Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
316/21.2T9VFX.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: RAÚL CORDEIRO
Descritores: CRIME DE DIFAMAÇÃO
CONCEITO
DIREITO À HONRA E BOM NOME
LIBERDADE DE EXPRESSÃO
DIREITO DE CRÍTICA
RESTRIÇÕES
PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE
PRINCÍPIO DA NECESSIDADE
PRINCÍPIO DA ADEQUAÇÃO
INTERESSE RELEVANTE
PREVALÊNCIA
Nº do Documento: RP20240313316/21.2T9VFX.P1
Data do Acordão: 03/13/2024
Votação: MAIORIA COM 1 VOT VENC
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL (CONFERÊNCIA)
Decisão: JULGADO PROCEDENTE O RECURSO INTERPOSTO PELO ASSISTENTE
Indicações Eventuais: 4ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I – A difamação consiste na atribuição a alguém de facto ou conduta, ainda que não criminosos, que encerrem em si uma reprovação ético-social, isto é, que sejam ofensivos da honra e consideração do visado.
II – Honra é a dignidade subjectiva, ou seja, o elenco dos valores éticos que cada ser humano possui, dizendo respeito ao património pessoal e interno de cada um – o próprio eu. Por sua vez, a consideração é o merecimento que o indivíduo tem no meio social, ou seja, a reputação, a boa fama, a estima, a dignidade objectiva, o mesmo é dizer a forma como a sociedade vê cada cidadão – a opinião pública.
III – A Constituição da República Portuguesa garante tutela ao bom nome e reputação, bem como à liberdade de expressão (arts. 26.º, n.º 1, e 37.º, n.º 1, respectivamente). Igualmente a Convenção Europeia dos Direitos do Homem garante a liberdade de expressão e o direito ao bom nome e reputação (art. 10.º).
IV – Sendo inevitável o conflito entre a liberdade de expressão e o direito à honra e consideração, a solução dos casos há-se ser encontrada com a ponderação dos interesses em confronto, apelando aos critérios da proporcionalidade, da necessidade e da adequação, conforme impõe o artigo 18.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa.
V – A jurisprudência dos Tribunais Superiores tem vindo a sustentar deverem considerar-se atípicos os juízos de apreciação e de valoração crítica sobre realizações profissionais ou sobre prestações conseguidas, designadamente, nos domínios do desporto e do espectáculo, posto que não ultrapassem o âmbito da crítica objectiva e não se dirigiam directamente à pessoa dos seus autores.
VI – Mas já é de afirmar a tipicidade criminal relativamente a críticas caluniosas, bem como a outros juízos motivados pelo propósito de ofender, rebaixar e humilhar, pois que uma coisa é criticar a obra ou desempenho, outra muito distinta é agredir e ofender pessoalmente o autor, dando expressão a um ataque e desconsideração dirigidos à sua pessoa.
VII Neste contexto, assumem relevância criminal as expressões proferidas por dirigente de clube de futebol que, após um jogo, imputa ao respectivo árbitro factos concretos, praticados de forma intencional, com o objectivo específico de prejudicar o seu clube, designadamente que o árbitro o roubou, maltratou e espoliou, atribuindo-lhe mesmo atitudes persecutórias e premeditadas.
VIII Com efeito, ao manifestar-se desse modo, o arguido atingiu, de forma directa, o núcleo essencial do direito ao bom nome e reputação do visado, enquanto pessoa e profissional da arbitragem desportiva, pondo em causa a sua honestidade e integridade pessoais também perante a comunidade.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. n.º 316/21.2T9VFX.P1


I

Acordam, em conferência, os Juízes da 2.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto:

Nos presentes autos de Instrução n.º 316/21.2T9VFX, do Juízo de Instrução Criminal do Porto – Juiz 5, foi, em 18-10-2023, proferido despacho de não pronúncia do arguido AA pela prática de um crime de difamação agravada, p. e p. pelos artigos 180.º, n.º 1, 183.º, n.º 1, alíneas a) e b), e 184.º, ex vi artigo 132.º, n.º 2, alínea l), todos do Código Penal, relativamente à pessoa do assistente BB (ref.ª 452906600).


*

O assistente BB interpôs recurso dessa decisão, tendo apresentado a respectiva motivação, com as seguintes conclusões:

A)

O presente recurso recai sobre a Decisão instrutória de não pronúncia proferida pelo Tribunal a quo e notificada no dia 23/10/2023, que julgou procedente a defesa apresentada no requerimento de abertura de instrução apresentado pelo Arguido, concluindo que não existiram nos autos indícios suficientes da prática pelo Arguido AA dos factos descritos na acusação sobre a prática do crime de difamação agravada.

B)

A Decisão a quo proferida fundamenta-se no sentido da inverificação dos elementos típicos do crime de difamação de que o Arguido, aqui Recorrido, vem acusado, conforme infra se transcreve:

Salvo o devido respeito, parece-nos que as expressões proferidas pelo arguido não são objetivamente ofensivas para a honra e consideração do assistente.

Trata-se, assim, de uma crítica, porventura imerecida e injusta, à atuação do assistente (da forma incorreta, na perspetiva do arguido, de como o mesmo conduziu a arbitragem e não propriamente à pessoa do assistente).

Conclui-se, pois, que, muito embora a conduta do arguido tivesse sido infeliz e indelicada até agressiva, atenta as expressões utilizadas (sobretudo o verbo roubar) não constitui indícios de qualquer ilícito criminal, já que não se pode esquecer que tais expressões foram proferidas logo seguir ao jogo quando todas as emoções estão à flor da pele.

O arguido embora tenha formulado juízos de valor negativos sobre a atuação do assistente, fê-lo sempre por factos relacionados com a atividade profissional do mesmo, em momento algum incidindo tais juízos e críticas sobre a pessoa do assistente, não incorrendo, pois, a nosso ver, em crítica pessoal, e muito menos em crítica caluniosa ou em juízos que exclusivamente revelem o propósito de rebaixar ou humilhar o assistente” (negritos e sublinhados nossos).


C)

Sem grandes considerações jurídicas porque evidentemente desnecessárias (ou pelo menos deveriam ser no entendimento do ora Recorrente), a alegação do Arguido em sede do requerimento de abertura de instrução é totalmente desprovida de razoabilidade, quer porque o sentido literal das expressões proferidas, no contexto em que o foram, não deixa margem para dúvidas, quer porque é o próprio quem admite nas suas declarações, proferidas em conferência de imprensa, em direto para a televisão portuguesa, e após a realização do jogo de futebol disputado entre o A... e o B..., que não temia represálias com as expressões e imputações que proferiu contra ao árbitro principal do jogo, ora Recorrente, ao dizer que “(…) volto a repetir para que fique gravado (…) sei que vou ser castigado e digo-vos mais, tenho o prazer em ser castigado (…)”.

D)

Segundo entendimento da nossa mais prezada jurisprudência, a título de exemplo, veja-se o Acórdão da Relação de Guimarães, de 05/03/2018, e Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 04/11/2020, proc. n.º 2294/17.3T9VFR.P1 (ambos disponíveis em www.dgsi.pt):

A difamação consiste na imputação a alguém, levada a terceiros e na ausência do visado, de facto ou de juízo que encerre em si uma reprovação ético-social por serem ofensivos da honra e consideração do ofendido, enquanto pretensão de respeito que decorre da dignidade da pessoa humana e pretensão ao reconhecimento dessa dignidade por parte dos outros, quer no período moral, intelectual, sexual, familiar, profissional ou político. (negritos e sublinhados nossos).


E)

No caso dos autos, releva, para o preenchimento deste ilícito, a imputação ao visado - arbitro de futebol integrado na Federação Portuguesa de Futebol em competições profissionais – por meio de palavras e sob a forma de suspeita, da prática e crimes [(…) o que ele fez [o árbitro e aqui Recorrente] hoje foi roubar o A..., hoje o A... foi espoliado. foi roubado e foi maltratado (…) E claro que inequívoco que este Senhor [o árbitro e aqui Recorrente] hoje esteve no Estádio ... com um objetivo, prejudicar o A.... (…) Hoje o que aconteceu no Estádio ..., volto a repetir, para que fique gravado, foi um roubo. (…) porque o que aconteceu no segundo golo é um roubo, não há mais nada a dizer que não isto. Hoje tiraram-nos um ponto dentro de campo. E quem nos tirou não foi o B..., quem nos tirou foi o Senhor Árbitro. Isso é claro.”], juízos e imputações adjetivas objetivamente insultuosas do bom nome do árbitro, aqui Recorrente.

F)

Entendemos ser clara a natureza ofensiva das imputações efetuadas pelo Arguido, aqui Recorrido, porquanto, tratando-se o visado, de arbitro de futebol, reportando-se as imputações a atuação especifica numa arbitragem em concreto, num momento imediatamente após o decurso do jogo de futebol, a aptidão ofensiva é transversal à consciência ético-jurídica de qualquer cidadão colocado na mesma posição.

G)

A situação, in casu, não se traduz apenas numa indelicadeza, grosseirismo ou má educação, mas sim, de facto, numa ofensa da honra e consideração do árbitro, aqui Recorrente, e como tal merecedor de tutela penal.

H)

Não é necessário que o agente com o seu comportamento queira “ofender a honra ou consideração alheias”, nem mesmo que se haja conformado com esse resultado, ou sequer que haja previsto o perigo (previsão da efetiva possibilidade ou probabilidade de lesão do bem jurídico da honra), bastando a consciência da genérica perigosidade da conduta ou do meio da ação previstos nas normas incriminatórias respetivas.

I)

Até porque, como já referimos antes, resulta dos autos, que o Arguido, aqui Recorrido, tinha a perfeita consciência de que as expressões e imputações que proferiu dirigidas ao árbitro, aqui Recorrente, iriam afetar a sua honra e consideração, não tivesse aquele assumido em conferência de imprensa o seguinte que infra se transcreve:

O que ele fez hoje foi, e vou repetir isto, sabendo das consequências do que estou a dizer, o que ele fez hoje foi roubar o A....”

(…)

Sei que vou ser castigado e digo-vos mais, tenho prazer em ser castigado.”


J)

Por outro lado, o Tribunal a quo fundamentou ainda a sua Decisão de não pronúncia que “As expressões imputadas ao arguido se bem que proferidas num tom e de um modo manifestamente inadequados às circunstâncias, correspondem ainda ao exercício do direito de crítica objetiva. São juízos de valor sobre atuações do assistente no âmbito das suas funções no âmbito da arbitragem a um jogo e não propriamente sobre a pessoa.” (negritos nossos).

K)

Não podemos concordar com tal desqualificação das condutas do Arguido, em causa nos presentes autos, sendo, tal Decisão, salvo devido respeito, contra legem, pois que, se o Legislador não qualificasse o crime em virtude do exercício das funções de juiz ou árbitro desportivo sob a jurisdição das federações desportivas, nenhum cidadão poderia ser ofendido na sua honra e consideração no exercício e por causa das suas funções. O que não pode suceder num Estado de Direito Democrático!

L)

O Legislador qualificou este crime atendendo precisamente à qualidade e funções exercidas pelo Ofendido, aqui Recorrente, pelo que não pode o Tribunal a quo querer desqualificar e desvalorizar as condutas do Arguido como sendo o exercício do direito à crítica objetiva pelo Arguido.

M)

Aliás, como resulta dos artigos 6 e 7 dos factos indiciados, o Arguido, aqui Recorrido, proferiu e imputou tais expressões ao Ofendido (enquanto pessoa), porém, no exercício e por causa das suas funções naquelas circunstâncias de tempo, hora e lugar. Conforme infra se transcreve:

O que ele fez hoje foi, e vou repetir isto, sabendo das consequências do que estou a dizer, o que ele fez hoje foi roubar o A..., hoje o A... foi espoliado, foi roubado e foi maltratado foi isso que hoje aconteceu. E vou dizer o seguinte, chegou a altura de pormos o dedo na ferida. Isto vem a acontecer há uma série de jogos (...) Sendo que hoje, no segundo golo do B..., no amarelo ao CC, sabendo que o CC vai ficar excluído do próximo jogo, estas são atitudes persecutórias contra o A....

E claro que inequívoco que este Senhor hoje esteve no Estádio ... com um objetivo, prejudicar o A....

Hoje o que aconteceu no Estádio ..., volto a repetir, para que fique gravado, foi um roubo.

Sei que vou ser castigado e digo-vos mais, tenho prazer em ser castigado.

E hoje fomos espoliados.”

(…)

porque o que aconteceu no segundo golo é um roubo, não há mais nada a dizer que não isto.

Hoje tiraram-nos um ponto dentro de campo. E quem nos tirou não foi o B..., quem nos tirou foi o Senhor Árbitro. Isso é claro.” (negritos e sublinhados nossos).


N)

Com as expressões proferidas, o Arguido, aqui Recorrido, dirigiu-se à comunicação social, imputando ao Assistente, aqui Recorrente, juízos de valor ofensivos da honra e consideração do Assistente, lançando, pelo menos, a suspeita da prática de crimes no exercício das suas funções de árbitro de futebol, mormente com o objetivo de favorecer a equipa contrária.

O)

O Arguido, aqui Recorrido, fê-lo, ciente da possibilidade de tais suspeitas serem infundadas, em virtude das funções exercidas pelo Assistente, aqui Recorrente, na qualidade de árbitro de futebol, agindo o Arguido, aqui Recorrido, consciente de que o veículo (e a sua posição de Presidente do A...) através do qual propalou as suspeitas facilita a sua divulgação - conferência de imprensa - e cujas expressões e imputações acabaram noticiadas por diversos meios de comunicação social nacionais, como o jornal "...", jornal "...", jornal "...".

P)

O Arguido, aqui Recorrido, não se focou em criticar a decisão - o que, em princípio, seria legítimo, a coberto do direito de crítica objetiva -, antes agrediu pessoalmente o respetivo autor, formulando juízos de valor gravemente atentatórios da sua honra e consideração pessoal e profissional, dando expressão, por esta via, a uma desconsideração dirigida à pessoa do aqui Recorrente.

Q)

Assim, perante tudo o exposto, não podia o Tribunal a quo ter deixado de proferir Decisão de pronúncia do Arguido, por se encontrarem recolhidos indícios suficientes de se ter verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao Arguido de pena pelo crime por que vem acusado, como lhe impõe o artigo 308.º, n.º 1, do CPP, aqui violado.

Termos em que se requer a Vossas Excelências Senhores Doutores Juízes Desembargadores, seja o presente recurso recebido e julgado procedente, e em consequência seja revogada a Decisão Instrutórias de não pronúncia do Arguido, por existirem indícios suficientes da prática do crime, em autoria material, de difamação agravada p. e p. nos termos do disposto nos artigos p. e p. pelos artigos 180.º, n.º 1, 183.º, n.º 1, als. a) e b), e 184.º, ex vi do artigo 132.º, n.º 2, al. l), do Código Penal, e bem assim seja a Decisão Instrutória substituída por outra que decida pela pronúncia do Arguido, aqui Recorrido, para os efeitos de ser submetido a julgamento, sendo provável a sua condenação.

Fazendo-se a já costumada JUSTIÇA!.” (ref.ª 37367511).


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Admitido o recurso, a Exm.ª Magistrada do Ministério Público apresentou resposta, sustentando, em síntese, não lhe repugnar o decidido pela Mm.ª Juíza ao não pronunciar o arguido, atento o teor das expressões por ele proferidas e o contexto em que tiveram lugar, pelo que tal decisão deve ser mantida, pois que não violou qualquer norma jurídica (ref.ª 37629861).

*

Recebidos os autos neste Tribunal, o Exm.º Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer, nele manifestando concordância com a posição do Ministério Público na 1.ª Instância, concluindo que o recurso não merece provimento, devendo confirmar-se a decisão recorrida (ref.ª 17757254).

*

Foi proferido despacho liminar e colhidos os vistos, com decisão em conferência.

II

As conclusões formuladas, resultado da motivação apresentada, delimitam o objecto do recurso (art. 412.º, n.º 1, do CPP), sem prejuízo da apreciação de questões de conhecimento oficioso que possam suscitar-se, como é o caso dos vícios indicados no n.º 2 do artigo 410.º do mesmo Código, mesmo que o recurso verse apenas sobre a matéria de direito (cfr. Acórdão do STJ de Uniformização de Jurisprudência n.º 7/95, de 19-10-1995, in DR I, de 28-12-1995).

Não se detectando a necessidade de conhecer de questões dessa natureza, cumpre apreciar a pretensão do recorrente para o que importa atentar no teor do despacho recorrido, que é o seguinte (no que agora releva):

“DECISÃO INSTRUTÓRIA:

O M.P. deduziu acusação contra o arguido AA, imputando-lhe a prática, como autor material, de um crime de difamação agravada, p. e p. pelos arts. 180.º, n.º 1, 183.º, n.º 1, als. a) e b), e 184.º, ex vi art.º 132.º, n.º 2, al. l), todos do Cód. Penal.

(…)

Inconformado, requereu o arguido abertura de instrução, concluindo pela sua não pronúncia, alegando em síntese que as expressões por si proferidas não têm carga injuriosa ou ofensiva.


*

Atenta a admissibilidade e tempestividade do assim requerido, e a legitimidade do arguido para o efeito, foi declarada aberta semelhante fase processual, no decurso da qual procedeu o Tribunal à reapreciação da prova recolhida em fase de inquérito.

(…)

2.1 Da instrução


*

De acordo com o art. 286.º, n.° 1, do Código de Processo Penal, a instrução visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusar ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento, acrescentando o respetivo n.º 2 que semelhante fase processual tem carácter facultativo. No que tange ao seu conteúdo, esclarece o art. 289.°, n.º 1, do mesmo Código ser a instrução formada pelo conjunto dos atos de instrução que o juiz entenda dever levar a cabo e, obrigatoriamente, por um debate instrutório, oral e contraditório, no qual podem participar o Ministério Público, o arguido, o defensor, o assistente e o seu advogado, mas não as partes civis.

Simas Santos e Leal Henriques salientam com propriedade a “inquestionável relevância e significado” da instrução, uma vez que, no mais, “os princípios do acusatório e da investigação se perfilam lado a lado com os do contraditório, da oralidade e da imediação da prova, tudo com vista à perseguição da verdade material” (Simas Santos e Leal Henriques, Código de Processo Penal Anotado, 1.º Volume, 2.ª Edição, Editora Rei dos Livros, 2000, pág. 158).

Num pendor acentuadamente mais pragmático, acentua Maia Gonçalves não ser a instrução “um novo inquérito, mas tão-só um momento processual de comprovação; não visa um juízo sobre o mérito, mas apenas um juízo sobre a acusação, em ordem a verificar da admissibilidade da submissão do arguido a julgamento com base na acusação que lhe é formulada” (Maia Gonçalves, Código de Processo Penal Anotado, 12.ª Edição, Almedina, 2001, pág. 572).

Impõe-se, desta forma, uma apreciação crítica da totalidade da prova recolhida, não apenas na instrução, mas igualmente em sede de inquérito, tendo em vista a prolação de decisão final - de pronúncia ou não pronúncia - conforme se conclua pela existência, ou não, de indícios suficientes, que permitam a submissão do arguido a audiência de julgamento. Neste particular, o julgador não se encontra limitado ao material probatório que lhe é presente por acusação e defesa, devendo ao invés - caso se mostre necessário à descoberta da verdade - instruir autonomamente os factos em apreciação.

Como anteriormente se expendeu, a decisão de pronúncia basta-se, em conformidade com o preceituado pelo art. 308.°, n.° 1, do Código de Processo Penal, com a prova meramente indiciária, e, nessa medida, completamente distinta do grau de convicção em termos probatórios exigido na fase do julgamento. Nas palavras de Germano Marques da Silva, são suficientes “sinais da prática de um crime” (Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, 1.º Volume, Verbo, 1994, pág. 183), enquanto fundamentadores de uma possibilidade razoável de ter, efetivamente, sido o arguido quem praticou a factualidade em apreço. Donde, estamos em face de juízos de probabilidade, e não de certeza. Cumprirá acrescentar considerar o legislador suficientes os indícios sempre que destes resulte, conforme estatuído pelo art. 283.°, n.° 2, do Código de Processo Penal, uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena ou uma medida de segurança.


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2.2 Do caso concreto

In casu, visa a bondade da instrução questionar a acusação deduzida nos autos pelo Ministério Público e assim atestar da propriedade da imputação ao arguido AA de factos consubstanciadores da prática, em autoria material, de um crime de difamação agravado, previsto e punido pelos arts. 180.°, n.° 1, 183.º, n.º 1, als. a) e b), e 184.º, ex vi art. 132.º, n.º 2, al. l), todos do Cód. Penal.

Do mérito da acusação.

O Direito:

Comete o crime de difamação “quem, dirigindo-se a terceiro, imputar a outra pessoa, mesmo sob a forma de suspeita, um facto, ou formular sobre ela um juízo, ofensivos da sua honra ou consideração, ou reproduzir uma tal imputação ou juízo” - art. 180.º, n.º 1, do Cód. Penal.

A incriminação em apreço constitui uma tutela do direito à honra, bem jurídico constitucionalmente protegido, atento o disposto no art. 25.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa, que dispõe que a todos são reconhecidos os direitos à identidade pessoal, ao desenvolvimento da personalidade, à capacidade civil, à cidadania, ao bom-nome e reputação, à imagem, à palavra, à reserva da intimidade da vida privada e familiar e à proteção legal contra quaisquer formas de discriminação. A previsão do art. 180.º do Código Penal mais não é do que a consagração penal de um direito que a Constituição protege, enquanto bem de cariz pessoalíssimo e imaterial, do qual só o próprio sujeito é titular - cfr. Faria Costa, Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, tomo 1, pág. 602.

Dispõe o art. 183.º do Cód. Penal,

1 - Se no caso dos crimes previstos nos artigos 180.º, 181.º e 182.º:

a) A ofensa for praticada através de meios ou em circunstâncias que facilitem a sua divulgação; ou

b) Tratando-se da imputação de factos, se averiguar que o agente conhecia a falsidade da imputação;

as penas da difamação ou da injúria são elevadas de um terço nos seus limites mínimo e máximo”.

Por seu turno, dispõe o art. 184.º do mesmo diploma legal que “As penas previstas nos artigos 180.º, 181.º e 183.º são elevadas de metade nos seus limites mínimo e máximo se a vítima for uma das pessoas referidas na alínea l) do n.º 2 do artigo 132.º, no exercício das suas funções ou por causa delas, ou se o agente for funcionário e praticar o facto com grave abuso de autoridade” designadamente, “árbitro desportivo sob a jurisdição das federações desportivas, no exercício das suas funções ou por causa delas”.


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Detenhamo-nos, agora, no caso em apreço, em ordem a apurar da suficiência de indícios, com relação aos factos sub judice, que imponham a prossecução dos autos.

Atentemos nas diligências probatórias levadas a cabo em sede de inquérito.

Encontramos a sua génese no auto de denúncia de fls. 4 e s.s., que junta a prova documental de fls. 18 a 23, onde constam as afirmações da autoria do arguido.

Posteriormente o assistente, confirmou a queixa apresentada. (cfr. fls.62/62v.).

Encontra-se junto aos autos o processo disciplinar em que é arguido o aqui requerente (fls. 69 a 83), bem como o documento de fls. 115, que atesta que o assistente pertence à lista de árbitros C1 do Conselho de Arbitragem da Federação Portuguesa de Futebol para a época 2021/2022, sendo que atua em competições profissionais.

Foram inquiridas as testemunhas DD (fls. 86/86v.), EE (fls. 91); FF (fls. 93) todos confirmando que ouviram as declarações do arguido através dos meios de comunicação social. O arguido não prestou declarações.

FACTOS INDICIADOS:

Resultam, deste modo, suficientemente indiciados os factos descritos em 1.º, 2.º, 3.º, 4.º, 5.º, 6.º, 7.º, 8.º e 9.º.

O ENQUADRAMENTO JURÍDICO-PENAL:

Vistos os factos e tendo presente a acusação e o requerimento de abertura de instrução, impõe-se, no essencial decidir:

Pode considerar-se ofensivo da honra e consideração da assistente o teor das declarações em causa?

O crime de injúria (e a difamação mais não é que uma injúria “indireta”), está inserido no capítulo dos crimes contra a honra, bem jurídico que o legislador penal quis proteger, reafirmando a importância que já lhe era dada pela Lei Fundamental (cfr. Artigo 26.º da Constituição da República Portuguesa), sendo esta entendida como um aspeto da personalidade de cada indivíduo, que lhe pertence desde o nascimento apenas pelo facto de ser pessoa e radica na sua inviolável dignidade. Ora, a ação típica do crime contra a honra consiste numa manifestação de menosprezo que seja idónea para afetar tal bem jurídico nas circunstâncias concretas em que é utilizada. A conduta, para integrar o tipo legal, deve ser ainda adequada a produzir a ofensa nos bens jurídicos tutelados. A adequação das expressões para atingir o bem jurídico protegido deve ser feita, não de acordo com a suscetibilidade pessoal de quem quer que seja (o direito penal protege direitos fundamentais dos cidadãos e não particularidades deste ou daquele sujeito), mas sim tendo em conta a dignidade individual a que todos têm direito (dependente, no entanto, das diferenças no significado das expressões de região para região ou do local onde são proferidas, sem olvidarmos in casu que foram proferidas em conferência de imprensa do Estádio de Futebol e após a realização de um jogo.

É entendimento doutrinal e jurisprudencial, cremos que uniforme, que a honra é um bem jurídico complexo, que abrange tanto o valor que cada ser humano tem por si, como a sua reputação ou consideração exteriores. - cfr. Prof. Faria Costa, Comentário Conimbricense do Código Penal, tomo I, pág. 607.

“O bem jurídico honra traduz uma presunção de respeito, por parte dos outros, que decorre da dignidade moral da pessoa, o seu conteúdo é constituído basicamente, por uma pretensão de cada um ao reconhecimento da sua dignidade por parte dos outros. Sem a observância social desta condição, não é possível à pessoa realizar os seus planos de vida e os seus ideais de excelência na multiplicidade de contextos e relações sociais em que intervém,

Esse bem jurídico-constitucional assim delineado apresenta um lado individual (o bom nome) e um lado social (a reputação ou consideração) fundido numa pretensão de respeito que tem como correlativo uma conduta negativa dos outros; é, ao fim e ao cabo, uma pretensão a não ser vilipendiado ou depreciado no seu valor aos olhos da comunidade" (Augusto Silva Dias, in “Alguns Aspetos do Regime Jurídico dos Crimes de Difamação e de Injúrias”, ADFDL, 1989, pág. 17/18).

Importa, ainda, na esteira dos ensinamentos de Leal Henriques e Simas Santos (in Código Penal Anotado), referir que nos crimes em análise não se protege a suscetibilidade pessoal de quem quer que seja, mas apenas a dignidade individual da pessoa, sendo uma das suas características a da sua relatividade, o que significa que o carácter injurioso ou difamatório de determinada palavra ou ato é fortemente dependente do lugar ou ambiente em que ocorre, das pessoas entre quem ocorre, do modo como ocorre.

Em todas as comunidades, há um sentido comum das regras de comportamento que devem nortear cada pessoa na sua convivência com as demais, sob pena de não ser possível a vida em sociedade.

Traduzem-se essas regras num mínimo de respeito ético, cívico e social, mínimo esse que não se confunde, porém, com cortesia ou com educação, pelo que os comportamentos indelicados, e mesmo boçais, não fazem parte daquele mínimo de respeito, consabido que o Direito Penal não se destina a proteger as pessoas face a meras impertinências (cfr. Ac. RC de 2/3/2005, Proc. n.° 296/05, in www.dgsi.pt).

Diz-se, ainda, no mesmo Acórdão da RC, referindo-se aos ensinamentos de Costa Andrade sobre o direito de crítica objetiva, que “se devem considerar (penalmente) atípicos os juízos de apreciação e de valoração crítica vertidos sobre realizações científicas, académicas, artísticas, profissionais, etc., ou sobre prestações conseguidas nos domínios do desporto e do espetáculo, quando não se ultrapassa o âmbito da crítica objetiva, isto é, enquanto a valoração e censura críticas se atêm exclusivamente às obras, às realizações ou prestações em si, não se dirigindo diretamente à pessoa dos seus autores ou criadores, posto que não atingem a honra pessoal do cientista, do artista ou desportista, etc., nem atingem a honra com a dignidade penal e a carência de tutela penal que definem e balizam a pertinente área de tutela típica.

Mais entende que a atipicidade da crítica objetiva pode e deve estender-se a outras áreas, aqui se incluindo as instâncias públicas, com destaque para os atos da administração pública, as sentenças e despachos dos juízes, as promoções do Ministério Público, as decisões e o desempenho político de órgãos de soberania como o Governo e o Parlamento.

(…)

No entanto, esclarece que a atipicidade já não poderá sustentar-se para os juízos que atingem a honra pessoal e a consideração pessoal, perdendo todo e qualquer ponto de conexão com a prestação ou obra que, em princípio, legitimaria a crítica objetiva, nem para os juízos de facto feitos num contexto de uma valoração crítica objetiva, a menos que pressuposta a prova da verdade, o que significa que só se deverão ter por atípicos os juízos de facto ofensivos em que a verdade do facto ou factos em que os mesmos assentam é evidente ou notória ou se mostra já demonstrada”.

Quanto ao elemento subjetivo do crime, é também entendimento unânime que basta o dolo genérico, em qualquer das suas formas (direto, necessário ou eventual), bastando que o agente, ao realizar voluntariamente a ação, tenha consciência da capacidade ofensiva das palavras ou expressões, não se exigindo qualquer motivação especial.

“O dolo - ou o nível de representação ou de reconhecimento que a sua afirmação supõe sob um ponto de vista fáctico - pertence, por natureza, ao mundo interior do agente, razão pela qual apenas se poderá tornar conhecido, na hipótese de não ser revelado pelo próprio, caso possa ser inferido através da consideração de um determinado circunstancialismo objetivo com idoneidade suficiente para revelá-lo” - Proc. n.° 8665/2004-9, in www.dgsi.pt.

A vida democrática em sociedade pressupõe a liberdade dos cidadãos de criticar e discordar das decisões das instâncias públicas ou privadas, as quais estão, por conseguinte, sujeitas ao escrutínio do direito de crítica objetiva.

Segundo o Prof. Costa Andrade (in “Liberdade de Imprensa e Inviolabilidade Pessoal”, Coimbra Editora, 1996, pág. 232 e ss.), na medida em que a liberdade de expressão não ultrapasse o âmbito da crítica objetiva - isto é, enquanto a valoração e censura críticas se atêm exclusivamente às obras, realizações ou prestações em si, não se dirigindo diretamente à pessoa dos seus autores ou criadores - os juízos de valor formulados cairão fora da tipicidade das incriminações como a difamação ou a injúria.

Ainda segundo o mesmo autor, a atipicidade da crítica objetiva não depende do acerto, da adequação material ou da “verdade” das apreciações subscritas, as quais persistirão como atos atípicos seja qual for o seu bem-fundado ou justeza material, para além de que o correlativo direito de crítica, com este sentido e alcance, não conhece limites quanto ao teor, à carga depreciativa e mesmo à violência das expressões utilizadas, não exigindo do crítico, para tomar claro o seu ponto de vista, o meio menos gravoso, nem o cumprimento das exigências da proporcionalidade e da necessidade objetiva.

Estão em causa as seguintes expressões que o arguido preferiu no final do jogo entre o A... e o B... em direto para as televisões comentando a atuação da arbitragem do assistente no identificado jogo: “O que ele fez hoje foi, e vou repetir isto, sabendo das consequências do que estou a dizer, o que ele fez hoje foi roubar o A..., hoje o A... foi espoliado, foi roubado e foi maltratado, foi isso que hoje aconteceu. E vou dizer o seguinte, chegou a altura de pormos o dedo na ferida. Isto vem a acontecer há uma série de jogos (…) sendo que hoje, no segundo golo do B..., no amarelo ao CC, sabendo que o CC vai ficar excluído do próximo jogo, estas são atitudes persecutórias contra o A....

É claro e inequívoco que este Senhor hoje esteve no Estádio ... com um objetivo, prejudicar o A.... (…) hoje o que acontece no Estádio ..., volto a repetir, para que fique gravado, foi um roubo. (…) e este senhor o que fez hoje não foi respeitar, este senhor hoje desrespeitou o A..., desrespeitou o emblema que os jogadores do A... trazem ao peito, que trabalham durante toda a semana para chegarem ao fim de semana e serem espoliados como hoje foram (…) sei que vou ser castigado e digo-vos mais, tenho prazer em ser castigado (…) hoje fomos espoliados. (…) Como é que o CC leva um cartão amarelo da forma como levou e este cartão amarelo não vai permitir que o CC jogue no próximo jogo. Este foi o seu objetivo. Que exposição é que nós podemos fazer, junto de quem, só se for junto do Ministério Público, porque o que aconteceu no segundo golo é um roubo, não há mais nada a dizer que não isto. (…) hoje tiraram-nos um ponto dentro do campo. E quem nos tirou não foi o B..., quem nos tirou foi o senhor árbitro. Isso é claro”.

As expressões imputadas ao arguido, se bem que proferidas num tom e de um modo manifestamente inadequados às circunstâncias, correspondem ainda ao exercício do direito de crítica objetiva. São juízos de valor sobre atuações do assistente no âmbito das suas funções no âmbito da arbitragem a um jogo e não propriamente sobre a pessoa.

“A honra é a essência da personalidade humana, referindo-se, propriamente, à probidade, à retidão, à lealdade, ao carácter”.

Por outro lado, a “consideração é o património de bom nome, de crédito, de confiança, que cada um pode ter adquirido ao longo da sua vida, sendo como que o aspeto exterior da honra, já que provém do juízo em que somos tidos pelos outros.

A consideração é o merecimento que o indivíduo tem no meio social, isto é, a reputação, a boa fama, a estima, a dignidade objetiva, que é o mesmo que dizer, a forma como a sociedade vê cada cidadão - a opinião pública” (cfr. Leal Henriques e Simas Santos, “O Código Penal de 82, vol. 2, pág. 196).

Acresce que o crime de difamação é um crime doloso, o que quer significar que só estão arredadas do seu âmbito subjetivo as condutas negligentes, sendo, por isso, suficiente a imputação baseada tão só em dolo eventual.

Por outro lado, é de salientar que, hoje, está superada a antiga controvérsia no que tocava à exigência de um chamado dolo específico. E superada no sentido de que não se pode conceber uma tal exigência. Basta uma atuação dolosa, desde que se integre numa das modalidades do artigo 14.º do Código Penal.

Assim, a imputação de um facto ofensivo, ainda que sob a forma de suspeita; a formulação de um juízo de desvalor ou a reprodução de uma imputação ou de um juízo, que seja levado a terceiros, constitui um crime de difamação a menos que tal imputação surja para realizar interesses legítimos (por exemplo no exercício do direito de informar ou no cumprimento de um dever) e se faça a prova da verdade da imputação ou a mesma seja tida, de boa-fé, como verdadeira (art. 180.º, n.º 2, do Código Penal). Tais condições objetivas de punibilidade são requisitos cumulativos que forçosamente se têm que verificar de modo a afastar a punição do agente.

Assim, não consubstanciam crime de difamação os juízos que, como reflexo de crítica objetiva, acabam por atingir a honra do visado, desde que a valoração crítica seja adequada aos pertinentes dados de facto - cfr. Ac. da RC de 24.3.2004, in CJ XXIX, II, pág. 46.

Em qualquer Estado de Direito democrático é constitucionalmente garantido a todo o cidadão o direito de exprimir e divulgar livremente o seu pensamento por qualquer meio, bem como o direito de informar sem impedimentos nem discriminações, direitos que se traduzem na liberdade de criação, discussão e crítica.

Esta última forma de tradução do direito de expressão e de informação, tende a provocar situações de conflito potencial com bens jurídicos como a honra, situações em que de acordo com a doutrina mais recente e atualizada, a relevância jurídico-penal está à partida excluída por razões de atipicidade.

Costa Andrade, in Liberdade de Imprensa e Inviolabilidade Pessoal, 232/245, defende mesmo que se devem considerar atípicos os juízos que, como reflexo necessário da crítica objetiva, acabam por atingir a honra do visado, desde que a valoração crítica seja adequada aos pertinentes dados de facto.

No entanto, esclarece que a atipicidade já não poderá sustentar-se para os juízos que atingem a honra pessoal e a consideração pessoal, perdendo todo e qualquer ponto de conexão com a prestação ou a obra que, em princípio, legitimaria a crítica objetiva, nem para os juízos de facto feitos no contexto duma valoração crítica objetiva, a menos que pressuposta a prova da verdade, o que significa que só se deverão ter por atípicos os juízos de facto ofensivos em que a verdade do facto ou factos em que os mesmos assentam é evidente ou notória ou se mostra já demonstrada.

Deve, pois, excluir-se a atipicidade relativamente a críticas caluniosas, bem como a outros juízos de valor exclusivamente motivados pelo propósito de rebaixar e humilhar e, bem assim, em todas as situações em que os juízos negativos sobre o visado não têm nenhuma conexão com a matéria em discussão. Uma coisa é criticar a obra, outra muito distinta é agredir pessoalmente o autor, dar expressão a uma desconsideração dirigida à sua pessoa.

Acresce que é próprio da vida em sociedade haver alguma conflitualidade entre as pessoas. Há frequentemente desavenças, lesões de interesses alheios, etc. que provocam animosidade. Uma pessoa que se sente prejudicada por outra, por exemplo, pode compreensivelmente manifestar o seu descontentamento através de palavras azedas, acintosas ou agressivas. E o direito não pode intervir sempre que a linguagem utilizada incomoda ou fere suscetibilidades do visado. Só o pode fazer quando é atingido o núcleo essencial de qualidades morais que devem existir para que a pessoa tenha apreço por si própria e não se sinta desprezada pelos outros. Se assim não fosse, a vida em sociedade seria impossível. E o direito seria fonte de conflitos, em vez de garantir a paz social, que é a sua função - cfr. Ac. da RP de 19.1.2005, in www.dgsi.pt.

“Se bem que ninguém goste que lhe verberem comportamentos, atitudes ou mesmo simples intenções, ou fustigue a sua personalidade ou carácter, sobretudo quando feito de forma desabrida e cáustica, o incómodo daí resultante e suscetibilidade do visado não bastam para que se considere desde logo atingido o núcleo essencial de qualidades morais que devem existir para que a pessoa se tenha como socialmente realizada.

De facto, a dignidade penal da ofensa não se esgota na subjetividade dialética do visado, havendo de objetivar-se ainda necessariamente no circunstancialismo envolvente e no veículo condutor da mesma” - cfr. Ac da RP de 5.12.2007, in www.dgsi.pt.

 Também nos termos do Ac. da RP de 22.11.2006, in www.dgsi.pt, “o direito de expressão do pensamento, de opinião e de crítica deve prevalecer se as expressões e termos utilizados não ofendem o princípio da proporcionalidade e são adequados ao fim legitimamente perseguido com o escrito”.

Acresce que o cerne da determinação dos elementos objetivos se tem sempre de fazer pelo recurso a um horizonte de contextualização.

Cremos que no contexto em que foram proferidas a supra ditas expressões por parte do arguido, entende-se que as mesmas não preenchem os elementos típicos do crime de difamação de que vem acusado.

Como já se disse supra “se bem que ninguém goste que lhe verberem comportamentos, atitudes ou mesmo simples intenções, ou fustigue a sua personalidade ou carácter, sobretudo quando feito de forma desabrida e cáustica, o incómodo daí resultante e suscetibilidade do visado não bastam para que se considere desde logo atingido o núcleo essencial de qualidades morais que devem existir para que a pessoa se tenha como socialmente realizada”.

Salvo o devido respeito, parece-nos que as expressões proferidas pelo arguido não são objetivamente ofensivas para a honra e consideração do assistente.

Trata-se, assim, de uma crítica, porventura imerecida e injusta, à atuação do assistente (da forma incorreta, na perspetiva do arguido de como o mesmo conduziu a arbitragem e não propriamente à pessoa do assistente).

Conclui-se, pois, que, muito embora a conduta do arguido tivesse sido infeliz e indelicada, até agressiva, atenta as expressões utilizadas (sobretudo o verbo roubar) não constitui indícios de qualquer ilícito criminal, já que não se pode esquecer que tais expressões foram proferidas logo seguir ao jogo quando todas as emoções estão à flor da pele.

O arguido, embora tenha formulado juízos de valor negativos sobre a atuação do assistente, fê-lo sempre por factos relacionados com a atividade profissional do mesmo, em momento algum incidindo tais juízos e críticas sobre a pessoa do assistente, não incorrendo, pois, a nosso ver, em crítica pessoal, e muito menos em crítica caluniosa ou em juízos que exclusivamente revelem o propósito de rebaixar ou humilhar o assistente.

Consideram-se deste modo atípicas as críticas que o assistente entende terem ofendido a sua honra e consideração – cfr. no sentido defendido, o acórdão do STJ de 7-3-2007, processo n.° 07P440, transcrito em www.dgsi.pt.

De facto, se unanimemente vem sendo entendido que nem todo o facto que envergonha, perturba ou humilha é injurioso ou difamatório, "...tudo dependendo da «intensidade» da ofensa ou perigo de ofensa" - cfr. Oliveira Mendes, in O Direito à Honra e a Sua Tutela Penal, pág. 37 -, mais relevantemente cumpre considerar a natureza subsidiária do direito penal, decorrente do princípio da necessidade, enquanto matriz orientadora em matéria de direitos fundamentais, e erigida esta a princípio jurídico-constitucional, com assento no preceito geral contido no art. 18.°, n.º 2, da Lei Fundamental.

Decorrendo de tal natureza subsidiária um princípio de intervenção mínima do direito penal, ou ultima ratio da intervenção da jurisdicidade, significa isso que não deve tal intervenção ocorrer quando seja possível proteger o bem jurídico - com idêntica ou superior eficácia - através de distintas e menos onerosas intervenções tutelares - neste mesmo sentido vide Faria Costa, Comentário Conimbricence do CP, 1-683.

Analisados os elementos recolhidos quer no decurso do Inquérito, quer durante a Instrução, não foram recolhidos indícios a partir dos quais e, com razoabilidade, possamos referir que o arguido proferiu as expressões que lhe são imputadas com o intuito de ofender o assistente na sua honra e consideração e que, em julgamento, por tais factos, lhe possa vir a ser aplicada uma pena ou medida de segurança, pela prática do crime de injúria ou difamação.

Como escreveu o prof. Beleza dos Santos, in RLJ, 92-168, “não deve considerar-se ofensivo da honra e consideração de outrem, aquilo que o queixoso entende que o atinge, de certos pontos de vista, mas aquilo que razoavelmente, isto é, segundo a sã opinião da generalidade das pessoas de bem, deverá considerar-se ofensivo daqueles valores individuais e sociais”.

Não tendo as expressões proferidas pelo arguido a virtualidade de causar dano à honra do assistente em qualquer das vertentes tuteladas, não há necessidade de maior indagação, nomeadamente quanto à verificação do elemento subjetivo do tipo.

Por tudo o exposto, e sem necessidade de outras considerações, julgamos ser procedente a defesa apresentada no requerimento de abertura de instrução, não havendo nos autos indícios suficientes da prática pelo arguido requerente AA dos factos descritos na acusação e, portanto, do crime com base neles é imputado, de difamação agravada, sendo improvável uma sua condenação em sede de julgamento.

DECISÃO:

Nestes termos, decide-se julgar procedente o requerimento de abertura de instrução e, consequentemente, NÃO PRONUNCIAR para julgamento AA, pelos factos descritos na acusação de fls. 119 e s.s. e crime de difamação agravado ali imputado.


*

Custas pelo assistente, fixando-se em 2 (duas) U.C.´s a respetiva taxa de justiça – art. 515.º/1 al. a) do Código de Processo Penal e art. 8.º do Regulamento das Custas Processuais.

Notifique e após trânsito, arquive.” (ref.ª 452906600).


*

A fase da instrução fora requerida pelo arguido AA, na sequência da acusação deduzida pelo Ministério Público, a qual lhe imputou os seguintes factos e crime:

1. O assistente BB exerce as funções de árbitro de categoria CI pertencente aos quadros do Conselho de Arbitragem da Federação Portuguesa de Futebol, exercendo a actividade profissional de árbitro de futebol nas competições profissionais de futebol, vulgo 1.ª e 2.ª Ligas Profissionais de Futebol.

2. O aqui arguido era, à data dos factos que infra se relatarão, e ainda hoje é, Presidente do A....

3. Sucede que, por força do exercício da aludida actividade profissional de árbitro de futebol, o aqui Queixoso foi nomeado pelo Conselho de Arbitragem da Federação Portuguesa de Futebol para arbitrar o jogo da 17.ª Jornada da Liga C... (vulgo 1.ª Liga Portuguesa), que opôs o A... ao B....

4. O referido jogo foi realizado em 5/2/2021, tendo tido início pelas 21h, no Estádio ..., Porto.

5. O arguido no final do referido jogo, na conferência de imprensa que se realizou no identificado Estádio, comentou a actuação da arbitragem do aqui assistente no identificado jogo de futebol.

6. Referindo-se ao assistente, o arguido referiu em directo para as televisões (vídeos disponíveis em https://www.D....pt/video.php?id=....752):

“O que ele fez hoje foi, e vou repetir isto, sabendo das consequências do que estou a dizer, o que ele fez hoje foi roubar o A..., hoje o A... foi espoliado, foi roubado e foi maltratado, foi isso que hoje aconteceu. E vou dizer o seguinte, chegou a altura de pormos o dedo na ferida. Isto vem a acontecer há uma série de jogos (…) Sendo que hoje, no segundo golo do B..., no amarelo ao CC, sabendo que o CC vai ficar excluído do próximo jogo, estas são atitudes persecutórias contra o A....

É claro que inequívoco que este Senhor hoje esteve no Estádio ... com um objetivo, prejudicar o A....

(…)

Hoje o que aconteceu no Estádio ..., volto a repetir, para que fique gravado, foi um roubo.

(…)

E este Senhor o que fez hoje não foi respeitar, este Senhor hoje desrespeitou o A..., desrespeitou o emblema que os jogadores do A... trazem ao peito, que trabalham durante toda a semana para chegarem ao fim de semana e serem espoliados como hoje foram.

(…)

Sei que vou ser castigado e digo-vos mais, tenho prazer em ser castigado.

(…)

E hoje fomos espoliados.”

7. Após novas questões colocadas pelos Srs. Jornalistas, o arguido prosseguiu, mantendo as suas graves e desonrosas declarações, que poderão ser vistas e ouvidas em https://www.D....pt/video.php?id=....753:

“(…)

Como é que o CC leva um cartão amarelo da forma como levou e este cartão amarelo não vai permitir que o CC jogue no próximo jogo. Este foi o objetivo. Que exposição é que nós podemos fazer, junto de quem, só se for junto do Ministério Público, porque o que aconteceu no segundo golo é um roubo, não há mais nada a dizer que não isto.

(…)

Hoje tiraram-nos um ponto dentro de campo. E quem nos tirou não foi o B..., quem nos tirou foi o Senhor Árbitro. Isso é claro.”

8. Estes comentários foram inclusive noticiados por diversos meios de comunicação social nacionais, como o jornal “...”, jornal “...”, jornal “...”

9. E o assistente tomou conhecimento das afirmações produzidas em sua casa, sita em ..., após o identificado jogo.

10. O arguido agiu livre, deliberada e conscientemente.

11. O arguido ao proferir as expressões acima descritas quis atingir a honra e consideração do assistente BB enquanto árbitro de futebol, colocando em crise a sua isenção e objectividade no acto de arbitragem, de forma pública e perante a comunicação social de forma a ser difundida pelo público, o que conseguiu.

12. Bem sabendo que a sua conduta pera proibida e punida por lei.

Incorreu o arguido AA na prática de:

- UM crime de difamação agravada, p. e p. pelos artigos 180.º, n.º 1, 183.º, n.º 1, als. a) e b), e 184.º, ex vi art.º 132.º, n.º 2, al. l), do Código Penal.” (ref.ª 152208343).


*

Apreciando.

O arguido AA requereu a abertura da fase da instrução, relativamente aos factos pelos quais o Ministério Público o havia acusado, pelo que a instrução “vis[ou] a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação, em ordem a não submeter a causa a julgamento (n.º 1 do art. 286.º e al. a) do n.º 1 do art. 287.º do CPP).

No que respeita à decisão instrutória, dispõe o artigo 308.º do mesmo Código o seguinte:

1 - Se, até ao encerramento da instrução, tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, o juiz, por despacho, pronuncia o arguido pelos factos respectivos; caso contrário, profere despacho de não pronúncia.

2 - É correspondentemente aplicável ao despacho referido no número anterior o disposto nos n.ºs 2, 3 e 4 do artigo 283.º, sem prejuízo do disposto na segunda parte do n.º 1 do artigo anterior. (…)

Perante aquela remissão para o artigo 283.º, importa ter presente o estabelecido no n.º 2 desta norma, que é do seguinte teor: “Consideram-se suficientes os indícios sempre que deles resultar uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena ou uma medida de segurança.”

Conforme resulta daquele preceito, sendo a instrução requerida pelo arguido, na sequência de acusação do Ministério Público, a decisão instrutória terá de apreciar o “mérito” da imputação criminal, ainda que necessariamente em termos indiciários, em face das provas recolhidas nos autos, bem como do preenchimento de algum ilícito criminal, concluindo pela pronúncia ou não pronúncia do arguido. E para pronunciar, o juiz terá de afirmar a suficiência dos indícios quanto à verificação dos pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena (ou medida de segurança, para os inimputáveis).

Aquela última das normas transcritas estabelece o padrão por que deve guiar-se o Juiz de Instrução para concluir que os indícios recolhidos são “suficientes”. Com efeito, tal norma aponta como bitola a “possibilidade razoável” de, com base neles, o arguido vir a ser condenado em julgamento (ressalvada a eventual aplicação de medida de segurança).

Nesse contexto, o Professor Jorge de Figueiredo Dias sustenta que serão indícios suficientes quando “em face deles seja de considerar altamente provável a futura condenação do acusado ou quando esta seja mais provável que a sua absolvição”.[1]

A possibilidade razoável tem de ser, necessariamente, aquela que se afigura mais positiva do que negativa relativamente à condenação em julgamento.

Na situação sub judice não foi invocada a inexistência ou insuficiência de indícios relativamente às expressões que foram dirigidas ao assistente por parte do arguido, o que está admitido na decisão recorrida, na qual se considerou que resultam “suficientemente indiciados os factos descritos em 1.º, 2.º, 3.º, 4.º, 5.º, 6.º, 7.º, 8.º e 9.º”, reportando-se à materialidade da acusação, também acima transcrita, ainda que não o refira expressamente (vide pág. 7 da decisão instrutória).

Já relativamente aos elementos subjectivos, vertidos nos pontos 10., 11. e 12. da acusação, dizendo-se serem as imputadas expressões criminalmente atípicas, considerou-se que, analisados os elementos constantes dos autos, “não foram recolhidos indícios a partir dos quais e, com razoabilidade, possamos referir que o arguido proferiu as expressões que lhe são imputadas com o intuito de ofender o assistente na sua honra e consideração e que, em julgamento, por tais factos, lhe possa vir a ser aplicada uma pena ou medida de segurança, pela prática do crime de injúria ou difamação”, acrescentando-se ainda que “não tendo as expressões proferidas pelo arguido a virtualidade de causar dano à honra do assistente em qualquer das vertentes tuteladas, não há necessidade de maior indagação, nomeadamente quanto à verificação do elemento subjetivo do tipo.” (págs. 15 e da 16 da decisão recorrida, acima transcrita).

Conforme se verifica, a Exm.ª Juíza de Instrução considerou não terem tais expressões relevância criminal, pelo que arredada ficou a possibilidade de o arguido ter agido de forma livre e consciente, sabendo da ilicitude criminal e punição de tal conduta.  Mas será que assim é?

Vejamos.

Como se escreveu na decisão recorrida, comete o crime de difamação “Quem, dirigindo-se a terceiro, imputar a outra pessoa, mesmo sob a forma de suspeita, um facto, ou formular sobre ela um juízo, ofensivos da sua honra ou consideração, ou reproduzir uma tal imputação ou juízo (…)” - (art. 180.º, n.º 1, do C. Penal).

Por sua vez, dispõe o artigo 183.º do mesmo Código, com a epígrafe “Publicidade e calúnia”, o seguinte:

1 – Se no caso dos crimes previstos nos artigos 180.º, 181.º e 182.º:

a) A ofensa for praticada através de meios ou de circunstâncias que facilitem a sua divulgação; ou

b) Tratando-se de imputação factos, se averiguar que o agente conhecia a falsidade da imputação;

as penas da difamação ou da injúria são elevadas de um terço nos seus limites mínimo e máximo.

2 – Se o crime for cometido através de meio de comunicação social, o agente é punido com pena de prisão até dois anos ou com pena de multa não inferior a 120 dias.”

E de acordo com o disposto no artigo 184.º, desse Código, as penas previstas nesses artigos “são elevadas de metade nos seus limites mínimo e máximo se a vítima for uma das pessoas referidas na alínea l) do n.º 2 do artigo 132.º, no exercício das suas funções ou por causa delas”, entre as quais se encontram o “árbitro desportivo sob a jurisdição das federações desportivas” (parte final dessa al. l) do n.º 2 do art. 132.º).

Difamar é descredibilizar, desacreditar, diminuir a reputação, o bom nome e o conceito em que alguém é tido, por si mesmo e pela comunidade.

Os processos executivos do crime de difamação podem ser vários:

- Imputação de um facto ofensivo (ainda que meramente suspeito);

- Formulação de um juízo de desvalor; ou

- Reprodução de uma imputação ou de um juízo daquela natureza.[2]

Sendo o facto a afirmação de uma realidade, o juízo deve ser entendido relativamente ao grau de consecução de uma ideia, coisa ou facto, valorados em função do fim prosseguido.

A difamação representa a atribuição a alguém de facto ou conduta, ainda que não criminosos, que encerrem em si uma reprovação ético-social, isto é, que sejam ofensivos da reputação do visado. A difamação compreende comportamentos lesivos da honra e consideração de alguém. Honra é a dignidade subjectiva, ou seja, o elenco dos valores éticos que cada ser humano possui, dizendo respeito ao património pessoal e interno de cada um – o próprio eu. Por sua vez, a consideração é o merecimento que o indivíduo tem no meio social, ou seja, a reputação, a boa fama, a estima, a dignidade objectiva, o mesmo é dizer a forma como a sociedade cada cidadão – a opinião pública.[3]

Na lição de Beleza dos Santos, a honra refere-se ao apreço de cada um por si, à auto-avaliação no sentido de não ter um valor negativo, particularmente do ponto de vista moral. A consideração, ao juízo que forma ou pode formar o público no sentido de considerar alguém um bom elemento social ou, ao menos, de o não julgar um valor negativo.[4]

Por sua vez, Silva Dias refere que “o bem jurídico constitucionalmente delineado apresenta um lado individual - o bom nome - e um lado social - a reputação e consideração - fundidos numa pretensão de respeito que tem como correlativo uma conduta negativa dos outros, é, ao fim ao cabo, uma pretensão a não ser vilipendiado ou depreciado no seu valor aos olhos da comunidade.”[5]

Segundo José Faria Costa, no conceito de honra tem-se distinguido a honra interior ou subjectiva, a qual se reporta à opinião ou sentimento de uma pessoa sobre si própria, e a honra exterior ou objectiva, referente à representação que os outros têm sobre o valor dessa pessoa, designada de reputação ou bom nome. Trata-se, respectivamente, da vertente pessoal e da dimensão social da honra, sendo esta um bem pessoalíssimo e imaterial.[6]

Também Augusto Silva Santos refere que o bem jurídico honra traduz uma pretensão de respeito por parte dos outros, que decorre da dignidade humana. O seu conteúdo é constituído basicamente por uma pretensão de cada um ao reconhecimento da sua dignidade por parte dos demais. Sem a observância social dessa condição não é possível à pessoa realizar os seus planos de vida e os seus ideais de excelência na multiplicidade de contextos e relações sociais em que intervém. O bem jurídico-constitucional assim delineado apresenta um lado individual - o bom nome - e um lado social - a reputação ou consideração - fundidos numa pretensão de respeito que tem como correlativo uma conduta negativa dos outros. É, ao fim ao cabo, uma pretensão a não ser vilipendiado ou depreciado no seu valor aos olhos da comunidade.[7]

No fundo, o que está em causa é o sentimento pessoal e a pretensão de cada um ao reconhecimento da sua dignidade por parte dos outros.

O artigo 25.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa (CRP) dispõe que “A integridade moral e física das pessoas é inviolável.”

Por seu lado, o artigo 26.º, n.º 1, estabelece que “A todos são reconhecidos o direito à identidade pessoal, ao desenvolvimento da personalidade, á capacidade civil, á cidadania, ao bom nome e reputação, à imagem, à palavra, à reserva da intimidade da vida privada e familiar e à proteção legal contra quaisquer formas de descriminação.”

Em contraponto, estabelece o artigo 37.º, n.º 1, que “Todos têm o direito de exprimir e divulgar o seu pensamento pela palavra, pela imagem ou por qualquer outro meio, bem como o direito de informar, de se informar, e de ser informados, sem impedimentos ou discriminações.

Todos esses direitos merecem tutela e garantia constitucionais, enquanto direitos fundamentais das pessoas, inscritos na Constituição da República, ao mesmo nível hierárquico de tutela, concretamente no mesmo Título II - Direitos, Liberdades e Garantias - e Capítulo I - Direitos, Liberdades e Garantias Pessoais - da Parte I.

Assim, o conflito que possa existir entre tais direitos – bom nome e reputação / liberdade de expressão – terá de ser resolvido com ponderação dos interesses em causa, apelando aos critérios da proporcionalidade, da necessidade e da adequação (art. 18.º, n.º 2, da mesma CRP).

Também a Convenção Europeia dos Direitos do Homem (CEDH), garante no seu artigo 10.º, n.º 1, o direito de qualquer pessoa à liberdade de expressão, compreendendo a liberdade de opinião e de receber ou transmitir ideias, sem ingerências de quaisquer autoridades públicas e sem consideração de fronteiras.

Sendo aqui reconhecida a liberdade de expressão (a própria epígrafe do artigo assim o indica), o direito ao bom nome e reputação não goza de consagração específica, em disposição própria, sendo, contudo, objecto de tutela através do n.º 2 do mesmo preceito, onde se alude à “protecção da honra ou dos direitos de outrem”, a qual pode servir de fim legítimo a uma restrição à liberdade de expressão. Ademais, essa tutela é também alcançada através do direito ao respeito da vida privada e familiar consagrado no artigo 8.º da mesma CEDH. 

Nessa medida, tal como referem Gomes Canotilho e Vital Moreira, “O direito de liberdade de expressão e o direito à consideração e à honra, ambos constitucionalmente garantidos, quando em confronto, devem sofrer limitações, de modo a respeitar-se o núcleo essencial de um e de outro.”[8]

Sendo inevitável o conflito entre a liberdade de expressão e o direito à honra e consideração, a solução do caso concreto há-se ser encontrada através da “convivência democrática” desses mesmos direitos, pelo que, consoante as situações, assim haverá uma compressão maior ou menor de um ou outro.

No dizer de Joaquim de Sousa Ribeiro, “colidindo entre si um direito e uma liberdade com igual estatuto constitucional, a resposta do ordenamento jurídico terá de se ajustar, na medida do possível, tanto ao dever negativo de respeito como ao dever positivo de protecção a que o Estado está sujeito, num difícil equilíbrio de exigências contraditórias. (…) Há que evitar tanto a violação da proibição de insuficiência, no que respeita ao direito à reputação, como a violação da proibição do excesso, no que se reporta à liberdade de expressão.”[9]

Conforme enuncia o mesmo Autor, a jurisprudência do TEDH, embora afirmando frequentemente que, em princípio, a liberdade de expressão e o direito à reputação merecem igual respeito, tem atribuído frequentemente primazia àquela, com suporte no seguinte: (i) a atribuição de uma protecção diminuída às figuras públicas, em particular aos detentores ou candidatos a cargos políticos, actuando fora do contexto da vida privada; (ii) a concessão de uma margem muito alargada de tolerância para manifestações da liberdade de expressão no contexto de um debate público sobre questões de interesse geral; (iii) a distinção entre a invectiva política e o ataque pessoal gratuito; (iv) a distinção entre uma declaração de facto, susceptível de comprovação, e uma opinião, para o que basta uma base factual credível; (v) a ideia de que a liberdade de expressão, numa sociedade acolhedora do pluralismo democrático, não serve apenas para divulgar conteúdos inofensivos ou indiferentes, mas também aqueles que podem ferir, chocar ou abalar; (vi) a protecção reforçada dos jornalistas, desde que agindo de boa-fé e com respeito pela regras legais e deontológicas da profissão.[10]

O enfoque da jurisprudência do TEDH tem sido, no entanto, essencialmente direccionado para os casos de invocado abuso de liberdade de imprensa.

Assim, no conflito entre o direito à honra e a liberdade de expressão, tem vindo a consolidar-se uma viragem, tendo por base e fundamento o relevo, a dignidade e a dimensão da liberdade de expressão como direito fundamental individual e como princípio conformador e essencial à manutenção do Estado de Direito democrático, reconhecendo-se que o exercício do direito de expressão, designadamente, enquanto direito de opinião e de crítica, constitui o próprio fundamento na resolução de tal conflito.

Parte significativa da jurisprudência do Tribunais Superiores tem vindo a sustentar deverem considerar-se atípicos os juízos de apreciação e de valoração crítica vertidos sobre realizações científicas, académicas, artísticas ou profissionais, ou sobre prestações conseguidas nos domínios do desporto e do espectáculo, quando não ultrapassem o âmbito da crítica objetiva, isto é, enquanto a valoração e censura críticas se atêm exclusivamente às obras, às realizações ou prestações em si, não se dirigindo diretamente à pessoa dos seus autores ou criadores, posto que não atingem a honra pessoal do cientista, do artista, do desportista, do profissional em geral, nem atingem a honra com a dignidade e a carência de tutela penal que definem e balizam a pertinente área de tutela típica. Ou seja, desde que o agente não incorra na crítica caluniosa ou na formulação de juízos de valor aos quais subjaz o propósito de rebaixar e humilhar.[11]

Efectivamente, sustentamos que devem considerar atípicos os juízos que, como reflexo necessário da crítica objectiva, acabam por atingir, reflexamente, a honra do visado, desde que a valoração crítica seja adequada aos pertinentes dados de facto, devendo, no entanto, afirmar-se a tipicidade criminal relativamente a críticas caluniosas, bem como a outros juízos motivados pelo propósito de ofender, rebaixar e humilhar e, bem assim, em todas as situações em que os juízos negativos sobre o visado não têm conexão com a matéria em discussão, pois que uma coisa é criticar a obra ou desempenho, outra muito distinta é agredir e ofender pessoalmente o autor, dando expressão a um ataque e desconsideração dirigidos à sua pessoa.

Tendo presente tudo quanto acaba de dizer-se, julgamos que na decisão recorrida não se fez a adequada valoração jurídico-criminal dos factos indiciados.

Com efeito, concordando-se embora com a análise aí feita quanto à amplitude do tipo incriminador, com citação de doutrina e jurisprudência pertinentes, não concordamos que as expressões imputadas ao arguido se possam considerar atípicas, por não afectarem o bem jurídico protegido pela norma incriminadora.

Na dualidade liberdade de expressão / direito à honra e ao bom nome, este último merece aqui primazia de tutela.

Estão em causa as expressões proferidas pelo arguido, então Presidente do A..., no final do jogo de futebol entre o A... e o B..., em directo para os canais televisivos que cobriam tal acontecimento desportivo, sendo destinatário das mesmas o agora assistente, pertencente aos quadros do Conselho de Arbitragem da Federação Portuguesa de Futebol, que havia arbitrado esse jogo, as quais foram do seguinte teor:

O que ele fez hoje foi, e vou repetir isto, sabendo das consequências do que estou a dizer, o que ele fez hoje foi roubar o A..., hoje o A... foi espoliado, foi roubado e foi maltratado, foi isso que hoje aconteceu. E vou dizer o seguinte, chegou a altura de pormos o dedo na ferida. Isto vem a acontecer há uma série de jogos (…) Sendo que hoje, no segundo golo do B..., no amarelo ao CC, sabendo que o CC vai ficar excluído do próximo jogo, estas são atitudes persecutórias contra o A....

É claro que inequívoco que este Senhor hoje esteve no Estádio ... com um objetivo, prejudicar o A....

(…)

Hoje o que aconteceu no Estádio ..., volto a repetir, para que fique gravado, foi um roubo.

(…)

E este Senhor o que fez hoje não foi respeitar, este Senhor hoje desrespeitou o A..., desrespeitou o emblema que os jogadores do A... trazem ao peito, que trabalham durante toda a semana para chegarem ao fim de semana e serem espoliados como hoje foram.

(…)

Sei que vou ser castigado e digo-vos mais, tenho prazer em ser castigado.

(…)

E hoje fomos espoliados.”

 “(…)

Como é que o CC leva um cartão amarelo da forma como levou e este cartão amarelo não vai permitir que o CC jogue no próximo jogo. Este foi o objetivo. Que exposição é que nós podemos fazer, junto de quem, só se for junto do Ministério Público, porque o que aconteceu no segundo golo é um roubo, não há mais nada a dizer que não isto.

(…)

Hoje tiraram-nos um ponto dentro de campo. E quem nos tirou não foi o B..., quem nos tirou foi o Senhor Árbitro. Isso é claro.” (cfr. pontos 6. e 7. da acusação).

Como se constata à evidência, tais expressões não representam uma mera crítica objectiva ao desempenho do árbitro no jogo, nem tão pouco se tratou de juízos de valor sobre a actuação do assistente, como refere o Tribunal a quo. Tal ocorreria se o arguido se tivesse limitado a criticar o desempenho e actuação do árbitro, designadamente imputando-lhe erros de avaliação de lances relevantes, incluindo para o resultado do jogo, nomeadamente que falhou ao apontar a falta “A” ou “B” ou ao mostrar um cartão ao jogador “X” ou “Y”. Nesse caso estaria em causa uma avaliação, embora negativa, da prestação do árbitro no jogo.

Mas assim não foi. O arguido imputou ao assistente factos concretos, praticados de forma intencional, com um objectivo específico – prejudicar o A.... O mesmo disse expressamente, por mais que uma vez, que o árbitro roubou e espoliou o A..., o que implica apontá-lo como “ladrão” à luz do entendimento comum, atribuindo-lhe mesmo atitudes persecutórias contra o clube e que o assistente esteve no Estádio ... com aquele objectivo, apontando-lhe, por isso, a premeditação dessa conduta.

Ou seja, o arguido acusou o assistente da prática de factos ilícitos criminosos - o adulterar do resultado do jogo e da verdade desportiva -, levados a cabo com intencionalidade e premeditação, tanto assim que até aludiu à apresentação de eventual exposição junto do Ministério Público.

Ao manifestar-se desse modo, o arguido atingiu, de forma directa, o núcleo essencial do direito ao bom nome e reputação do assistente enquanto pessoa e profissional da arbitragem desportiva. Pôs em causa a sua honestidade e integridade pessoais, também perante a comunidade.

Naturalmente que foi a condição profissional de árbitro que motivou tal reacção do arguido relativamente ao assistente, mas isso não exclui a censurabilidade penal de tal conduta, como parece sustentar-se na decisão recorrida. Se assim fosse, qualquer agressão ao bom nome e consideração de outrem seria sempre atípica se levada a cabo no contexto ou por factos relacionados com a actividade profissional.

Tal atipicidade apenas será de aceitar se a conduta do agente enquadrar uma crítica objectiva, ainda que porventura imerecida, ao desempenho ou prestação no campo profissional, o que não é o caso dos autos.  Aqui afirmou-se a parcialidade do “juiz de campo”, imputando-se-lhe a actuação em prejuízo de uma das equipas, de forma intencional e premeditada.

Conforme refere o assistente na motivação do recurso, o arguido não se focou em criticar as decisões tomadas pelo assistente durante o jogo, tendo antes dado expressão a uma ofensa à honra e consideração da sua pessoa.

Tais expressões, proferidas daquele modo e naquelas circunstâncias, não estão a coberto da liberdade de expressão, antes atentando contra o direito ao bom nome e reputação do visado.

Não se tratou, por isso, apenas de uma conduta vista como mal-educada e eticamente censurável, mas sim merecedora da tutela do direito penal. O desporto - e futebol em particular - não é uma actividade alheia à vida em sociedade, pelo que não pode beneficiar de uma tolerância acrescida relativamente aos demais sectores de actividade.

Nem tão pouco se poderá falar de uma reacção a “quente” e de “emoções à flor da pele”, no decorrer do jogo, como tantas vezes se vê e ouve, pois que o desafio já havia terminado há algum tempo – pelo menos vários minutos – tendo o arguido tempo suficiente para reflectir sobre o teor da sua comunicação à imprensa.

Ademais, não se tratou da divulgação de informação de interesse público – de valia para a comunidade – susceptível de justificar tal forma de actuação. Em todo o caso, o arguido poderá provar a verdade da imputação, o que levará à não punibilidade da respectiva conduta, atento o disposto na alínea b) do n.º 2 o referido artigo 180.º do Código Penal.

 Como crime de perigo e doloso que é, tem como elementos constitutivos, objectivamente, a acção adequada a produzir um resultado consubstanciado na ofensa à honra ou consideração de outrem e, subjectivamente, o dolo, constituído pelo conhecimento dos elementos objectivos do tipo e pela vontade de agir por forma a preenchê-los - artigos 13.º e 14.º do Código Penal - não sendo, porém, necessário para o preenchimento do tipo subjectivo um particular animus injuriandi ou difamandi, ou seja, um dolo específico.

Com efeito, é consensual que basta o dolo genérico para a realização deste tipo-de-ilícito – o agente saiba que estava a atribuir um facto ofensivo do bom nome e consideração alheia e quis proceder desse modo.

Sendo a intencionalidade e consciência da ilicitude elementos do foro interno do agente e, por isso, insusceptíveis de, em regra, serem demonstrados por prova directa, a forma como o aqui arguido actuou e até o que referiu a tal respeito – “Sei que vou ser castigado e digo-vos mais, tenho prazer em ser castigadoevidencia que agiu de forma livre e consciente, com o objectivo de atingir e honra e consideração do visado, sabendo da ilicitude e punibilidade de tal conduta, o que leva a afirmar também, nesta sede, a indiciação dos factos constantes dos pontos 10, 11. e 12. da acusação.

Além tal comportamento poder ter consequências ao nível da justiça desportiva, não vemos que essa actuação possa estar a coberto do exercício de um direito – seja à crítica ou à informação -, ao ponto de a sua ilicitude ser excluída pela ordem jurídica, nos termos do artigo 31.º, n.º 2, alínea b), do Código Penal.

Deste modo, tendo sido recolhidos indícios suficientes da verificação dos pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena, caberá proferir despacho de pronúncia, nos termos do artigo 308.º do CPP, como pugna o assistente. 

Considera-se, contudo, existir um erro na qualificação jurídica, na medida em que, tendo os factos sido divulgados através de meio de comunicação social – televisões –, tem aplicação o disposto no n.º 2 do artigo 183.º do Código Penal (e não as alíneas a) e b) do seu n.º 1, como se mencionada na acusação), competindo à Exm.ª Juíza de Instrução proceder a essa alteração, cumprindo previamente o disposto no artigo 303.º, n.ºs 1 e 5, do CPP.

Assim, impõe-se a procedência do recurso, com a revogação da decisão recorrida, a qual deverá ser substituída por outra que pronuncie o arguido pelos factos descritos na acusação, com imputação de um crime de difamação agravada, p. e p. pelos artigos 180.º, n.º 1, 183.º, n.º 2, e 184.º, ex vi artigo 132.º, n.º 2, alínea l), todos do Código Penal, cumprindo-se, contudo, o disposto no artigo 308.º, n.ºs 1 e 5, do CPP.


III

Pelo exposto, decide-se julgar procedente o recurso interposto pelo assistente BB, com a consequente revogação da decisão recorrida, a qual deverá ser substituída por outra que, tendo por indiciados os factos descritos na acusação, pronuncie o arguido AA por um crime de difamação agravada, p. e p. pelos artigos 180.º, n.º 1, 183.º, n.º 2, e 184.º, ex vi artigo 132.º, n.º 2, alínea l), todos do Código Penal, cumprindo-se previamente o disposto no artigo 308.º, n.ºs 1 e 5, do CPP.

Sem custas (art. 515.º, n.º 1, al. b), do CPP, à contrário).


*

Notifique.

*
Porto, 13-03-2024.
Raúl Cordeiro
Francisco Mota Ribeiro [Voto vencido pelas seguintes razões:
Com uma assertividade que não tem em conta o requerimento de abertura de instrução e a completude fáctica e de verdade material aí descrita pelo arguido, e as garantias de defesa que o mesmo representa, procurou o assistente convencer que as afirmações contra si produzidas foram injuriosas, injustificadas e desproporcionadas. Fê-lo, todavia, truncando a factualidade efetivamente ocorrida, na sua globalidade (tal como veio a ser vertida no requerimento de abertura de instrução pelo arguido), enfatizando uma descrição factual que assenta em excertos de texto, composições frásicas, com as quais se constrói uma sintaxe e uma específica semântica, totalmente descontextualizada, que acabam por criar a ideia de que o arguido cometeu o crime que lhe vinha imputado na acusação. Aliás, o mesmo, em certa medida, já havia acontecido na acusação pública deduzida pelo Ministério Público.
O resultado, com realce a negrito dado pelo próprio assistente, foi o seguinte (consta da al. E) das alegações do recurso):
“No caso dos autos, releva, para o preenchimento deste ilícito, a imputação ao visado - arbitro de futebol integrado na Federação Portuguesa de Futebol em competições profissionais – por meio de palavras e sob a forma de suspeita, da prática e crimes [(…) o que ele fez [o árbitro e aqui Recorrente] hoje foi roubar o A..., hoje o A... foi espoliado. foi roubado e foi maltratado (…) E claro que inequívoco que este Senhor [o árbitro e aqui Recorrente] hoje esteve no Estádio ... com um objetivo, prejudicar o A.... (…) Hoje o que aconteceu no Estádio ..., volto a repetir, para que fique gravado, foi um roubo. (…) porque o que aconteceu no segundo golo é um roubo, não há mais nada a dizer que não isto. Hoje tiraram-nos um ponto dentro de campo. E quem nos tirou não foi o B..., quem nos tirou foi o Senhor Árbitro. Isso é claro.”], juízos e imputações adjetivas objetivamente insultuosas do bom nome do árbitro, aqui Recorrente.
F)
Entendemos ser clara a natureza ofensiva das imputações efetuadas pelo Arguido, aqui Recorrido, porquanto, tratando-se o visado, de arbitro de futebol, reportando-se as imputações a atuação especifica numa arbitragem em concreto, num momento imediatamente após o decurso do jogo de futebol, a aptidão ofensiva é transversal à consciência ético-jurídica de qualquer cidadão colocado na mesma posição.”
Ora, o que importava apreciar era o que efetivamente foi dito e o contexto em que foi dito (tal como o arguido referiu no requerimento de abertura de instrução e pode facilmente ser confirmado na imprensa desportiva publicada, sendo do conhecimento geral das pessoas informadas, aproximando-se assim uma tal indiciação da qualidade de que é portador o facto notório), foi o seguinte (negrito é meu):
"Pedi para vir cá hoje e para olhos nos olhos e sem máscara para que não haja dúvida de quem está a falar é o presidente. Sabendo que vou ser castigado, sabendo que vivemos um clima pidesco e estes senhores de amarelo podem fazer o que querem e os clubes têm de comer e calar. Tem sido isto que tem vindo a acontecer. O A... tem vindo a ser prejudicado. Vamos calando, até hoje. Este senhor que hoje pisou o relvado do ... não tem qualidade e categoria para entrar no nosso estádio", atirou o dirigente axadrezado.
Sei que vou ser castigado, mas chegou a altura de pôr o dedo na ferida. É uma vergonha o que aconteceu no .... O B... não tem culpa, mas está aos olhos de todos que o segundo golo do B... é claramente precedido de falta. O VAR viu isso.
Chamou o árbitro, que decidiu fazer ouvidos moucos e olhos de cego. O que fez foi roubar o A.... Hoje o A... foi roubado e foi maltratado. Foi isso que aconteceu. Chegou a altura de pôr o dedo na ferida Estas são atitudes persecutórias contra o A.... É claro e inequívoco que esteve com o objetivo claro de prejudicar o A.... Defendemos o VAR e fez efeito. Chamou o árbitro e nem assim quis ver. No segundo golo não há dúvida: o defesa é empurrado. Quando temos o árbitro a dizer que o jogador do A... faz falta. Foi um roubo".
Vamos levar isto até às últimas consequências. Têm de ter a consciência de que têm de respeitar um clube centenário. Desrespeitou o A..., desrespeitou o emblema e os jogadores. Tenho o prazer em ser castigado. Para dizer as verdades tenho de ser castigado, não me vou calar nunca. A maior exposição que pode ser feita é esta. Toda a gente percebeu o que se passou. Como é que o CC leva o amarelo da forma que levou? Não vai jogar no próximo jogo. Que exposição podemos fazer? Só se for junto do Ministério Público. Foi um roubo! Vamos queixar-nos a quem? Não podemos falar? Estes senhores são mais que Deus. Fazem o que querem e lhes apetece e nós temos de estar calados. Adianta exposições? Hoje tiraram-nos um ponto e quem tirou não foi o B.... Foi o árbitro. Justificação é que o jogador do A... fez obstrução. É ridículo"
O termo “roubo” é obviamente usado pelo arguido no sentido figurado (como qualquer pessoa o poderá utilizar quando lhe comunicam um determinado preço que considera alto e responde: “isto é um roubo”) e no contexto comunicativo tem o significado mais agressivo, empolgante, enfático, de querer dizer que o A... foi prejudicado pelo árbitro. E deliberada e intencionalmente prejudicado. Justificando-se o arguido para o afirmar no facto de, apesar de o VAR ter chamado o árbitro para o alertar da existência de uma falta que precedeu o golo do B..., mesmo assim, contra tal falta e a decisão do VAR, o mesmo árbitro, intencionalmente, decidiu-se pela confirmação do golo e, logicamente, prejudicando (“roubando”, em sentido figurado, como disse o arguido) o A... e beneficiando o B.... O resto é um chorrilho de indignações agressivas, contundentes, mas num contexto fortemente emocional, futebolístico, sendo que a manifestação da consciência de que iria ser castigado, com um sentido abusivamente usado pelo assistente no recurso, não era dirigida ao castigo penal, mas sim federativo, pelos órgãos de disciplina do futebol, por violação das normas de disciplina desportiva e do fair play. Sendo neste âmbito, e apenas nele, que eventualmente se justificará a punição do seu comportamento.
Em tais circunstâncias, uma atuação penal sobre o arguido, sempre com a possibilidade de aplicação de uma pena de prisão, atinge a meu ver desproporcionalmente a liberdade de expressão, sobretudo se atendermos aos motivos e ao contexto sociológico e psicológico em que o exercício dessa liberdade, ainda que através de uma crítica feroz, contundente e agressiva, ocorreu.
Penso, por isso, que no projeto de acórdão que agora obteve vencimento, quando na página 30 se diz “Como se constata à evidência, tais expressões não representam uma mera crítica objetiva ao desempenho do árbitro no jogo, nem tão pouco se tratou de juízos de valor sobre a atuação do assistente, como refere o Tribunal”, não se teve em conta a totalidade dos factos indiciariamente ocorridos e assim as razões que enquadram a atuação do arguido como uma crítica à atuação do árbitro em campo, mas somente os factos que foram selecionados pelo assistente e também inicialmente pelo Ministério Público quando deduziu a acusação. Ministério Público que, perante o requerimento de abertura de instrução e a decisão instrutória proferida, retificou a sua posição inicial, pugnando agora, e bem, a nosso ver, pela improcedência do recurso do assistente, assim como o fez o Exmo. Senhor Procurador-Geral-Adjunto, neste Tribunal de recurso, no seu douto parecer, posição que acompanhamos, por considerarmos não haver fundamento para pronunciar o arguido pelo crime de que foi acusado nos autos. Tendo ademais presente o que reiteradamente tem afirmado o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos, na aplicação que faz da CEDH aos casos de injúria e difamação, e à concordância prática a alcançar com o direito à integridade moral, ao bom-nome e à reputação, ou seja, que “a liberdade de expressão constitui um dos fundamentos essenciais duma sociedade democrática, uma das condições primordiais do seu progresso e do desenvolvimento pessoal de cada um”, afirmando-se um tal direito, “não apenas para as ‘informações’ ou ‘ideias’ acolhidas favoravelmente ou com indiferença, mas também para aquelas que ofendem, chocam ou produzem inquietação. Sendo estas exigências de pluralismo, tolerância e mentalidade aberta, fundamentais, sem as quais não poderá haver uma sociedade democrática”. E que “pese embora, como resulta do art.º 10º (da CEDH), uma tal liberdade esteja sujeita a exceções, estas, todavia, têm de ser interpretadas de modo estrito, assim como a necessidade de quaisquer restrições tem de ser estabelecida de modo convincente.” (Caso Bédat v. Switzerland (Application nº. 56925/08).]
Manuel Soares
___________________
[1] In Direito Processual Penal, Vol. I, pág. 133.
[2] Cfr. Leal-Henriques e Simas Santos, Código Penal, 2.º Volume, Anotado 1996, pág. 317, bem como António Jorge Fernandes de Oliveira Mendes, O Direito à Honra e a sua Tutela Penal, Almedina1996, pág. 33.
[3] Vide Leal-Henriques e Simas Santos, obra citada, pág. 317.
[4] Cfr. “Algumas considerações jurídicas sobre crimes de difamação e de injúria”, in Revista de Legislação e Jurisprudência, ano 92.º, pág. 166.
[5] In “Alguns aspetos do regime jurídico dos crimes de difamação e injúrias”, A.A.F.D.L., pág. 18.
[6] Cfr. Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo I, págs. 602 e 605.
[7] Cfr. Alguns Aspectos do regime jurídico dos crimes de difamação e de injúrias, A.A.F.D.L. pág. 17/18.
[8] In Constituição da República Portuguesa Anotada, págs. 110-111.
[9] In RLJ Ano 151.º - N.º 4035 (Jul/Ago 2022), págs. 352/353.
[10] Idem, pág. 354.
[11] A este respeito podem ver-se, entre outros, os Acs. do STJ de 07-03-2007 - Proc. 440/07 (3.ª secção); da RP de 04-11-2020 – Proc. 2294/17.3T9VFR.P1; da RL de 13-10-2020 – Proc. 686/17.7PGLRS.L1-5, in www.dgsi.pt, e da RC de 15-07-2022 – Proc. 113/19.5T9NLS.C1, in CJ III, págs. 52 a 58.