o, não só em terreno sem aptidão construtiva, como em terreno encravado.
Assim, e posto que, como se viu, a utilidade económica do pedido relevante para efeitos de fixação do valor da ação deverá ser feita, em último termo, em função do “pedido combinado com a causa de pedir”, temos que aquilo que, no caso, relevará para a fixação do valor da causa, será o valor da parcela de terreno em causa na sua totalidade e não apenas de uma parte da mesma.
Resta, pois, determinar que valor será esse.

A este respeito, dispõe o art.º 308.º do CPC que quando as partes não tenham chegado a acordo ou o juiz o não aceite a determinação do valor da causa faz-se em face dos elementos do processo ou, sendo estes insuficientes, mediante as diligências indispensáveis, que as partes requererem ou o juiz ordenar.
Por seu turno, de harmonia com o art.º 309.º, se tal se revelar necessário, procede-se a arbitramento, o qual é feito por um único perito nomeado pelo juiz, sem que haja lugar a segundo arbitramento.
Ora, o único elemento objetivo e relevante constante do processo relativo ao valor da parcela de terreno diz respeito à respetiva certidão matricial, que foi junta como documento n.º 9 com a petição inicial e em que se fixa o valor patrimonial do prédio em €1.886,25.
Tal valor, contudo, do ponto de vista da experiência comum, não exprime – pelo menos há dúvidas quanto a isso – o valor real de um prédio que, como o dos autos, terá, em função da forma como foi estruturada a causa de pedir, apetência construtiva.
Acresce que o próprio Réu/Recorrido, no âmbito do incidente deduzido, atribuiu ao prédio o valor comercial de €25.000,00, o que demonstra que ele próprio aceita que o valor patrimonial constante da matriz, ainda que não atinja o proposto pelos Autores/Recorrentes, não deixa de estar desenquadrado da realidade.
Sendo, como tal, insuficientes os elementos constantes dos autos para efeitos de fixação do valor do prédio, forçoso será, atento o que acaba de ser dito, o recurso a arbitramento para o efeito, tal como propugnado pelos Autores/Recorrentes no presente recurso.

Em suma, o valor da presente ação será o resultante da soma do valor de €14.250,00, correspondente à pretensão indemnizatória dos Autores/Recorrentes, e do valor resultante de arbitramento a realizar por perito único a nomear pelo tribunal a quo, tendo por objeto o valor comercial da totalidade da parcela de terreno em causa nos autos, com a área de 720m2, inscrita na matriz sob o art.º …, confrontando do norte com vereda, do sul com estrada, do nascente com … e outros e do Poente com … .
Procederá, pois, integralmente o presente recurso, com a consequente revogação do despacho recorrido.
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IV.- Decisão
Pelo exposto, julga-se procedente o recurso e, consequentemente:
i.- revoga-se a decisão recorrida;
ii.- determina-se que o valor da presente ação será o resultante da soma do valor de €14.250,00 (correspondente ao da pretensão indemnizatória dos Autores/Recorrentes) e do valor resultante de arbitramento a realizar por perito único a nomear pelo tribunal a quo, tendo por objeto o valor real da totalidade da parcela de terreno em causa nos autos, com a área de 720m2, inscrita na matriz sob o art.º …, confrontando do norte com vereda, do sul com estrada, do nascente com … e outros e do Poente com … .
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As custas da apelação serão da responsabilidade dos Autores/Recorrentes e do Réu/Recorrido na proporção do decaimento, decaimento este aferido em função do valor da causa que vier a ser fixado em conformidade com o aqui decidido.
Notifique.
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Lisboa, 25 de janeiro de 2024
José Manuel Monteiro Correia
Carlos Gabriel Castelo Branco
Paulo Fernandes da Silva