Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
161/23.0GAPRD.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: PAULA GUERREIRO
Descritores: CRIME DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
RECUSA VÁLIDA A DEPOR
MAUS TRATOS
Nº do Documento: RP20240306161/23.0GAPRD.P1
Data do Acordão: 03/06/2024
Votação: UNANIMIDADE COM 1 DEC VOT
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL/CONFERÊNCIA
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Indicações Eventuais: 1.ª SECÇÃO CRIMINAL
Área Temática: .
Sumário: I - A proibição de valoração de prova prevista no art. 356 nºs. 1,6 e 7 do CPP relativamente a quem possa validamente recusar-se a depor em julgamento, não impede a valoração de tais declarações na parte em que recolhem: «informações das pessoas que facilitem a descoberta dos agentes do crime e da sua reconstituição» por se enquadrarem no âmbito do art. 249º do CPP, designadamente: «praticar os atos necessários e urgentes para assegurar os meios de prova».
II - O crime de violência doméstica pressupõe a adoção pelo agente agressor de uma posição de superioridade em relação à vítima, e a utilização de um tratamento humilhante para com esta, com vista ao seu controle e subjugação de natureza psicológica e/ou física, o que conduz à limitação da liberdade da pessoa ofendida e à falta de respeito pela sua dignidade enquanto ser humano.
III - O que importa saber, em concreto, é se a conduta do agente, pelo seu carácter violento ou pela sua configuração global de desrespeito pela pessoa da vítima ou de desejo de prevalência de dominação sobre a mesma, é suscetível de ser classificada como maus tratos.

(da responsabilidade da Relatora)
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. n.º 161/23.0GAPRD.P1

1. Relatório

Nos autos de processo comum com julgamento perante tribunal singular com o nº 161/23.0GAPRD do Tribunal Judicial da Comarca do Porto Este, Juízo Local Criminal de Paredes - Juiz 1, foi em 19/10/2023, depositada sentença com o seguinte dispositivo:

«1) Absolver o arguido AA, como autor material e na forma consumada, da prática de um crime de violência doméstica, previsto e punível pelo artigo 152.º, n.ºs 1, alínea a) e 2, alínea a), do Código Penal, de que vinha publicamente acusado;

2) Em consequência da absolvição referida em 1) supra, não aplicar ao arguido AA nenhuma das penas acessórias previstas nos n.ºs 4 e 5, do artigo 152.º, do Código Penal;

3) Não arbitrar qualquer indemnização à ofendida BB, à luz do disposto nos artigos 21.º, da Lei n.º 112/2009, de 16 de setembro e 82.º-A, n.º 1, do Código de Processo Penal;

4) Convolar factual e juridicamente a acusação pública deduzida contra o arguido AA e considerar tais factos suscetíveis de integrar a prática de um crime de ameaça agravada, previsto e punido pelos artigos 153.º, n.º 1 e 155.º, n.º 1, alínea a), ambos do Código Penal;

5) Condenar o arguido AA pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de ameaça agravada, previsto e punível pelos artigos 153.º, n.º 1 e 155.º, n.º 1, alínea a), ambos do Código Penal, na pena de 120 (cento e vinte) dias de multa, à taxa diária de € 5,50 (cinco euros e cinquenta cêntimos), perfazendo o montante global de € 660,00 (seiscentos e sessenta euros);

6) Condenar o arguido AA no pagamento das custas criminais resultantes da condenação aludida em 5) supra, que englobam a taxa de justiça e demais encargos, fixando-se aquela em 3 (três) U.C.´s, atenta a atividade processual desenvolvida, ao abrigo do disposto nos artigos 513.º, n.º 1, do Código de Processo Penal e artigo 8.º, n.º 9 e tabela III, do Regulamento das Custas Processuais.»

Não se conformando com a sentença na parte em que absolveu o arguido da prática de crime de violência doméstica que lhe era imputado na acusação pública e operou a convolação para crime de ameaça agravada veio o MP interpor o presente recurso.

É o seguinte o teor das conclusões do recurso:

«A. O Ministério Público não se conforma com a decisão proferida nos autos, que decidiu absolver o arguido AA da prática do crime de violência doméstica, p. e p. pelo art. 152.º, n.ºs 1, alínea a) e 2, alínea a) n.ºs 4 e 5 do Código Penal, que lhe vinha imputado na acusação, e que convolou factual e juridicamente a acusação pública deduzida e considerou tais factos susceptíveis de integrar a prática de um crime de ameaça agravada, p. e p. pelos arts. 153.º, n.º 1 e 155.º, n.º 1, alínea a) do Código Penal, condenando-o por tal crime.

B. Cremos que, ao decidir da forma como o fez, a Mmª Juiz a quo violou, por vício de interpretação, entre outras, as disposições dos arts. 97º n.º 5, 127º, 169.º, 374º n.º 2 do Código de Processo Penal, 13.º, 14.º, 26.º, 152.º, n.ºs 1, alínea a) e 2, alínea a), do Código Penal.

C. Também, a decisão recorrida, em sede de fundamentação, não procedeu ao exame crítico das provas ou ausência delas, exigido no art.º 374.º n.º 2 do Código Processo Penal, como consequência do dever de fundamentação das decisões dos Tribunais imposto pelo art.º 205º, n.º 1 da Constituição, violando o disposto nos referidos artigos art.º 205º, n.º 1 da Constituição, art.º 97º, n.º 5 e o art.º 374º n.º 2 ambos do Código de Processo Penal.

D. A sentença proferida dá como provados os factos 33 e 34, e como não provado o facto a), o que é incompatível, e pois o facto a) deveria ser provado parcialmente nomeadamente com o seguinte teor: “na sequência de um acidente de trabalho, no decurso do ano de 2015, resultou para o arguido incapacidade para o trabalho, aliada ao consumo de álcool em demasia”.

E. Ainda, devia o Tribunal ter dado como provado o facto f) que deu como não provado, pelo menos parcialmente e com o seguinte teor:

“Nesse mesmo dia e hora, o arguido, de forma a impedir que a ofendida telefonasse ao filho de ambos, pegou numa faca e de seguida apontou-a à ofendida, fazendo-a crer que lhe ia espetar a faca ao mesmo tempo que dizia: “não ligas nada e mais nada”.

F. Tal consubstancia uma alteração não substancial dos factos imputados na acusação, e as declarações do arguido prestadas em 03/03/2023 em Primeiro Interrogatório Judicial de Arguido Detido, e que foram reproduzidas em Audiência de Julgamento, no qual o mesmo o admite expressamente – “peguei na faca porque ela, (a ofendida), estava a ligar para o filho, e eu disse não ligas nada e mais nada” - , têm de levar inelutavelmente a que o Tribunal dê como provado tal facto.

G. O Tribunal fez uma incorrecta apreciação da matéria de facto produzida perante si em audiência, e pois, consideramos que a prova produzida, e até mesmo a constante nos factos dados como provados, se mostrava adequada para condenar o arguido pelo crime de violência doméstica p. e p. pelo art. 152.º, n.ºs 1, alínea a) e 2, alínea a) que vinha acusado, e que ao decidir em contrário, não fez o Tribunal uma boa apreciação da prova;

H. Da prova documental de fls. 82 a 85, 87 a 99, 118 a 127, junta aos autos, bem como da prova produzida em audiência de julgamento, nomeadamente do depoimento dos militares da GNR CC e DD resultou que a assistente foi objecto de ameaças de morte, e que, o relacionamento com o arguido nunca foi pacifico, mas antes, sempre pautado pelos comportamentos violentos do arguido para com a mesma, e que no dia e hora dos factos, o arguido, na presença da GNR e mais que uma vez, proferiu as seguintes expressões dirigidas à vítima: “ quando a GNR for embora vou matar toda a gente, tu deixa ir embora a GNR que depois falamos” e “quando vos fores embora ides ver o que vai acontecer aqui em casa, mato toda a gente”;

I. A douta decisão deveria ter valorado na íntegra o depoimento do militar CC porquanto o mesmo teve uma conversa com a vítima, pouco depois dos factos terem ocorrido, na qual a mesma lhe contou o que tinha sucedido, e que era vítima de violência doméstica há vários anos, mas que nunca tinha tido a coragem de o denunciar, o que tem vindo a ser admitido por alguma jurisprudência, nomeadamente Ac. do TRL de 24/01/2012, porquanto tais declarações, sendo uma mera conversa, não cabem na previsão do art. 356.º, n.º7 do CPP.

J. A decisão do Tribunal a quo não teve, como deveria, em conta as declarações que o arguido prestou em sede de Interrogatório Judicial de Arguido Detido, em 03/03/2023, e que foram reproduzidas em Audiência de Julgamento, no qual o mesmo confessa que pegou numa faca porque a ofendida estava a ligar ao filho e aquele não queria que a mesma o fizesse, o que denota a posição de supremacia do arguido perante a vítima, e o controlo que o mesmo tinha sobre a mesma, limitando a sua liberdade.

K. Assim, face à prova documental junta aos autos de fls. 82 a 85, 87 a 99, 118 a 127, aos factos dados como provados, bem como perante os depoimentos dos militares da GNR CC e DD, prestados em sede de Audiência de Discussão e Julgamento, deveria o Tribunal a quo ter condenado o arguido pela prática de um crime de violência doméstica, previsto e punido no art. 152.º, n.ºs 1, alínea a) e 2, alínea a) do Código Penal.

L. Confrontando os elementos objectivos e subjectivos do tipo de crime de violência doméstica previsto e punido no 152.º, n.ºs 1, alínea a) e 2, alínea a) do Código Penal, outra não pode ser a decisão, a não ser a de que a matéria de facto provada é por si só suficiente para preencher os elementos integrativos do crime de violência doméstica, sendo factos subsumíveis no elemento objetivo do tipo criminal imputado ao arguido.

M. Salvo o devido respeito por outra melhor opinião, foi deficientemente aplicado o princípio de livre apreciação da prova, consagrado no art. 127.º do Código de ProcessoPenal, e a prova foi apreciada de forma arbitrária e com a mera impressão no espírito do julgador pelos diversos meios de prova, uma vez que a prova carreada para os autos à luz da experiência comum e aos olhos de qualquer homem médio, bem como da doutrina e jurisprudência existente, vai em sentido contrário, conforme melhor se encontra fundamentado em sede de motivação;

N. A matéria de facto provada na sentença proferida, nomeadamente os factos provados sob os números 6.º, 7.º e 10.º é apta para lesar em grau elevado o bem jurídico protegido pondo em causa a dignidade da pessoa humana, e a tranquilidade psíquica da vítima pois, a actuação do arguido constante de tais pontos, constitui também uma grave humilhação para a vítima, pois o arguido age como se fosse “dono” da mesma, e de forma a amedrontá-la e coarctar a sua liberdade de decisão e acção.

O. A violência doméstica engloba os maus tratos físicos e psíquicos, e nomeadamente ameaças e coacção, e qualquer tentativa de controlo e domínio de outra pessoa, nomeadamente através de verbalizações insultuosas e ameaças, e tentativas de intimidação, o que sucedeu nos presentes autos, o arguido amedrontou a vítima, e os seus actos constituíram sobre a mesma violência psicológica e medo.

P. O arguido sabia a existência da relação especial entre si e a vítima, que devia respeito à mesma, mas optou por ter um comportamento que lesou a dignidade da mesma.

Q. A decisão do Tribunal a quo, não esclarece o porquê de não considerar não estarem preenchidos os elementos do tipo, não diz o porquê dos factos dados como provados não radicarem na protecção da pessoa individual e da sua dignidade humana e porque não lesam pois essa dignidade, nem esclarece porque considerou que a conduta do arguido não ofende o bem jurídico protegido pela incriminação, e porque sendo esse bem jurídico complexo que abrange a saúde física, psíquica e mental não afectou a dignidade pessoal da vítima.

R. Ora, tendo presente o que se enunciou na motivação quanto aos elementos do tipo de crime de violência doméstica, entendemos que os comportamentos descritos e vertidos nos factos provados sob os números 6.º, 7.º e 10.º se reconduzem a um típico exercício de domínio sobre o outro, de coisificação da pessoa humana, actuações que dentro de um relacionamento de casamento que devia importar especial respeito e consideração, adquire uma intolerável afectação da dignidade humana.

S. Concluímos, pois, que a factualidade provada integra efectivamente a prática pelo arguido do crime de violência doméstica, não só objectivamente, como também subjectivamente, e pois importa por consequência alterar a qualificação jurídica constante da decisão recorrida e condenar o arguido pela autoria do imputado crime de violência doméstica p. e p. pelo artigo 152.º, n.ºs 1, alínea a) e 2, alínea a) do Código Penal que foi imputado na acusação pública.»

Conclui pedindo que na procedência do presente recurso seja revogada a decisão recorrida e substituída por outra que condene o arguido pela prática de crime de violência doméstica p. p. pelo art. 152 n.ºs 1, alínea a) e 2, alínea a) e aplicadas as penas acessórias previstas no art. 152 n.ºs 4 e 5, todos do Código Penal.

O recurso foi admitido por despacho proferido em 21/11/2023.

Em primeira instância arguido respondeu ao recurso alegando, em síntese, que no primeiro interrogatório judicial não disse ter pegado na faca, e ameaçado a ofendida, antes:

«Por causa do telemóvel, eu não deitei a mão por trás! Cacei o telemóvel: “Não ligues nada pró teu filho, não ligues…”

Ele chegou, eu fui à cozinha. Eu fui à cozinha e: “Pega lá na faca e mata-me!” Disse eu para ele: “Pega na faca e mata-me!” Eu disse para o meu filho: “Pega na faca e mata-me!” [00:12:55]»

A este respeito a  sentença colheu fielmente as declarações do arguido, as quais mereceram a devida valoração, e nenhuma testemunha viu o arguido com uma faca na mão, o que afasta o suposto desígnio do arguido ameaçar ofendida através daquele instrumento.

A decisão ora recorrida alicerçou a sua convicção de forma sustentada nos diversos depoimentos produzidos em julgamento, os quais, em conjugação com a demais prova existente nos autos, permitiram concluir, de forma cabal, que a faca tão só serviu para que outros colocassem termo na vida do arguido.

As testemunhas CC e DD, militares da GNR, ambas atestaram o facto relevante para a absolvição e condenação, que presenciaram, o qual diz respeito tão só à ameaça que o arguido, movido pelo alcool, envidou para a ofendida referindo-se que quando a G.N.R. fosse embora matava toda a gente.

Não pode pretender o MP imputar ao arguido declarações ou interpretações de declarações deste que não têm, respetivamente, reprodução fiel ou base crível, apenas porque dessa forma se realiza uma justiça mais consentânea com os seus desígnios.

A sentença recorrida teve o cuidado de explicitar de forma profícua e fundamentada os passos lógico dedutivos que estiveram na génese da decisão proferida.

As parciais reproduções das declarações do arguido que o MP indica não impõem, de todo, decisão diversa sobre os factos que o Tribunal a quo deu como (não) provados, até porque se tratam de reproduções imprecisas e interpretativas.

Conclui no essencial que inexiste qualquer desconformidade da factualidade dada como provada e, mais relevante, como não provada, com a prova produzida, o que aliás se alcança da mera leitura da fundamentação da sentença, ora recorrida, sendo certo que, bem andou o Tribunal a quo, e em suma, deverá improceder o recurso interposto nesta parte.

A decisão recorrida não carece de qualquer reparo, porquanto se mostra conforme às regras do direito e da experiência comum e a defesa pugna pela respetiva manutenção.

Nesta Relação o Sr. Procurador-geral-adjunto considera assistir razão à recorrente já que in casu existem contradições que requerem sanação e concordando com a colega de primeira instância conclui que:

«- a prova foi indevidamente apreciada e valorada;

- o recurso deve ser julgado procedente, e a decisão recorrida ser integralmente revogada, e substituída por outra, nos exactos moldes em que foi o arguido acusado.»

Cumprido o disposto no art. 417 nº2 do CPP não foi apresentada resposta ao parecer.

2 - Fundamentação 

A - Circunstâncias com interesse para a decisão a proferir:

Pelo seu interesse passamos a transcrever a sentença recorrida quanto à decisão sobre a matéria de facto e respetiva motivação :

« III – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO:

A – FACTOS PROVADOS:

Discutida a causa, resultaram provados, com interesse para a decisão a proferir, os seguintes factos:

1.º O arguido e a ofendida são casados desde 06 de janeiro de 1985;

2.º Tiveram 3 (três) filhos: EE, nascido a ../../1985, FF, nascido a ../../1991, portador de deficiência mental com uma incapacidade de 95% e GG, nascido a ../../1999, todos atualmente maiores de idade;

3.º Fixaram residência em habitação sita na rua ..., Paredes;

4.º Com o casal residem ainda os filhos identificados como FF e GG;

5.º Correu termos contra o arguido o processo n.º 682/16.1GAPRD, no âmbito do qual aquele foi acusado pela prática de um crime de violência doméstica, previsto e punível pelo artigo 152.º, n.ºs 1, alínea a), 2 e 4, do Código Penal, por factos supostamente ocorridos no período compreendido entre 2015 e setembro de 2016, tendo vindo a ser absolvido, por sentença datada de 27 de fevereiro de 2017, já transitada em julgado;

6.º No dia 02 de março de 2023, pouco depois das 19 horas, na presença dos Sr.ºs Militares da G.N.R. que se deslocaram à residência aludida em 3.º supra e enquanto permaneciam no seu logradouro, juntamente com o arguido e a ofendida, aquele manifestamente exaltado, proferiu as seguintes expressões, dirigidas a esta última: “quando a G.N.R. for embora vou matar toda a gente, tu deixa ir embora a G.N.R. que depois falamos”;

7.º Mesmo depois de advertido pelos Sr.ºs Militares da G.N.R. para a ilicitude da sua conduta, o arguido persistiu, proferindo nova expressão, dirigindo-se à ofendida: “quando vos fores embora ides ver o que vai acontecer aqui em casa, mato toda a gente”;

8.º Por tais factos, foi o arguido detido, tendo sido usada a força estritamente necessária para a sua detenção;

9.º Já no interior do Posto da G.N.R. de Paredes, o arguido submetido a teste de pesquisa de álcool no sangue, revelou ser possuidor de uma taxa de alcoolemia no sangue (T.A.S.) de 1,72 gramas por litro, por via de bebidas alcoólicas que havia voluntária e intencionalmente ingerido momentos antes;

10.º Quis o arguido com as expressões e condutas acima identificadas significar que iria matar ou molestar fisicamente a ofendida, quando e logo que lhe fosse possível, o que fez com foros de seriedade, deixando-a com receio e medo da concretização de tais intentos e limitando a sua liberdade de determinação pessoal, bem sabendo que tais expressões eram em abstrato adequadas a intimidar o seu destinatário, suscetíveis de perturbar e causar receio à ofendida pela sua segurança, como o foram em concreto;

11.º Tinha igualmente noção de que por a ofendida ser sua mulher, que lhe devia especial dever de respeito;

12.º Não obstante, atuou o arguido como descrito, o que fez de forma livre, voluntária e consciente e bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por Lei.

Também se provou que:

13.º O arguido cresceu num agregado familiar numeroso, composto pelos pais e onze descendentes, tendo o agregado enfrentado desafios económicos significativos, mas com uma dinâmica familiar descrita como funcional;

14.º As dificuldades económicas do agregado de origem foram determinantes no abandono precoce da escolaridade, pela necessidade de participar na economia doméstica, apenas concluindo o 4.º ano em regime noturno tendo, ainda na fase da infância, auxiliado o pai na atividade de ferrageiro, iniciando-se laboralmente aos 14 anos como serralheiro, atividade que prolongou até 2015, altura em que sofreu um acidente de trabalho, que redundou na atual situação em que se encontra de reformado por invalidez;

15.º Em 1985, contraiu matrimónio com a ofendida, com quem teve três filhos, pautando-se a relação por alguma conflitualidade, resultante dos hábitos de consumo imoderado de bebidas alcoólicas do arguido, problemática que se foi agravando pela condição de inatividade ocasionada pela ausência de uma atividade laboral estruturada, assistindo-se, em simultâneo a uma deterioração da relação conjugal que culminou no primeiro contacto judicial do arguido com o sistema judicial em 2016 acusado do crime de violência doméstica, no qual veio a ser absolvido;

16.º Na data dos factos, o arguido mantinha uma situação vivencial análoga à atual;

17.º Vive com a cônjuge, 64 anos, um filho de 32 anos, reformado devido aos problemas de saúde que apresenta e dependente dos cuidados de terceiros, e um filho de 24 anos, operário da construção civil;

18.º O agregado habita uma casa térrea, de tipologia 3, propriedade da paróquia de Paredes, de construção antiga que oferece as condições mínimas de habitabilidade;

19.º No presente e por comparação à data dos factos dos presentes autos, a dinâmica familiar sofreu alterações positivas, sendo referida a ausência de especial conflitualidade entre arguido e ofendida, contexto favorável atribuído à evidente redução do consumo de bebidas alcoólicas por parte do arguido, atribuída à intimidação sofrida com o presente processo;

20.º O arguido reconhece o uso recorrente em contexto familiar de expressões de calão e admite dificuldades para modificar esse padrão linguístico, uma vez que tem sido uma característica enraizada ao longo do tempo;

21.º Contudo, os familiares indiciam minimizar a importância dessa mudança, que justificam pela atribuição de traços semelhantes intrínsecos à família de origem daquele e de difícil alteração;

22.º Economicamente o agregado beneficia de uma condição financeira desfavorecida, sendo a sustentabilidade assente nas reformas do arguido e filho, no valor total de € 470,00 (quatrocentos euros), situando-se as despesas fixas no valor total de € 255,00 (duzentos e cinquenta e cinco euros), englobando-se nas mesmas o pagamento da instituição frequentada pelo filho, pagamento da renda da casa, luz, água e gás;

23.º O agregado não conta com qualquer contribuição do filho mais novo que tem intenção de emigrar a breve prazo;

24.º O arguido não reconhece consumos abusivos de bebidas alcoólicas, nem no presente nem à data dos factos, sustentando que os seus padrões de consumo nunca resultaram em efeitos prejudiciais ao nível da sua interação;

25.º O arguido demonstra uma estruturação da sua rotina com base na realização de alguns biscates pontuais que efetiva na construção civil, direcionando o tempo livre para as interações familiares e encontros sociais em cafés;

26.º Contudo, é evidente uma modificação discernível no círculo social com o qual anteriormente mantinha convívio, assim como na escolha do café frequentado, que alterou, de forma a afastar-se dos habituais pares;

27.º No meio comunitário o arguido goza de uma imagem positiva, sendo associado a uma interação ajustada;

28.º O presente processo judicial constituiu-se como o segundo contacto do arguido com o sistema de justiça penal por factos de idêntica natureza e, embora manifestando alguma preocupação quanto ao seu desfecho, expressa crença num desenlace positivo;

29.º O anterior contacto judicial do arguido, na perspetiva familiar, teve um impacto construtivo no comportamento daquele, embora temporário;

30.º Contudo, foi enfatizado pelos familiares contactados a perceção e observação de idênticos comportamentos positivos após o presente contacto judicial do arguido, observáveis e potenciados pela redução do consumo de bebidas alcoólicas, contexto no qual balizam o apoio que lhe prestam na atualidade;

31.º Perante factos semelhantes àqueles pelos quais é acusado, o arguido, embora exteriorize um discurso aparentemente alinhado com as normais vigorantes, fazendo alusão à identificação de vítimas e danos, a referida postura não se reflete ao considerar as implicações prejudiciais para as vítimas, acreditando que as mesmas, no decurso do tempo tenham a capacidade para superar os danos emocionais, sugerindo limitações ao nível da capacidade empática e compreensão das repercussões duradouras;

32.º Face a uma eventual condenação, o arguido apresenta disponibilidade para colaborar numa pena a cumprir na comunidade;

33.º O percurso de vida do arguido foi modelado pelas circunstâncias familiares desfavoráveis, caracterizadas pela escassez de recursos económicos e oportunidades culturais, determinantes no seu ingresso precoce no mundo laboral, onde manteve um histórico consistente de trabalho até à ocorrência do acidente profissional que o incapacitou para a continuidade laboral;

34.º A subsequente ociosidade resultante desencadeou um aumento do consumo imoderado de bebidas alcoólicas, exacerbando conflitos conjugais;

35.º O anterior contacto do arguido com o sistema judicial, de natureza similar ao presente processo, motivou no arguido alterações comportamentais positivas no contexto familiar, que conserva;

36.º Contudo e apesar dos progressos alcançados, a problemática aditiva continua a afigurar-se como a sua principal fragilidade, à qual acresce o reduzido sentido crítico face à prática criminal em apreço;

37.º O arguido reúne condições para a execução de uma medida em meio livre, a qual deverá incidir sobre a necessidade incontornável de tratamento, revelando-se essencial a sua colaboração ativa ao mesmo, devendo ainda a medida aplicada proporcionar ao mesmo espaços de reflexão crítica que lhe permitam interiorizar o desvalor da sua conduta e para o qual poderia contribuir à frequência do programa Para Agressores de Violência Doméstica ministrado pela D.G.R.S.P.;

38.º Todavia e numa perspetiva de observância pela exequibilidade dessa frequência, consideramos que o mesmo não reúne condições económicas que lhe permitam assegurar o pagamento do transporte para as cidades onde se realiza o módulo psicoeducacional do programa em causa, constituída por 20 sessões, a realizar semanalmente durante cerca de cinco meses, sugerindo-se, em alternativa, a substituição do programa pela realização de entrevistas na D.G.R.S.P. subordinadas aos temas relacionados com a violência doméstica abordados no referido módulo.

Mais ficou demonstrado que:

39.º O arguido não tem antecedentes criminais.

B – FACTOS NÃO PROVADOS:

Com relevo para a decisão justa da causa resultaram como não provados os seguintes factos:

a) Que na sequência de um acidente de trabalho, no decurso do ano de 2015, do qual resultou para o arguido incapacidade para o trabalho, aliado ao consumo de álcool em demasia, o arguido passasse a adotar um comportamento impetuoso relativamente à ofendida;

b) Que desde a data aludida em 5.º supra o arguido, diariamente, motivado pela ingestão de bebidas alcoólicas, apodasse a ofendida de puta, vaca, badalhoca;

c) Que no dia 02 de março de 2023, sem prejuízo do aludido em 9.º supra, o arguido iniciasse o consumo de álcool pelas 17 horas;

d) Que cerca das 19 horas, nesse mesmo dia, estava a ofendida em casa a servir o jantar ao arguido e aos filhos, quando, sem nada que o fizesse prever, o arguido se recusasse a ir jantar, ao que a ofendida lhe dissesse: “não queres comer porque estás para aí com a caneca na mão”;

e) Que ato contínuo, o arguido apodasse a ofendida de “puta e vaca” e, em tom sério, dissesse que a matava;

f) Que ao mesmo tempo que proferiu esta expressão, o arguido se levantasse e fosse até à banca, onde pegou numa faca e, de seguida, a apontasse à ofendida, dizendo-lhe novamente que a matava, fazendo gestos repetidos para a frente e para trás, fazendo-a crer que lhe ia espetar a faca;

g) Que com receio que o arguido concretizasse tais ameaças, a ofendida tentasse sair da cozinha para o exterior, ao que o arguido foi no seu encalço;

h) Que já no exterior, o arguido agarrasse a ofendida por trás e, com o braço direito, lhe aplicasse um golpe ao pescoço, vulgarmente conhecido por mata leão, causando-lhe dores;

i) Que de tal forma pressionasse o pescoço da ofendida que a mesma começou a sentir falta de ar, pelo que se tentou libertar, ao mesmo tempo que gritava, ao que o arguido, ao mesmo tempo que apertava o pescoço, dissesse, em tom sério: “chama a guarda, chama a guarda, que eu não tenho medo, e mato-te sua puta”;

j) Que a ofendida acabasse por se conseguir libertar e pedir ajuda ao seu filho mais novo, GG, a quem disse através do telefone: “anda cá que o teu pai quer-me matar”;

k) Que tais factos fossem presenciados pelo filho FF;

l)… Com as condutas supra descritas, o arguido quis e conseguiu molestar psicologicamente a ofendida, molestar o seu bem-estar psíquico e limitar a sua autodeterminação pessoal, submetendo-a a um tratamento humanamente degradante, enquanto pessoa, com total desrespeito pela sua personalidade e auto-estima, o que repetiu e reiterou;

m) … Tinha ainda o arguido a perfeita noção de que dirigia à ofendida expressões que a humilhavam e diminuíam na sua dignidade pessoal – o que quis e conseguiu;

n) … O arguido, agiu deliberada, livre e conscientemente, com o propósito, aliás concretizado, de ferir fisicamente a ofendida, atingindo-a, da forma como o fez, para melhor assegurar o êxito das suas intenções, bem sabendo que o meio utilizado era apto a ferir e molestar o corpo e a saúde daquela e a causar-lhe as dores verificadas.

C – CONVICÇÃO DO TRIBUNAL:

Para responder à matéria de facto com relevância jurídico-penal, o tribunal atendeu ao apurado em sede de audiência de julgamento, analisando global e criticamente, segundo as regras da experiência e da livre convicção do tribunal, nos termos do disposto no artigo 127.º, do Código de Processo Penal.

Com efeito, a livre apreciação da prova não se confunde com apreciação arbitrária da prova, pois que tem como pressupostos valorativos a obediência a critérios de experiência comum e da lógica do homem médio suposto pela ordem jurídica.

Sendo que a convicção do tribunal é formada, através dos dados objetivos fornecidos pelos documentos e outras provas produzidas, também pela análise conjugada das declarações e depoimentos, em função das razões de ciência, das certezas e, ainda, das lacunas, contradições, hesitações, inflexões de voz, (im)parcialidade, ansiedade, embaraço, desamparo, serenidade, olhares para alguns dos presentes, “linguagem silenciosa e do comportamento”, coerência de raciocínio e de atitude, seriedade e sentido de responsabilidade manifestados, coincidências e inverosimilhanças que, porventura, transpareçam em audiência, de tais declarações e depoimentos.

Na verdade, é ponto assente que a comunicação não se estabelece apenas por palavras, mas também pelo tom de voz e postura corporal dos interlocutores e que estas devem ser apreciadas no contexto da mensagem em que se integram, daí dar-se a devida relevância à perceção direta que a imediação e a oralidade conferem ao julgador .

Trata-se de um acervo de informação não-verbal e dificilmente documentável face aos meios disponíveis, mas imprescindível e incindível para a valoração da prova produzida e apreciada, segundo as regras de experiência comum.

Dito isto, e no que ao caso em apreço diz respeito,  importa dizer que o arguido, em sede de audiência de julgamento, remeteu-se ao silêncio, ao abrigo do disposto no artigo 61.º, n.º 1, alínea d), do Código de Processo Penal, ao contrário do que tinha sucedido em sede de primeiro interrogatório judicial, já que, na presença do seu Ilustre Advogado e perante o Meritíssimo Juiz de Instrução, depois de devidamente advertido nos termos do disposto no artigo 141.º, n.º 4, alínea b), do Código de Processo Penal, o arguido prestou declarações, as quais foram reproduzidas à luz do preceituado no artigo 357.º, n.º 1, alínea b), do mesmo diploma, delas resultando que o arguido negou, na sua essência, a prática dos factos que lhe eram aqui imputados, refutando, pois, que tivesse agredido, ameaçado ou injuriado a sua cônjuge, aqui ofendida, relatando, a propósito do episódio que originou a intervenção da G.N.R., que a ofendida estava a querer telefonar a um dos filhos e que lhe agarrou no telemóvel, porque não queria que ela ligasse ao filho, não para evitar que ela chamasse ajuda, pois não lhe estava a fazer mal nenhum, mas sim porque aquela estava constantemente a ligar ao filho para lhe perguntar se vinha almoçar/jantar. Negou assim que, nessa ocasião, tivesse sido agressivo para com a ofendida, limitando-se a agarrar o telemóvel, sem a insultar ou ameaçar. Disse ainda que a ofendida chamou pelo filho FF, que logo ali apareceu e  foi então que o arguido dirigiu-se àquele (e não à ofendida) e pegou numa faca que ali estava, colocando-a sobre a mesa, dizendo, “pega na faca e mata-me” (sic), porque a ofendida estava a “incriminá-lo” (sic) Mais disse que o filho desferiu-lhe duas chapadas na cara. Admitiu que tinha ingerido bebidas alcoólicas (“um copinho à refeição”) e, por fim, negou que tivesse ameaçado a ofendida na presença dos Sr.ºs Militares da G.N.R.

Por seu turno, as testemunhas BB, ofendida e cônjuge do arguido, GG e EE, ambos filhos do arguido, HH e II, ambas irmãs da ofendida e cunhadas do arguido (estas duas últimas, indicadas para deporem no decurso da audiência de julgamento, ao abrigo do disposto no artigo 340.º, do Código de Processo Penal, no pressuposto de se tratarem dos familiares que supostamente se encontravam no local quando a G.N.R. ali chegou), recusaram-se a depor, ao abrigo do preceituado no artigo 134.º, n.ºs 1, alínea a) e 2, do Código de Processo Penal, impossibilitando assim o tribunal de reproduzir as declarações respetivamente prestadas em sede de inquérito, e desde que verificados os pressupostos legais previstos no artigo 356.º, n.ºs 2, 4 e 5, do Código de Processo Penal, precisamente por força da proibição de valoração probatória a que alude o n.º 6, do mesmo preceito, segundo o qual: “[é] proibida, em qualquer caso, a leitura do depoimento prestado em inquérito ou instrução por testemunha que, em audiência, se tenha validamente recusado a depor.”.

Consequentemente, e a par da prova documental e pericial junta aos autos, assim como das declarações do arguido prestadas perante o Meritíssimo Juiz de Instrução, reproduzidas em sede de audiência de julgamento e como tal suscetíveis de serem livremente apreciadas por este tribunal, restaram os depoimentos de CC e DD, ambos Sr.ºs Militares da G.N.R., JJ e KK, ambos vizinhos do casal e, finalmente, LL, sobrinha do arguido e da ofendida.

Assim, a testemunha CC disse conhecer o arguido e a ofendida do exercício das suas funções, admitindo que, antes de ser ouvido em audiência de julgamento, releu o auto de notícia que elaborou e que deu origem aos presentes autos por forma a reavivar a memória (o que é perfeitamente compreensível, considerando o hiato temporal entretanto decorrido e certamente as outras tantas ocorrências idênticas que o mesmo teve de intervir por força do exercício das suas funções de autoridade policial). Basicamente, esta testemunha reiterou o teor desse auto de notícia, dizendo para tanto, que se deslocou a casa do arguido e da ofendida, na companhia do colega DD, pelo final da tarde, na sequência de uma chamada efetuada para o Posto, pelo que se recorda, por uma vizinha (desconhecendo a sua identificação) a dizer que a ofendida estava a ser vítima de violência doméstica. Quando lá chegaram, encontraram a ofendida, o arguido e o filho destes (com 95% de incapacidade) no jardim/logradouro da habitação. Embora sem concretizar o nome das vizinhas, referiu que estas, assim como o filho, comentaram com a testemunha que, quando o arguido chegava a casa embriagado, existiam discussões entre o casal, assim como uma das vizinhas (mais uma vez, sem saber identificá-la) referiu que tinha chamado a G.N.R. porque tinha ouvido gritos e o arguido a ameaçar que a matava. Concretizou, também, que falou com a ofendida, ao passo que o seu colega ficou a conversar com o arguido, sendo que este, a dada altura, na presença deles e dirigindo-se à ofendida, disse que quando eles fossem embora, matava toda a gente, o que reiterou mesmo depois de ser advertido da ilicitude da sua conduta, acabando por ser detido, sendo que, já no Posto da G.N.R., foi submetido a teste de pesquisa de álcool no sangue, o qual deu resultado positivo. No que toca àquilo que falou com a ofendida, para efeitos de elaboração do correspondente expediente, disse que aquela lhe contou que já não era a primeira vez que havia confusão, quando o arguido chegava a casa embriagado, esclarecendo, porém, a testemunha que nunca tinha sido chamada a casa deste casal para tomar conta de ocorrências semelhantes, nem posteriormente a essa data ali se deslocou novamente para esse efeito nem para qualquer outro. Mais mencionou que a ofendida não apresentava nenhuma lesão física visível, mostrando-se, porém, inquieta, chorosa, amargurada, dizendo que já não aguentava mais e que queria que tudo ficasse resolvido, negando-se, porém, a abandonar a casa, ao passo que o arguido ficou detido tendo sido sujeito a primeiro interrogatório judicial no dia seguinte. Confrontado com o auto de apreensão e entrega de folhas 80 e 81, confirmou que procedeu à apreensão desta faca, tendo sido a ofendida a indicar onde é que a mesma se encontrava guardada (não se recordando, porém, onde a foi buscar), mas admitindo que o arguido não a tinha na sua posse quando lá chegaram, nem teve qualquer reação quando aquela foi apreendida, apreensão essa que ocorreu, porquanto, segundo o que tinha sido transmitido na tal chamada que foi efetuada para o Posto da G.N.R., o arguido estaria a usar a faca para ameaçar a ofendida.

À semelhança da anterior testemunha, também DD admitiu conhecer o casal apenas do exercício das suas funções, mais reconhecendo que teve de reler o auto de notícia, antes de ser ouvido em julgamento, para reavivar a sua memória. Confirmou, portanto, a chamada telefónica efetuada para o Posto por uma alegada situação de violência doméstica (ameaça com faca), tendo a ideia de que foi um(a) “miúdo”(a) (sic) que fez essa chamada, não sabendo porém identificá-lo, julgando tratar-se de algum familiar. Confirmou que foi ao local com a testemunha anterior e que, quando lá chegaram, encontraram o arguido, a ofendida e outras pessoas (que também não logrou identificar). Referiu que o arguido inicialmente não os deixou entrar na casa e que, quando estavam a falar com ele, o mesmo, dirigindo-se à ofendida, afirmou que quando a G.N.R. fosse embora matava toda a gente. Atestou que o arguido estava embriagado, aliás como de resto foi confirmado pelo teste de pesquisa de álcool no sangue a que foi submetido já no interior do Posto da G.N.R. para onde foi levado depois de ter sido detido em virtude de persistir com aquelas ameaças. Disse ainda que a ofendida aparentava ter medo do arguido. Outrossim, referiu que, quando lá chegaram, o arguido não tinha nenhuma faca na sua posse, tendo sido o filho (desconhecendo o nome, mas afirmando que o mesmo exibia tatuagens no corpo) a entregar-lhe uma faca (ao contrário, note-se, do que foi dito pela testemunha CC, a qual, como vimos, referiu ter sido a ofendida a indicar onde estava a faca), dizendo-lhe que tinha sido a faca usada pelo arguido para ameaçar a mãe. Também ao contrário do que foi afirmado pela testemunha CC, disse que não chegou a verificar se ali se encontrava o tal filho com deficiência, embora lhe tivesse sido transmitido por alguém que aquele também ali estava, não podendo, no entanto, confirmá-lo porque não falou com ele. Por fim, disse que nunca ali tinha ido para tomar conta de outras ocorrências e, em particular, de violência doméstica.

Portanto, dúvidas não quedam que estas duas testemunhas, ambas Militares da G.N.R., tiveram intervenção nos presentes autos por força do exercício dessas funções, tendo ambas relatado, por um lado, aquilo que o arguido, a ofendida e um filho do casal lhes contaram quando estavam no local para conta da ocorrência, relativamente àquilo que alegadamente tinha sucedido antes de ali se deslocarem e, portanto, que aquelas duas não presenciaram diretamente, anotando-se, com particular importância, que o “relato” efetuado pela ofendida nessa ocasião nem sequer ficou exarado no auto de notícia, mas sim no “auto de inquirição de testemunha”, constante de folhas 5 e 6 – auto esse exarado naquele ato, como de resto resulta da respetiva data e hora de elaboração nele apostas -, cuja leitura por parte deste tribunal ficou completamente vedada (e desde que verificados os demais pressupostos legais previstos nos n.ºs 2, 3, 4 e 5, do referido artigo 356.º), por força do disposto nos n.ºs 6 e 7, desse mesmo inciso, resultando deste n.º 7 a proibição de valorar os depoimentos dos órgãos de polícia criminal, como no caso o das duas sobreditas testemunhas, Sr.ºs Militares da G.N.R., no que concerne às declarações que estes receberam e cuja leitura não seja permitida em sede de julgamento), porquanto, conforme vimos supra, a ofendida, assim como o seu filho GG (sendo certo que o filho FF, dada a incapacidade/deficiência mental de que padece, correspondente a 95%, nem sequer foi indicado como testemunha pela acusação) recusaram-se a prestar depoimento em sede de audiência de julgamento. Mas também relataram, por outro lado, aquilo que efetivamente ocorreu na presença de ambas e que os mesmos diretamente presenciaram enquanto estiveram naquele local, com aqueles intervenientes e, em particular, no tocante às expressões que foram proferidas, na presença de ambas, pelo arguido, dirigidas à ofendida, atestando estes dois depoentes, de forma coerente, objetiva, isenta, imparcial e descomprometida, que aquele disse que ia matar toda a gente quando a G.N.R. fosse embora, o que amedrontou a ofendida, como de resto o atestou a testemunha DD, tanto assim que aquele foi detido, depois de proferir essas expressões, e sujeito a primeiro interrogatório judicial no dia seguinte.

Por outro lado, a testemunha JJ afirmou perentoriamente que nunca ouviu nenhuma discussão entre o casal, o que significa que não foi esta vizinha quem chamou a G.N.R. ao local, assim como não foi ela quem depois falou com aqueles dois Sr.ºs Militares, sendo certo que nenhum destes logrou identificar as supostas vizinhas que, a dada altura, comentaram que, quando o arguido chegava embriagado, ocorriam discussões.

O mesmo se diga relativamente ao depoimento da testemunha KK, o qual salientou o facto de o arguido ter sido sempre bem educado com os vizinhos, mais dizendo que nem sequer tinha tido conhecimento da presença da G.N.R. naquele dia na casa do arguido e da ofendida, pelo que também não foi esta testemunha que falou com os Sr.º Militares da G.N.R. naquela ocasião.

Por fim, a testemunha LL, de 20 anos de idade, a qual se mostrou apreensiva e cautelosa na escolha das palavras e nas respostas fornecidas, de forma a manter um discurso vago, com recurso a respostas rápidas e sem referência a pormenores, precisamente por se ter apercebido, depois de advertida pelo tribunal de que, ao contrário do que tinha sido sucedido com a sua mãe e tia, as quais a tinham imediatamente antecedido na prestação do respetivo depoimento, não podia recusar-se a depor. Deste modo, pese embora confirmar que o arguido e a ofendida eram casados e tiveram três filhos, disse desconhecer se estes três também residiam na casa do casal, na medida em que não frequentava aquela residência, assim como não convivia com aquela família, ignorando, por isso, como era a respetiva dinâmica familiar. Destarte, referiu, sem concretizar a data, que no início do ano, estava a jantar em sua casa, que se situava relativamente perto da casa daqueles, quando lhe bateram à porta (não logrou identificar quem foi essa pessoa que lhe bateu à porta) a dizer que estavam a berrar em casa desses familiares. Juntamente com as testemunhas II e HH, deslocaram-se de imediato à habitação do arguido e da ofendida e quando lá chegou não viu “nada de especial” (sic). Referiu que a tia encontrava-se no jardim da habitação, sendo certo que logo depois chegou a G.N.R., a qual foi chamada pela própria testemunha. Afirmou que não viu, nem ouviu nada. Não soube dizer o que os Sr.ºs Militares da G.N.R. fizeram no local, até porque não aguardou pela saída daqueles, pois que, entretanto, também já tinha chegado o primo GG (o qual aliás chegou antes da G.N.R.).

Olhando para estes três últimos depoimentos, é inequívoco que nenhum deles veio confirmar a factualidade descrita na acusação, aliás, as duas primeiras testemunhas nunca assistiram a nada e a última, pese embora confirmar que foi alertada por alguém – que não logrou (ou não quis) identificar – para se deslocar a casa dos tios porque estava a haver confusão, assim como que foi ela quem ligou para a G.N.R. (não atestando, porém, o que disse nessa chamada para justificar a chamada da G.N.R. ao local, mas, perante aquilo que depois relatou, no sentido de não ter visto nada “de especial” (sic), à partida, não faz sentido que tivesse sido ela a pessoa a quem aludiram as testemunhas CC e DD quando afirmaram que quem fez a tal chamada referiu que estava a ocorrer uma situação de violência doméstica com ameaça de faca, pois esta testemunha não fez qualquer alusão a ameaças, facas, e/ou violência doméstica, mais se salientando que o depoimento daqueles dois Sr.ºs Militares nem sequer se mostrou coincidente a propósito da identificação da própria pessoa que fez essa chamada, pois o primeiro disse que tinha sido uma vizinha, mas não a identificou, e o segundo disse que tinha sido um(a) miúdo(a), provavelmente familiar dos intervenientes, embora sem também o(a) identificar).

Por conseguinte, ao nível testemunhal, os únicos depoimentos que se mostraram relevantes, atenta a respetiva razão de ciência, foram precisamente os das testemunhas CC e DD, na medida em que, quanto aos demais inquiridos, ora uns recusaram-se a depor, ora outros afirmaram nada saberem ou nada terem presenciado “de especial” (segundo a testemunha LL), inclusivamente no que toca ao episódio que ditou a ida daqueles dois depoentes ao local, no exercício das respetivas funções de autoridade policial e na sequência disso, da elaboração do respetivo auto de notícia e expediente que o acompanhou, dando origem aos presentes autos. 

Sucede que, conforme dissemos supra, estes dois depoimentos reportaram-se a dois tipos de fontes de conhecimento: é que, por um lado, relataram aquilo que viram quando lá chegaram (quem lá estava, como estava, com quem estava, o que tinha na sua posse, etc.) e, em particular, aquilo que foi dito pelo próprio arguido, na presença dessas duas testemunhas e dirigindo-se à próprio ofendida, no sentido de anunciar que quando a G.N.R. dali saísse iria matar toda a gente, expressões essas que motivaram, aliás, a própria detenção do arguido, o qual, pese embora advertido da ilicitude da sua conduta, reiterou a mesma, e, por outro lado, fizeram alusão àquilo que, na altura, foi relatado pelo arguido, pela ofendida e pelo filho, tendo a testemunha CC exarado o auto de notícia junto a folhas 3 e 4/45 e 46, fazendo-o acompanhar do auto de inquirição da ofendida de folhas 5 e 6 e do auto de inquirição do filho GG de folhas 18, ambos elaborados no dia 02 de março de 2023, às 19 horas e 20 horas e 55 minutos, respetivamente, após terem sido ambos devidamente advertidos nos termos do disposto nos artigos 132.º e 134.º, ambos do Código de Processo Penal.

Se quanto à factualidade diretamente percecionada por aquelas duas testemunhas quando chegaram ao local e enquanto ali permaneceram e, em particular, volta-se a repetir, quanto às expressões que ambas confirmaram terem sido ditas pelo arguido, na presença delas e dirigidas à ofendida, atendendo à forma impressiva, segura, imparcial e coerente como relataram esses factos, aos quais diretamente assistiram, estes depoimentos mostraram-se totalmente convincentes e consequentemente mais do que suficientes para o tribunal, não obstante a negação do arguido (que, como vimos, refutou ter proferido essas expressões na presença da G.N.R. o que foi manifestamente contrariado por aqueles dois depoimentos completamente isentos, imparciais e desinteressados quanto ao desfecho do processo), formar a sua convicção no sentido de os considerar como verdadeiros, ou seja, de que tais factos ocorreram do modo descrito, em uníssono nesta parte, por aquelas duas testemunhas, já quanto à restante factualidade, ou seja, relativamente ao modo como o arguido e a ofendida se relacionavam e, em particular, àquilo que supostamente ocorreu antes de ali chegarem e, mais em concreto, ao alegadamente sucedido no interior da residência do casal, naquele dia (mas também em ocasiões anteriores), na ausência da sua confirmação por parte da ofendida e do filho, assim como perante a versão manifestamente antagónica que o arguido relatou em sede de primeiro interrogatório judicial, pois que negou qualquer agressão, ameaça ou injúria por ele perpetradas naquela ocasião, admitindo apenas que exortou o filho FF a usar a faca contra o próprio arguido, tendo sido então agredido por aquele, com duas chapadas e, ainda, ao facto de aqueles dois Sr.ºs Militares não terem sequer conseguido identificar quem fez a tal chamada para o Posto da G.N.R. dando conta de um suposto episódio de violência doméstica (sublinhando-se que a testemunha LL, embora confirmando ter sido ela a ligar, não atestou que tivesse feito alusão a ameaça com faca e/ou a violência doméstica) e/ou quem era(m) a(s) vizinha(s) que estava(m) no local, então, tais depoimentos, nessa parte, já não tiveram o condão de convencer o tribunal, para além de toda e qualquer dúvida, ou seja, com o grau de certeza que aqui é exigível, de que os correspondentes factos descritos na acusação efetivamente foram praticados pelo arguido, funcionando, em última instância, quanto a eles, o princípio basilar do in dubio pro reo, o qual decorre implicitamente do preceituado no artigo 32.º, da Constituição da República Portuguesa, enquanto expressão do princípio político-jurídico da presunção de inocência, segundo o qual, em síntese, “(…) a situação de incerteza quanto à materialidade dos factos, resolve-se, não mediante o apelo a uma presunção de culpa, ainda que tão só natural ou simples, mas ao princípio “in dubio pro reo”, articulado com o princípio da presunção de inocência, do arguido acolhido no texto constitucional, o que conduz, necessariamente, à absolvição do réu” .

Pormenorizando.

No que toca ao valor probatório do sobredito auto de notícia elaborado pela testemunha CC, importa desde logo atentar ao exarado no Acórdão da Relação do Porto de 12 de julho de 2023, segundo o qual: “O auto de notícia, se exarado com as formalidades legais e por autoridade pública nos limites da competência que lhe é atribuída por lei, constitui um documento autêntico, conforme resulta do disposto no art. 363º, n.º 2, do CCivil, em conjugação com o art 243.º do CPPenal. Todavia, o seu valor probatório, no âmbito do processo penal e por força de especiais garantias de defesa inscritas no art. 32.º da Constituição da República Portuguesa, designadamente do direito ao contraditório, está sujeito à disciplina do art. 371.º, n.º 1, do CCivil com as limitações decorrentes do art. 169.º do CPPenal, ou seja, consideram-se provados os factos materiais constantes de documento autêntico ou autenticado enquanto a autenticidade do documento ou a veracidade do seu conteúdo não forem fundadamente postas em causa.         Da aplicação conjugada dos referidos preceitos resulta que os autos de notícia, pressupondo a respectiva validade formal quanto à legitimidade e competência da autoridade que os elabora, se constituem como elementos probatórios reforçados quanto aos factos atestados com base nas perceções do documentador e dos que se passaram na sua presença, sem prejuízo de a autenticidade do documento ou a veracidade do seu conteúdo poderem ser fundadamente postos em causa. Nesta sequência, e com relevo para o caso dos autos, importa ainda distinguir, em termos de relevância probatória, entre os autos de notícia em que a autoridade presencia a prática de um crime e aqueles em que simplesmente recolhe os relatos de terceiros quanto à prática de crimes. Como bem se distingue no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 10-07-2012, «só o documento apresentado à autoridade judiciária, donde constem factos presenciados, relatados, narrados e descritos pela autoridade judiciária, órgão de policia criminal ou outra entidade policial, adquira um valor probatório de confiança e verosimilhança com a realidade que permite ao tribunal, na mensuração e ponderação das provas, atribuir-lhe um valor probatório superior ao que atribui a outros documentos em que as mesmas entidades procedem ao relato de ocorrências. Estão nesta última categoria as participações ou denúncias que os particulares delatam às autoridades judiciárias e que dão origem a investigações ou averiguações criminais. Nestes casos a participação não adquire qualquer presunção probatória, destinando-se, tão só, a desencadear uma investigação que irá, ou não, confirmar a ocorrência histórica dos factos denunciados. Nenhum valor acrescido a lei atribui a uma denúncia ou participação de factos com relevância criminal, quando estes não sejam presenciados pelas autoridades judiciárias, órgãos de polícia criminal ou outra entidades policiais.» Neste último caso, embora o auto de notícia de nada sirva para a comprovação do crime comunicado, já que a autoridade que elaborou o auto, como no caso dos autos, não assistiu aos factos, tal documento autêntico tem ainda a virtualidade de permitir a comprovação – caso não seja contestada, como não foi – da data da participação, de quem participou e do que foi comunicado, elementos que podem e devem ser concatenados com a demais prova produzida, no sentido de permitir completar a avaliação da prova por parte do Tribunal de julgamento. Como se assinala no acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 01-04-2020, «a relevância do auto de notícia só permite valorar o comportamento do queixoso como participante às autoridades de um facto que reclama a intervenção daquelas e somente essa postura de participação – e já não o concreto conteúdo das declarações – é suscetível de ser valorada nos termos do artigo 127º do Código de Processo Penal, podendo o auto ser livremente consultado pelo Tribunal e invocado na sua fundamentação, mesmo que não examinado em audiência, sem que aí se aplique o disposto no artigo 355º, n.º 1, do mesmo diploma. O auto de notícia releva muitas vezes para aferir a data da ocorrência dos factos, quando a testemunha, em audiência de julgamento, confirmando os factos, contudo, não se recorda da data dos mesmos, embora refira corresponder ao dia em que fez a participação. Nesses acasos, pode apreciar-se o auto de notícia, aferindo a data do ato de participação, mas já não o conteúdo da mesma»”.

Pelo que, seguindo esta jurisprudência, com a qual se concorda, o tribunal valorou o teor do auto de notícia de folhas 3 e 4/45 e 46, quer na parte relativa à descrição da data, do local e identificação dos intervenientes, assim como quanto ao que motivou a detenção do arguido, conjugado com os depoimentos do respetivo autuante, CC, e da testemunha DD, os quais relataram, de forma uníssona, isenta e coerente aquilo que ali ficou exarado a propósito das expressões que o arguido, na presença daqueles, proferiu, ameaçando diretamente a ofendida, merecendo por isso total credibilidade em detrimento daquilo que o arguido disse a esse propósito, uma vez que negou ter ameaçado a ofendida na presença daquele Sr.ºs Militares, o que foi manifestamente contrariado por estes.

Já no que toca às declarações da ofendida e do filho, atente-se que, a esse propósito nada é dito no aludido auto de notícia, a não ser que as mesmas ficaram exaradas nos respetivos autos de inquirição, elaborados naquela ocasião e os quais foram anexados ao expediente que deu origem aos presentes autos (conforme de resto resulta do próprio auto, na parte em que nele foi exarado que “após ouvir a vítima, redigido no auto de inquirições de testemunhas em anexo”), sendo certo que ao tribunal está vedada a leitura desses autos, não só porque não se verificaram os pressupostos legais previstos no artigo 356.º, n.ºs 2, 4 e 5, mas sobretudo por força da proibição de valoração probatória a que alude o seu n.º 6, já que aqueles se recusaram a depor em sede de audiência de julgamento, aplicando-se a mesma proibição às restantes declarações que estas testemunhas possam ter formalmente prestado ao longo do inquérito.

Resta, porém, aquilo que os dois Sr.ºs Militares relataram a propósito do que motivou a ida deles ao local (como, quando e porquê foi acionada a G.N.R.) e o que fizeram, enquanto agentes de autoridade policial, quando chegaram ao local a fim de apurar da veracidade daquela denúncia. E a este título, não podemos deixar de trazer à colação o Acórdão da Relação do Porto de 15 de dezembro de 2021, no qual se consignou o seguinte: “(…) Ora, sobre a questão da admissibilidade dos depoimentos dos órgãos de polícia criminal são abundantes as decisões judiciais, podendo dizer-se que existe dessintonia entre a jurisprudência e a doutrina portuguesas sobre a matéria. Em nossa opinião, nada impede um inspetor da Polícia Judiciária, um agente da PSP, um soldado da GNR, etc., de depor sobre factos de que tomou conhecimento. Por outro lado, é, igualmente, claro que não se questiona aqui a proibição de um órgão de polícia criminal depor sobre o conteúdo de declarações que recolheu, quer de testemunhas, quer de pessoas já constituídas arguidas, e que foram formalizadas em auto (n.º 7 do art.º 356.º do Cód. Proc. Penal). A questão coloca-se em relação às declarações não formalizadas em auto prestadas perante um órgão de polícia criminal: é admissível e poderá ser valorado o depoimento de um agente da polícia que reproduz o que ouviu dizer à vítima de um crime ou a uma pessoa que depois vem a ser constituída arguida ou ainda a um terceiro que poderia vir a ser indicado como testemunha? Vamos cingir a nossa análise à primeira e última hipóteses, ou seja, aquelas em que o OPC relata aquilo que ouviu da vítima ou de terceiros, pois, no caso sub judice, foi através da própria vítima que as testemunhas C… (que, segundo a decisão recorrida, foi chamado à então residência do casal por vizinhos, e relatou o que lhe foi dito de imediato pela ofendida à porta de casa, referindo que a mesma mostrava alguns hematomas e que lhe terá ainda dito que a situação era recorrente – ou seja, que o arguido a agredia frequentemente) D... (o qual recolheu a referida informação da parte da ofendida no dia em que foi chamado ao local, antes de a conduzir ao posto da GNR para documentar o auto de fls. 89 do apenso A, confirmando o agente da autoridade que era visível uma marca no sobreolho esquerdo da ofendida que aparentava ser recente) e E… (que em conversa com a ofendida obteve aquelas informações, reduzidas com maior pormenor a auto de notícia (embora não tenha o Tribunal levado a prova todo o constante do auto, mas apenas aquilo que a referida testemunha ouviu da ofendida, ainda em casa desta, antes de a conduzir a ela e ao arguido para a esquadra, e aquilo que o arguido disse aos agentes da autoridade antes do ato de detenção) tomaram conhecimento dos factos que relataram em audiência de julgamento. O Prof. Germano Marques da Silva, a este propósito, pronuncia-se nos seguintes termos: “Poder-se-ia questionar se as pessoas referidas no art.º 356.º poderão ser inquiridas sobre o conteúdo de declarações que não foram reduzidas a auto. Parece-nos que é de aplicar o princípio geral traduzido no brocardo quod non est in auto non est in mundo. Tudo o que for relevante deve constar do auto e se há declarações que do auto não constam não podem ser consideradas”. No entanto, sentiu necessidade de afirmar que os agentes policiais não sofrem de qualquer incapacidade nem impedimento: “Os órgãos de polícia criminal podem testemunhar sobre todos os factos de que tenham conhecimento direto, só não podendo ser objeto do seu depoimento os conhecimentos que tiverem obtido através de depoimentos cuja leitura seja proibida ou que deveriam ser reduzidos a auto e não foram, sendo a leitura desse auto também proibida. Por isso que os órgãos de polícia criminal possam testemunhar sobre todos os factos de que tomaram conhecimento fora do processo, nomeadamente declarações feitas pelo arguido ou terceiros, observando-se, neste caso, as regras do testemunho indireto”. Radical é a posição de Paulo Pinto de Albuquerque[15]: “… não é admissível o depoimento do agente policial que ouviu declarações feitas por uma testemunha ou declarante depois da prática dos factos criminosos, mesmo que essa pessoa venha a falecer antes da audiência (…). Se as declarações dessa pessoa ao agente policial tivessem sido registadas por escrito elas não poderiam ser lidas na audiência (artigo 356.º, n.º 4), salvo se o Ministério Público, o assistente e o arguido estivessem de acordo na sua leitura (artigo 356.º, n.º5), e, portanto, não tendo sequer sido reduzidas a escrito, não passam de uma «conversa informal» mantida pelo agente policial cujo conteúdo não pode ser reproduzido em audiência. Dito de outro modo, o artigo 356.º, n.º 7, também veda o aproveitamento em julgamento de conversas informais havidas, antes ou depois da abertura formal do inquérito, entre os agentes policiais e quaisquer testemunhas ou declarantes, ainda que estas pessoas venham a falecer posteriormente ou a padecer de anomalia psíquica superveniente ou seja impossível localizá-las (…)”. “A mesma conclusão vale correspondentemente para os depoimentos dos agentes policiais que mantiveram conversas informais com o suspeito ou arguido depois da prática do crime e fora do inquérito”. “Em síntese, o depoimento dos agentes policiais está sujeito a um regime diferente de quaisquer outras testemunhas, em virtude da proibição legal dos artigos 356.º, n.º 7, e 357, n.º 2. Esta proibição veda o aproveitamento na audiência do depoimento do agente policial sobre declarações que ouviu dos suspeitos, arguidos, testemunhas, assistentes, ofendidos, partes civis, lesados ou quaisquer outros declarantes, quer elas tenham sido feitas antes ou depois da abertura formal do inquérito, quer o agente policial venha ser instrutor do inquérito ou não. A única exceção a esta regra tolerada pela proibição legal dos artigos 356.º, n.º 7, e 357, n.º 2, é a do depoimento do agente policial quando depõe sobre as declarações que ouviu fazer durante a prática da atividade criminosa. Esta, e só esta, é uma prova direta do facto criminoso inteiramente lícita”. Este entendimento, que se insere numa corrente doutrinária que tem uma posição extremista sobre proibições (de produção e de valoração) de prova, não tem tido acolhimento na jurisprudência, como se vê, v.g., pelo Ac. do STJ de 15.02.2007[16], onde se pode ler: “Muito discutida tem sido a questão do alcance da proibição do testemunho de “ouvir dizer” que o CPP consagra no art. 129º. A jurisprudência não tem sido uniforme. Mas podemos considerar adquirido, para o que agora importa, por um lado, que os agentes policiais não estão impedidos de depor sobre factos por eles detectados e constatados durante a investigação e, por outro lado, que são irrelevantes as provas extraídas de “conversas informais” mantidas entre esses mesmos agentes e os arguidos, ou seja, declarações obtidas à margem das formalidades e das garantias que a lei processual impõe. Pretenderá, assim, a lei impedir, com a proibição destas “conversas”, que se frustre o direito do arguido ao silêncio, silêncio esse que seria “colmatado” ilegitimamente através da “confissão por ouvir dizer” relatada pelas testemunhas. Pressuposto desse direito ao silêncio é, no entanto, a existência de um inquérito e a condição de arguido. A partir da constituição do arguido enquanto tal, ele assume um estatuto próprio, com deveres e direitos, entre os quais, o de não se auto-incriminar. A partir de então, as suas declarações só podem ser recolhidas e valoradas nos estritos termos indicados na lei, sendo irrelevantes todas as conversas ou quaisquer outras provas recolhidas informalmente. Contudo, de forma diferente se passam as coisas quando se está no plano da recolha de indícios de uma infração de que a autoridade policial acaba de ter notícia. Compete então às autoridades, nos termos do art. 249º do CPP, praticar “os atos necessários e urgentes para assegurar os meios de prova”, entre os quais, “colher informações das pessoas que facilitem a descoberta dos agentes do crime”. Estas “providências cautelares” são fundamentais para investigar a infração, para que essa investigação tenha sucesso. E daí que a autoridade policial deva praticá-las mesmo antes de receber ordem da autoridade judiciária para investigar (art. 249º, nº 1). Nessa fase não há ainda inquérito instaurado, não há ainda arguidos constituídos. É uma fase de pura recolha informal de indícios, que não é dirigida contra ninguém em concreto. As informações que então forem recolhidas pelas autoridades policiais são necessariamente informais, dada a inexistência de inquérito. Ainda que provenham de eventual suspeito, essas informações não são declarações em sentido processual, precisamente porque não há ainda processo (pode até não vir a haver, como por exemplo se o crime for semi-público e não for apresentada queixa). (...) “O que o art. 129º do CPP proíbe são estes testemunhos que visam suprir o silêncio do arguido, não os depoimentos de agentes de autoridade que relatam o conteúdo de diligências de investigação, nomeadamente a prática das providências cautelares a que se refere o art. 249º do CPP”. Isto mesmo resulta de diversa jurisprudência consultada, quer do STJ, quer das Relações, de que realçamos os seguintes arestos: Ac. do STJ de 03.03.2010, proferido no Proc. nº 886/07.8PSLSB.L1.S1, Cons. Santos Cabral, www.dgsi.pt; Ac. Rel. Porto de 03.02.2010, Proc. nº 198/00.8GACRZ.P1, Des. Airisa Caldinho, www.dgsi.pt; Ac. Rel. Porto de 21.09.2011, Proc. nº 20/11.0GASJP.P1, Des. Élia São Pedro, www.dgsi.pt; Ac. Rel. Porto de 17.06.2015, CJ., Ano XL, Tomo 3, pág. 235; Ac. Rel. Porto de 20/04/2016, Proc. nº 271/03.0IDPRT.P1, www.dgsi.pt; Ac. Rel. Lisboa de 24.01.2012, Proc. nº 35/07.2PJAMD.L1-5, Des. Neto de Moura, www.dgsi.pt.; Ac. Rel. Lisboa de 08.05.2014, CJ., Ano XXXIX, Tomo 3, pág. 152; Ac. Rel. Coimbra de 17/10/2012, Proc. nº 165/10.3GDCNT.C1, www.dgsi.pt e Ac. Rel. Guimarães de 22.04.2013, Proc. nº 533/12.6GAEPS.G1, Des. Maria Luisa Arantes, www.dgsi.pt. O que resulta da jurisprudência citada é que o que o artigo 129.º do CPP proíbe são testemunhos que visam suprir o silêncio do arguido, não os depoimentos de agentes de autoridade que relatam o conteúdo de diligências de investigação, nomeadamente a prática das providências cautelares a que se refere o artigo 249.º do CPP”. É evidente que aos órgãos de polícia criminal não está vedado ter com determinadas pessoas conversas que não são formalizadas em auto. Essas conversas podem reportar-se a factos que estão em investigação e a fonte de informação pode até ser um suspeito do crime investigado. Aliás, ao abrigo do disposto nos artigos 55.º, n.º 2, 249.º e 250.º do Cód. Proc. Penal, os órgãos de polícia criminal podem e devem colher notícias do crime, descobrir os seus agentes e praticar os atos cautelares necessários e urgentes para assegurar os meios de prova, nomeadamente colher informações das pessoas que facilitem a descoberta dos agentes do crime e a sua reconstituição. Nada impede que assegurados os direitos de defesa do arguido, os OPC reproduzam essas diligências e conversas em julgamento, como aconteceu no caso que nos ocupa relativamente à ofendida M…, que terá referido àqueles as lesões que sofreu e a identidade do seu autor, tendo os mesmos visualizado as lesões físicas que nessas ocasiões a ofendida apresentava. Ou seja, nem o depoimento das referidas testemunhas é indireto, na medida em que aqueles agentes da PSP relataram em tribunal aquilo que os seus sentidos percepcionaram (designadamente a audição e a visão), nem está abrangido pela proibição de prova do artº 356º nº7, mas insere-se no âmbito daquelas diligências que lhe estão acometidas com vista a levar a bom porto as diligências de prova que lhe são acometidas por lei. Como se decidiu no Ac. do STJ de 03.03.2010, acima citado, “Não integram a proibição do artº. 129º do CPP, os depoimentos de agentes de autoridade que relatam o conteúdo de diligências de investigação, nomeadamente a prática das providências cautelares a que se refere o art. 249º do CPP. Na verdade, nesta a autoridade policial procede a diligências investigatórias, no âmbito do inquérito, em relação a infração de que teve notícia. Sobre a mesma incumbe o dever de, nos termos do art. 249.º do CPP, praticar “os atos necessários e urgentes para assegurar os meios de prova”, entre os quais, “colher informações das pessoas que facilitem a descoberta dos agentes do crime”. Estas “providências cautelares” são fundamentais para investigar a infração, para que essa investigação tenha sucesso. E daí que a autoridade policial deva praticá-las mesmo antes de receber ordem da autoridade judiciária para investigar (art. 249.º, n.º 1). Nessa fase não há ainda inquérito instaurado, não há ainda arguidos constituídos. É uma fase de pura recolha informal de indícios, que não é dirigida contra ninguém em concreto. As informações que então forem recolhidas pelas autoridades policiais são necessariamente informais, dada a inexistência de inquérito. Ainda que provenham de eventual suspeito, essas informações não são declarações em sentido processual, precisamente porque não há ainda processo. Se o agente policial inquirido apenas se refere às diligências a que procedeu em termos cautelares e de inquérito fazendo perante o tribunal uma súmula dos factos que entendeu estarem apurados e da sua razão de ciência, não se vislumbra a afirmação de estarmos perante um depoimento indireto, sendo certo que a remissão feita para as pessoas que confirmaram ter sido o arguido quem praticou determinados factos pode, e deve, ser entendida em relação a audição que se produziu em fase prévia ao inquérito e, posteriormente, concretizada na prova testemunhal produzida em audiência”. Conclui-se, assim, que no caso em apreço não estamos perante depoimentos indiretos dos agentes da autoridade, mas sim perante a descrição das diligências cautelares efetuadas ao abrigo do disposto no artº 249º do C.P.P.” (…)” .

Mesmo seguindo o entendimento perfilhado no citado Acórdão e aplicando-o ao vertente caso, no tocante ao que foi dito pelos dois Sr.ºs Militares a propósito daquilo que ouviram dizer da boca do arguido, da ofendida, do filho e mesmo da(s) vizinha(s) quanto ao que alegadamente tinha sucedido antes daqueles dois primeiros chegarem ao local e, portanto, numa altura em que nem sequer tinham formalizado as respetivas declarações nos autos de inquirição já supra referidos, ainda assim, dizíamos, tal relato, per se e/ou conjugado com a restante prova carreada para os autos, não foi suficiente para esclarecer, de forma segura, inequívoca e sem margem para qualquer dúvida, mesmo apelando às regras da experiência comum, do normal acontecer e da lógica, o que sucedeu naquele dia no interior da residência do casal e muito menos quanto ao modo como o arguido e a ofendida se relacionavam enquanto casal.

Veja-se que: o arguido, logo aquando da chegada daqueles Sr.ºs Militares ao local, negou o sucedido, tal como o fez em sede de primeiro interrogatório judicial; os dois Sr.ºs Militares confirmaram que a ofendida não apresentava nenhuma lesão física, embora se apresentasse amedrontada e chorosa; os Sr.ºs Militares não viram o arguido na posse da faca, sendo que a testemunha CC referiu ter sido a ofendida a ir buscá-la, ao passo que a testemunha DD afirmou ter sido o filho; os Sr.ºs Militares não lograram identificar a(s) vizinha(s) que também ali estaria(m) e que supostamente disse(ram) que o arguido, quando chegava embriagado, provoca discussões e ainda que tinha(m) ouvido as ameaças de morte, o que significa que não lograram identificar, nessa parte, a testemunha-fonte daquilo que ouviram dizer, aplicando-se nessa parte o preceituado no artigo 129.º, do Código de Processo Penal; os Sr.ºs Militares também não lograram identificar quem fez a chamada para o Posto da G.N.R. e já vimos que a testemunha LL, embora tenha confirmado a autoria desse telefonema, não atestou que tivesse feito alusão a ameaças de faca e/ou violência doméstica; os Sr.ºs Militares nunca tinham sido ali chamados por situações idênticas ou outros desacatos ocorridos entre aquele casal; acresce que, as testemunhas JJ e KK, ambos vizinhos do casal, não viram nada naquele dia, assim como nunca assistiram a discussões ou outros desacatos entre aquele casal, o que também foi dito pela testemunha LL, a qual, pese embora sobrinha do arguido e da ofendida, nunca assistiu a nada.

Ademais, a prova documental e pericial junta aos autos, quer isoladamente considerada, quer em conjugação com os depoimentos dos Sr.ºs Militares, também não permitiu alcançar tal desiderato, porquanto: do auto de apreensão de folhas 22/80 e respetivo temor de entrega de folhas 81/101, apenas se extrai que, naquela ocasião, foi apreendida uma vulgar faca de cozinha, certamente idêntica a tantas outras guardadas nas gavetas dos armários da cozinha daquela habitação; dos assentos de nascimento de folhas 30 a 41 apenas se extrai a existência da relação familiar do arguido, ofendida e filhos e respetivas datas de nascimento, assim como a data do casamento entre aqueles dois primeiros; da cópia do despacho de arquivamento proferido no processo n.º 886/15.4GAPRD de folhas 82 a 85, da cópia do despacho de reabertura do inquérito n.º 886/15.4GAPRD de folhas 86, da cópia do despacho de acusação proferido no processo n.º 682/16.1GAPRD de folhas 87 a 92, da cópia da sentença proferida no processo n.º 682/16.1GAPRD de folhas 93 a 100 apenas se extrai a conclusão de que correram seus termos aqueles processos e que os mesmos já se encontram arquivados; da certidão de folhas 149 apenas se extrai o facto de a ofendida ter recusado a atribuição das medidas de segurança inerentes ao estatuto de vítima assumido nos autos, incluindo de obter uma compensação oficiosamente arbitrada pelo tribunal; da informação de folhas 154, 155 e 157 apenas se extrai o facto de a ofendida ter recusado a aplicação da teleassistência e geolocalização; e, finalmente do relatório pericial de avaliação de dano corporal de folhas 161 e 162 resulta que, à data em que a ofendida foi observada (ou seja, em 03 de março de 2023), a mesma não apresentava nenhuma lesão física.

Dito tudo isto e, em jeito de conclusão, quanto às ameaças que foram proferidas pelo arguido na presença dos Sr.ºs Militares, sendo que estes não apresentarem qualquer interesse direto ou indireto no desfecho da causa, tanto que intervieram neste episódio meramente por força do exercício das respetivas funções profissionais, depondo, nessa parte, de forma coerente, isenta, imparcial, segura e com conhecimento direto (porque proferidas na presença daqueles dois), merecendo por isso total credibilidade e, consequentemente, convencendo o tribunal de que tais ameaças foram proferidas nos moldes em que ambos confirmaram, em detrimento da versão apontada pelo arguido, pelo que, com base em tais depoimentos diretos, a par ainda do teor dos documentos de folhas 3 e 4/45 e 46 (referente ao auto de notícia), 30 a 41 (referente aos assentos de nascimento do arguido, da ofendida e dos filhos), 82 a 100 (cópias extraídas dos sobreditos processos que correram contra o arguido), o tribunal não teve qualquer dúvida em dar como provados os factos descritos em 1.º a 9.º supra. 

O mesmo já não sucedeu, como vimos, quanto aos demais factos elencados na acusação, porquanto dos indicados elementos probatórios, ainda que devidamente conjugados entre si e, ainda, com o teor dos indicados documentos, tendo o arguido negado o cometimento dos mesmos e as testemunhas BB, GG, HH e II  utilizado a faculdade que a lei lhes reconhece, recusando-se a depor, não se mostraram, dizíamos, aqueles elementos probatórios e, em particular, os depoimentos dos Sr.ºs Militares, face às limitações apontadas, suficientes para demonstrarem a veracidade de tal factualidade, porquanto, relativamente a eles, não foi feita prova segura e inequívoca no sentido de os confirmar, pelo que, e em última instância por força da aplicação do já referido princípio do in dubio pro reo, o tribunal julgou como não provada toda a factualidade correspondente, designadamente a elencada em a) a k) supra e, porque umbilicalmente ligada a esta, por se reportar ao respetivo elemento subjetivo, a descrita em l) a n) supra. 

Por outro lado, a partir da factualidade descrita nos pontos 1.º a 9.º supra, dada como provada, foi igualmente possível chegar ao aspeto subjetivo, ponderando-se o iter criminis do arguido, ou seja, a ação objetivamente apurada, apreciada à luz de critérios de razoabilidade e bom senso e das regras de experiência comum, da qual se extrai a intenção do mesmo, sendo certo que não foi produzida qualquer prova suscetível de contrariar tal entendimento, pelo que se pode concluir que o arguido atuou da forma como ali vem enunciada.

Conforme, aliás, se escreveu no Acórdão da Relação do Porto de 13 de outubro de 2010 “[é] frequente a prova do dolo produzir-se de uma forma indirecta: o saber humano dispõe de certezas emergentes do id quod plerumque accidit [o que geralmente acontece] ou seja, de imposições da experiência comum que decorrem das especificidades do caso concreto e apoiam a objectividade da livre convicção do julgador” .

Também importa não esquecer a lição de CAVALEIRO FERREIRA quando ensinava que “(…) existem elementos do crime que, no caso da falta de confissão, só são susceptíveis de prova indirecta como são todos os elementos de estrutura psicológica”  o que é corroborado por MALATESTA quando refere que “(…) exceptuando o caso da confissão, não é possível chegar-se à verificação do elemento intencional, senão por meio de provas indirectas: percebem-se coisas diversas da intenção propriamente dita, e dessas coisas se a concluir pela sua existência (...) afirma-se muitas vezes sem mais nada o elemento intencional mediante a simples prova do elemento material (...) o homem, ser racional, não obra sem dirigir as suas acções a um fim. Ora quando um meio só corresponde a um dado fim criminoso, o agente não pode tê-lo empregado senão para alcançar aquele fim” .

Ainda a propósito do elemento subjetivo em referência, também ditam as regras e as máximas da experiência que quem atua de acordo com as normas de uma sã convivência gregária sabe, e não pode ignorar, que tal conduta é prevista e punida por lei.

Pelo exposto, na sequência do descrito nos pontos 1.º a 9.º supra e da prova produzida a esse propósito, nos moldes que acabamos de referir, os factos mencionados em 10.º a 12.º supra não poderiam deixar de ser considerados como provados por reporte às regras da experiência comum, da lógica e do normal acontecer das coisas.

Outrossim, para prova dos factos referidos em 13.º a 38.º supra o tribunal valorou tão somente o teor do relatório social, elaborado ao abrigo do disposto no artigo 370.º, do Código de Processo Penal, junto a folhas 240 a 242, salientando-se que o arguido não quis prestar declarações também quanto às suas condições socioeconómicas.

Resta dizer que a prova da factualidade descrita em 39.º supra assentou exclusivamente no teor do certificado do registo criminal do arguido junto a folhas 261.»

B – Fundamentação de direito

É pacífico o entendimento de que o âmbito do recurso se define pelas conclusões que o recorrente extrai da respetiva motivação, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, como são os vícios previstos no art. 410 nº2 do CPP.

No caso concreto em apreciação o recorrente invoca as seguintes questões:

1ª) nulidade da decisão recorrida por falta de análise critica das provas;    2ª) Impugnação da matéria de facto por via da revista alargada e da impugnação ampla da matéria de facto;

 3ª) violação do princípio da livre apreciação da prova;

4ª) erro de subsunção jurídica.

Cumpre apreciar!

1ª questão

Alega o recorrente terem sido violados os artigos 97 nº5 e 374 nº2 ambos do CPP alegando que a decisão recorrida não faz análise crítica da prova produzida ou ausência dela, violando também o disposto no art.205 n1 da CRP.

Porém, basta a leitura da sentença recorrida para se verificar que o recorrente não tem razão. Na verdade, a decisão explicita com detalhe - (de facto e de direito) -, as razões pelas quais formou a sua convicção num determinado sentido, estando plenamente cumpridos os objetivos pretendidos pelos preceitos legais invocados, os quais se bastam com uma exposição sumária desde que percetível.

O Tribunal analisou os meios de prova e pesou a respetiva relevância, indicando até argumentos jurídicos impeditivos da valoração de algumas provas, sendo manifesto que procedeu à análise crítica dos vários meios de prova, que articulou globalmente, pelo que, improcede a nulidade invocada.

2ª questão

          Nos termos do disposto no art.428 do CPP os tribunais da Relação conhecem de facto e de direito.

          Ora, a decisão de facto da primeira instância pode ser posta em causa por via da revista alargada mediante a invocação dos vícios previstos no art.410 nº2 do CPP e por via da impugnação ampla da matéria de facto nos termos previstos no art.412 do mesmo diploma.

          O recorrente alega contradição entre os factos provados sob os números 33 e 34 e o facto não provado sob al. a).

          Recordemos o respetivo teor, quanto aos factos provados:

          «33.º    O percurso de vida do arguido foi modelado pelas circunstâncias familiares desfavoráveis, caracterizadas pela escassez de recursos económicos e oportunidades culturais, determinantes no seu ingresso precoce no mundo laboral, onde manteve um histórico consistente de trabalho até à ocorrência do acidente profissional que o incapacitou para a continuidade laboral;

          34.ºA subsequente ociosidade resultante desencadeou um aumento do consumo imoderado de bebidas alcoólicas, exacerbando conflitos conjugais;»

          Quanto aos factos não provados:

          «a) Que na sequência de um acidente de trabalho, no decurso do ano de 2015, do qual resultou para o arguido incapacidade para o trabalho, aliado ao consumo de álcool em demasia, o arguido passasse a adotar um comportamento impetuoso relativamente à ofendida;»

          Pretende o recorrente que se dê como provado que:

          - na sequência de um acidente de trabalho, no decurso do ano de 2015, resultou para o arguido incapacidade para o trabalho, aliada ao consumo de álcool em demasia.

          Na verdade, existe alguma contradição entre tais factos, o que consubstancia contradição insanável da fundamentação, vício que, a nosso ver, justifica a eliminação da al.a) dos factos não provados.

          Quanto aos factos que o recorrente pretende ver como assentes, dir-se-á que, já resultam dos factos provados sob os números 33 e 34, com exceção da data do acidente em 2015, o que bastará aditar ao facto nº33, por resultar do teor do relatório social junto a fls. 240 e seguintes dos autos, relatório esse que foio suporte para a prova dos referidos factos 33 e 34, como se extrai do seguinte segmento da motivação da convicção do Tribunal:

          «… para prova dos factos referidos em 13.º a 38.º supra o tribunal valorou tão somente o teor do relatório social, elaborado ao abrigo do disposto no artigo 370.º, do Código de Processo Penal, junto a folhas 240 a 242, salientando-se que o arguido não quis prestar declarações também quanto às suas condições socioeconómicas.»

          Assim, com vista a sanar o aludido vício de contradição, altera-se a decisão sobre a matéria de facto eliminando a al.a) dos factos não provados, e dando a seguinte redação ao facto provado sob o nº33: «O percurso de vida do arguido foi modelado pelas circunstâncias familiares desfavoráveis, caracterizadas pela escassez de recursos económicos e oportunidades culturais, determinantes no seu ingresso precoce no mundo laboral, onde manteve um histórico consistente de trabalho até à ocorrência do acidente profissional, no ano de 2015, que o incapacitou para a continuidade laboral;»

Para a impugnação ampla da matéria de facto devem observar-se os requisitos do art.412 nº3 do CPP, ou seja, o recorrente deveria indicar especificadamente:

« a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;

  b) As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida;

  c) As provas que devem ser renovadas.»

Aqui chegados verificamos que o recorrente pretende que seja dado como provado o facto não provado sob a al. f), pelo menos, parcialmente, com o seguinte teor:

«Nesse mesmo dia e hora, o arguido, de forma a impedir que a ofendida telefonasse ao filho de ambos, pegou numa faca e de seguida apontou-a à ofendida, fazendo-a crer que lhe ia espetar a faca ao mesmo tempo que dizia: “não ligas nada e mais nada”.

Alega que o tribunal fez uma incorreta apreciação das declarações do arguido em primeiro interrogatório judicial prestado em 03/03/2023, que foram reproduzidas em audiência de julgamento, afirmando que nesse ato o arguido terá admitido expressamente perante o Sr. Juiz de Instrução criminal, que pegou na faca porque a ofendida estava a ligar para o filho e disse-lhe não ligas nada e mais nada.

Vejamos!

Efetivamente o arguido não prestou declarações em audiência de julgamento tendo sido reproduzidas, em audiência de julgamento, as declarações por ele prestadas em sede de primeiro interrogatório judicial de arguido detido no dia 03/03/2023.

Porém, e ouvidas a fim de as reanalisar, tais declarações gravadas no sistema citius, verifica-se  que contrariamente ao que alega o recorrente, o arguido no primeiro interrogatório judicial não admitiu ter ameaçado a ofendida de morte com uma faca, mas apenas ter-lhe tirado o telemóvel para que a ofendida não ligasse para o filho mais novo, e depois quando o filho chegou a casa, ter dito àquele que pegasse na faca e o matasse, querendo com isso pôr fim aos problemas…

Assim, a sentença recorrida é relativamente fiel à prova produzida quando afirma:

«… o arguido prestou declarações, as quais foram reproduzidas à luz do preceituado no artigo 357.º, n.º 1, alínea b), do mesmo diploma, delas resultando que o arguido negou, na sua essência, a prática dos factos que lhe eram aqui imputados, refutando, pois, que tivesse agredido, ameaçado ou injuriado a sua cônjuge, aqui ofendida, relatando, a propósito do episódio que originou a intervenção da G.N.R., que a ofendida estava a querer telefonar a um dos filhos e que lhe agarrou no telemóvel, porque não queria que ela ligasse ao filho, não para evitar que ela chamasse ajuda, pois não lhe estava a fazer mal nenhum, mas sim porque aquela estava constantemente a ligar ao filho para lhe perguntar se vinha almoçar/jantar. Negou assim que, nessa ocasião, tivesse sido agressivo para com a ofendida, limitando-se a agarrar o telemóvel, sem a insultar ou ameaçar.  Disse ainda que a ofendida chamou pelo filho FF, que logo ali apareceu e  foi então que o arguido dirigiu-se àquele (e não à ofendida) e pegou numa faca que ali estava, colocando-a sobre a mesa, dizendo, “pega na faca e mata-me” (sic), porque a ofendida estava a “incriminá-lo” (sic) Mais disse que o filho desferiu-lhe duas chapadas na cara. Admitiu que tinha ingerido bebidas alcoólicas.»

Salienta-se aqui apenas que nos pareceu das declarações prestadas pelo arguido que o filho a quem o arguido se dirigiu dizendo que pegasse na faca, não era o filho FF, que é portador deficiência, - a quem o arguido se referiu apenas para dizer que esse filho chegado ao local lhe desferiu duas bofetadas -, mas antes o filho mais novo GG, quando chegou a casa, já que a ofendida o chamou apesar das tentativas do arguido para que aquela não lhe telefonasse.

Essa imprecisão da motivação quanto ao filho a quem o arguido se dirigiu para dizer que pegasse na faca é, in casu, irrelevante, já que em nada altera, a não prova de que o arguido munido de uma faca ameaçou a ofendida de morte.

Na verdade, e não obstante o autuante CC ter referido em audiência de julgamento que foi feita uma denúncia por uma vizinha que referiu um episódio de violência doméstica com agressão com faca; a verdade é que nem no auto de notícia, nem em julgamento se logrou identificar a referida vizinha que terá feito a comunicação. Já o outro agente da GNR DD referiu que a denúncia foi feita por uma rapariga que seria familiar, o que será consentâneo com o depoimento de LL, de 20 anos de idade, que declarou em julgamento ter sido a autora do telefonema para o posto da GNR.

Porém, a referida LL no seu depoimento disse que embora tivesse tido o impulso de ligar à GNR, - o que fez quando se deslocava para casa da ofendida, sua tia -, quando chegou ao local, nada viu relativamente a ameaças por meio de faca, nem qualquer outro tipo de agressões.

Assim, nem os militares da GNR, nem os familiares depuseram de forma a poder pôr-se em causa o facto não provado sob a al.f); e isto, porquanto, nem a ofendida, nem o filho GG que terá sido, segundo o agente da GNR DD, quem terá entregue a faca apreendida, prestaram declarações em julgamento, e os agentes da GNR, não presenciaram o arguido a ameaçar a ofendida com a referida faca.

Quanto à referência que o agente da GNR CC faz a uma conversa que terá tido no exterior da habitação do arguido com uma vizinha que ali se encontrava no dia da ocorrência, - na medida em que se trata de depoimento indireto e não foi possível identificar a aludida vizinha -, não pode o mesmo ser valorado contra o arguido, atento o teor do art.129 do CPP; pelo que, bem andou a decisão posta em crise em não sopesar tal referência como fundamento para a prova dos factos.

No que respeita às conversas informais que os agentes da GNR tiveram quer com a ofendida, quer com o filho mais novo desta e do arguido, existe relativamente às mesmas uma proibição de valoração, prevista no art.356 números 1, 6 e 7 do CPP; porquanto, tanto a ofendida como o filho do casal se recusaram validamente a depor em audiência, pelo que, valorar o que estes disseram em inquérito aos OPCs, seria defraudar a intenção do legislador e deixar entrar pela janela aquilo a que se pretendeu fechar a porta.

No entanto, a referida proibição legal, não impede a valoração de tais declarações na parte em que recolheram informações junto da ofendida e do filho desta, ainda que antes da constituição de arguido, e da inquirição daquelas, com vista, designadamente à apreensão da faca, por se enquadrarem no art.249 do CPP, praticar «os atos necessários e urgentes para assegurar os meios de prova», entre os quais se inclui  «colher informações das pessoas que facilitem a descoberta dos agentes do crime e da sua reconstituição».

Não obstante, entendemos, que tais provas não são suficientes para dar os factos não provados como provados, tal como consta da fundamentação e apreciação crítica da decisão recorrida.

Nada há, pois, a censurar à decisão recorrida também nesta parte.

Temos de esclarecer que no caso concreto estamos perante conversas  informais com testemunhas que validamente se recusaram a depor em audiência, o que não se confunde com a situação, (diametralmente oposta), relatada no Acórdão citado pelo recorrente,  - proferido pela Relação de Lisboa, em 24/01/2012, e disponível em www.dgsi.pt -, em que o ofendido se ausentou do país, e não foi possível fazê-lo comparecer em audiência de julgamento.

Aqui chegados, temos de concluir que o recorrente não logra apresentar meio de prova que imponha decisão diversa da adotada pelo Tribunal de julgamento o que seria essencial nos termos do disposto no art. 412 nº3 al.b) do CPP para que procedesse a impugnação ampla da matéria de facto.

Assim, e em face do exposto, improcede a impugnação da matéria de facto que passa a considerar-se definitivamente fixada.

3ª questão

Considera o recorrente que a sentença recorrida viola o princípio da livre apreciação da prova, porquanto: «a prova foi apreciada de forma arbitrária e com a mera impressão no espírito do julgador pelos diversos meios de prova, uma vez que a prova carreada para os autos à luz da experiência comum e aos olhos de qualquer homem médio, bem como da doutrina e jurisprudência existente, vai em sentido contrário» - conclusão M.

De acordo com o disposto no artigo 127 do CPP, «salvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente.»

De convicção do tribunal fala-se igualmente no artigo 374 nº 2, in fine, do mesmo diploma legal, a propósito da obrigação de fundamentação.

A livre convicção significa que o tribunal aprecia os meios de prova que lhe são apresentados de forma crítica e livre como poucas regras legais que são as exceções ao princípio em causa.

Tais restrições verificam-se no valor probatório dos documentos autênticos e autenticados, no efeito de caso julgado nos pedidos de indemnização cível, na prova pericial e na confissão integral, sem reservas – artigos 169, 84, 163 e 344 todos do CPP.

Este princípio da livre apreciação das provas não tem carácter arbitrário nem se circunscreve a meras impressões criadas no espírito do julgador, estando antes vinculado às regras da experiência e da lógica comum, bem como às provas que não estão subtraídas a esse juízo, sendo imprescindível que este seja motivado, estando ainda sujeito aos princípios estruturantes do processo penal, como o da legalidade das provas.

«O julgador, ao apreciar livremente a prova, ao procurar através dela atingir a verdade material, deve observância a regras da experiência comum utilizando como método de avaliação e aquisição do conhecimento critérios objectivos, genericamente susceptíveis de motivação e controlo.» - citação do Ac. do Tribunal Constitucional nº1165/96.

Para se atingir a possibilidade desse controle, a decisão deve conter os elementos que, em razão das regras da experiência ou dos critérios lógicos, constituem o substrato racional que conduziu a que a convicção do tribunal se formasse em determinado sentido ou valorasse de determinada forma os diversos meios de prova apresentados na audiência.

No caso concreto em análise não foi violada nenhuma das regras relativas à legalidade da prova, e  encontrando-se a decisão motivada e fundamentada, com análise critica das provas produzidas, que foi feita com detalhe, - como já referimos a propósito da primeira questão apreciada -, não se vislumbra qualquer obstáculo à formação da convicção do Tribunal recorrido, o qual com o privilégio da imediação, apreciou e valorou as provas de forma que não é posta em crise por qualquer regra de experiência.

Não ocorre, pelo exposto, qualquer violação ao princípio da livre apreciação da prova.

4ª questão

Entende o recorrente que a matéria de facto provada é por si só suficiente para preencher os elementos integrativos do crime de violência doméstica, sendo factos subsumíveis no elemento objetivo do tipo criminal imputado ao arguido. - vd conclusão L parte final e conclusão N :

«N. A matéria de facto provada na sentença proferida, nomeadamente os factos provados sob os números 6.º, 7.º e 10.º é apta para lesar em grau elevado o bem jurídico protegido pondo em causa a dignidade da pessoa humana, e a tranquilidade psíquica da vítima pois, a actuação do arguido constante de tais pontos, constitui também uma grave humilhação para a vítima, pois o arguido age como se fosse “dono” da mesma, e de forma a amedrontá-la e coarctar a sua liberdade de decisão e acção.»

Recordemos o teor dos referidos factos 6º, 7º e 10º da matéria de facto provada na sentença recorrida:

«6.º No dia 02 de março de 2023, pouco depois das 19 horas, na presença dos Sr.ºs Militares da G.N.R. que se deslocaram à residência aludida em 3.º supra e enquanto permaneciam no seu logradouro, juntamente com o arguido e a ofendida, aquele manifestamente exaltado, proferiu as seguintes expressões, dirigidas a esta última: “quando a G.N.R. for embora vou matar toda a gente, tu deixa ir embora a G.N.R. que depois falamos”;

7.º Mesmo depois de advertido pelos Sr.ºs Militares da G.N.R. para a ilicitude da sua conduta, o arguido persistiu, proferindo nova expressão, dirigindo-se à ofendida: “quando vos fores embora ides ver o que vai acontecer aqui em casa, mato toda a gente”;

10.º Quis o arguido com as expressões e condutas acima identificadas significar que iria matar ou molestar fisicamente a ofendida, quando e logo que lhe fosse possível, o que fez com foros de seriedade, deixando-a com receio e medo da concretização de tais intentos e limitando a sua liberdade de determinação pessoal, bem sabendo que tais expressões eram em abstrato adequadas a intimidar o seu destinatário, suscetíveis de perturbar e causar receio à ofendida pela sua segurança, como o foram em concreto;»

E ainda foi dado como provado em 11º e 12º:

«11.º Tinha igualmente noção de que por a ofendida ser sua mulher, que lhe devia especial dever de respeito;

12.º Não obstante, atuou o arguido como descrito, o que fez de forma livre, voluntária e consciente e bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por Lei.»

Sobre a fundamentação de direito diz-nos a sentença recorrida:

« IV – FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO:

A – ENQUADRAMENTO JURÍDICO DOS FACTOS:

O artigo 152.º resultou da alteração introduzida pela Lei n.º 59/2007, de 04 de setembro, diploma este que introduziu profundas modificações nesta concreta matéria.

Com efeito, antes da entrada em vigor da aludida Lei n.º 59/2007, que ocorreu em 15 de setembro de 2007, o legislador tipificava no mesmo artigo 152.º (embora com redação diversa) o então denominado “crime de maus tratos a cônjuge”.

Depois da aludida alteração legislativa, o artigo 152.º passou a tipificar o agora denominado crime de violência doméstica da seguinte forma: “1 – Quem, de modo reiterado ou não, infligir maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais: a) Ao cônjuge ou ex-cônjuge; b) A pessoa de outro ou do mesmo sexo com quem o agente mantenha ou tenha mantido uma relação análoga à dos cônjuges, ainda que sem coabitação; c) A progenitora de descendente comum em 1.º grau; ou d) A pessoa particularmente indefesa, em razão de idade, deficiência, doença, gravidez ou dependência económica, que com ele coabite; é punido com pena de prisão de um a cinco anos, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal. 2 – No caso previsto no número anterior, se o agente praticar o facto contra menor, na presença de menor, no domicílio comum ou no domicílio da vítima é punido com pena de prisão de dois a cinco anos. 3 – Se dos factos previstos no n.º 1 resultar: a) Ofensa à integridade física grave, o agente é punido com pena de prisão de dois a oito anos; b) A morte, o agente é punido com pena de prisão de três a dez anos. 4 – Nos casos previstos nos números anteriores, podem ser aplicadas ao arguido as penas acessórias de proibição de contacto com a vítima e de proibição de uso e porte de armas, pelo período de seis meses a cinco anos, e de obrigação de frequência de programas específicos de prevenção da violência doméstica. 5 – A pena acessória de proibição de contacto com a vítima pode incluir o afastamento da residência ou do local de trabalho desta e o seu cumprimento pode ser fiscalizado por meios técnicos de controlo à distância. 6 – Quem for condenado por crime previsto neste artigo pode, atenta a concreta gravidade do facto e a sua conexão com a função exercida pelo agente, ser inibido do exercício do poder paternal, da tutela ou da curatela por um período de um a dez anos.”.

Este preceito foi, entretanto, modificado pela Lei n.º 19/2013, de 21 de fevereiro que introduziu alterações na redação das alíneas b) e d), do n.ºs 1 e 5 e, posteriormente, pela Lei n.º 44/2018, de 09 de agosto, a qual reformulou a redação do seu n.º 2, nos seguintes termos: “2 - No caso previsto no número anterior, se o agente: a) Praticar o facto contra menor, na presença de menor, no domicílio comum ou no domicílio da vítima; ou b) Difundir através da Internet ou de outros meios de difusão pública generalizada, dados pessoais, designadamente imagem ou som, relativos à intimidade da vida privada de uma das vítimas sem o seu consentimento; é punido com pena de prisão de dois a cinco anos.”.

Mais recentemente, a Lei n.º 57/2021, de 16 de agosto alterou novamente este normativo, passando a ter a seguinte redação: “1 – Quem, de modo reiterado ou não, infligir maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade, ofensas sexuais ou impedir o acesso ou fruição aos recursos económicos e patrimoniais próprios ou comuns: a) [...]; b) [...]; c) [...]; d) [...]; e) A menor que seja seu descendente ou de uma das pessoas referidas nas alíneas a), b) e c), ainda que com ele não coabite; [...] 2 – [...]. 3 – [...]. 4 – Nos casos previstos nos números anteriores, incluindo aqueles em que couber pena mais grave por força de outra disposição legal, podem ser aplicadas ao arguido as penas acessórias de proibição de contacto com a vítima e de proibição de uso e porte de armas, pelo período de seis meses a cinco anos, e de obrigação de frequência de programas específicos de prevenção da violência doméstica. 5 – [...]. 6 – Quem for condenado por crime previsto no presente artigo pode, atenta a concreta gravidade do facto e a sua conexão com a função exercida pelo agente, ser inibido do exercício de responsabilidades parentais, da tutela ou do exercício de medidas relativas a maior acompanhado por um período de 1 a 10 anos.”.

Ora, da redação do citado preceito  introduzida pela alteração de 2007 resulta, pois, que o legislador optou expressamente por autonomizar, dada a diferença de bens jurídicos protegidos, a agora denominada violência doméstica de outros tipos de maus-tratos (artigo 152.º-A) e da violação de regras de segurança (artigo 152.º-B), facto típicos que, na anterior redação, como vimos supra, se encontravam todos reunidos no artigo 152.º.

Ainda dentro do tipo de crime de violência doméstica, o legislador escolheu autonomizar as situações descritas no n.º 2, reservando-lhes um agravamento da moldura penal, situações que não encontravam autonomização na redação anterior à mencionada Lei n.º 59/2007.

Pese embora a alteração da sua redação, mantêm-se atuais as considerações tecidas quanto à natureza do bem jurídico subjacente à previsão contida no sobredito artigo 152.º.

De facto, não se olvida que, a par deste ilícito, continua a estar previsto o crime de ofensas à integridade física simples do artigo 143.º, n.º 1, do Código Penal, assim como o crime de ofensas à integridade física qualificada do artigo 145.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal, bem como os crimes de homicídio e de homicídio qualificado da previsão, respetivamente dos artigos 131.º e 132.º, ambos do mesmo diploma.

Podemos, pois, constatar que existe não só uma identidade das potenciais vítimas que se pretende proteger, como existe uma sobreposição, ainda que parcial, das condutas que se querem proibir.

Nesta conformidade, atenta a descrição típica do crime de maus tratos/violência doméstica em confronto, por exemplo, com os crimes de ofensa à integridade física, de injúria, ou de ameaça, bem como a distinta moldura penal de tais ilícitos, é possível afirmar, com segurança, que os mesmos se encontram entre si numa relação de concurso aparente, porquanto a atuação do agente correlaciona-se, a nível formal, com vários tipos de crime, os quais, todavia, não serão todos passíveis de emprego, na medida em que, por via deste concurso de normas, terá de se escolher a norma aplicável, o que motivará a exclusão de todas as restantes, mediante as regras de especialidade, subsidiariedade e consumpção.

O Acórdão da Relação de Lisboa de 13 de dezembro de 2016 corrobora o supra redigido e dá-nos a ideia de como funcionará esta cláusula de subsidiariedade expressa, mencionando que esta significa que a punição pelo crime de violência doméstica apenas terá lugar quando ao crime geral a que corresponde a ofensa não seja aplicada uma pena mais grave, como acontece com os crimes de ofensas corporais simples ou qualificadas, ameaças, cocção, sequestro, coação sexual, violação, importunação sexual, abuso sexual de menores dependentes ou crimes contra a honra.

Daí que, podemos concluir – até por razões de política criminal – que só se justifica uma punição mais grave se se tratarem de condutas que exprimam um lastro de danosidade social mais intensa ou comportem a tutela de um bem jurídico distinto, mas sempre com relevância jurídico-penal.

Nessa decorrência, perfilhamos o entendimento segundo o qual no crime de maus tratos, rectius, de violência doméstica tutela-se a dignidade humana dos sujeitos passivos aí referenciados, mormente na vertente da sua saúde, seja a nível físico ou psíquico, ou na vertente da sua privacidade, seja de liberdade pessoal ou de autodeterminação sexual, sendo nesse sentido que sempre se exprimiu a nossa jurisprudência, mormente nos Acórdãos da Relação do Porto de 03 de novembro de 1999 e da Relação de Coimbra de 06 de julho de 2005 .

Esta é, pois, uma das facetas da dignidade humana, a qual tem consagração constitucional (artigo 1.º, 24.º, n.º 1, 25.º, todos da Constituição da República Portuguesa) e corresponde a um dos direitos fundamentais veiculados em tratados e convenções internacionais (v. g. artigos 5.º, da D.U.D.H.; 3.º, n.º 1 da C.E.D.H.; 7.º, n.º 1 e 10.º, n.º 1, ambos do P.I.D.C.P. e 1.º, 3.º, n.º 1, 4.º, todos da C.D.F.U.E.), tudo isto resultando de uma nova consciência da gravidade que tais comportamentos violentos, muitos deles ocorridos “intra-muros”, têm na rutura do relacionamento em sociedade, mormente quando as mulheres (ou os mais frágeis, como as crianças e os idosos) são as suas vítimas, seguindo-se, ao nível de política criminal, os mais recentes tratados, conferências e recomendações internacionais .

Deste modo, podemos sintetizar que a ratio desta incriminação, em termos de bem jurídico protegido, não se funda tanto “(...) na protecção da comunidade familiar, conjugal, educacional (...), mas sim na protecção da pessoa individual e da sua dignidade humana (...)”, sendo função deste artigo – e tipo, no segmento que interessa ao caso presente – “prevenir as frequentes e, por vezes, tão “subtis” quão perniciosas – para a saúde física e psíquica e/ou para o desenvolvimento harmonioso da personalidade ou para o bem-estar - formas de violência no âmbito da família (...)” .

Se em tempos passados se considerou que o bem jurídico protegido era apenas a integridade física, constituindo o crime de maus tratos uma forma agravada do crime de ofensas corporais simples, hoje, uma tal interpretação redutora é, manifestamente, de excluir, pois que vai muito além dos maus tratos físicos, compreendendo os maus tratos psíquicos, de tal sorte que se pode afirmar que, a final, o bem jurídico protegido é a saúde, enquanto realidade jurídica complexa, que abrange a saúde física, psíquica e mental  e que pode ser afetado por toda uma multiplicidade de comportamentos que afetem a dignidade pessoal da vítima e prejudiquem o seu bem estar e segurança.

Conforme, igualmente, refere a este propósito MARIA MANUELA VALADÃO SILVEIRA , “(…) é sabido que o legislador penal, na ordenação dos crimes, se prevaleceu do critério do bem jurídico protegido, no propósito de harmonizar a ordem jurídico-penal com a ordem axiológica constitucional. Na constituição, o direito à integridade pessoal insere-se, juntamente com a vida, a liberdade, a segurança, num núcleo de direitos fundamentais, sendo que a violação destes direitos denega, desde logo, a própria dignidade essencial da pessoa humana (…) Neste contexto, o n.º 2, do artigo 152.º, contribui, (…) em uníssono, com outros tipos incriminadores (…) para densificar o valor constitucional da dignidade, que se analisa no n.º 1, do artigo 25.º, da Constituição, em integridade moral e física (…)”.

No mesmo sentido se pronunciaram diversos Arestos do Supremo Tribunal de Justiça, de que é exemplo o Acórdão de 30 de outubro de 2003, no qual se considerou que “(…) O bem jurídico protegido pela incriminação é, em geral, o da dignidade humana, e, em particular, o da saúde, que abrange o bem estar físico, psíquico e mental, podendo este bem jurídico ser lesado, no âmbito que agora importa considerar, por qualquer espécie de comportamento que afecte a dignidade pessoal do cônjuge e, nessa medida, seja susceptível de pôr em causa o supra referido bem estar.” .

Afirma PLÁCIDO CONDE FERNANDES que não se vê “razão para alterar o entendimento, já sedimentado, sobre a natureza do bem jurídico protegido, como sendo a saúde, enquanto manifestação da dignidade da pessoa humana e da garantia da integridade pessoal contra os tratos cruéis, degradantes ou desumanos, num bem jurídico complexo que abrange a tutela da sua saúde física, psíquica, emocional e moral. A dimensão de garantia que é corolário da dignidade da pessoa humana fundamenta a pena reforçada e a natureza pública, não bastando qualquer ofensa à saúde física, psíquica, emocional ou moral da vítima, para preenchimento do tipo legal. O bem jurídico, enquanto materialização directa da tutela da dignidade da pessoa humana, implica que a norma incriminadora apenas preveja as condutas efectivamente maltratantes, ou seja, que coloquem em causa a dignidade da pessoa humana, conduzindo à sua degradação pelos maus-tratos.” .

Dito isto, dissequemos, então, em conjunto, os elementos que compõem este tipo-de-ilícito, quer do seu ponto de objetivo, quer subjetivo.

No que respeita aos elementos objetivos, verifica-se que o mesmo tem, em geral, por pressuposto que o agente (sujeito ativo) se encontre numa determinada relação (com particulares deveres jurídicos de proteção) para com o sujeito passivo dos seus comportamentos, estando este, por sua vez, para com o agente, numa relação de subordinação existencial, designadamente de coabitação conjugal ou análoga ou, então, em virtude do seu estado particularmente indefeso, em razão de idade, deficiência, doença, gravidez ou dependência económica.

Está-se, assim e claramente, perante um crime comummente designado por crime específico, que será próprio ou impróprio consoante, respetivamente, as condutas em si mesmo consideradas já constituam crime – caso de maus tratos físicos, pois que o mau trato físico é sinónimo de ofensa à integridade física simples.

Desta forma, as condutas abrangidas pelo tipo incriminador, podem ser de variada natureza ou espécie, tais como maus tratos físicos – isto é, ofensas corporais simples, e/ou maus tratos psíquicos – humilhações, provocações, molestações, ameaças mesmo que não configuradoras em si do crime de ameaças.

Anote-se, portanto, que atualmente o preenchimento objetivo deste tipo de ilícito basta-se com agressões verbais, quer sob a forma de provocações, humilhações, injúrias, ameaças, etc., mas de tal forma intensas que se traduzam nos denominados maus tratos psíquicos, não sendo, pois, exigível que estes sejam acompanhados de agressões físicas, precisamente porque o legislador consciente que no domínio familiar e conjugal as humilhações, os insultos, as ameaças constituem, muitas vezes, formas de violência psíquica mais graves do que muitas ofensas corporais simples, na revisão penal de 1995, vertida no Decreto-Lei n.º 48/95, de 15 de março, previu, ao lado dos maus tratos físicos, os maus tratos psíquicos.

Na realidade, a expressão “maus tratos” constante do anterior n.º 2, do referido artigo 152.º, segundo RICARDO BRAGANÇA DE MATOS , procurava “traduzir uma específica realidade sociológica que pode ser caracterizada pelo exercício de inúmeras formas de violência, que ocorre num específico espaço social, em que surgem como agressor e vítima os membros de uma relação conjugal (ou de uma relação a esta análoga, ou de uma relação familiar de âmbito mais alargado) e que visa, a maior parte das vezes, a manutenção na prática de concepções estereotipadas dos papéis atribuídos ao homem e à mulher, concepções essas fundamentadas numa visão ainda patriarcal da sociedade, Mas, em termos práticos, maus tratos significa, antes de mais, o exercício de violência. (…) A prática de maus tratos entre cônjuges parece então poder analisar-se na perpetração de qualquer acto de violência que afecte, por alguma forma, a saúde física, psíquica e emocional do cônjuge vítima, diminuindo ou afectando, do mesmo modo, a sua dignidade enquanto pessoa inserida numa realidade conjugal igualitária.”.

Nas palavras de RUI ABRUNHOSA GONÇALVES , a expressão “violência conjugal” – que se distingue de conceitos mais abrangentes como os de “violência doméstica”, “violência familiar” ou “maus tratos familiares”, em que podem ser afetados outros elementos da família ou que coabitem com o casal – abarca um conjunto variado de atos agressivos que se distinguem entre si pela sua gravidade, mas que têm em comum o facto de serem exercidos por um elemento do casal (geralmente o homem) sobre o outro, de forma consciente, envolvendo a noção de que de que tais actos podem ocorrer numa fase pré-matrimonial ou de vida em conjunto, durante esse período ou mesmo após, quando o matrimónio ou a união de facto se encontram em vias de dissolução.

Dada a sua amplitude e importância, esta questão da violência intrafamiliar foi abordada no Conselho da Europa, que, na Exposição de Motivos Relativa ao Projeto de Recomendação Sobre a Violência no Seio da Família (Anexo II), elaborada pelo Comité Restrito de Peritos Sobre a Violência na Sociedade Moderna, aprovada na 33.ª Sessão Plenária do Comité para os Problemas Criminais (abril de 1984), especificou o conceito de violência física no seio da família, excluindo a violência sexual, como “Qualquer acto ou omissão cometido no âmbito da família por um dos seus membros, que constitua atentado à vida, à integridade física ou psíquica ou à liberdade de um outro membro da mesma família ou que comprometa gravemente o desenvolvimento da sua personalidade.”

 No âmbito do direito interno, a evolução no tratamento destas matérias conduziu às modificações operadas pela citada Lei n.º 59/2007, porquanto, antes dessa alteração legislativa, discutia-se amplamente na jurisprudência e na doutrina se para a verificação do tipo legal se exigia sempre uma reiteração das condutas. Assim, no sentido de que era exigível a reiteração veja-se, por exemplo, os Acórdãos do Tribunal da Relação do Porto de 05 de novembro de 2003 .

MAIA GONÇALVES defendia que “enquanto o crime de ofensa à integridade física pode ser cometido por negligência, o crime de maus-tratos previsto neste artigo é essencialmente doloso. Por outro lado, aquele crime pode ser cometido através de um só acto, enquanto que o crime de maus-tratos pressupõe alguma reiteração das condutas, de modo a inculcar um carácter de habitualidade. Concorrendo este crime com o de ofensa à integridade física simples, normalmente este último ficará consumido pelo primeiro porque, coincidindo nos seus elementos descritivos, representa em relação a ele um minus.” .

No mesmo sentido, LEAL-HENRIQUES e SIMAS SANTOS afirmavam que “não basta uma acção isolada do agente para que se preencha o tipo (estaríamos então no domínio das ofensas à integridade física, pelo menos), mas também não se exige habitualidade da conduta. Afigura-se-nos que o crime se realiza com a reiteração do comportamento, em determinado período de tempo.”

AMÉRICO TAIPA DE CARVALHO afirmava igualmente que “o tipo de crime em análise pressupõe, segundo a ratio da autonomização deste crime, uma reiteração das respectivas condutas. Um tempo longo entre dois ou mais dos referidos actos afastará o elemento reiteração ou habitualidade pressuposto, implicitamente, por este tipo de crime.”

Por seu turno, MANUELA VALADÃO E SILVEIRA, defendia igualmente que os maus-tratos, enquanto tal, não implicam repetições reiteradas de ofensas, podendo o crime ser preenchido com uma única conduta agressiva .

No plano da jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, pronunciou-se o Acórdão de 30 de outubro de 2003, dizendo que “Resulta do próprio dispositivo legal que não basta uma acção isolada do agente para que se preencha o tipo. Terá, por isso, de se tratar de uma acção plúrima e repetitiva, reiterada. Porém, também não é preciso que se registe uma situação de habitualidade.”

Destarte, foi surgindo uma corrente jurisprudencial segundo a qual, em casos de especial violência, uma única agressão seria bastante para preencher o tipo legal.

Assim, com referência à redação do preceito resultante da 3.ª alteração ao Código Penal, operada pelo aludido Decreto-Lei n.º 48/95, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 14 de novembro de 1997, considerou que: “A actual redacção (…) mais não significa (…) do que a incriminação, decorrente da lei penal, de condutas agressivas, mesmo que praticadas uma só vez, que se revistam de gravidade suficiente para poderem ser enquadradas na figura dos maus tratos. Não são, assim, todas as ofensas corporais entre cônjuges que cabem na previsão criminal do referido artigo 152.º, mas aquelas que se revistam de uma certa gravidade ou, dito de outra maneira, que, fundamentalmente, traduzam crueldade, ou insensibilidade, ou, até, vingança desnecessária, da parte do agente.” .

Perfilhando esta orientação, também foi decidido no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 04 de fevereiro de 2004 , que, em regra, o tipo de crime exigia uma reiteração da conduta delituosa, só em casos excecionais bastando um só ato, se ele for suficientemente grave para afetar de forma marcante a saúde física ou psíquica da vítima, entendimento igualmente seguido no Acórdão de 05 de abril de 2006, nele se dizendo que a reiteração é, na maior parte das vezes, elemento integrante destes requisitos, mas excecionalmente o crime pode verificar-se sem ela.

Tal como também se decidiu no Tribunal da Relação do Porto, em Acórdão de 03 de julho de 2002, “o âmbito punitivo do tipo de crime do artigo 152.º, n.ºs 1 e 2, do Código Penal, inclui os comportamentos que, de forma reiterada, lesam a dignidade humana, compreendendo a ratio deste normativo, para além dos maus tratos físicos, os maus tratos psíquicos (por exemplo, humilhações, provocações, ameaças, curtas privações de liberdade de movimentos, etc.)”, acrescentando, no entanto, que “a respectiva incriminação, decorrente da lei penal, de condutas agressivas, mesmo que praticadas por uma só vez, sempre ocorrerá quando a gravidade intrínseca das mesmas se assumir como suficiente para poder ser enquadrada na figura dos maus tratos físicos ou psicológicos, enquanto violação da pessoa individual e da sua dignidade humana, com afectação da sua saúde.” .

Mutatis mutandis no Acórdão da Relação do Porto de 12 de maio de 2004 defendeu-se que bastava um só comportamento do agente que “se revista de uma gravidade tal que seja suficiente para justificar a dissolução do vínculo conjugal, por comprometer a possibilidade devida em comum” , “se revelar de uma certa gravidade ou traduzir, da parte do agente, crueldade, insensibilidade ou até vingança”  ou então se se tratar de “uma conduta complexa que revista gravidade e traduza, v. g. crueldade ou insensibilidade” .

Já no Acórdão da Relação de Lisboa de 07 de dezembro de 2010 sumariou-se o seguinte: “(…) Pune-se um tratamento cruel, excessivo, sem respeito pela dignidade do companheiro, tudo com aproveitamento de uma autoridade do agente que lhe advém do uso e abuso da sua força física. Com ele se visa proteger muito mais do que a soma dos diversos ilícitos típicos que o podem preencher, como ofensas à integridade física, injúrias ou ameaças. Está em causa a dignidade humana da vítima, a sua saúde física e psíquica, a sua liberdade de determinação, que são brutalmente ofendidas, não apenas através de ofensas, ameaças ou injúrias, mas essencialmente através de um clima de medo, angústia, intranquilidade, insegurança, infelicidade, fragilidade, humilhação, tudo provocado pelo agente, que torna num inferno a vida daquele concreto ser humano.” .

Daqui decorre, então, não ser exigível uma ação reiterada para o preenchimento do elemento objetivo integrador do tipo legal, tanto assim que tal requisito foi expressamente afastado na redação introduzida pela referida Lei n.º 59/2007.

Esta solução legislativa veio a afirmar-se em sentido divergente do propugnado no Anteprojeto de Revisão do CP, apresentado pela Unidade de Missão para a Reforma Penal, harmonizando-se com a exposta corrente jurisprudencial que, face a anterior redação do preceito, o interpretava no sentido de não ser exigida a reiteração, desde que a conduta maltratante fosse especialmente grave, ou seja, desde que o comportamento violento único assuma especial gravidade .

Acrescente-se, também e em consonância com o acima exposto, que como as condutas que integram o tipo objetivo ora em apreço são normalmente suscetíveis de, singularmente consideradas, constituírem, em si mesmas, outros crimes, tais como de ofensa à integridade física simples, de ameaça, de injúria, de difamação, então, mesmo que haja pluralidade de condutas, não haverá, no entanto, uma pluralidade de crimes, mas antes uma pluralidade de atos de execução, havendo, por isso, uma execução continuada ou sucessiva, que se prolonga no tempo, dominada pelo mesmo desígnio criminoso, em que cada ato de execução sucessivo realiza parcialmente o evento do crime; a cada parcela de execução segue-se um evento parcial.

Porém, os eventos parcelares devem ser considerados como evento unitário. A soma dos eventos parcelares é que constitui o evento do crime único.

Deste modo, ainda que se verifique uma pluralidade de condutas praticadas sobre a mesma vítima, estaremos perante um único crime, embora (em regra) de execução reiterada, motivo pelo qual, para efeitos de determinação do momento da respetiva consumação, deve considerar-se o exato momento em que ocorre a prática do último ato de execução.

Ou seja, para este efeito, o momento decisivo e, portanto, o tempus delicti, reconduz-se ao momento em que foi praticada a última conduta que integra o comportamento típico, sendo esse, aliás, também momento o determinante para determinar qual a lei aplicável nos termos e ao abrigo do disposto no artigo 2.º, do Código Penal.

No que respeita à agravação do limite mínimo da moldura penal consagrado no citado n.º 2, do artigo 152.º, na parte que interessa ao nosso caso, há que ter em conta que o propósito do legislador foi o de censurar mais gravemente os casos de violência doméstica velada, em que a ação do agressor é favorecida pelo confinamento da vítima ao espaço do domicílio e pela inexistência de testemunhas .

Na verdade, para a configuração da noção de domicílio para efeitos da incriminação em apreço, importa menos a sua definição civilística – ou seja, o lugar da residência habitual ou onde a pessoa cumpre as suas obrigações – e mais a caracterização como aquele local que, de algum modo, como maior ou menor intensidade, com mais ou menos frequência, se estabelece um laço entre o agressor e o agredido.

O que a lei visa punir com esta agravação, são as agressões cometidas no local onde se criou – forte ou fraco, consoante as idiossincrasias do espírito humano – um projeto comum de duas pessoas, num lugar que é de ambos, onde as mesmas se relacionavam com algum grau de estabilidade, como namorados, amantes ou cônjuges, mas, em qualquer caso, com aquele nível de privacidade e intimidade, que torna a agressão posterior mais censurável e, por isso, a merecer mais severa sanção .

Finalmente, no que concerne ao tipo subjetivo de ilícito, ressalta de imediato, que estamos perante um crime essencialmente doloso.

É o ensinamento que se retira do disposto no artigo 13.º, do Código Penal, segundo o qual só é punível o facto praticado com dolo ou, nos casos especialmente previstos na lei, com negligência, pelo que, a contrario, não se encontrando na letra da lei qualquer referência à atuação na forma negligente, só serão típicos os maus tratos que sejam praticados com dolo, em qualquer uma das suas modalidades.

Com efeito, constam do artigo 14.º, do mesmo Código, as situações em que o legislador considera existir dolo, com diferentes intensidades, havendo sempre que verificar-se quer o elemento intelectual quer o elemento volitivo do mesmo. Ou seja, o dolo deve abranger todos os elementos objetivos do tipo de ilícito, pois só assim se estabelece a necessária congruência entre o lado objetivo e o lado subjetivo do ilícito.

Consequentemente, no ilícito em apreço o respetivo dolo deve abranger o próprio resultado danoso da integridade física ou da honra e consideração da vítima, bem como o conhecimento da relação com esta última. Quer isto significar que, se a conduta pressupor um resultado (v.g. causar lesões físicas), o dolo tem de englobar a intenção de provocar as mesmas, enquanto que se se tratar de situações de perigo exige-se que o dolo abranja esse perigo, sendo certo que, em todo o caso, é sempre necessário o conhecimento da relação de proteção ou subordinação e também da especial vulnerabilidade da vítima.

Feitas estas considerações teóricas e descendo ao caso dos autos, importa analisar a matéria provada por reporte ao enquadramento jurídico acima vertido.

Deste modo, ficou apenas provado que o arguido e a ofendida são casados desde 06 de janeiro de 1985, tiveram 3 (três) filhos: EE, nascido a ../../1985, FF, nascido a ../../1991, portador de deficiência mental com uma incapacidade de 95% e GG, nascido a ../../1999, todos atualmente maiores de idade e, ademais, fixaram residência em habitação sita na rua ..., Paredes, sendo que, com o casal, residem ainda os filhos identificados como FF e GG.

Ademais, demonstrado ficou que correu termos contra o arguido o processo n.º 682/16.1GAPRD, no âmbito do qual aquele foi acusado pela prática de um crime de violência doméstica, previsto e punível pelo artigo 152.º, n.ºs 1, alínea a), 2 e 4, do Código Penal, por factos supostamente ocorridos no período compreendido entre 2015 e setembro de 2016, tendo vindo a ser absolvido, por sentença datada de 27 de fevereiro de 2017, já transitada em julgado.

Também se demonstrou que, no dia 02 de março de 2023, pouco depois das 19 horas, na presença dos Sr.ºs Militares da G.N.R. que se deslocaram à residência aludida em 3.º supra e enquanto permaneciam no seu logradouro, juntamente com o arguido e a ofendida, aquele manifestamente exaltado, proferiu as seguintes expressões, dirigidas a esta última: “quando a G.N.R. for embora vou matar toda a gente, tu deixa ir embora a G.N.R. que depois falamos”.

Mesmo depois de advertido pelos Sr.ºs Militares da G.N.R. para a ilicitude da sua conduta, o arguido persistiu, proferindo nova expressão, dirigindo-se à ofendida: “quando vos fores embora ides ver o que vai acontecer aqui em casa, mato toda a gente”.

Por tais factos, foi o arguido detido, tendo sido usada a força estritamente necessária para a sua detenção.

Já no interior do Posto da G.N.R. de Paredes, o arguido submetido a teste de pesquisa de álcool no sangue, revelou ser possuidor de uma taxa de alcoolemia no sangue (T.A.S.) de 1,72 gramas por litro, por via de bebidas alcoólicas que havia voluntária e intencionalmente ingerido momentos antes.

Também ficou provado que quis o arguido com as expressões e condutas acima identificadas significar que iria matar ou molestar fisicamente a ofendida, quando e logo que lhe fosse possível, o que fez com foros de seriedade, deixando-a com receio e medo da concretização de tais intentos e limitando a sua liberdade de determinação pessoal, bem sabendo que tais expressões eram em abstrato adequadas a intimidar o seu destinatário, suscetíveis de perturbar e causar receio à ofendida pela sua segurança, como o foram em concreto.

Tinha igualmente noção de que por a ofendida ser sua mulher, que lhe devia especial dever de respeito.

Não obstante, atuou o arguido como descrito, o que fez de forma livre, voluntária e consciente e bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por Lei.

Todos os demais factos descritos na acusação, resultaram como não provados e, em particular: a) que na sequência de um acidente de trabalho, no decurso do ano de 2015, do qual resultou para o arguido incapacidade para o trabalho, aliado ao consumo de álcool em demasia, o arguido passasse a adotar um comportamento impetuoso relativamente à ofendida; b) que desde a data aludida em 5.º supra o arguido, diariamente, motivado pela ingestão de bebidas alcoólicas, apodasse a ofendida de puta, vaca, badalhoca; c) que no dia 02 de março de 2023, o arguido iniciasse o consumo de álcool pelas 17 horas; d) que cerca das 19 horas, nesse mesmo dia, estava a ofendida em casa a servir o jantar ao arguido e aos filhos, quando, sem nada que o fizesse prever, o arguido se recusasse a ir jantar, ao que a ofendida lhe dissesse: “não queres comer porque estás para aí com a caneca na mão”; e) que ato contínuo, o arguido apodasse a ofendida de “puta e vaca” e, em tom sério, dissesse que a matava; f) que ao mesmo tempo proferisse esta expressão, o arguido levantou-se e fosse até à banca, onde pegou numa faca e, de seguida, a apontasse à ofendida, dizendo-lhe novamente que a matava, fazendo gestos repetidos para a frente e para trás, fazendo-a crer que lhe ia espetar a faca; g) que com receio que o arguido concretizasse tais ameaças, a ofendida tentasse sair da cozinha para o exterior, ao que o arguido foi no seu encalço; h) que já no exterior, o arguido agarrasse a ofendida por trás e, com o braço direito, lhe aplicasse um golpe ao pescoço, vulgarmente conhecido por mata leão, causando-lhe dores; i) que de tal forma pressionasse o pescoço da ofendida que a mesma começou a sentir falta de ar, pelo que se tentou libertar, ao mesmo tempo que gritava, ao que o arguido, ao mesmo tempo que apertava o pescoço, dissesse, em tom sério: “chama a guarda, chama a guarda, que eu não tenho medo, e mato-te sua puta”; j) que a ofendida acabasse por se conseguir libertar e pedir ajuda ao seu filho mais novo, GG, a quem disse através do telefone: “anda cá que o teu  pai quer-me matar”; k) que tais factos fossem presenciados pelo filho FF; l) que com as condutas supra descritas, o arguido quis e conseguiu molestar psicologicamente a ofendida, molestar o seu bem-estar psíquico e limitar a sua autodeterminação pessoal, submetendo-a a um tratamento humanamente degradante, enquanto pessoa, com total desrespeito pela sua personalidade e auto-estima, o que repetiu e reiterou; m) que tinha ainda o arguido a perfeita noção de que dirigia à ofendida expressões que a humilhavam e diminuíam na sua dignidade pessoal, o que quis e conseguiu; n) que o arguido, agiu deliberada, livre e conscientemente, com o propósito, aliás concretizado, de ferir fisicamente a ofendida, atingindo-a, da forma como o fez, para melhor assegurar o êxito das suas intenções, bem sabendo que o meio utilizado era apto a ferir e molestar o corpo e a saúde daquela e a causar-lhe as dores verificadas.

Pois bem.

Face à matéria de facto dada como provada, é de considerar que a mesma não preenche os elementos objetivos do crime de violência doméstica, cuja prática era imputada ao aqui arguido.

Na linha do supra exposto, escreveu-se no Acórdão da Relação do Porto de 28 de setembro de 2011, cujo entendimento perfilhamos integralmente, que “Temos assim que a panóplia de acções que integram o tipo de crime em causa, analisadas à luz do contexto especialmente desvalioso em que são perpetradas, constituem-se em maus trautos quando, por exemplo, revelam uma conduta maltratante especialmente intensa, uma relação de domínio que deixa a vítima em situação degradante ou um estado de agressão permanente [Plácido Conde Fernandes, pág. 307]; caracterizadas como maus trautos, entende-se que a situação integra um padrão de comportamentos com uma perigosidade típica para o bem-estar físico e psíquico da vítima - razão pela qual é crime. (…). Como a própria expressão legal sugere, a acção não pode limitar-se a uma mera agressão física ou verbal, ou à simples violação de alguma ou algumas das liberdades da pessoa [vítima] tuteladas por outros tipos legais de crimes. Importa que a agressão (em sentido lato) constitua uma situação de “maus tratos”. E estes [maus tratos] só se dão como verificados quando a acção do agente concretiza actos violentos que, pela sua imagem global e pela gravidade da situação concreta são tipificados como crime pela sua perigosidade típica para a saúde e bem-estar físico e psíquico da vítima. No ilícito de violência doméstica é objetivo da lei assegurar uma (…) tutela especial e reforçada da vítima perante situações de violência desenvolvida no seio da vida familiar ou doméstica que, pelo seu carácter violento ou pela sua configuração global de desrespeito pela pessoa da vítima ou de desejo de prevalência de dominação sobre a mesma, evidenciem um estado de degradação, enfraquecimento ou aviltamento da dignidade pessoal quanto de perigo ou de ameaça de prejuízo sério para a saúde e para o bem-estar físico e psíquico da vítima (…) .

Na realidade, o que conta é saber se a conduta do agente, pelo seu carácter violento ou pela sua configuração global de desrespeito pela pessoa da vítima ou de desejo de prevalência de dominação sobre a mesma, é suscetível de ser classificada como maus tratos, pois se assim for, e ainda que não tenha chegado a produzir-se um dano efetivo, é de admitir a existência de um perigo para a vida e para a saúde da vítima, que o legislador, consciente do padrão de comportamento deste tipo de agressores (por regra, intensifica o caudal de violência ou de manipulação da vítima ao longo do tempo), procura protegê-la por antecipação e de forma reforçada.

Dito ainda de outro modo, o que releva é saber se a conduta do agente, pelo seu carácter violento ou pela sua configuração global de desrespeito pela pessoa da vítima ou de desejo de prevalência de dominação sobre a mesma é suscetível de se classificar como “maus tratos”.

Conforme se escreveu no Acórdão da Relação de Évora de 30 de junho de 2015 “(…) essa conduta deverá revelar ainda um “plus” de danosidade, quando, face ao restante entorno factual se pode concluir pela sua adequação a afectar a dignidade pessoal do outro elemento do casal” .

Esta decisão foi sintetizada pelo seguinte modo: “A imagem global do facto e a apreensão/percepção de todo o episódio de vida em apreciação relevam na delimitação da fronteira entre condutas que têm dignidade punitiva à luz do tipo de crime de violência doméstica e aquelas que não devem relevar para o direito penal, aqui. Condição necessária para a intervenção penal é sempre a ofensa efectiva de um bem jurídico (digno de protecção penal). A ratio do tipo “violência doméstica” não reside, na protecção da família, mas na protecção da pessoa individual na família, na tutela da sua dignidade, protegendo-a de um abuso de poder na relação afectiva. Ocorrendo os factos provados num quadro de relacionamento conjugal deteriorado, mas em que, apesar dessa degradação, os cônjuges se foram mantendo livremente no casamento, sem posições de dominância de um sobre o outro, interagindo sempre em condições de paridade e igualdade conjugal, uma agressão isolada e pouco intensa, que atingiu a integridade física da assistente, e outras ofensas pontuais ao seu bom nome, embora merecedoras de censura penal, não encontram tutela à luz do art. 152º do CP, e sim dos arts 143º, nº 1 do CP e 181º, nº1 do CP.”.

Ou, ainda, como se salientou, duma forma, porventura, mais impressiva, no sumário do Acórdão da Relação de Guimarães de 15 de outubro de 2012, “(…) A delimitação dos casos de violência doméstica daqueles em que a ação apenas preenche a previsão de outros tipos de crime, como a ofensa à integridade física, a injúria, a ameaça ou o sequestro, deve fazer-se com recurso ao conceito de “maus tratos”, sejam eles físicos ou psíquicos. Há “maus tratos”quando, em face do comportamento demonstrado, for possível formular o juízo de que o agente manifestou desprezo, desejo de humilhar, ou especial desconsideração pela vítima” .

Se da imagem global dos factos não resultar este quadro de maus tratos, nos moldes e com os referidos contornos, que justifiquem aquela especial tutela e punição agravada, a situação integrará a prática de um ou dos vários crimes em causa e que de outra forma seriam consumidos por aquele.

Em síntese conclusiva rematamos com a brilhante síntese do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 20 de abril de 2017, “(…) A violência doméstica pressupõe também uma contundente transgressão relativamente à esfera de autonomia da vítima sujeita na maioria dos casos, como a experiência demonstra, a uma situação de submissão à vontade do(a) agressor(a), «de alguém de quem possa depender, ao nível mesmo da vontade sobre as dimensões mais elementares da realização pessoal» redundando «numa específica agressão marcada por uma situação de domínio (…) geradora de um específico traço de acentuada censura» que escapa em geral à razão de ser dos tipos de ofensas à integridade física, coacção, ameaça, injúria, violação, abuso sexual, sequestro, etc. Serão estes os traços que mais vincam a natureza do crime, a sua peculiar estrutura, mais do que a discussão à volta do recorte preciso do bem jurídico protegido.” .

Nessa linha de pensamento, revisitando novamente o caso em apreço, à míngua de outros factos, já que, nesta sede, apenas podemos atender o elenco da factualidade dada como provada, não podemos considerar que os mesmos, quer isolada, quer conjuntamente analisados entre si, atendendo ao contexto em que ocorreram, consubstanciam um conduta especialmente violenta ou uma atitude de especial desrespeito pela pessoa da vítima ou de desejo de prevalência de dominação sobre a mesma, ou seja, não revestem a gravidade ou a intensidade do desvalor da ação e do resultado típicas do crime de violência doméstica, nos moldes acima explicados.

Ou seja, da factualidade apurada nestes autos não se retiram elementos suficientemente expressivos para se poder afirmar que o arguido atingiu o bem jurídico tutelado com esta incriminação que, neste conspecto, lhe vinha assacada com os “maus tratos psíquicos e físicos” reiterados/sucessivos infligidos à ofendida, pelo que é de concluir que a mesma não preenche os elementos objetivos do crime de violência doméstica e, consequentemente, porque necessariamente dependente daqueles, o seu elemento subjetivo, pelo que está, assim, afastada a punição da conduta do arguido como integrante desse ilícito, impondo-se a sua absolvição quanto à prática do crime de violência doméstica de que vinha publicamente acusado.

Certo é, porém, que aos factos dados como provados, apesar de não serem suficientes para integrarem a prática de um crime de violência doméstica, já o são para serem subsumidos à previsão legal contida nos artigos 153.º e 155.º, n.º 1, alínea a), ambos do Código Penal, representando este crime, como vimos supra, um minus em relação ao referido crime de violência doméstica, estando, por isso, em concurso aparente com este último.

Na verdade, em matéria de concurso de crimes, rege o artigo 30.º, n.º 1, do Código Penal, que nos diz que, para o concurso efetivo, verdadeiro ou puro de crimes, o número de crimes determina-se pelo número de tipos de crimes efetivamente cometidos (concurso real) ou pelo número de vezes que o mesmo tipo de crime for preenchido pela conduta do agente (concurso ideal).

Ou seja, no concurso legal, aparente ou impuro a conduta do agente só formalmente preenche vários tipos de crime pois que, por via da interpretação, conclui-se que o conteúdo da conduta é exclusiva e totalmente abrangido por um só dos tipos violados, pelo que os outros devem recuar, não sendo aplicados.

Neste caso, não há rigorosamente concurso de crimes mas concurso ou convergência de normas jurídicas, em que a aplicação de uma exclui a aplicação das outras, tratando-se portanto de um problema de determinação da norma aplicável, a resolver segundo as regras de especialidade, subsidiariedade ou consunção.

Especialidade é a relação que se estabelece entre dois preceitos incriminadores sempre que num (o tipo especial) se contêm todos os elementos do outro (tipo fundamental) e, além disso, outros elementos especializadores relativos ao facto ou ao agente.

Já a subsidiariedade é uma relação que pode ser reconduzida à de consunção, que, no fundamental, a abarca. Dá-se quando um dos preceitos incriminadores condicionar expressamente a sua aplicabilidade à não aplicabilidade de outro ou outros, ou quando existe uma espécie de relação lógica entre as normas, que implique uma tácita subsidiariedade entre elas.

A consunção, por seu turno, ocorre quando o preenchimento de um tipo legal inclui já o preenchimento de outro tipo legal, estabelecendo-se entre ambos relações de mais e menos: uns contêm-se já nos outros. Se se apresentam ao mesmo tempo, para se aplicarem a uma certa situação de facto, diversos tipos de crimes, encontrando-se os respetivos bens jurídicos, uns relativamente aos outros, em tais relações, pode suceder que a reação contra a violação concreta do bem jurídico realizada pelo tipo enformado pelo valor menos vasto, se efetive já pela aplicação do preceito que tem em vista a defesa de bens jurídicos mais extensos, ou seja, uma consome já a proteção que a outra visa. E como não pode oferecer dúvidas que a mais ampla, a lex consumens, tem em todo o caso de ser eficaz, é manifesto, sob pena de clara violação do princípio ne bis in idem, que a menos ampla, a lex consumta, não pode continuar a aplicar-se.

Por seu turno, a consunção impura ocorre quando, não estando os tipos legais numa relação de especialidade ou de consunção pura (aquela que antes descrevemos) se comportam, entre si, na proteção de bens jurídicos, como dois círculos que coincidem inteiramente na sua parte mais vasta e valiosa.

Então, sempre em nome do respeito do princípio ne bis in idem, só deve aplicar-se aquele tipo legal de crime que garante, do ponto de vista jurídico-positivo, uma reação mais larga e perfeita.

Para que esta se verifique é forçoso que a proteção tida em vista pelo tipo legal de crime que se pretende excluir por consunção impura se realize concretamente na sua maior parte pela aplicação de um outro preceito (lex consumens impura).

Do exposto resulta, então, que o preenchimento em concreto de vários tipos legais pelo comportamento do agente não implicará necessariamente um concurso efetivo, assim acontecendo nos casos em que se possa concluir pela existência de um sentido de ilicitude dominante, pelo que a punição nos termos do disposto no artigo 77.º, do Código Penal apenas aplicar-se-á aos casos de concurso efetivo.

Nos casos de concurso aparente, pelo contrário, a punição será obtida na moldura penal do tipo legal que integra o sentido de ilícito dominante.

De notar ainda que para a “apreensão do conteúdo de ilicitude material do facto” não bastará, pois, um mero trabalho sobre normas; há que recorrer a subcritérios fundamentais, tais como o da unidade de sentido do comportamento ilícito global, o da relação ilícito-meio/ ilícito-fim, o da unidade do desígnio criminoso do agente, o da conexão situacional espácio-temporal e o dos diferentes estádios de realização da atuação global, de acordo com as particularidades de cada caso concreto.

E estas particularidades do caso concreto decidirão, então, da premência de uns em detrimento de outros, podendo até acontecer que dois ou mais critérios convirjam em direção ao mesmo resultado. Eles funcionam, então, como indicadores seguros da unidade, ou da pluralidade, de sentidos sociais de ilicitude do comportamento global.

Em face de tais orientações, dúvidas não quedam, aliás, já o dissemos, que o crime de violência doméstica, sendo um ilícito composto, concorre quase sempre com outras normas incriminadoras, encontrando-se numa situação de concurso aparente de normas com os crimes de ofensas corporais simples (artigo 143.º, n.º 1), de injúria (artigo 181.º), de difamação (artigo 180.º, de ameaça (artigo 153.º e/ou 155.º), de coação (artigo 154.º), de sequestro simples (artigo 158.º, n.º 1), de devassa da vida privada (artigo 192.º, n.º 1, alínea b), de gravações e fotografias ilícitas (artigo 199.º, n.º 2, alínea b) e de perseguição (artigo 154.º-A, n.º 1), porquanto “(…) Os ‘maus tratos físicos’ correspondem ao crime de ofensa à integridade física simples e os ‘maus tratos psíquicos’ aos crimes de ameaça simples ou agravada, coacção simples, difamação e injúrias, simples ou qualificadas” .

Normal e tendencialmente o comportamento imputado ao arguido pode ser suscetível de integrar todos ou alguns destes crimes, que, pela subsunção a uma única previsão legal, deixam de ter relevância jurídico-penal autónoma, acabando por ser unificado e condenado por um único crime – o de violência doméstica.

Como se sabe, este crime é um crime específico impróprio, pois a qualidade especial do agente ou o dever que sobre ele impende constitui o fundamento da agravação relativamente aos crimes que as condutas já integravam; é a consideração da qualidade do agente e, particularmente, do dever que sobre ele impende que fundamentam e justificam a criação de um tipo de crime com uma cominação agravada.

Por isso mesmo, encontra-se, pois, numa relação de especialidade com os crimes de ofensas corporais simples ou qualificadas, os crimes de ameaças simples ou agravadas, o crime de coação simples, o crime de injúria, o crime de difamação, o crime de perseguição, entre outros, em que a punição do crime de violência doméstica afasta a destes crimes, precisamente porque toda a matéria de facto subsumível à norma especial (artigo 152.º), caber inteiramente no âmbito mais vasto da norma geral (artigos 143.º/153.º/154.º-A/180.º/181.º), sendo a primeira especial relativamente à segunda prevalecendo, por isso, aquela sobre esta, constituindo doutrina estabilizada que entre aquele e este que o integra, ocorre uma relação de concurso aparente, ou de mero concurso de normas .

Pode, porém, suceder que os comportamentos em causa integrem os crimes de ofensa à integridade física, de injúria, de ameaça, entre outros e, não obstante, não satisfaçam o tipo da violência doméstica, por não revelarem o “especial desvalor da ação” ou a “particular danosidade social do facto” que fundamentam a especificidade deste crime.

Nestes casos, como é bom de ver, apenas há que aplicar as normas gerais.

E é precisamente isso que se impõe fazer no caso dos autos.

Com efeito, no caso em apreço, o bem jurídico protegido pelo tipo incriminador imputado na acusação, ou seja, o crime de violência doméstica, abrangia já os bens jurídicos protegidos pelo tipo criminal, para além de outros, de ameaça (simples e/ou agravada) , pelo que, a absolvição daquele e a subsequente incriminação dos factos neste último não pode deixar de ser visto como uma “degradação” – para usar uma expressão do Acórdão da Relação do Porto de 21 de dezembro de 2016  – ou um “minus” relativamente à matéria em que assentava a incriminação constante da acusação, como se observou no Acórdão da Relação do Porto de 30 de janeiro de 2013 .

Desde logo, porque não resulta do acervo probatório que se trata de um comportamento repetido, reiterado, humilhante ou vexatório, mas também por não serem factos de gravidade tal que prescindam dessa reiteração para serem qualificados como de maus tratos.

É, assim, nosso entendimento que tal conduta não integra a prática de um crime de violência doméstica, antes se eleva e autonomiza à categoria do crime de ameaça agravada, previsto e punível pelos artigos 153.º e 155.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal. Com efeito, estabelece o sobredito artigo 153.º que comete um crime de ameaça “[q]uem ameaçar outra pessoa com a prática de crime contra a vida, a integridade física, a liberdade pessoal, a liberdade e a autodeterminação sexual ou bens patrimoniais de considerável valor, de forma adequada a provocar-lhe medo ou inquietação ou a prejudicar a sua liberdade de determinação (…)”.

Por sua vez, preceitua o artigo 155.º, na alínea a), do seu n.º 1 que “[q]uando os factos previstos nos artigos 153.º a 154.º-C forem realizados: a) Por meio de ameaça com a prática de crime punível com pena de prisão superior a três anos; (…)”.

Com efeito, o crime de ameaça insere-se no capítulo dos crimes contra a liberdade pessoal, na medida em que as ameaças, provocando um sentimento de insegurança, intranquilidade e medo na pessoa do ameaçado, afetam a tranquilidade e a paz individual, que é condição de uma verdadeira liberdade.

Nessa medida, o bem protegido com a norma incriminadora é, pois, a liberdade de decisão e de ação (manifestações da liberdade pessoal), aspeto este que assume particular relevância para distinguir a conduta integradora deste tipo de ilícito, da tentativa de ofensa à integridade física ou da injúria, que se dirigem, respetivamente, à tutela da integridade física e da integridade moral das pessoas.

A este propósito, escreve AMÉRICO TAIPA DE CARVALHO que a tutela penal da liberdade é, por excelência, uma tutela negativa e pluridimensional: negativa, na medida em que visa impedir as ações de terceiros que afetem a liberdade de decisão e de ação individual e pluridimensional, uma vez que assume as diversas manifestações da liberdade pessoal (liberdade de autodeterminação, de movimento, de ação, sexual) como autónomos objetos de proteção penal .

Ora, o elemento objetivo do tipo ora em apreço é a ação de ameaçar (por qualquer forma: oral, escrita ou gestual) a qual deverá conter três características .

Assim, em primeiro lugar, deverá reconduzir-se a um mal que tanto pode ser de natureza pessoal como patrimonial, mas que tem de configurar, em si mesmo um facto ilícito típico: crime contra a vida, a integridade física, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual ou bens patrimoniais de considerável valor.

Em segundo lugar, o mal objeto da ameaça tem de possuir uma característica temporal – ser um mal futuro, não podendo, pois, ser iminente.

Segundo AMÉRICO TAIPA DE CARVALHO  “(…) o mal ameaçado tem de ser futuro. Isso significa apenas que o mal, objecto da ameaça, não pode ser iminente, pois que, neste caso, estar-se-á diante de uma tentativa de execução do respectivo acto violento, isto é, do respectivo mal”.

É precisamente esta característica temporal do mal ameaçado, visando um momento futuro, que serve de critério para distinguir a ação como crime de ameaça da tentativa de execução do respetivo ato violento.

Neste sentido também se tem pronunciado a jurisprudência dos nossos tribunais superiores , sublinhando a distinção entre a ameaça de um mal futuro e a ameaça de um mal iminente, porquanto, sendo o crime de ameaça um crime contra a liberdade pessoal, a conduta típica deve gerar insegurança, intranquilidade ou medo no visado, de modo a condicionar as suas decisões e movimentos dali em diante.

E isso não acontecerá se a ameaça for de um mal a consumar de imediato, porque ou a ameaça entra no campo da tentativa do crime integrado pelo mal objeto da ameaça, sendo nesse caso a conduta punível como tentativa desse crime, se a tentativa for punível, ou não entra e, então, a ameaça logo se esgota na não consumação do mal anunciado, do que resulta não ficar o visado condicionado nas suas decisões e movimentos dali para a frente.

De todo o modo, conforme vem sendo entendido pela jurisprudência mais recente, com a qual se concorda na íntegra e que é exemplo o Acórdão da Relação de Coimbra de 06 de maio de 2015, “(…) Ora a expressão “é hoje que te vou matar” acrescentando que ia buscar uma arma e lhe mandava dois tiros (supra ponto 5. dos factos provados) usada pelo arguido é objectivamente configuradora dum mal futuro já que não seguida de qualquer acção configuradora de execução imediata ou iminente do mal ameaçado. O arguido não praticou qualquer acto de execução no momento do crime anunciado. O facto de ter dito “é hoje”, não confere à ameaça de morte a natureza de eminente no sentido referido, ou seja de inicio da execução do crime de homicídio, e muito menos o facto de ter anunciado com que meio tencionava causar o mal no futuro “usar uma arma de fogo”. Como se referiu em Acórdão da Relação de Guimarães de 7/1/2008 (www.dgsi.pt)], citado pelo Ministério Público junto da 1ª instância, “tudo o que não seja execução em curso é anúncio de mal futuro, sendo indiferente que a expressão usada seja «agora» «hoje», «amanhã» ou «para o ano». Futuro é todo o tempo compreendido naquele em que é proferida a expressão que anuncia o mal não acompanhada de actos correspondentes à sua concretização. Ou seja, sempre que alguém dirija a outrem uma expressão verbal de anúncio de causação de um mal não acompanhando o anúncio de actos de execução correspondentes – permanecendo inactivo em relação à execução do mal anunciado –, todo o tempo que durar essa inacção e se mantiver a possibilidade do mal anunciado se concretizar é o futuro em termos de interpretação da expressão em causa. Tendo o elemento do tipo “mal futuro” o sentido referido, não podem colher as objecções que o recorrente lançou, acerca da expressão dirigida pelo arguido ao ofendido ”é hoje que te vou matar”, como integradora do conceito, ameaça de mal futuro reforçada quando acrescentou que ia buscar uma arma e lhe mandava dois tiros, sem que tenha concretizado qualquer acto de execução no sentido de concretizar a ameaça, porque se assim fosse entraríamos já no domínio dos actos de execução do crime de homicídio.” .

Em idêntico sentido, escreveu-se no Acórdão da Relação de Guimarães de 21 de maio de 2018 que “(…) Ainda que a doutrina e a jurisprudência estejam de acordo em que uma das características essenciais do crime de ameaça reside em vaticinar-se um mal futuro, sobre a interpretação desta expressão é de aderir ao entendimento de que haverá ameaça de mal futuro sempre que se não esteja perante uma execução iminente, pelo que o mal anunciado terá a característica de mal futuro desde que não se trate já duma tentativa criminosa. II) Sempre que alguém dirija a outrem uma expressão, verbal ou de outra natureza, de anúncio de causação de um mal, não acompanhando essa ação com os atos de execução correspondentes, permanecendo inativo em relação à execução do mal anunciado, todo o tempo que durar essa inação e se mantiver a possibilidade de o mal anunciado se concretizar é futuro, em termos de interpretação da expressão em causa. III) Assim, integra o anúncio de um mal futuro a frase "tenho aqui a arma para lhe dar um tiro nos cornos", proferida pelo arguido, dirigindo-se à mulher do ofendido e referindo-se a este, na medida em que não foi acompanhada de qualquer ato de execução nem esta poderia ser levada a cabo de imediato, por o visado não se encontrar presente, mas sim nas proximidades, não estando o mal anunciado na iminência de acontecer.” .

Acresce que, e em terceiro lugar, é indispensável que o mal futuro dependa (ou apareça como dependente) da vontade do agente, o que não sucede quando se trate de simples aviso ou advertência.

Para aferir da existência deste último elemento é necessário recorrer a um critério objetivo-individual, ou seja, o ponto de partida para o juízo sobre a dependência ou não do mal em relação à vontade do agente, é feito segundo a perspetiva do homem comum, tendo, porém, em conta as características individuais da pessoa ameaçada.

Contudo, e porque se trata de um crime de ação ou de perigo concreto (e não de resultado), é necessário ainda que tal ameaça seja, na situação concreta, adequada a provocar o medo, a afetar ou inibir, de modo relevante, a paz individual ou a liberdade de determinação da pessoa visada  – sem que se exija que, em concreto, as ameaças hajam provocado o medo – sendo relevantes, para tal apreciação, as circunstâncias em que a ameaça é proferida, a personalidade do agente, a suscetibilidade de intranquilizar o homem normal e, por fim, as características pessoais (físicas e mentais) do sujeito passivo.

Como bem referiu JORGE FIGUEIREDO DIAS, “[o] que se exige, para preenchimento do tipo, é que a acção reúna certas características adequadas a provocar medo ou inquietação, não sendo necessário que, em concreto, chegue a provocar o medo ou a inquietação” .

De notar, ainda, que é irrelevante que o agente tenha ou não a intenção de concretizar a ameaça, uma vez que o que releva é o critério da consciência do agente da suscetibilidade de provocação de medo ou tranquilidade.

Ademais, no caso do tipo de ilícito a que alude o citado artigo 155.º, n.º 1, alínea a), traduzido na sua forma agravada, para além das características acima enunciadas, a conduta ameaçadora terá ainda que se reportar à prática de crime punível com pena de prisão superior a 3 (três) anos.

Por seu turno, ao nível do tipo subjetivo de ilícito exige-se o dolo como consciência (representação e conformação) da adequação da ameaça a provocar medo ou intranquilidade no ameaçado e a vontade de que a ameaça chegue ao conhecimento do seu destinatário.

Por fim, importa, ainda, atentarmos na ideia de que para o preenchimento do tipo de ilícito ora em apreço não basta o anúncio de um qualquer mal futuro e, sobretudo, de que tal anúncio não se pode nunca confundir com um simples aviso ou advertência.

Na verdade, nem todos os factos socialmente danosos constituem crimes, mas tão só os que o legislador tipificou como tais (contra a vida, a integridade física, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual ou bens patrimoniais de considerável valor), por considerá-los de tal modo graves para a vida social que justificam a sanção penal para quem os praticar (assim o estabelece, desde logo, a Constituição da República Portuguesa nos seus artigos 18.º e 29º.) .

O Direito Penal, tendo por fim a proteção de bens jurídicos fundamentais, rege-se por princípios entre os quais merece destaque o princípio da intervenção mínima ou da subsidiariedade que significa que este só deve intervir quando for essencial e eficiente para proteção desses bens jurídicos, sendo, ainda, de notar que a vulgarização da intervenção penal para tutela de interesses que pese embora socialmente incorretos não são essenciais para a vida em comunidade enfraquece a sua força preventiva de proteção de valores sociais absolutamente fundamentais.

Também a este propósito, escreve AMÉRICO TAIPA DE CARVALHO que “[n]os crimes contra a liberdade, nomeadamente nos crimes de ameaça e de coacção, está subjacente uma certa tensão entre o interesse na salvaguarda da liberdade de decisão e de acção e o interesse em não limitar excessivamente a liberdade social de acção, isto é a liberdade de acção de terceiros. Nesta relação de tensão entre os interesses contrapostos, procura o legislador o ponto razoável de equilíbrio, de modo que, sem descurar a tutela penal das essenciais manifestações da liberdade individual, não caia numa excessiva criminalização de condutas que, apesar de afectarem, em alguma medida, a liberdade individual, são socialmente inevitáveis” .

Isto posto, vertendo novamente ao caso dos autos, resultou demonstrado que, nas aludidas circunstâncias de tempo, modo e lugar, e na presença dos Sr.ºs Militares da G.N.R. que se deslocaram à referida residência, o arguido, manifestamente exaltado, proferiu as seguintes expressões, dirigidas à ofendida: “quando a G.N.R. for embora vou matar toda a gente, tu deixa ir embora a G.N.R. que depois falamos”, sendo certo que, mesmo depois de advertido pelos Sr.ºs Militares da G.N.R. para a ilicitude da sua conduta, o arguido persistiu, proferindo nova expressão, dirigindo-se à ofendida: “quando vos fores embora ides ver o que vai acontecer aqui em casa, mato toda a gente”.

Ora, de facto, retira-se das expressões utilizadas pelo arguido, nas circunstâncias espácio-temporais supra descritas, que o mesmo quis dizer que haveria de atentar contra a integridade física e vida da própria ofendida, porque dirigiu-se a ela, dizendo que “quando a G.N.R. for embora vou matar toda a gente” e “quando vos fores embora ides ver o que vai acontecer aqui em casa, mato toda a gente”, traduzindo-se assim num anúncio de um mal, neste caso, o anúncio de um atentado contra essa integridade física e vida, subsumível assim, em abstrato, ao crime de homicídio e como tal sendo punível com pena de superior a 3 (três) anos – cfr. artigos 131.º, do Código Penal.

De igual forma, o anúncio efetuado pelo arguido foi, claramente, deferido para momento posterior (“quando a G.N.R. for embora” “quando vos fores embora”, pois nessa altura a ofendida não estava sozinha, mas sim acompanhada pelos Sr.ºs Militares da G.N.R. que tomavam conta da ocorrência), sendo certo que as expressões utilizadas revelam potencialidade intimidatória de criar um estado de medo e receio na ofendida.

Na verdade, tendo em conta o teor das expressões proclamadas e todo seu circunstancialismo envolvente, conclui-se que a ameaça proferida pelo arguido foi idónea e apropriada, dentro de um critério de razoabilidade próprio do homem médio ou comum, a criar um estado de medo e receio à ofendida .

É, pois, forçoso concluir que, com a conduta supra descrita, o arguido preencheu os elementos objetivos do tipo de ilícito em apreço, na sua forma agravada, considerando que o mal anunciado reconduz-se à prática de um crime de homicídio e, como tal, punível com pena superior a 3 (três) anos de prisão, subsumindo-se assim tal conduta à previsão contida na alínea a), do n.º 1, do citado artigo 155.º .

Por outro lado, ficou igualmente comprovado que o arguido agiu livre, deliberada e conscientemente, de modo suscetível e adequado e com o propósito concretizado de causar receio e medo na ofendida (prejudicando a sua liberdade de determinação), dadas as circunstâncias e o modo como proferiu as sobreditas expressões ameaçadoras.

Por conseguinte, é igualmente inegável o preenchimento do elemento subjetivo do ilícito de que vinha acusado, pois, o arguido agiu com dolo direto nessas circunstâncias espácio-temporais, nos termos do disposto no artigo 14.º, n.º 1, do Código Penal, pois representou (elemento intelectual) e quis (elemento volitivo) com as expressões ameaçadoras proferidas causar receio e medo na mencionada ofendida, o que conseguiu efetivamente.

Estão, então, verificados os elementos objetivos e subjetivos de que depende a punição pela prática deste crime.

Mas para que exista crime é necessário que a ação do agente para além de típica seja ilícita e culposa.

Diz-se ilícita toda a conduta, típica no âmbito penal, que seja contrária à ordem jurídica vigente. E essa contrariedade poderá ser afastada se se verificar qualquer causa que exclua a ilicitude.

As chamadas causas de justificação devem “(...) deduzir-se do ordenamento jurídico no seu conjunto, pelo que verificando-se uma causa de justificação segundo outros ramos do direito, ela terá relevância no direito criminal, sem embargo de certas proposições permissivas poderem estar vinculadas a determinados tipos e, então, não ser lícita a sua aplicação a tipos diferentes. É que sendo o direito penal a ultima ratio da política social, dado o gravame das suas reacções, nunca uma conduta poderá ser ilícita para o direito penal se for lícita à face de qualquer ramo do direito.” . 

Entre outras, são causas de exclusão da ilicitude a legítima defesa, o exercício de um direito, o cumprimento de um dever imposto por ordem legítima da autoridade, o consentimento do lesado e o conflito de deveres.

No caso em apreço, analisando o elenco dos factos provados, é manifesto que não se encontra preenchida qualquer situação justificadora da atuação do arguido, pelo que está presente a ilicitude da sua conduta.

Outrossim, quanto à culpa, ela existirá quando o agente ao agir de forma típica e ilícita, tenha consciência da ilicitude da sua conduta e vontade de se motivar de acordo com essa consciência.

Também aqui, a culpabilidade do agente poderá ser afastada se existir qualquer causa que exclua a culpa, pois nesse caso, a sua conduta não merece censura ética-jurídica.

Como exemplos dessas causas podemos apontar: a inimputabilidade do agente em razão da sua idade ou anomalia psíquica, o erro não censurável sobre a ilicitude, o erro sobre as proibições e o estado de necessidade desculpante.

Também por referência ao teor da factualidade dada como provada, não se verifica, in casu, qualquer uma destas causas, pelo que não resta senão considerar a conduta do arguido como culposa.

Em face de tudo o exposto, e na ausência de qualquer causa de exclusão da ilicitude ou de desculpação nos moldes acima expostos, é de concluir no sentido de que o arguido praticou, em autoria material e na forma consumada, um crime de ameaça agravada, previsto e punível pelos artigos 153.º, n.º 1 e 155.º, n.º 1, alínea a), todos do Código Penal, pelo qual deverá ser condenado.»

A questão que importa agora decidir é a de saber se a matéria de facto provada é de molde a considerar preenchido o tipo legal de violência doméstica imputado ao arguido na acusação pública.

Temos vindo a defender que o crime de violência doméstica se configura como uma ofensa à integridade física, ameaça ou injúria, qualificada pela relação dos intervenientes, consubstanciada numa punição autónoma e acentuada face a uma conduta a censurável apreciada casuisticamente.

Com efeito, o que distingue as condutas que se enquadram no crime de violência doméstica das demais é a gravidade e censurabilidade das mesmas atenta a relação dos intervenientes, e bem assim, o atentado à dignidade e auto determinação da vítima em contexto de namoro ou familiar.

Neste tipo de crime está subjacente a adoção pelo agente agressor de uma posição de superioridade em relação à vítima, e a utilização de um tratamento humilhante para com esta, com vista ao seu controle e subjugação de natureza psicológica e/ou física, o que conduz à limitação da liberdade da pessoa ofendida e à falta de respeito pela sua dignidade enquanto ser humano.

Os atos praticados têm de ser valorados globalmente no seu contexto e sucessão de acontecimentos, com vista a apurar se revelam um comportamento indiciador do exercício dessa posição de domínio e desrespeito da liberdade e vontade da vítima.

O que importa saber, em concreto, é se a conduta do agente, pelo seu carácter violento ou pela sua configuração global de desrespeito pela pessoa da vítima ou de desejo de prevalência de dominação sobre a mesma, é suscetível de ser classificada como maus tratos.

No caso concreto em apreciação, da matéria de facto dada como assente em julgamento, não se vislumbram indícios dessa superioridade do agressor face à vítima, não obstante a gravidade da ameaça feita, pelo qual foi condenado.

Na verdade, obsta à subsunção dos factos assentes no tipo legal previsto no art. 152 do CP, a circunstância de para além da criação do receio na vítima relativamente à sua integridade física, não se terem demonstrado atos praticados pelo arguido, que possam revelar os: «maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade, ofensas sexuais ou impedir o acesso ou fruição aos recursos económicos e patrimoniais próprios ou comuns:»

Decorre do tipo legal que o legislador afastou expressamente a exigência de reiteração como elemento do tipo, ao introduzir no artigo 152 do CP, a expressão «de modo reiterado ou não».

No entanto, têm-se vindo a entender que não basta qualquer ato isolado, sem reiteração, para poder integrar o conceito de maus tratos físicos ou psíquicos, exigindo-se que tal ato revista uma intensidade de desvalor da ação e do resultado que seja incompatível com a dignidade da pessoa humana.

Neste sentido veja-se o Acórdão da Rel. de Coimbra de 21/10/2009 :

«o crime de maus tratos basta-se com a consolidação no estado vivencial da vítima de um estado de compressão na sua liberdade pessoal e de um menosprezo pela dignidade que a qualquer ser humano é devida.»

Também neste sentido veja-se Plácido Fernandes no estudo Violência Doméstica e Violência na intimidade, da Coleção Temas, publicada pelo CEJ e disponível online, onde se esclarece o sentido da expressão de “modo reiterado ou não”, na aceção de que «não basta uma ação isolada do agente, sem se exigir uma situação de habitualidade, mas em casos de especial violência uma única agressão bastará para integrar o crime .

(…) A questão é que nem todas as ofensas constituem maus-tratos, neste sentido penalmente típico. Designadamente, não serão maus-tratos quando careçam de intensidade para colocar em crise o bem jurídico protegido.

Em suma, pese embora a supressão da distinção entre maus-tratos reiterados e intensos operada em processo legislativo, entende-se que um único acto ofensivo – sem reiteração – para poder ser considerado maus-tratos e, assim, preencher o tipo objectivo, continua, na redacção vigente, a reclamar uma intensidade do desvalor, da acção e do resultado, que seja apta e bastante a molestar o bem jurídico protegido – mediante ofensa da saúde física, psíquica, emocional ou moral, de modo incompatível com a dignidade da pessoa humana. A intensidade da ofensa exigida para a verificação típica, respeitando um parâmetro objectivo, dependerá das circunstâncias do caso concreto.» (sublinhado e negrito nossos.)

Ora, no caso concreto em análise, entendemos que a conduta praticada pelo arguido, sendo um ato que não se antevê gerador de sérios riscos para a integridade física e psíquica da vítima, não integra, a nosso ver, o conceito de maus tratos exigido pelo tipo legal em causa; desde logo, porque não atinge um grau de desvalor que se mostre incompatível com a dignidade da pessoa humana.

Assim, também relativamente à subsunção jurídica dos factos, nada temos a censurar à sentença recorrida.

3. Decisão:

Tudo visto e ponderado, com base nos argumentos de facto e de direito aduzidos, acordam os Juízes na 1ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto, em alterar a matéria de facto, por via da revista alargada, e em consequência, decidem:

1º Eliminar a al. a) dos factos não provados

2º Alterar a redação do ponto 33 da matéria de facto provada que passará a ter a seguinte redação:

«O percurso de vida do arguido foi modelado pelas circunstâncias familiares desfavoráveis, caracterizadas pela escassez de recursos económicos e oportunidades culturais, determinantes no seu ingresso precoce no mundo laboral, onde manteve um histórico consistente de trabalho até à ocorrência do acidente profissional, no ano de 2015, que o incapacitou para a continuidade laboral;»

3º Mais acordam em considerar não provido o recurso interposto pelo MP.

Sem tributação por o recorrente dela estar isento.

Porto, 6/3/2024

Relatora: Paula Cristina Guerreiro

1ª adjunta: Lígia Trovão que faz a seguinte:

[Declaração de voto: Votei a presente decisão, mas não a sua fundamentação na parte referente ao enquadramento jurídico-penal dos factos praticados pelo arguido.

A presente decisão exclui a conduta do arguido do crime de violência doméstica que lhe vinha imputado na acusação pública, por entender que não reveste “«intensidade» de desvalor da ação e do resultado que seja incompatível com a dignidade da pessoa humana”, apoiando-se em Plácido Conde Fernandes([1]) no segmento em que diz que “Designadamente, não serão maus-tratos quando careçam de intensidade para colocar em crise o bem jurídico protegido.

Com todo o respeito que me merecem o Autor citado e o (diferente) entendimento sustentado no Acórdão supra proferido, entendo que a exclusão da conduta do arguido do tipo legal de crime que lhe vinha imputado na acusação, não pode escudar-se em requisito que não consta do texto legal da norma do art. 152º do Cód. Penal.

Conforme prescreve o art. 1º nº 1 do Código Penal “Só pode ser punido criminalmente o facto descrito e declarado passível de pena por lei anterior ao momento da sua prática”.

É certo que para Plácido Conde Fernandes([2]), “todos os maus tratos no âmbito de uma relação afetiva deverão ser previstos e punidos no tipo legal do art. 152º do Cód. Penal, mas rejeita que a reforma operada pela Lei nº 59/2007 de 04 de Setembro tenha pretendido transformar qualquer ofensa ou ameaça em crime de maus-tratos, com moldura penal reforçada e natureza pública apenas pelo facto de ocorrer no âmbito de uma relação afetiva; para este Autor, pese embora do texto do art. 152º não conste o requisito «intensidade» da ofensa, quando não há reiteração, exige que a conduta maltratante seja especialmente intensa “([3]).

Para tanto, basta atentar na letra do preceito do art. 152º, na sua redação atual, para se ver que em lado nenhum, se encontra o requisito «intensidade» da ofensa, para que as ações objetivas aí descritas preencham o elemento objetivo da norma em questão.

Já na Proposta de Lei nº 98/X, Anteprojecto da Lei 59/2007 de 04 de Setembro, era a seguinte a redação do art. 152º do Cód. Penal:

“1 - Quem, de modo intenso ou reiterado, infligir maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais:

a) Ao cônjuge ou ex-cônjuge;

(…)”.

Porém, não foi esta a redação que vingou na sua redação final.

Conforme ensina Maria Elisabete Ferreira([4]), “(…) consideramos que a interpretação literal que pugna pela inexigibilidade da intensidade da ofensa,…salvaguarda de forma mais adequada a tutela do princípio da legalidade penal (…) “.

E a explicação para que assim seja (para além da própria letra/texto do art. 152º), reside precisamente no bem jurídico protegido pelo tipo legal da violência doméstica, que terá que conectar-se com o núcleo de vínculos que se estabelecem no seio familiar e doméstico([5]), “um bem jurídico complexo que tutela, algo mais do que a saúde da vítima ( a título principal), e ainda, de forma secundária ou reflexa, a dimensão relacional característica de uma relação de particular proximidade existencial, de uma relação de convivência, ainda digna de tutela após a cessação desta relação; por isso, uma ofensa simples poderá, atento o contexto em que foi praticada, pôr em causa esta pacífica convivência, abalar irremediavelmente a confiança da vítima no seu agressor e tal dimensão não encontra proteção em outro tipo legal, à exceção do art. 152º do Cód. Penal “([6]) – destacado e sublinhado nossos.

Concorrem para esta conceção do bem jurídico (pluriofensivo) protegido, a agravação da incriminação quando o crime é praticado no domicílio comum; a consagração das penas acessórias de proibição de contacto com a vítima, o afastamento da residência desta e a frequência de programas específicos de prevenção da violência doméstica, o que demonstra que o legislador na redação da hipótese e da estatuição desta norma, vislumbra uma perspetiva de futuro que vai muito para além da expetativa de proteção individual, da vítima em concreto, para assumir um escopo protetor da própria família, ou da comunidade doméstica, enquanto tal, desde que a conduta típica em concreto, haja colocado em crise a pacífica convivência familiar, parafamiliar ou doméstica([7]).

Em apreciação crítica às diversas posições doutrinárias e jurisprudenciais sobre o tipo legal da violência doméstica, também Susana Figueiredo([8]) diz “aderir à propugnada por Maria Elisabete Ferreira, a qual, a nosso ver, constitui a interpretação tipicamente mais adequada, face aos elementos interpretativos do artigo 9º do CC, do tipo de crime previsto no artigo 152º do CP e aos princípios da legalidade, tipicidade e máxima determinação do tipo vigentes em Direito Penal”.   

Concluindo, outras tutelas que também estão previstas no Código Penal enquanto tutelas de bens jurídicos isolados como sejam os de ofensas à integridade física (art. 143º), coação sexual (art. 163º nº 1), ameaça/coação (arts. 153º e 154º), perseguição (154º-A), difamação/injúria (arts. 180 e 181º) sequestro (art. 158º nº 1) abarcados pelo tipo legal do art. 152º, encontram-se relativamente este, numa relação de concurso aparente de normas, uma vez que, e aderindo ao entendimento da mencionada Autora, o escopo do art. 152º do Cód. Penal não se esgota na proteção exclusiva da pessoa individual e da sua dignidade humana.

O quid distintivo, relativamente aos demais tipos legais autónomos abarcados pelo art. 152º reside precisamente no núcleo de vínculos que se estabelecem no seio familiar ou doméstico: a pacífica conivência familiar, parafamiliar ou doméstica; e, da tutela reflexa ou secundária de tal bem jurídico resulta, como consequência, que a mera ofensa simples poderá pôr em causa essa pacífica convivência, sem qualquer aferição da intensidade da mesma([9]).

Assim, repetindo, para que a conduta do agente se integre no art. 152º do Cód. Penal, não se exige o requisito intensidade da ofensa; na verdade, basta um simples soco, bofetada ou injúria,  ainda que cada um  deles num ato único ( «…de modo reiterado ou não…»), no seio de uma relação de namoro, por um dos elementos sobre o outro, ou  numa união de facto ou casamento, por um dos elementos sobre o outro, seja essa relação presente ou pretérita ( «a pessoa de outro ou do mesmo sexo com quem o agente mantenha ou tenha mantido…»), ainda que cada um destes atos, em termos objetivos não revista gravidade do ponto de vista das suas consequências para a saúde da vítima, mas, se esse mesmo ato único, colocou em causa a pacífica convivência familiar, parafamiliar ou doméstica, basta  para que se consume o crime em questão, o qual, sendo doloso, puro e simples([10]), exige que à ação objetiva, acresça o dolo em qualquer das modalidades previstas no art. 14º do Cód. Penal.

No caso presente, atendendo ao elenco dos factos considerados como provados (muito diferente daquele que resultava da acusação), integradores, a meu ver, de maus-tratos psíquicos sobre a ofendida (que para ele não é uma pessoa qualquer, sendo a pessoa com quem se casou e é mãe dos seus três filhos), perpetrados num momento único e pese embora a sua gravidade, não tiveram a virtualidade de atingir irremediavelmente o bem jurídico protegido pela norma do art. 152º do Código Penal e só nessa medida se podendo subsumir ao disposto no art. 155º nº 1 a) por referência ao art. 153º nº 1, ambos do Cód. Penal.

De qualquer forma, deixo consignado que discordo da pena aplicada ao arguido, atenta a gravidade dos factos e o vínculo conjugal existente com a pessoa da ofendida.]


2ª adjunta: Lígia Figueiredo
___________________________
[1] Cfr. Estudo Violência Doméstica e Violência na intimidade, da Coleção Temas, publicada pelo CEJ e disponível online
[2] Cfr. “Violência Doméstica – novo quadro penal e processual penal”, Revista do CEJ, nº 8, 2008, págs. 293 e segs., apud, Maria Elisabete Ferreira in “Violência Parental e Intervenção do Estado - a questão à luz do Direito Português”, pág. 190.
[3] Cfr. Maria Elisabete Ferreira in ob. cit., pág. 190.
[4] Cfr. “Violência Parental e Intervenção do Estado – A questão à luz do direito português”, Universidade Católica Editora Porto, págs. 183 e segs.
[5] Cfr. Autora e ob. cit. pág. 8.
[6] Cfr. Maria Elisabete Ferreira, ob. cit. pág. 9.
[7] Cfr. Elisabete Ferreira, in “Violência Parental e Intervenção do Estado - a questão à luz do Direito Português”, Universidade Católica Editora Porto, pág. 180.
[8] Cfr. “Violência Doméstica – Implicações Sociológicas, Psicológicas e Jurídicas do Fenómeno”, manual multidisciplinar”, 2ª edição, dezembro de 2020, pág. 110.
[9] Cfr. Susana Figueiredo, em apreciação crítica às diversas conceções de bem jurídico protegido pelo tipo legal do art. 152º do C.P., in ob. cit. pág. 109.
[10] Cfr. Maria Elisabete Ferreira in “Crítica ao pseudo pressuposto da intensidade no tipo legal de violência doméstica”, Revista Julgar Online, maio de 2017, pág. 12.