Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
63/24.3YRPRT
Nº Convencional: JTRP000
Relator: MARIA JOANA GRÁCIO
Descritores: MANDADO DE DETENÇÃO EUROPEU
PRINCÍPIO DO RECONHECIMENTO MÚTUO
IRREGULARIDADE NO CONTEÚDO OU FORMA DO MDE
PEDIDO OFICIOSO DE INFORMAÇÕES AO ESTADO REQUERENTE
CAUSAS FACULTATIVAS DE RECUSA DE EXECUÇÃO
SISTEMA PRISIONAL DO ESTADO REQUERENTE
ESTADO PSICOLÓGICO DO REQUERIDO
PRORROGAÇÃO DO PRAZO DE ENTREGA
GARANTIA DE DEVOLUÇÃO PARA CUMPRIMENTO DE PENA
Nº do Documento: RP2024031563/24.3YRPRT
Data do Acordão: 03/15/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: MANDADO DE DETENÇÃO EUROPEU
Decisão: DEFERIDA A EXECUÇÃO DO MANDADO COM PRESTAÇÃO DE GARANTIAS.
Indicações Eventuais: 1. ª SECÇÃO CRIMINAL
Área Temática: .
Sumário: I - O MDE é um procedimento judicial transfronteiriço simplificado, válido para os países membros da União Europeia, com vista à detenção e entrega de cidadãos para efeitos de instauração de procedimento criminal ou para cumprimento de pena ou medida de segurança privativas da liberdade.
II - Na base da sua execução está o princípio do reconhecimento mútuo e a conformidade à Lei 65/2003, de 23-08, e à Decisão Quadro n.º 2002/584/JAI, do Conselho de 13-06, tal como se estabelece no n.º 2 do art. 1.º da referida lei.
III - O princípio do reconhecimento mútuo «é fundado na premissa de que os estados membros confiam mutuamente na qualidade dos seus procedimentos penais nacionais, facilitando, justificando mesmo, uma cooperação alargada no combate ao crime que adquiriu uma dimensão nova», cumprimento «[o] objectivo que a União fixou de se tornar um espaço de liberdade, de segurança e de justiça».
IV - Tal princípio assenta em noções de equivalência e de confiança mútua nos sistemas jurídicos dos Estados-Membros da União Europeia, que leva a que o Estado que recebe um MDE (Estado de execução) se encontre obrigado a cumprir a pretensão subjacente ao MDE emitido por outro Estado-Membro (Estado de emissão), desde que o mesmo reúna os requisitos formais previstos na lei, sujeito a controlo pela autoridade judiciária de execução, só podendo ser negado em caso de verificação de causas previstas para não execução (obrigatórias ou facultativas) ou de não prestação de garantias quando exigidas ou pedidas (quando a garantia não é obrigatória), sendo tais regras comuns a todos os Estados-Membros.
V - O estabelecimento de causas facultativas de não execução do MDE é o resultado dos compromissos assumidos no âmbito da União Europeia e dos consensos encontrados para prevalência da soberania dos Estados no quadro de um espaço único, equilibrando essa realidade com a soberania de cada Estado.
VI - A ausência de requisitos de conteúdo e de forma do MDE, per si, previstos no art. 3.º, não são causa de recusa obrigatória ou facultativa, conforme se comprova pela leitura dos arts. 11.º, 12.º e 12.º-A, antes constituindo uma irregularidade sanável, nos termos do art. 123.º do CPPenal, aplicável subsidiariamente por força do art. 34.º da Lei 65/2003, de 23-08.
VII - Sendo a regularidade formal e substancial do MDE, nos termos do art. 3.º, pressuposto da legalidade e validade da detenção com base no MDE, e tendo sido validada a detenção do requerido aquando da sua audição a 07-03-2024, diligência onde o mesmo esteve presente e acompanhado pelo seu Ilustre Mandatário, havia o requerido de suscitar antes do encerramento dessa diligência a irregularidade do MDE, em conformidade com o disposto no art. 123.º, n.º 1, do CPPenal, o que não fez, permitindo a sanação de eventual irregularidade de que podia padecer o MDE em apreço.
VIII - A autoridade de execução pode determinar a prestação de mais informações ao abrigo do disposto do art. 22.º, n.º 2, da Lei 65/2003, de 23-08, o que vai ao encontro do disposto no art. 123.º, n.º 2, do CPPenal, e tal possibilidade pode ser importante para apreciação de factores relevantes para efeitos de recusa, mas só se o Tribunal assim o entender, e não por requerimento do requerido.
IX - O recurso a causas facultativas de recusa de execução de MDE deve ser cauteloso e tem de estar suportado em «motivos ponderosos, ligados fundamentalmente às razões que subjazem, por um lado, ao interesse do Estado que solicita a entrega do cidadão de outro país para efeitos de procedimento criminal ou para cumprimento de pena ou de medida de segurança privativa da liberdade, e, por outro, ao interesse do Estado a quem o pedido é dirigido em consentir ou não na entrega de um nacional seu.»
X - No caso dos autos, não há informação de que em Portugal tenha sido instaurado qualquer inquérito com referência aos factos indiciados e não é irrelevante na decisão a tomar que toda a investigação de anterior processo tenha decorrido junto da mesma autoridade judicial espanhola, estando a mesma agora a desenvolver nova investigação também com base em elementos probatórios já apurados naquele primeiro processo, fazendo todo o sentido que sejam as autoridades espanholas a prosseguir com a investigação, mesmo em relação ao requerido, cidadão português, pois detêm o conhecimento global de toda a actividade criminosa.
XI - É suficiente que o MDE especifique que é emitido para procedimento criminal, como resulta do apreciado nestes autos, ainda que se deixe antever a possibilidade de aplicação de prisão preventiva, não sendo necessário indicar o concreto acto a realizar.
XII - O princípio do reconhecimento mútuo com base no qual é executado o MDE, conforme prescreve o art. 2.º, n.º 2, da Lei 65/2003, de 23-08, impede em absoluto a formulação de alegações de carácter genérico e depreciativo sobre o sistema prisional do Estado emissor.
XIII - O campo de aplicação do art. 29.º, n.º 4, da Lei 65/2003, de 23-08, há-de ser encontrado, por força do princípio do reconhecimento mútuo, em outras razões que não as falhas do sistema prisional dos Estados de emissão, e essas razões centram-se em motivos graves de saúde que impedem a deslocação física do requerido, sob pena de se colocar em causa a sua saúde ou a vida.
XIV - Assim, o estado psicológico do requerido, mesmo admitindo intuito suicida, não interfere com a questão das sequelas da transferência física do requerido.
XV - A previsão do art. 29.º, n.º 4, da Lei 65/2003, de 23-08 pressupõe que já esteja determinada a entrega, admitindo-se a prorrogação da sua efectivação fora dos prazos previstos nos números antecedentes nas condições excepcionalíssimas contempladas na norma.
XVI - As garantias de que trata o art. 13 da Lei 65/2003, de 23-08, representam ainda um modo de cooperação entre Estados-Membros da União Europeia, aos quais se reconhece um exercício da soberania nacional em casos que envolvem uma dimensão da dignidade da pessoa e respectivos direitos fundamentais (n.º 1, al. a)) ou em que estão em causa cidadãos nacionais ou residentes no Estado de execução (n.º 1, al. b)).
XVII - A situação contemplada na al. b) do n.º 1 do art. 13.º é de aplicação facultativa, como decorre da utilização do vocábulo pode, e representa uma reserva de soberania que se funda na relação de proximidade entre o requerido e Estado de execução.
XVIII - Num caso, como o dos autos, em que, face à factualidade apurada, a ligação do requerido, cidadão português, a Portugal é prolongada e intensa, pois vive neste país há muitos anos, com a sua mulher e duas filhas, de 14 e 19 anos de idade, desenvolve aqui actividade profissional há mais de 14 anos, e tem uma boa relação com a comunidade próxima ao local onde trabalha, justifica-se plenamente que Portugal exerça a reserva de soberania que o requerido reclama, posto que o MDE se destina a procedimento penal no Reino de Espanha, exigindo-se a garantia de que, após ter sido ouvido, o requerido seja devolvido a Portugal para aqui cumprir a pena ou a medida de segurança privativas da liberdade a que eventualmente for condenado no Estado-Membro de emissão, sendo oportunamente cumprido o disposto no art. 12.º, n.º 4, in fine, da Lei 65/2003, de 23-08, ex vi art 13.º, n.º 2, do mesmo diploma legal.
XIX - Neste contexto, a autoridade judiciária de execução (portuguesa), para efeito de reconhecimento de eventual sentença condenatória de requerido, deve oportunamente solicitar a respectiva transmissão.
XX - A prestação da garantia nos termos do art. 13.º, n.º 1, al. b), da Lei 65/2003, de 23-08, em comparação com a simples aplicação da Lei 158/2015, de 17-09, respeitante ao regime de transmissão e execução de sentenças estrangeiras, agiliza a devolução do requerido, pois esta ocorrerá depois de ter sido ouvido para efeitos de procedimento criminal e já não se verificar necessidade de o manter no Estado de emissão para o efeito.
XXI - A garantia art. 13.º, n.º 1, al. a), da Lei 65/2003, de 23-08, não necessita de ser prestada antes da decisão de entrega, ficando esta, no entanto, condicionada à sua prestação.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. n.º 63/24.3YRPRT
Tribunal da Relação do Porto

Sumário:

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Acordam, em conferência, na 1.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto

I. Relatório

Pelo Senhor Juiz de Direito do Tribunal de primeira instância e instrução 1 de Sant Boi de Llobregat, Espanha, no P. n.º DP 187-2021 foi emitido, em 04-03-2024, para efeitos de procedimento criminal, um Mandado de Detenção Europeu (MDE), inserido no Sistema SIS II, com o n.º 0005.0210018072791A000000001.01, tendo por referência despacho de 27-02-2024 da mesma entidade, respeitante ao cidadão de nacionalidade portuguesa com a seguinte identidade:

AA, casado, nascido a ../../1977, português, titular do Cartão do Cidadão nº ...25 ..., válido até 06-05-2029, filho de BB e de CC, residente na Urbanização ...., ... Ilhavo, e

relativo à investigação que sobre o mesmo recaiu como participante em organização criminosa e autor material de crime de branqueamento de capitais, p. e p. pelos arts. 301.º, 302.º, e 570.º, do Código Penal Espanhol, com uma moldura penal máxima aplicável de 12 anos de prisão.

Os factos em causa mostram-se descritos na al. e) do MDE nos seguintes termos (transcrição):

«No dia 18 de dezembro de 2018, o órgão de polícia Mossas d'Esquadra de Sant Boi de Llobrega recebeu uma chamada telefónica da empresa A..., S.L. informando que, enquanto um dos seus trabalhadores, o Sr. DD, colocava um carregamento de folhas Dina A4 dentro do contentor de um camião, uma das caixas caiu no chão, se abriu e, no seu interior, foram encontradas duas embalagens de folhas e 6 embalagens retangulares revestidas com plástico preto com pó branco no seu interior, que os fez suspeitar que se tratava de alguma substância estupefaciente.

Quando o Órgão Instrutor chegou à zona da empresa, encontrou, no interior do contentor ...95, que entrou pelo Porto de Barcelona, sendo o que estava a ser descarregado, um total d 1.410 embalagens retangulares revestidas com plástico de diferentes cores, as quais, apó pesagem e verificação inicial com o teste de orientação para a deteção de substância estupefacientes, deram resultado positivo para cocaína, perfazendo um total de 1.413,13 kg, que tem um valor no mercado superior a 89.000.000 euros através da sua venda em gramas (questão ratificada pelo relatório do Instituto Nacional de Toxicologia constante de fs 788 e seguintes)

A investigação dos factos anteriores foi objeto de outro processo de inquérito (675/2018), instruído por este Juízo e que há muito passou à fase de julgamento. De facto, é de notar que o factos já foram julgados e que foi proferida a sentença nº 173/2023 da Secção 7ª do Tribunal Provincial de Barcelona, que condenou uma série de pessoas (algumas das quais também são investigadas neste processo) na qualidade de autores de crimes de tráfico de drogas, praticados no âmbito de uma organização criminosa.

Porém, como resultado das investigações realizadas no processo de inquérito 675/2018, surgiram, como os ramos de uma árvore, indícios de outros crimes. E assim, no âmbito de uma diligência de investigação realizada no referido processo, foi apreendido um telemóvel do principal dirigente da organização (o Sr. EE, que de facto foi condenado pelo Tribunal Provincial de Barcelona a dezasseis anos de prisão pelos factos acima mencionados). Da informação contida nesse telemóvel, surgiram fortes indícios de que, para além da rede de organização criminosa dedicada ao tráfico de drogas, que já foi julgada, existia outra destinada ao branqueamento dos capitais obtidos com o eferido tráfico de drogas.

As ações realizadas pela organização criminosa descoberta para branquear os capitais supostamente provenientes do tráfico de drogas seriam diversas, desde a compra e venda de bens imobiliários até ao envio de grandes quantidades de dinheiro, camuflado em determinados veículos, de Espanha para Portugal e, a partir daí, mesmo através de transferências bancárias após o depósito do dinheiro, para países como a Colômbia ou a Venezuela, bem como outras operações como a constituição de sociedades de fachada.

O que precede trata-se de um breve resumo dos factos, uma vez que não é objetivo do presente despacho entrar nos pormenores de uma investigação que poderia ocupar milhares de páginas, mas sim identificar sucintamente os factos em investigação para que, depois de os relacionar com a pessoa arguida, possam justificar adequadamente os fundamentos, na minha opinião, da sua prisão preventiva.

Assim, em relação ao Sr. AA, existem indícios suficientes de que o mesmo teria participado no branqueamento de capitais provenientes do tráfico de drogas, num valor total de até 3.184.471 euros. Este dinheiro teria sido recolhido tanto no nosso país como em Portugal, sendo depositado posteriormente no sistema financeiro do país português, de forma fraccionada, através da utilização de dezenas de contas bancárias de diferentes pessoas. Toda esta operação teria sido realizada sob as instruções de EE, líder da organização investigada, em que o Sr. Da AA teria a alcunha ou pseudónimos de “...".

Para chegar às informações referidas no parágrafo acima, os agentes encarregados da investigação realizaram inúmeras diligências, como as que permitiram relacionar o Sr. AA com o pseudónimo “...”, através da apuração do titular do telemóvel para o qual foram dirigidas as "mensagens enviadas a ... a partir do telemóvel sob investigação do Sr. EE, ou como os rastreias exaustivos de contas bancárias, a partir dos quais se deduz uma função preponderante do Sr. AA na execução das operações de branqueamento de capitais.»

O requerido foi detido por elementos da Polícia Judiciária a 06-03-2024 e presente ao Tribunal da Relação do Porto, tendo a Exma. Sra. Procuradora-Geral Adjunta junto deste promovido a execução do aludido MDE, nos termos da Lei 65/2003 de 23-08.

O requerido foi ouvido a 07-03-2024, com cumprimento do disposto no art. 18.º, n.ºs 3, 4 e 5, da Lei 65/2003 de 23-08, tendo declarado opor-se à sua entrega às autoridades espanholas e não renunciar ao princípio da especialidade, tendo requerido prazo para apresentar a sua defesa.

Nessa data, a detenção do requerido foi validada e foi concedido o prazo de cinco dias para preparar a sua defesa, ficando sujeito à medida de coacção de prisão preventiva, mantida por despacho de 02-04-2024.

No prazo legal, o requerido apresentou a sua oposição, suscitando as seguintes questões:

1.ª questão - Conteúdo e forma do mandado de detenção, invocando que o MDE deve conter a descrição das circunstâncias onde foi cometido o ilícito penal, o tempo e o lugar da sua prática, mas o mandado emitido não possuiu nem as circunstâncias da prática do ilícito, nem o tempo, nem mesmo o lugar da prática do mesmo.

2.ª questão - Dos motivos para a não execução obrigatória do mandado, invocando neste segmento a al. a) do art. 11.º da Lei 65/3003, de 23-08.

3.ª questãoDos motivos da não execução facultativa do mandado, invocando o disposto no art. 12.º, n.º 1, als. e), g) e h)-1 da Lei 65/2003, de 23-08.

4.ª questãoSuspensão temporária da entrega, invocando o disposto no art. 29.º, n.º 4, da Lei 65/2003, de 23-08.

5.ª questãoDas condições psicológicas do requerido, invocando que se encontra numa situação psicológica deveras grave, pelo que apela à aplicação do disposto no art. 29.º, n.º 4, da Lei 65/2003, de 23-08, nos termos do qual a entrega pode ser temporariamente suspensa por motivos humanitários graves, nomeadamente por existirem motivos sérios para considerar que a entrega colocaria manifestamente em perigo a sua vida ou a saúde da pessoa procurada.

6.ª questãoDas garantias a prestar pelo Reino de Espanha – art. 13.º da Lei 65/2003, de 23-08.

Neste segmento da oposição apela o requerido à aplicação do preceituado na al. b) do art. 13 da Lei 65/2003, de 23-08, pois tem nacionalidade Portuguesa e reside em Portugal, razão pela qual o Estado de emissão deverá prestar, o que ainda não fez, a garantia de que o requerido, após ser ouvido, será devolvido ao Estado Português, dependendo a decisão de entrega da prestação dessa garantia.

Pugna pela recusa de execução do MDE ou pela sua suspensão temporária nos termos supramencionados.

Junta requerimento probatório.


*

Pela Exma. Procuradora-Geral Adjunta foi apresentada resposta onde, após rebater os fundamentos invocados pelo requerido, em termos que adiante melhor se explicitarão, conclui como no requerimento inicial, pugnando pelo cumprimento do MDE remetido pelas Justiças do Reino de Espanha dentro dos prazos considerados nos arts. 29.º e 30.º da Lei 65/2003, de 23-08.

*

Por despacho de 02-04-2024 foi mantida a prisão preventiva do requerido e foi apreciado o requerimento de prova, tendo sido parcialmente indeferido.

*

Foi designada data para realização da audiência e colhidos os vistos.

Procedeu-se à realização de audiência para produção de prova autorizada de entre a apresentada na oposição e produção de alegações orais nos termos do art. 21.º, n.º 5, da Lei 65/2003, de 23-08, diploma a que nos referiremos doravante na falta de outra indicação.


*

O Tribunal da Relação do Porto é o competente para o processo de execução do presente Mandado de Detenção Europeu, nos termos do art. 15.º.

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O Ministério Público tem legitimidade para requerer a execução do presente MDE, nos termos do art. 16.º, n.º1.

*

Nada obsta ao conhecimento do mérito, cumprindo neste momento apreciar e decidir nos termos do art. 22.º, n.º 1.

*

Apreciando.

A. Os factos

Com interesse para a decisão a proferir, com base no teor do mandado de detenção europeu emitido, nos documentos juntos aos autos, nas declarações do requerido consignadas no respectivo auto de audição e na inquirição em sede de audiência das testemunhas FF e GG, apresentadas com a oposição, respectivamente amigo e filha do requerido, merecedoras de credibilidade em face da razão de ciências quanto aos factos sobre os quais depuseram e da forma clara, sincera e coerente entre si como o fizeram, consideram-se assentes os seguintes factos:

1.º Pelo Senhor Juiz de Direito do Tribunal de primeira instância e instrução 1 de Sant Boi de Llobregat, Espanha, no P. n.º DP 187-2021 foi emitido, em 04-03-2024, para efeitos de procedimento criminal, um Mandado de Detenção Europeu (MDE), inserido no Sistema SIS II, com o n.º 0005.0210018072791A000000001.01, tendo por referência despacho de 27-02-2024 da mesma entidade, relativo ao cidadão de nacionalidade portuguesa com a seguinte identidade: AA, casado, nascido a ../../1977, português, titular do Cartão do Cidadão nº ...25 ..., válido até 06-05-2029, filho de BB e de CC, residente na Urbanização ...., ... Ilhavo;

2.º O referido despacho respeita a investigação do requerido como participante em organização criminosa e autor material de crime de branqueamento de capitais, p. e p. pelos arts. 301.º, 302.º e 570.º, do Código Penal Espanhol, com uma moldura penal máxima aplicável de 12 anos de prisão;

3.º  Constam da al. e) do formulário do MDE as seguintes indicações (transcrição entre parêntesis):

«Descrição das circunstâncias em que a(s) infracção(ões) foi/foram cometida(s), incluindo momento (a data e a hora), o local e o grau de participação da pessoa procurada na infracção/nas infracções:

No dia 18 de dezembro de 2018, o órgão de policia Mossas d'Esquadra de Sant Boi de Llobrega recebeu uma chamada telefónica da empresa A..., S.L. informando que, enquanto um dos seus trabalhadores, o Sr. DD, colocava um carregamento de folhas Dina A4 dentro do contentor de um camião, uma das caixas caiu no chão, se abriu e, no seu interior, foram encontradas duas embalagens de folhas e 6 embalagens retangulares revestidas com plástico preto com pó branco no seu interior, que os fez suspeitar que se tratava de alguma substância estupefaciente.

Quando o Órgão Instrutor chegou à zona da empresa, encontrou, no interior do contentor ...95, que entrou pelo Porto de Barcelona, sendo o que estava a ser descarregado, um total de 1.410 embalagens retangulares revestidas com plástico de diferentes cores, as quais, após pesagem e verificação inicial com o teste de orientação para a deteção de substâncias estupefacientes, deram resultado positivo para cocaína, perfazendo um total de 1.413,13 kg, que tem um valor no mercado superior a 89.000.000 euros através da sua venda em gramas (questão ratificada pelo relatório do Instituto Nacional de Toxicologia constante de fs 788 e seguintes)

A investigação dos factos anteriores foi objeto de outro processo de inquérito (675/2018), instruído por este Juízo e que há muito passou à fase de julgamento. De facto, é de notar que os factos já foram julgados e que foi proferida a sentença nº 173/2023 da Secção 7ª do Tribunal Provincial de Barcelona, que condenou uma série de pessoas (algumas das quais também são investigadas neste processo) na qualidade de autores de crimes de tráfico de drogas, praticados no âmbito de uma organização criminosa.

Porém, como resultado das investigações realizadas no processo de inquérito 675/2018, surgiram, como os ramos de uma árvore, indícios de outros crimes. E assim, no âmbito de uma diligência de investigação realizada no referido processo, foi apreendido um telemóvel do principal dirigente da organização (o Sr. EE, que de facto foi condenado pelo Tribunal Provincial de Barcelona a dezasseis anos de prisão pelos factos acima mencionados). Da informação contida nesse telemóvel, surgiram fortes indícios de que, para além da rede de organização criminosa dedicada ao tráfico de drogas, que já foi julgada, existia outra destinada ao branqueamento dos capitais obtidos com o eferido tráfico de drogas.

As ações realizadas pela organização criminosa descoberta para branquear os capitais supostamente provenientes do tráfico de drogas seriam diversas, desde a compra e venda de bens imobiliários até ao envio de grandes quantidades de dinheiro, camuflado em determinado veículos, de Espanha para Portugal e, a partir daí, mesmo através de transferências bancárias após o depósito do dinheiro, para países como a Colômbia ou a Venezuela, bem como outras operações como a constituição de sociedades de fachada.

O que precede trata-se de um breve resumo dos factos, uma vez que não é objetivo do presente despacho entrar nos pormenores de uma investigação que poderia ocupar milhares de páginas, mas sim identificar sucintamente os factos em investigação para que, depois de os relacionar com a pessoa arguida, possam justificar adequadamente os fundamentos, na minha opinião, da sua prisão preventiva.

Assim, em relação ao Sr. AA, existem indícios suficientes de que o mesmo teria participado no branqueamento de capitais provenientes do tráfico de drogas, num valor total de até 3.184.471 euros. Este dinheiro teria sido recolhido tanto no nosso país como em Portugal, sendo depositado posteriormente no sistema financeiro do país português, de forma fraccionada, através da utilização de dezenas de contas bancárias de diferentes pessoas. Toda esta operação teria sido realizada sob as instruções de EE, líder da organização investigada, em que o Sr. Da AA teria a alcunha ou pseudónimos de “...”.

Para chegar às informações referidas no parágrafo acima, os agentes encarregados da investigação realizaram inúmeras diligências, como as que permitiram relacionar o Sr. AA com o pseudónimo “...”, através da apuração do titular do telemóvel para o qual foram dirigidas as mensagens enviadas a ... a partir do telemóvel sob investigação do Sr. EE, ou como os rastreios exaustivos de contas bancárias, a partir dos quais se deduz uma função preponderante do Sr. AA na execução das operações de branqueamento de capitais.»

e

«Natureza e qualificação jurídica da(s) infracção(ões) e disposição legal/código aplicável:

Art. 301 do Código Penal espanhol: 1. Quem adquirir, possuir, utilizar, converter ou transmitir bens, sabendo que estes têm a sua origem numa atividade criminosa, praticada por si próprio ou por um terceiro, ou realizar qualquer outro ato para ocultar ou encobrir a sua origem Ilícita, ou para ajudar a pessoa que tenha participado na infração ou infrações a fim de evitar as consequências legais dos seus atos, será punido com pena de prisão de seis meses a seis anos e multa de até três vezes o valor dos bens. Nestes casos, os Juízes ou Tribunais, considerando a gravidade do facto e as circunstâncias pessoais do criminoso, poderão também impor-lhe a pena de inabilitação especial para o exercício da sua profissão ou indústria por um período de tempo de um a três anos, e ordenar a medida de encerramento temporário ou definitivo do estabelecimento ou instalações. Se o encerramento for temporário, a sua duração não poderá exceder o período de tempo de cinco anos. A pena será aplicada na sua metade superior quando os bens tenham a sua origem em qualquer dos crimes relacionados com o tráfico de drogas, estupefacientes ou substâncias psicotrópicas descritos nos artigos 368 a 372 deste Código. Nestes casos, aplicar-se-ão as disposições contidas no artigo 374 deste Código. A pena também será aplicada na sua metade superior quando os bens tenham a sua origem em qualquer dos crimes referidos no título VII bis, no capítulo V do título VIII, na secção 4a do capítulo XI do título XIII, no título XV bis, no capítulo I do título XVI ou nos capítulos V, VI, VII, VIII, IX e X do título XIX. 2. Com as mesmas penas será sancionado de acordo com os casos, a ocultação ou encobrimento da verdadeira natureza, origem, localização, destino, movimentação ou direitos sobre os bens ou propriedade dos mesmos, ciente de que provêm de algum dos crimes referidos no número anterior ou através de um ato de participação nos mesmos. 3. Se os factos forem realizados com imprudência grave, a pena será de prisão de seis meses a dois anos e multa de até três vezes o seu valor. 4. O culpado também será punido mesmo que o crime do qual provêm os bens, ou os atos punidos nos números anteriores, tenham sido praticados, total ou parcialmente, no estrangeiro. 5. Se o culpado tiver obtido ganhos, estes serão confiscados de acordo com as regras do artigo 127 deste Código. Art. 302 do Código Penal espanhol: 1. Nos casos previstos no artigo anterior, serão impostas as penas privativas de liberdade na sua metade superior às pessoas pertencentes a uma organização dedicada às finalidades Indicadas nos mesmos, e a pena superior em grau aos chefes, administradores ou encarregados das referidas organizações. A pena também será aplicada na sua metade superior a quem, sendo sujeito obrigado nos termos da regulamentação de prevenção do branqueamento de capitais e do financiamento do terrorismo, pratique qualquer das condutas descritas no artigo 301 no exercício da sua atividade profissional. 2. Em tais casos, quando de acordo com o disposto no artigo 31 bis for responsável uma pessoa coletiva, ser-Ihe-ão impostas as penas seguintes: a) Multa de dois a cinco anos se o crime praticado pela pessoa singular tiver prevista uma pena de prisão superior a cinco anos. b) Multa de seis meses a dois anos nos restantes casos. Em conformidade com as regras estabelecidas no artigo 66 bis, os Juízes e Tribunais também podem impor as penas que constam das alíneas b) a g) do número 7 do artigo 33. Artigo 570 bis do Código Penal espanhol: 1. Quem promover, constituir, organizar, coordenar ou dirigir uma organização criminosa será punido com pena de prisão de quatro a oito anos se esta tiver como finalidade ou objeto a prática de crimes graves, e com a pena de prisão de três a seis anos nos restantes casos; e quem participar ativamente na organização, fizer parte dela ou cooperar economicamente ou de qualquer outra forma com a mesma será punido com penas de prisão de dois a cinco anos se tiver como finalidade a prática de crimes graves, e com a pena de prisão de um a três anos nos restantes casos. Para efeitos deste Código, entende-se que organização criminosa é um grupo formado por mais de duas pessoas, com carácter estável ou por um período de tempo indefinido e que, de forma concertada e coordenada, partilham diversas tarefas ou funções com a finalidade de praticar crimes. 2. As penas previstas no número anterior serão impostas na sua metade superior quando a organização: a) estiver formada por um elevado número de pessoas. b) dispuser de armas ou instrumentos perigosos. c) dispuser de meios tecnológicos avançados de comunicação ou transporte que, devido às suas características, sejam especialmente aptos para facilitar a execução de crimes ou a impunidade dos culpados.

Se existirem duas ou mais das referidas circunstâncias, serão impostas as penas de grau superior. 3. As penas previstas neste artigo serão impostas na sua metade superior se os crimes forem contra a vida ou a integridade das pessoas, a liberdade, a liberdade e a autodeterminação sexual ou o tráfico de seres humanos

4.º -  Ainda na mesma al. e) do formulário do MDE, no seu ponto I., onde se apresenta uma lista de infracções puníveis no Estado-Membro de emissão com pena ou medida de segurança privativas de liberdade de duração máxima não inferior a 3 anos, vêm assinaladas as opções “participação numa organização criminosa” e “branqueamento dos produtos do crime”;

5.º - Os crimes de participação numa organização criminosa e de branqueamento dos produtos do crime encontram-se previstos no art. 2.º, n.º 2, als. a) e i) da Lei 65/2003, de 23-08, não se mostrando necessária, pois, a verificação da dupla incriminação.

6.º - Não obstante, em face da Lei Portuguesa, a factualidade descrita é punível como crime de associação criminosa, p. e p. pelo art. 299.º do CPenal, e de branqueamento, p. e p. pelo art. 368.º_A do CPenal, puníveis com pena de prisão até 5 (cinco) anos e até 12 (doze) anos, respectivamente, sem prejuízo de ainda poderem sofrer agravação;

7.º - O requerido foi detido por elementos da Polícia Judiciária a 06-03-2024 e presente ao Tribunal da Relação do Porto a 07-03-2024, data em que foi ouvido e ficou sujeito à medida de coacção de prisão preventiva;

8.º - O requerido não consentiu na sua entrega em cumprimento do presente MDE e não renunciou ao princípio da especialidade;

9.º - O requerido, até ser detido, explorava um quiosque/tabacaria, o que fazia há mais de 14 anos, sendo estimado pelos clientes do estabelecimento;

10.º - É casado com cidadã nascida na Venezuela, detentora de nacionalidade venezuelana e portuguesa;

11.º -  Tem duas filhas de 19 e 14 anos de idade, tendo a primeira abandonado os estudos desde a detenção do pai para ajudar a mãe na exploração do quiosque;

12.º -  A sua família próxima vive em Portugal;

13.º - Não tem qualquer ligação familiar ou profissional ao Reino de Espanha;

14.º - Do seu certificado de registo criminal nada consta.

O Tribunal entende que não ficou demonstrado que o requerido não conhece minimamente a língua espanhola.

Este facto é dado como não provado por não ter sido realizada a respectiva demonstração, sendo certo que tendo a mulher do requerido nacionalidade venezuelana e tendo vindo para Portugal quando jovem para estudar, ditam as regras da experiência que, não obstante as especificidades do espanhol venezuelano, com muita probabilidade algum conhecimento terá passado ao requerido.

B. O direito

O regime jurídico do mandado de detenção europeu (MDE) foi introduzido na ordem jurídica nacional, em cumprimento da Decisão Quadro n.º 2002/584/JAI[1], do Conselho, de 13-06, através da Lei 65/2003[2], de 23-08.

O MDE é um procedimento judicial transfronteiriço simplificado, válido para os países membros da União Europeia, com vista à detenção e entrega de cidadãos para efeitos de instauração de procedimento criminal ou para cumprimento de pena ou medida de segurança privativas da liberdade.

Esse escopo mostra-se previsto no art. 1.º, n.º 1, da Lei 65/2003, de 23-08.

E na base da sua execução está o princípio do reconhecimento mútuo, a conformidade à Lei 65/2003, de 23-08, e à Decisão Quadro n.º 2002/584/JAI, do Conselho de 13-06, conforme se estabelece no n.º 2 do art. 1.º da referida lei.

O princípio do reconhecimento mútuo «é fundado na premissa de que os estados membros confiam mutuamente na qualidade dos seus procedimentos penais nacionais, facilitando, justificando mesmo, uma cooperação alargada no combate ao crime que adquiriu uma dimensão nova»[3], cumprimento «[o] objectivo que a União fixou de se tornar um espaço de liberdade, de segurança e de justiça[4]».

Tal princípio assenta em noções de equivalência e de confiança mútua nos sistemas jurídicos dos Estados-Membros da União Europeia, que leva a que o Estado que recebe um MDE (Estado de execução) se encontre obrigado a cumprir a pretensão subjacente ao MDE emitido por outro Estado-Membro (Estado de emissão), desde que o mesmo reúna os requisitos formais previstos na lei, sujeito a controlo pela autoridade judiciária de execução, só podendo ser negado em caso de verificação de causas previstas para não execução (obrigatórias ou facultativas) ou de não prestação de garantias quando exigidas ou pedidas (quando a garantia não é obrigatória), sendo tais regras comuns a todos os Estados-Membros.

O estabelecimento de causas facultativas de não execução do MDE é o resultado dos compromissos assumidos no âmbito da União Europeia e dos consensos encontrados para prevalência da soberania dos Estados no quadro de um espaço único, equilibrando essa realidade com a soberania de cada Estado.

Vejamos, então, em face da factualidade assente e da oposição apresentada se o presente MDE pode ou deve, ou não, ser executado.

1.ª questão - Conteúdo e forma do mandado de detenção

Neste segmento da oposição, o requerido invoca que o MDE deve conter a descrição das circunstâncias onde foi cometido o ilícito penal, o tempo e o lugar da sua prática, mas o mandado emitido não possuiu nem as circunstâncias da prática do ilícito, nem o tempo, nem mesmo o lugar da prática do mesmo.

Em seu entender, no referido mandado são invocados factos vagos de que o «requerido fazia parte, como autor, duma associação criminosa, mas curiosamente, ou não, não se vislumbra, em concreto qualquer ato, qualquer data» que lhe possa ser imputada.

Acrescenta que se diz também no mandado que o mesmo branqueava dinheiro para a associação, utilizando para tal veículos automóveis, mas não se menciona se o requerido foi visto na posse de qualquer montante ou a transportar dinheiro de ou para Espanha, nem quando, onde e em que datas.

Concluiu que, «não sendo elucidadas tais circunstâncias, estamos em crer que o mandado em causa padece de nulidade, e nos termos da Lei 65/2003 não poderá, por aqui, ser admitido.»

Mais invoca que «foi violado o disposto no art.º 2° e 3° da Lei nº. 65/2003, de 23 de Agosto, da mesma forma, e por tais factos, foi violado o disposto no art. 18º, 20º, 27º e 32º da Constituição da República Portuguesa, temos que o MDE, para a lei nacional, é nulo, e como tal não será passível de ser executado, sob pena, como se referiu, da violação das mais elementares regras de Direito Português.

(…)

A não ser assim, e a que se considerar que o MDE não é nulo, sempre se dirá, que a falta de tais requisitos, importa uma irregularidade insanável, nos termos do art. 123.º do CPP, aplicável subsidiariamente por força do art. 34.º da Lei 65/2003, de 23-08, que cumpre ao ora recorrente tomar sobre ela a presente posição, o que faz da forma e no tempo processual dado para o efeito.»

Pela Exma. Procuradora-Geral Adjunta, na resposta que apresentou, foi argumentado que «o requerido esteve presente na diligência, acompanhado do seu Exº Mandatário, pelo que, a aplicar-se a norma indicada, sempre teria que invocar a referida irregularidade nesse momento, o que não fez» e que «[i]ndependentemente disso, a verdade é que nenhuma irregularidade ou nulidade se apresenta, uma vez que, o regime das nulidades é fechado, e o alegado, não integra nenhuma das situações clausuladas nos arts 118º a 120º do CPP.»

O problema que o requerido suscita reconduz-se, no essencial, à falta de descrição factual no MDE do que lhe é imputado, realçando a falta de indicação de datas e actos concretos que lhe sejam imputados.

Porém, sem razão.

Resulta do consignado no 3.º ponto de facto provado que o Senhor Juiz de Direito que proferiu o despacho de 27-02-2024, subjacente ao MDE, entendeu que este se destina a procedimento criminal e eventual prisão preventiva do requerido, pela prática dos crimes de participação numa organização criminosa e de branqueamento dos produtos do crime, puníveis com pena de prisão até 12 anos.

Estão relatados acontecimentos relacionados com a origem dos produtos do crime que se situam no ano de 2018 e vem resumidamente descrito que o requerido integrava uma associação criminosa destinada ao branqueamento dos capitais provenientes do tráfico de estupefacientes, com acções como «a compra e venda de bens imobiliários até ao envio de grandes quantidades de dinheiro, camuflado em determinado veículos, de Espanha para Portugal e, a partir daí, mesmo através de transferências bancárias após o depósito do dinheiro, para países como a Colômbia ou a Venezuela, bem como outras operações como a constituição de sociedades de fachada», num total de € 3 184 471 branqueados.

Mais se refere que o requerido, conhecido dentro da organização como “el Cabo” teve um papel preponderante na execução das operações de branqueamento que passaram pela recolha de dinheiro em Espanha e em Portugal, o seu depósito em Portugal de forma fraccionada, dinheiro que depois seria transferido para a Colômbia ou a Venezuela.

Esta informação é a suficiente para aquilatar do enquadramento formal dos factos no âmbito dos crimes elencados no art. 2.º da Lei 65/2003, de 23-08, da participação do arguido e da localização temporal e espacial dos mesmos, tendo presente que não compete ao Estado de execução controlar a suficiência da prova recolhida pelo Estado de emissão, pois o processo não corre em Portugal.

Por outro lado, estando em causa MDE para efeitos de procedimento criminal é natural que o quadro factual seja menos minucioso do que aquele que vem descrito por referência a uma sentença condenatória transitada em julgado para efeitos de cumprimento de pena.

Em apoio desta posição, decidiu-se no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 16-02-2006[5] que «[a] execução de um mandado de detenção europeu não se confunde com o julgamento de mérito da questão de facto e de direito que lhe subjaz, julgamento esse a ter lugar, se for o caso, perante a jurisdição e sob a responsabilidade do Estado emissor, restando neste âmbito, ao Estado da execução, indagar da respectiva regularidade formal e dar-lhe execução, agindo nessa tarefa com base no princípio do reconhecimento mútuo (Lei 65/03, de 23-08, e Decisão Quadro n.º 2002/584/JAI, do Conselho, de 13-06).»

E também se afirmou no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 25-01-2007[6], que «[a] circunstância da pessoa procurada entender que não praticou factos que determinam responsabilidade criminal é irrelevante para o Estado português, que só tem de conhecer da conformidade legal do próprio mandado no sentido de o poder executar, pois a decisão judiciária é do Estado que o emitiu e é perante ele que aquela tem de exercer os direitos de defesa relativos ao procedimento criminal em curso».

Acresce que a informação prestada permite ainda verificar outros factores relevantes para efeitos de recusa, como a amnistia, o princípio ne bis in idem, a prescrição, o princípio da especialidade ou o princípio da territorialidade, sendo certo que o Estado de execução pode sempre solicitar informação adicional que entenda necessária à decisão a proferir, nos termos do art. 22.º, n.º 2, da Lei 65/2003, de 23-08, o que vai ao encontro do disposto no art. 123.º, n.º 2, do CPPenal.

Por outro lado, a ausência de requisitos de conteúdo e de forma do MDE, per si, previstos no art. 3.º, não são causa de recusa obrigatória ou facultativa, conforme se comprova pela leitura dos arts. 11.º, 12.º e 12.º-A, antes constituindo uma irregularidade sanável, nos termos do art. 123.º do CPPenal, aplicável subsidiariamente por força do art. 34.º da Lei 65/2003, de 23-08.[7]

Ora, sendo a regularidade formal e substancial do MDE, nos termos do art. 3.º, pressuposto da legalidade e validade da detenção com base no MDE[8], e tendo sido validada a detenção do requerido aquando da sua audição a 07-03-2024, diligência onde o mesmo esteve presente e acompanhado pelo seu Ilustre Mandatário, havia o requerido de suscitar antes do encerramento dessa diligência a irregularidade do MDE, em conformidade com o disposto no art. 123.º, n.º 1, do CPPenal, o que não fez, permitindo a sanação de eventual irregularidade de que podia padecer o MDE em apreço.

É verdade que, como se referiu, a autoridade de execução pode determinar a prestação de mais informações ao abrigo do disposto do art. 22.º, n.º 2, da Lei 65/2003, de 23-08, o que vai ao encontro do disposto no art. 123.º, n.º 2, do CPPenal.

E tal possibilidade pode ser importante para efeito de apreciação de factores relevantes para efeitos de recusa nos termos supramencionados, mas só se o Tribunal assim o entender, e não por requerimento do requerido.

Pelo exposto, e uma vez que não se detecta qualquer irregularidade no conteúdo do MDE, nem foi arguida qualquer irregularidade aquando da audição do arguido em 07-03-2024 e previamente à validação da sua detenção, mostrando-se extemporânea sua invocação em momento posterior, improcede esta parcela da oposição.

2.ª questão - Dos motivos para a não execução obrigatória do mandado

O requerido invoca neste segmento da sua oposição a al. a) do art. 11.º da Lei 65/2003, de 23-08, segundo o qual a execução do mandando de detenção europeu será recusada se a infracção que motiva a emissão do mandado de detenção europeu tiver sido amnistiada em Portugal, desde que os tribunais portugueses sejam competentes para o conhecimento da infracção.

Segundo o requerido, consta do MDE, ainda que nulo, que se indicia a prática de um crime de associação criminosa e um crime de branqueamento, mas, como nenhuma prova foi feita, pode estar em causa um outro tipo de crime, como fraude fiscal ou outro, que poderá estar amnistiado por aplicação da Lei 38-A/2023, devendo ser recusado o mandado enquanto o Reino de Espanha não fornecer a informação necessária e elucidativa do crime e circunstâncias imputados ao requerido.

Pela Exma. Procuradora-Geral Adjunta, na resposta que apresentou, foi rebatido o argumento invocado, explicando que «[o] requerido igualmente considera que, fazendo alguma futurologia – dizemos nós - , os crimes indiciados podem ser outros que não os que são indicados no MDE e no requerimento de entrada em juízo – branqueamento de capitais e associação criminosa – pelo que podem estar amnistiados nos termos do disposto do art. 38-A/23, em conjugação com o disposto no art. 11º da L. nº 65/2003 de 23/08.

(…)

Em primeiro lugar, o processo encontra-se em investigação no tribunal barcelonês, e não em Portugal, tanto mais que de momento não corre nenhum inquérito no nosso país de que se tenha conhecimento, pelo que, a referência a uma eventual amnistia, aplicável, não seria a nossa, como aliás decorre do regime legal.

(…)

Em segundo lugar, o facto de o requerido ter mais de 30 anos é causa excludente da aplicação da lei de Amnistia, mesmo que se pudesse considerar a sua aplicação desde logo, uma vez que nasceu em ../../1977, como se pode verificar da sua identificação em sede de audição, nos termos do disposto no art. 2º da lei em causa.

(…)

Pelo que, também por aqui não se verificam os pressupostos de recusa obrigatória nos termos do disposto no art. 11º da L. nº 65/2003 de 23/08.»

Também neste segmento não reconhecemos razão ao requerido.

Com efeito, determina o invocado art. 11.º, al. a) da Lei 65/2003, de 23-08, que a execução do mandado de detenção europeu é recusada quando: a) A infração que motiva a emissão do mandado de detenção europeu tiver sido amnistiada em Portugal, desde que os tribunais portugueses sejam competentes para o conhecimento da infração.

Não há dúvida sobre o tipo de infracções que sustentou a emissão do MDE, aí bem identificadas, conforme ficou consignado na matéria de facto provada, as quais correspondem em Portugal aos crimes de associação criminosa, p. e p. pelo art. 299.º do CPenal, e branqueamento, p. e p. pelo art. 268.º-A do CPenal.

Assim, independentemente da questão da competência dos tribunais portugueses para o conhecimento das infracções e da idade do requerido, nascido em ../../1977, logo com idade [muito] superior a 30 anos em Dezembro de 2018, data referência para a prática dos factos, a verdade é os referidos crimes mostram-se excluídos da amnistia estabelecida pela Lei 38-A/2023, de 02-08, como resulta evidente da leitura do seu art. 7.º, n.º 1, als. d)-iii) e e)-iii).

Assim, não se verificando o pressuposto amnistia das infracções em Portugal falece igualmente a presente pretensão do requerido.

3.ª questãoDos motivos da não execução facultativa do mandado, invocando o disposto no art. 12.º da Lei 65/2003, de 23-08.

Neste capítulo da oposição apresentada o requerido apresenta vários argumentos.

Por um lado, alega que dos factos por que vem indiciado afere-se que a eventual prática do ilícito ocorreu em Portugal, ali se referindo que recolheu o dinheiro em Espanha e Portugal e depois, utilizando um grande número de contas bancárias portuguesas, fez pequenos depósitos até que todo o dinheiro estivesse no sistema.

Mais acrescenta que, «conforme consta a breve indiciação, as contas bancárias pessoais do ora requerido situavam-se em Portugal, nas instituições bancárias portuguesas, pelo que caso o ora recorrente tenha praticado algum ilícito criminal, o que não se admite, o mesmo ocorreu em Portugal e como tal deverá ser aplicada a lei portuguesa e competente os Tribunais Portugueses», sendo certo que «determina o disposto no art. 7º do CP, aplicável por força da lei aos presentes autos, (Art. 34º da lei 65/2003), que o facto considera-se praticado tanto no lugar em que, total ou parcialmente, e sob qualquer forma de comparticipação, o agente atuou, ou, no caso de omissão, devia ter atuado, como naquele em que o resultado típico ou o resultado não compreendido no tipo de crime se tiver produzido» e que, por fim, «determina o disposto no art. 3 do CP que o facto considera-se praticado no momento em que o agente atuou ou, no caso de omissão, deveria ter atuado, independentemente do momento em que o resultado típico se tenha produzido.»

Concluiu que, ao abrigo do disposto no art. 12.º, n.º 1, al. h)-i, da Lei 65/2003, de 23-08, deverá ser recusada a entrega, sob pena de violação do art. 4.º do CPenal e do art. 5.º da Constituição da República Portuguesa.

A Exma. Procuradora-Geral Adjunta respondeu nos seguintes termos:

«Pretende ainda o requerido discutir o local da prática dos factos para considerar que o crime terá sido cometido em território português, para defender uma causa de recusa de cumprimento do MDE, prevista na alínea h) do art. 12º da L. nº 65/2003.

(…)

Contudo, estamos ainda no âmbito de procedimento criminal, de inquérito, em que se fixou, de acordo com a lei portuguesa, a competência territorial, com indícios de que os crimes tenham sido cometidos em Espanha, não se verificando, pois, essa causa de recusa facultativa. No mesmo sentido, damos nota do Acórdão do TRE, de 14/03/2023, que, e citamos: […]” É certo que a publicitação e comercialização pela arguida, através da loja on line, das referidas substâncias (actuação que se enquadra nas modalidades de “oferecer”, pôr “à venda” e “vender”) com alta probabilidade ocorreu em território português.

Só que, a entrega das mesmas ocorreu na Alemanha, onde efectivamente se constatou terem as substâncias características narcóticas e psicotrópicas proibidas e em todas as situações a clientes que neste país se encontravam, estando em causa um número significativamente elevado de encomendas (1169) e, previsivelmente, de clientes, pelo que a lesão dos bens jurídicos protegidos pela norma ocorreu com uma muito maior relevância no Estado emissor.

Acresce que, mostrando-se que os crimes se encontram já a ser investigados na Alemanha, este é o país que se apresenta em melhores condições para conhecer de toda a actividade delituosa e proceder ao julgamento dos factos no seu conjunto, não se podendo olvidar também que outros indivíduos actuavam em colaboração com a requerida, correndo até contra um deles processo autónomo.”[…] »

Vejamos.

O recurso a causas facultativas de recusa de execução de MDE deve ser cauteloso e tem de estar suportado em «motivos ponderosos, ligados fundamentalmente às razões que subjazem, por um lado, ao interesse do Estado que solicita a entrega do cidadão de outro país para efeitos de procedimento criminal ou para cumprimento de pena ou de medida de segurança privativa da liberdade, e, por outro, ao interesse do Estado a quem o pedido é dirigido em consentir ou não na entrega de um nacional seu.»[9]

No caso dos autos, não há informação de que em Portugal tenha sido instaurado qualquer inquérito com referência aos factos indiciados.

Por outro lado, resulta do MDE que existe um processo, já remetido para julgamento, relacionado com os factos indiciados, respeitante ao cometimento de crimes de tráfico de estupefacientes praticados no âmbito de organização criminosa e que estarão na origem dos proventos cujo branqueamento se analisa no inquérito onde se pretender instaurar procedimento criminal contra o requerido.

Não é irrelevante na decisão a tomar que toda a investigação do anterior processo tenha decorrido junto da mesma autoridade judicial espanhola, estando a mesma agora a desenvolver nova investigação também com base em elementos probatórios já apurados naquele primeiro processo, fazendo todo o sentido que sejam as autoridades espanholas a prosseguir com a investigação, mesmo em relação ao requerido, pois detêm o conhecimento global de toda a actividade criminosa.

Acresce que, embora o requerido possa ter aberto contas em Portugal e através delas realizado transferências bancárias, a verdade é que o destino definitivo desses montantes se situa fora das nossas fronteiros, designadamente Colômbia e Venezuela, mostrando-se as autoridades espanholas muito mais apetrechadas, dado o estado das investigações, para levar a cabo o procedimento criminal contra o requerido e havendo todo o interesse numa tramitação conjunta dos vários elementos pertencentes à indiciada associação criminosa, que, com a eventual separação do requerido, pessoa com função preponderante na execução das operações de branqueamento, como se refere no MDE, debilitaria a investigação e a realização da Justiça.

Em sentido idêntico, decidiu-se no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 09-02-2011[10] que «[n]ão basta, para o desencadeamento da recusa facultativa prevista na alínea h), ponto i) do art. 12.º da Lei n.º 65/2003, que alguns factos tenham sido praticados em território nacional, se o resultado típico desses factos foi produzido no país da emissão e se apenas lesou bens jurídicos com relevância para esse país (como é o caso de associação criminosa para fuga aos impostos desse país e branqueamento de capitais, também com ocorrência nesse país), não tendo Portugal interesse em perseguir criminalmente esses factos», acrescentando-se ainda que «quando se trate de casos de participação numa organização criminosa e de branqueamento de produtos do crime, previstos pela lei do Estado da emissão e puníveis com pena ou medida de segurança privativa de liberdade de duração máxima não inferior a 3 anos, o Estado da execução concede a extradição ou entrega, sem verificar se o mesmo tipo de infracções é punido no seu próprio Estado, sendo certo que, quanto a cidadãos nacionais, desapareceu da lei a regra da sua não entrega ou da sua não extradição.»
Também aceitando a mesma posição, veja-se o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 23-08-2022, relatado por Leonor Furtado no âmbito do Proc. n.º 128/22.6YREVR.S1, acessível in www.dgsi.pt.

Pelos motivos expostos, entendemos, pois, não dever proceder a causa de recusa facultativa prevista no art. 12.º, n.º 1, al. h)-i, da Lei 65/2003, de 23-08.

Por outro lado, ainda neste segmento, o recorrente apela à recusa facultativa de execução do MDE com base na previsão da al. g) do n.º 1 do art. 12.º da Lei 65/2003, de 23-08, de acordo com o qual tal é possível quando a pessoa procurada se encontrar em território nacional, tiver nacionalidade portuguesa ou residir em Portugal, desde que o mandado de detenção tenha sido emitido para cumprimento de uma pena ou medida de segurança e o Estado Português se comprometa a executar aquela pena ou medida de segurança, de acordo com a lei portuguesa.

E apela à aplicação desta causa de recusa facultativa porque, na sua perspectiva, o mandado emitido não contém «informação clara e suficiente sobre se é pretendida a sua detenção e entrega às autoridades espanholas ou se é pretendida a sua detenção e eventual aplicação de medidas de coação, circunstância que importava apurar, por ser relevante para aferir da verificação da causa de recusa facultativa de execução do mandado, prevista na alínea g), do nº 1 do art. 12º da Lei nº 65/2003, de 23 de Agosto», mostrando-se o requerido totalmente integrado em termos pessoais e profissionais em Portugal.

Concluiu que a ligação do requerido a Portugal é demonstrativa das vantagens no cumprimento da pena ou medida de segurança/coacção no nosso país.

A Exma. Procuradora-Geral Adjunta argumentou nos seguintes termos:

«Invoca ainda o requerido que do MDE não resulta o que pretende o tribunal barcelonês.

(…)

Porém, é clara a sua pretensão: detenção, aplicação das medidas necessárias para impedir a fuga, e entrega, no momento oportuno, às autoridades espanholas.

(…)

Uma medida de coacção não é uma medida de segurança, nem um cumprimento de pena, e a exigência prevista na alínea c) do n.º 1 do artigo 3º da Lei 65/2003 mostra-se preenchida in casu, pois que, essa norma apenas demanda uma sentença com força executiva ou qualquer outra decisão com igual força, incluindo um mandado de detenção, como é o caso, que pode ter como finalidade a execução de uma pena ou viabilizar a efetivação ou a continuação do procedimento criminal, quando se entenda dever o indiciado aguardar detido os ulteriores termos do processo, como expressamente se menciona no mandado.

(…)

Diga-se, de resto, que sendo, como são, a execução dos MDE subordinada ao princípio do reconhecimento mútuo das decisões das autoridades judiciárias competentes dos Estados Membros da EU, não compete às autoridades judiciárias do Estado de execução sindicar o ordenamento jurídico dos Estados de Emissão, nem questionar a veracidade das afirmações feitas pelas respetivas autoridades judiciárias quanto à executoriedade de qualquer daas suas decisões, salvo se e na medida em que se verifique alguma situação de recusa obrigatória ou mesmo facultativa do Mandado, tal como previstas nos artigos 11º, 12º e 12º-A da Lei n.º 65/2013.

(…)

O que, manifestamente não ocorre no caso em apreço, nem sequer por apelo à circunstância de o requerido ser cidadão português, residir e ter a sua vida pessoal e familiar organizada em Portugal, como vem alegado e não se discute, uma vez que essa condição apenas poderá ser motivo de recusa facultativa se e quando se considerar estarmos em presença de MDE para cumprimento de pena, o requerido manifestar expressamente o seu desejo de a cumprir em Portugal e, nessa sequência, o Ministério Público requeira ao Tribunal seja reconhecida e declarada a exequibilidade da correspondente sentença estrangeira e pena aplicada, nos termos das disposições conjugadas dos n.ºs 1, al. g) e 3 do artigo 12º e do artigo 31º da mesma Lei 65/2003.»

Concorda-se totalmente com a posição assumida pelo Ministério Público na resposta antecedente, tanto mais que a causa de recusa facultativa invocada depende de ter sido emitido MDE para efeito de cumprimento de pena ou de medida de segurança, o que significa que outro cenário, isto é, MDE para procedimento criminal, afasta de imediato a aplicação da faculdade prevista no art. 12.º, n.º 1, al. g), da Lei 65/2003, de 23-08[11].

Atente-se ainda que basta o MDE especificar que é para procedimento criminal, como resulta do apreciado nestes autos, ainda que se deixe antever a possibilidade de aplicação de prisão preventiva, «não sendo necessário indicar o concreto acto a realizar (interrogatório do arguido, aplicação de medida de coacção, etc.)», posto que como «se pretende que a pessoa procurada seja entregue para efeitos de procedimento criminal, já se sabe que é para ser submetida a actos próprios da investigação criminal que se não podem enumerar de antemão, embora decorrendo dentro de regras e princípios comuns aos Estados da União Europeia, destinados a tutelar eficazmente a defesa no âmbito do procedimento e a garantir direitos fundamentais nesse campo.»[12]

Como tal, improcede, igualmente, a apreciada pretensão do recorrido.

Por fim, no âmbito deste segmento da recusa facultativa, apela o requerido ao disposto no art. 12.º, n.º 1, al. e), da Lei 65/2003, de 23-08, argumentando que «determina tal dispositivo que a execução do mandado de detenção europeu pode ser recusada quando tiverem decorrido os prazos de prescrição do procedimento criminal ou da pena, de acordo com a lei portuguesa, desde que os tribunais portugueses sejam competentes para o conhecimento dos factos que motivam a emissão do mandado de detenção europeu», pelo que, «se o ora requerido, e o Estado executante, no caso o Estado Português, desconhece a data da prática dos factos, (violando claramente o disposto no art. 32º da CRP), não vislumbramos como poderá ser proferida a eventual decisão de execução do MDE, sem que seja analisada a prescrição.»

Concluiu que «deverá o presente MDE ser recusado, porquanto, seja possível que os factos, supostamente, imputados ao requerido estejam já prescritos.

(…)

Assim, e atento o disposto no art. 12º nº1 alínea e) da Lei 65/2003, conjugado com o disposto no art. 32º, art. 202º da CRP, e ainda o disposto no art. 119º do CP, deverá, em consequência, ser recusado a execução do MDE.»

Na sua resposta, a Exma. Procuradora-Geral Adjunta junto desta Relação do Porto argumenta do seguinte modo:

«Opõe-se ainda o requerido à execução do MDE considerando que pode estar prescrito o, ou os, crimes cometidos, supostamente imputados ao requerido; porém, não nos podemos esquecer que o cumprimento do MDE é por causa da existência de procedimento penal, por variados factos ocorridos ao longo do tempo, pelo menos desde 2018, com emissão de mandado de detenção em 27/02/2024 pelo tribunal espanhol, pelo que, mesmo perante a lei portuguesa, estes não podem estar prescritos, seja quanto à prática dos crimes seja quanto à perseguição penal.

(…)

Antes devendo decidir-se a execução do mandado e a entrega do requerido às autoridades judiciárias espanholas, sem prejuízo, naturalmente, de, considerando-se insuficientes as informações comunicadas pela Estado de Emissão para se decidir a entrega, nos termos do artigo 22º, n.º 2, da citada Lei n.º 65/2003, lhe serem solicitadas com urgência as informações em falta, entre as quais aquelas que o requerido indica na sua oposição, in fine.»

Mais uma vez, não reconhecemos razão ao requerido, pelas razões avançadas pelo Ministério Público na resposta apresentada.

O MDE, embora pudesse ser mais pormenorizado nesse aspecto, alude à factualidade em investigação contextualizando-a por referência ao ano de 2018, podendo haver factos anteriores e/ou posteriores a essa data que não se mostram localizados no tempo.

Porém, aquela referência ao ano de 2018, tendo em atenção o tipo de ilícitos penais em causa e os prazos de prescrição aplicáveis, não inferiores a dez anos (art. 118.º do CPenal), permite garantir com toda a segurança que não se mostra prescrito o respectivo procedimento criminal, sem necessidade de solicitar novos elementos.

4.ª questãoSuspensão temporária da entrega

Abandonando as causas de recusa de execução do MDE, o requerido aborda de seguida a possibilidade de suspensão temporária da entrega, invocando o disposto no art. 29.º, n.º 4, da Lei 65/2003, de 23-08.

Nesta parcela da sua oposição argumenta que «[a] fazer fé na pouca informação transmitida pelo MDE, resulta, claro, que se encontra a justiça espanhola a investigar um conjunto de crimes, altamente violentos, e acima de tudo, com alguma complexidade, (…) [s]endo que, a ser entregue, desde já, o ora requerido às autoridades espanholas, e sendo, a crer nos factos, o único português ali indiciado, entrando o mesmo no sistema prisional do Reino de Espanha, estará este, seguramente, desprotegido, e facilmente será este, até pela suposta importância que possui em tal organização, colocado em perigo,

(…)

Repare-se, que a fazer fé nos factos que lhe são imputados, temos que o ora requerido seria uma peça fundamental no branqueamento dos capitais, e como tal, existirá, a possibilidade séria, de que os restantes intervenientes, na referida associação, possam de alguma forma manietar, ou mesmo causar lesões irreversíveis na integridade física da pessoa, colocando em perigo de vida.

(…)

Ou, eventualmente, causar-lhe a morte.

(…)

É sabido, que tais associações, com as suas diversas ramificações, muitas delas no interior de todos os estabelecimento criminais, tendem a “obrigar”, com recurso a violência, qualquer recluso a não prestar quaisquer esclarecimentos, ou eventualmente a obrigar o mesmo a calar-se, manietando-o dessa forma,

(…)

Ora, a existência possível de vários grupos com o firme propósito de atentarem contra a sua vida,

(…)

Temor que as autoridades espanholas não possam garantir a defesa da sua integridade física e por isso o justo receio que seja eliminado fisicamente.

(…)

Os eventuais ajustes de contas ou atitudes de vingança por parte de tais associações do país, levam a que estes grupos organizados do crime infiltrem os seus membros nos estabelecimento prisionais com o estrito propósito de eliminarem os seus alvos in casu o requerido, e não, não é filme…

(…)

Até porque, pretendendo o ora requerido defender-se, em concreto, de tais acusações, ficará o mesmo com receio da sua vida, uma vez que facilmente, qualquer outro recluso pertencente ou não a tal associação, obrigará, a todo o custo, o ora requerido a calar-se.

(…)

Colocando o requerido, dessa forma, claramente, em perigo de vida.

(…)

Sendo certo, e isso não desconhecemos, que será sempre obrigação das autoridades espanholas garantir a segurança do cidadão português, contudo e como se verificou, de nada poderão estas fazer se o requerido, ali colocado, for agredido ou mesmo morto, atenta a complexa criminalidade envolvida, e ainda a gravidade e ramificações da mesma.

(…)

A sua entrada no sistema prisional espanhol, onde se encontram já presos possíveis membros da tal associação, é suscetível de constituir perigo objetivo para a sua vida pois,

(…)

Ainda que não se prove o seu envolvimento nos factos em investigação em Espanha (como está certo que não sucederá, por não poder suceder, por nada ter que ver com eles), algum(uns) dos reclusos associados a tais associações criminosas, poderá atentar contra a vida deste de forma a este não testemunhar sobre factos que possam condenar ou ajudar a condenar os membros de tal associação.

(…)

A não se conceder, desprezará, em absoluto, a decisão o real perigo de vida que o requerido correrá, caso tenha de aguardar pelo julgamento, no sistema prisional espanhol,

(…)

Perigo esse real e efetivo e para o qual uma vez mais cumpre alertar, até para que se não possa dizer, á posteriori, que de nada se sabia.

(…)

Ou que não foram alertadas as entidades competentes para o evitar.

(…)

Desta forma, e ao abrigo do disposto no art. 29º nº4 da Lei 65/2003, conjugado com o disposto no art. 24º nº1, art. 33º nº3 da CRP, conjugado com o disposto no art. 18º nº2 da Lei 144/99, conjugado com o disposto no art. 24º nº3 da Decisão-quadro do Conselho, de 13 de Junho de 2002 - 2002/584/JAI, e ainda art. 2º da Convenção dos Direitos do Homem, considera o ora requerido que a ser admitido a execução do MDE, deverá o mesmo ser temporariamente suspenso sob pena de poder causar a morte ao requerido, ou eventualmente causar danos físicos na sua saúde e integridade física irreparáveis.

(…)

Neste sentido, urge pois apelar a V. Excelência que esta é uma Decisão Judicial destinada a proteger a Vida Humana de um Cidadão e não uma Decisão Convencional».

A Exma. Procuradora-Geral Adjunta respondeu, considerando que «o que [o requerido] narra é uma informação genérica e lugar comum, que não constitui prova suficiente de que esses mesmos perigos sejam concretos e se verifiquem relativamente ao próprio.

(…)

O disposto no art. 29º, nº 4 do L. nº 65/2003, não se verifica, pois, de todo, já que não se verificam perigos humanitários graves, nem falta de acesso a cuidados médicos e medicamentosos num estabelecimento prisional do Reino de Espanha, que é pautado, como o nosso, por princípios humanistas e pendor ressocializador, com respeito pelos direitos humanos, perfeitamente integrado na comunidade europeia e dos valores por que todos nós nos norteamos.

(…)

Se entregue às autoridades espanholas, para fins de procedimento criminal e, ficar nesse período afastado de Portugal, onde se inseriu profissionalmente e está integrado familiarmente, mesmo interrompendo temporariamente o seu projeto de vida, não ofende os seus direitos fundamentais, antes é uma consequência normal de quem é “extraditado” para esse efeito, não se vendo que haja qualquer desproporção entre as suas condições de vida em Portugal por um lado e a importância do acto de cooperação aqui em causa por outro lado.»

Dispõe o art. 29.º, n.º 4, da Lei 65/2003, de 23-08, que a entrega pode ser temporariamente suspensa por motivos humanitários graves, nomeadamente por existirem motivos sérios para considerar que a entrega colocaria manifestamente em perigo a vida ou a saúde da pessoa procurada.

O princípio do reconhecimento mútuo com base no qual é executado o MDE, conforme prescreve o art. 2.º, n.º 2, da Lei 65/2003, de 23-08, impede em absoluto alegações de carácter genérico e depreciativo sobre o sistema prisional do Estado emissor como a apresentada pelo recorrente.

Como se referiu, o princípio do reconhecimento mútuo «é fundado na premissa de que os estados membros confiam mutuamente na qualidade dos seus procedimentos penais nacionais», aceitando o pressuposto de que a União Europeia se constitui como um espaço de liberdade, de segurança e de justiça.

Tendo presente o princípio fulcral da execução do MDE, o do reconhecimento mútuo, que impõe que tenhamos confiança nos sistemas penais dos Estados-Membros, e aceitando que no limite podem existir falhas de segurança nos estabelecimentos prisionais, teremos de admitir que em Portugal também possam ocorrer os mesmos fenómenos, pelo que o cenário invocado nunca poderia determinar a “suspensão” (até quando?) da entrega de requerido, posto que a sua permanência numa prisão em Portugal sempre poderia gerar os mesmos problemas.

O campo de aplicação do art. 29.º, n.º 4, da Lei 65/2003, de 23-08, há-de ser encontrado, por força do princípio do reconhecimento mútuo, em outras razões que não as falhas do sistema prisional dos Estados de emissão.

E essas razões, quanto a nós, centram-se em motivos graves de saúde que impedem a deslocação física do requerido, sob pena de se colocar em causa a sua saúde ou a vida.

Por outro lado, a previsão do referido preceito pressupõe que já esteja determinada a entrega, admitindo-se a prorrogação da sua efectivação fora dos prazos previstos nos números antecedentes nas condições excepcionalíssimas contempladas na norma.

O cenário apresentado pelo recorrente corresponderia, na prática a uma suspensão da entrega ad aeternum, posto que nunca se sentiria seguro numa prisão espanhola.

Em face do exposto, é de indeferir a pretensão do requerido por não ser causa de não execução da entrega, ainda não determinada, e por o cenário apresentado pelo recorrente, no pressuposto de que será determinada a entrega, não corresponder à previsão da norma (art. 29.º, n.º 4, da Lei 65/2003, de 23-08), mostrando-se contrário ao princípio do reconhecimento mútuo.

5.ª questãoDas condições psicológicas do requerido, invocando que se encontra num estado psicológico deveras grave, mesmo antes de ser emitido o MDE, pois atravessa uma situação económica difícil, de tal forma que, «mais do que uma vez, afirmou, perante a família e amigos, que qualquer dia colocaria um fim à sua vida, só não o tendo feito porquanto tinha duas filhas, e uma esposa, que verdadeiramente amava.

(…)

Com o encarceramento, e a violência do mesmo, e ainda com a possibilidade do mesmo ser extraditado para país distante da sua família, a verdade é que todo este estado psicológico/psiquiátrico se agravou desmesuradamente,

(…)

Aliás, já por diversas vezes, a sua esposa, ao telefone com o mesmo, o ouviu dizer que se acontecesse a sua extradição, nada mais o levaria a lutar pela vida, e consequentemente colocava um ponto final na mesma.»

O requerido apela, assim, à aplicação do disposto no art. 29.º, n.º 4, da Lei 65/2003, de 23-08, nos termos do qual a entrega pode ser temporariamente suspensa por motivos humanitários graves, nomeadamente por existirem motivos sérios para considerar que a entrega colocaria manifestamente em perigo a sua vida ou a saúde da pessoa procurada.

Acrescenta ainda, que tinha exames marcados em virtude de problemas cardíacos, situação que se agravou com o seu encarceramento.

Concluiu que «à luz da CRP e dos princípios da Convenção Europeia Para a Proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais, não faz sentido a extradição de um homem (com saúde debilitada, inserido socialmente em Portugal, onde se encontra a sua família, que necessita de forma premente dos seus cuidados, onde tem trabalhado e desenvolvido a sua vida), para provavelmente, morrer preso (num país de que desconhece, e nenhuma relação possui) afastado da família (…), pelo que, atendendo ao disposto nos arts. 33.º, n.ºs 3 e 6, da Constituição da República Portuguesa e 8.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, «em obediência ao que decorre do disposto no nº 2 do artigo 18º da Lei nº 144/99, conjugado com o disposto no art. 29º nº4 da Lei 65/2003, impõe seja proferida decisão de não extraditar, sob pena de se violar o princípio da dignidade da pessoa humana, assim como do direito à família, constitucionalmente consagrados na Constituição da República Portuguesa e os quais presidiram e constituem ratio legis deste preceito, sendo que este é aquele que tem sido o entendimento por parte da nossa jurisprudência, que sopesados os bens jurídicos e os interesses em causa, tem privilegiado, e muito bem, a dignidade da pessoa humana nas suas várias vertentes em detrimento daquelas que possam ser as finalidades das penas pretendidas com o cumprimento de um pedido de extradição.»

Valem quanto a esta questão as apreciações efectuadas no ponto anterior (4.ª questão) e das quais se conclui que o estado psicológico do requerido, mesmo admitindo intuito suicida, não interfere com a questão da transferência física do requerido.

O encarceramento nunca é visto com bons olhos e muito menos fora do país de que se nacional, mas esse sentimento não impede que a entrega, em termo de transferência física do requerido, se realize sem que da mesma decorra qualquer perigo para a saúde ou vida do daquele, que é o pressuposto do preceito.

A aceitar-se um tal argumento, como se referiu, a entrega seria adiada ad aeternum.

Improcede, igualmente, este segmento da oposição.

6.ª questãoDas garantias a prestar pelo Reino de Espanha – art. 13.º da Lei 65/2003, de 23-08.

Neste segmento da oposição apela o requerido à aplicação do preceituado na al. b) do art. 13.º da Lei 65/2003, de 23-08, pois tem nacionalidade portuguesa e reside em Portugal, razão pela qual o Estado de emissão deverá prestar, o que ainda não fez, a garantia de que o requerido, após ser ouvido, será devolvido ao Estado Português, dependendo a decisão de entrega da prestação dessa garantia.

Alega que «[a] alínea b) do artº 13º da Lei nº 65/2003 delimita o modo de cooperação internacional, ao conceder potestas ao Estado nacional, salvaguardando a sua soberania como Estado membro da execução, na proteção dos seus nacionais ou residentes, para cumprimento de pena ou de medida de segurança privativas de liberdade a que foi condenada a pessoa procurada no estado-membro de emissão.

(…)

Em súmula, o artigo 13.º da Lei n.º 65/2003, de 23 de Agosto, trata das garantias a fornecer pelo Estado-Membro de emissão em casos especiais indicados na norma, garantias que se assumem como uma dimensão da dignidade da pessoa arguida e respetivos direitos fundamentais, entre os quais avulta o acesso ao direito e a um julgamento justo, explicitados juridicamente em termos processuais penais no exercício do princípio do contraditório e no princípio da presunção de inocência.

(…)

Uma vez que a al. b) não explicita qual é essa garantia, terá a mesma de ser deduzida de tal alínea e estar em consonância com a condição, se ele vier a ser determinada: a garantia de que o Estado membro de emissão aceitará devolver a pessoa requerida ao Estado membro de execução para nele cumprir a pena ou a medida de segurança privativas da liberdade a que foi condenada naquele Estado membro, se essa for também a vontade da pessoa requerida.

Interpretação que se ajusta ao pensamento do STJ sobre o MDE e se revê na Decisão-Quadro 2002/584/JAI, do Conselho, de 13-06-2002, em cujo cumprimento foi aprovado o regime jurídico do MDE e que permite no seu art. 5.º que cada Estado membro de execução possa sujeitar a execução do mandado de detenção europeu pela autoridade judiciária a condições previstas nos seus números, como a do n.º 3, que se refere à sujeição da entrega para efeitos de procedimento penal de nacional ou residente do Estado membro de execução, à condição de que a pessoa, após ter sido ouvida, seja devolvida ao Estado membro de execução para nele cumprir a pena ou medida de segurança privativas de liberdade proferida contra ela no Estado membro de emissão.

(…)

A entrega da pessoa procurada ao Estado de emissão, tem natureza temporária, acreditando que é apenas para efeitos de procedimento penal, e, apenas deverá ocorre se o Estado de emissão prestar a garantia de que após ser ouvida, será devolvida ao Estado membro de execução para nele cumprir a pena ou a medida privativa da liberdade a que seja eventualmente condenada no Estado membro de emissão.»

Invoca a sua condição de cidadão português e a integração familiar, profissional e social em Portugal, concluindo que «o deferimento da execução do MDE emitido para efeitos de procedimento penal e determinada a entrega do requerido ao Estado membro de emissão, a ser proferido deverá sempre ser sujeita à condição de o mesmo (Estado membro) prestar garantia de que a pessoa procurada, após ser ouvida, será devolvida a Portugal (Estado membro de execução), para nele cumprir a pena ou a medida de segurança privativas de liberdade a que venha eventualmente a ser condenada no Estado membro de emissão.»

Em resposta, a Exma. Procuradora-Geral Adjunta considerou que, «para além de pressupor que será condenado em pena de prisão, tal procedimento tem em vista que o próprio Estado Português, pretendendo exercer o seu poder judicial sobre o requerido, face à necessidade de este cumprir um mandado de detenção ou pena de prisão, não quer abdicar dessa soberania e pretende a “devolução” do seu nacional para esse efeito.

(…)

Em contrapartida, na circunstância de tal vir a suceder, tem sempre o requerido a possibilidade de requerer que, considerando o pendor ressocializador de uma pena de prisão, e a proximidade à família, seja transferido para cumprimento dessa pena no seu país natal, nos termos do disposto na Lei nº 158/2015 de 17/09, pelo que não é essa razão para não entrega imediata do requerido às autoridades espanholas.»

Estabelece o art.º 13.º da Lei 65/2003, de 23-08, sob a epígrafe “Garantias a fornecer pelo Estado membro de emissão em casos especiais” que:

«1 - A execução do mandado de detenção europeu só terá lugar se o Estado-Membro de emissão prestar uma das seguintes garantias:

a) Quando a infração que motiva a emissão do mandado de detenção europeu for punível com pena ou medida de segurança privativas da liberdade com carácter perpétuo, só será proferida decisão de entrega se estiver prevista no sistema jurídico do Estado-Membro de emissão uma revisão da pena aplicada, a pedido ou o mais tardar no prazo de 20 anos, ou a aplicação das medidas de clemência a que a pessoa procurada tenha direito nos termos do direito ou da prática do Estado-Membro de emissão, com vista a que tal pena ou medida não seja executada;

b) Quando a pessoa procurada para efeitos de procedimento penal for nacional ou residente no Estado-Membro de execução, a decisão de entrega pode ficar sujeita à condição de que a pessoa procurada, após ter sido ouvida, seja devolvida ao Estado-Membro de execução para nele cumprir a pena ou a medida de segurança privativas da liberdade a que foi condenada no Estado-Membro de emissão.

2 - À situação prevista na alínea b) do número anterior é correspondentemente aplicável o disposto na parte final do n.º 4 do artigo 12.º»

As garantias de que trata o citado preceito representam ainda um modo de cooperação entre Estados-Membros da União Europeia, aos quais se reconhece um exercício da soberania nacional em casos que envolvem uma dimensão da dignidade da pessoa e respectivos direitos fundamentais (n.º 1, al. a)) ou em que estão em causa cidadãos nacionais ou residentes no Estado de execução (n.º 1, al. b)).

A situação contemplada na al. b) do n.º 1 do art. 13.º que o requerido invoca é de aplicação facultativa, como decorre da utilização do vocábulo pode, e representa uma reserva de soberania que se funda na relação de proximidade entre o requerido e Estado de execução.

«Compete à autoridade judiciária de execução efectuar uma apreciação global dos elementos objectivos que caracterizam a situação da pessoa procurada – entre os quais, a duração, a natureza e as condições da permanência, bem como os laços familiares e económicos –, a fim de determinar se, numa situação concreta, existem entre a pessoa procurada e o Estado-Membro de execução determinados laços que permitam considerar que esta reside ou se encontra nesse Estado;

(…)

Na medida em que a pessoa procurada apresente um grau de integração na sociedade do Estado de execução comparável ao de um nacional, a autoridade judiciária deve poder apreciar se existe um interesse legítimo que justifique que a pena seja executada no Estado de execução»[13].

E essa avaliação, no caso da situação contemplada no art. 13.º, n.º 1, al. b), da Lei 65/2003, de 23-08, tendo em conta os princípios vigentes subjacente às opções de política criminal e às finalidades das penas e sua execução, passa essencialmente pela avaliação da vantagem para a reintegração do requerido na sociedade com o cumprimento de pena ou medida de segurança privativas da liberdade em que seja eventualmente condenado em Portugal.[14]

No caso concreto, em face da factualidade apurada, essa ligação do requerido, cidadão português, a Portugal é evidente, sendo prolongada e intensa, pois vive neste país há muitos anos, com a sua mulher e duas filhas, de 14 e 19 anos de idade, desenvolve aqui actividade profissional há mais de 14 anos, e tem uma boa relação com a comunidade próxima ao local onde trabalha.

Este contexto justifica plenamente que Portugal exerça a reserva de soberania que o requerido reclama, posto que o MDE se destina a procedimento penal no Reino de Espanha, exigindo-se a garantia de que, após ter sido ouvido, o requerido seja devolvido a Portugal para aqui cumprir a pena ou a medida de segurança privativas da liberdade a que eventualmente for condenado no Estado-Membro de emissão, sendo oportunamente cumprido o disposto no art. 12.º, n.º 4, in fine, da Lei 65/2003, de 23-08, ex vi art 13.º, n.º 2, do mesmo diploma legal.

O n.º 2 do artigo 13.º da Lei 65/2003, 23-08, foi aditado pela Lei n.º 35/2015, de 04-05, mandando aplicar o regime do n.º 3 e 4 do art. 12.º aos casos em que, sendo a pessoa nacional portuguesa ou residente em Portugal, o MDE é emitido para efeitos de procedimento criminal com a exigência da garantia de devolução, implicando assim a necessidade de revisão e confirmação da sentença estrangeira, que deve ser feita no processo de execução do MDE, contrariamente ao que foi até esta alteração jurisprudência do STJ [15].

Em 2019, através da Lei 115/2019, de 12-09, foi alterada a redação do referido n.º 2 do art. 13.º que apenas manda aplicar às situações do n.º 1, al. b), a parte final do n.º 4 do artigo 12.º.

Por seu turno, a redacção deste preceito (n.º 4 do art. 12.º) também foi alterada com a mencionada Lei 115/2019, de 12-09, e passou a estabelecer que a decisão a que se refere o número anterior é incluída na decisão de recusa de execução, sendo-lhe aplicável, com as devidas adaptações, o regime relativo ao reconhecimento de sentenças penais que imponham penas de prisão ou medidas privativas da liberdade no âmbito da União Europeia, devendo a autoridade judiciária de execução, para este efeito, solicitar a transmissão da sentença.

Assim, oportunamente, a autoridade judiciária de execução (portuguesa), para efeito de reconhecimento de eventual sentença condenatória de requerido, deve solicitar a respectiva transmissão.

A invocação na resposta à oposição de que não deve ser pedida a garantia reclamada pelo requerido, porquanto a Lei 158/2015, de 17-09, prevê a possibilidade de o mesmo requerer que seja transferido para Portugal para cumprimento de pena no seu país natal, não sendo por isso razão para a não entrega imediata, não pode proceder.

É o próprio diploma invocado que, no seu art. 26.º, sob a epígrafe “Execução de condenações na sequência de um mandado de detenção europeu”, estabelece que:

«Sem prejuízo do disposto na Lei n.º 65/2003, de 23 de agosto, alterada pela Lei n.º 35/2015, de 4 de maio, o disposto na presente lei aplica-se, na medida em que seja compatível com as disposições dessa lei, à execução de condenações, se:

a) O mandado de detenção europeu tiver sido emitido para efeitos de cumprimento de uma pena de prisão ou medida de segurança privativa de liberdade, quando a pessoa procurada se encontrar no Estado de execução, for sua nacional ou sua residente e este Estado se comprometa a executar essa pena ou medida de segurança nos termos do seu direito nacional; ou

b) O mandado de detenção europeu tiver sido emitido para efeitos de procedimento penal, quando a pessoa procurada for nacional ou residente do Estado de execução e este Estado tiver estabelecido como condição para a entrega que a pessoa procurada, após ter sido julgada, seja devolvida ao Estado membro de execução para nele cumprir a pena de prisão ou medida de segurança privativa de liberdade proferida contra ela no Estado membro de emissão.»

Assim, não obstante o reconhecimento e execução de sentença estrangeira esteja sujeito à regulamentação prevista na Lei 158/2015, de 17-09, ela não invalida as disposições próprias da Lei 65/2003, de 23-08, devendo antes haver uma conjugação dos dois diplomas nos termos apontados.

Por outro lado, há que reconhecer que para o requerido a prestação da garantia agiliza a sua devolução, pois esta ocorrerá depois de ter sido ouvido para efeitos de procedimento criminal e já não se verificar necessidade de o manter no Estado de emissão para o efeito.

Por fim, salienta-se que a garantia não necessita de ser prestada antes da decisão de entrega, ficando esta, no entanto, condicionada à sua prestação.

Este é o sentido do art. 5.º, n.º 3, da Decisão-Quadro n.º 2002/584/JAI, que estabelece que quando a pessoa sobre a qual recai um mandado de detenção europeu para efeitos de procedimento penal for nacional ou residente do Estado-Membro de execução, a entrega pode ficar sujeita à condição de que a pessoa, após ter sido ouvida, seja devolvida ao Estado-Membro de execução para nele cumprir a pena ou medida de segurança privativas de liberdade proferida contra ela no Estado-Membro de emissão.
Neste sentido, vejam-se os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 20-06-2012, relatado por Pires da Graça no âmbito do Proc. n.º 445/12.3YRLSB.S1, e de 23-08-2022, relatado por Leonor Furtado no âmbito do Proc. n.º 128/22.6YREVR.S1, ambos acessíveis in www.dgsi.pt.
A execução do presente MDE, condicionado à prestação da garantia indicada, não viola qualquer preceito constitucional ou de convenção internacional, mostrando-se em conformidade com o princípio do reconhecimento mútuo, com a Lei 65/2003, de 23-08, e com a Decisão Quadro n.º 2002/584/JAI, do Conselho de 13-06.


*

III. Decisão:

Face ao exposto, acordam os Juízes desta 1.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto em:

a) - Deferir a execução do Mandado de Detenção Europeu emitido Pelo Senhor Juiz de Direito do Tribunal de primeira instância e instrução 1 de Sant Boi de Llobregat, Espanha, no P. n.º DP 187-2021, em 04-03-2024, referente ao requerido AA, cidadão português, determinando a sua entrega às autoridades do Reino de Espanha, enquanto Estado de emissão, para efeitos de procedimento criminal, nos termos indicados no MDE, consignando-se que o requerido não renunciou ao princípio da especialidade;

b) - A execução da entrega referida em a) fica sujeita à condição de o Reino de Espanha, enquanto Estado de emissão, prestar a garantia de que o requerido, após ser ouvido para efeitos de procedimento criminal, será devolvido a Portugal, enquanto Estado de execução, para nele cumprir a pena ou a medida de segurança privativas de liberdade a que venha eventualmente a ser condenado;

c) - Comunique, desde já, incluindo via fax, e independentemente do trânsito do presente acórdão, à autoridade de emissão do Reino de Espanha, enquanto Estado de emissão, solicitando a prestação, no prazo de oito dias, da garantia exigida de acordo com o art. 13.º, n.º 1, al. b), da Lei 65/2003, de 23-08, com menção de que a entrega do requerido não será executada se a garantia não for prestada e o processo será arquivado.

Proceda-se às necessárias notificações e comunicações e cumpra-se o art. 28.º da Lei 65/2003, de 23-08.

O início do prazo de recurso não depende da prestação da garantia a que alude a al. c), contando-se desde a notificação da decisão.


*

O arguido manter-se-á com o regime da medida de coacção fixada até trânsito em julgado da decisão, salvo alteração superveniente justificada dos respectivos pressupostos.

Após trânsito e mostrando-se prestada a garantia, que será notificada aos intervenientes, emitam-se mandados de detenção para entrega e dê-se cumprimento ao disposto no art. 29.º da Lei 65/2003, de 23-08.

As despesas ocasionadas pela execução em território nacional ficam a cargo do Estado Português – art. 35.º, n.º 1, da Lei 65/2003, de 23-08.




Porto, 15 de Março de 2024

(Texto elaborado e integralmente revisto pela relatora, sendo as assinaturas autógrafas substituídas pelas electrónicas apostas no topo esquerdo da primeira página)
Maria Joana Grácio
Lígia Figueiredo
Nuno Pires Salpico
________________________
[1] Publicada no Jornal Oficial das Comunidades Europeias, de 18-07-2002.
[2] Publicada no DR, I Serie A, n.º 194, de 23-08.
[3] António Pires Henriques da Graça, in A Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça na execução do regime relativo ao Mandado de Detenção Europeu, acessível in www.stj.pt.
[4] Considerando (5) da Decisão-Quadro do Conselho de 13 de Junho de 2002 relativa ao mandado de detenção europeu e aos processos de entrega entre os Estados-Membros (2002/584/JAI).
[5] Relatado por Pereira Madeira no âmbito do Proc. n.º 06P569, acessível in www.stj.pt - A Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça na execução do regime relativo ao Mandado de Detenção Europeu (António Pires Henriques da Graça).
[6] Relatado por Santos Carvalho no âmbito do Proc. n.º Proc. n.º 271/07, acessível in www.pgdlisboa.pt/.
[7] Cf. António Pires Henriques da Graça, in A Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça na execução do regime relativo ao Mandado de Detenção Europeu, acessível in www.stj.pt, aí sendo indicada variada jurisprudência do STJ em abono esta posição.
[8] Cf. Lopes da Mota in Cooperação Judiciária Internacional em Matéria Penal - Orientações e Notas de Procedimento do Ministério Público no Tribunal da Relação de Lisboa, acessível in www.pgdlisboa.pt.
[9] Cf. acórdão do STJ de 15-03-2006, relatado por Silva Flor no âmbito do Proc. n.º 06P782, acessível in www.pgdlisboa.pt (Jurisprudência-Lei 65/2003, de 23-08).
[10] Relatado por Rodrigues da Costa no âmbito do Proc. n.º 1215-10.9YRLSB.S1, acessível in www.dgsi.pt.
[11] Cf. acórdão do STJ de 15-03-2006, relatado por Silva Flor no âmbito do Proc. n.º 06P782, acessível in www.pgdlisboa.pt (Jurisprudência-Lei 65/2003, de 23-08).
[12] Cf. acórdão do STJ de 09-02-2011, relatado por Rodrigues da Costa no âmbito do Proc. n.º 1215-10.9YRLSB.S1, acessível in www.dgsi.pt.
[13] Cf. Lopes da Mota in Cooperação Judiciária Internacional em Matéria Penal - Orientações e Notas de Procedimento do Ministério Público no Tribunal da Relação de Lisboa, acessível in www.pgdlisboa.pt.
[14] Nesse sentido, acórdão do STJ de 10-09-2009, relatado por Henriques Gaspar no âmbito do Proc. n.º 134/09.6YREVR, acessível in www.dgsi.pt.
[15] Neste sentido, Lopes da Mota, ob. cit.