Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
140/18.0IDAVR.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: WILLIAM THEMUDO GILMAN
Descritores: CRIME DE ABUSO DE CONFIANÇA FISCAL
PENA DE MULTA
QUANTIFICAÇÃO
CRITÉRIOS
Nº do Documento: RP20240313140/18.0IDAVR.P1
Data do Acordão: 03/13/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL (CONFERÊNCIA)
Decisão: CONCEDIDO PROVIMENTO PARCIAL AO RECURSO INTERPOSTO CONJUNTAMENTE PELOS ARGUIDOS
Indicações Eventuais: 4ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I – A fixação do número de dias de multa em ordem a cumprir as exigências de prevenção geral positiva e de prevenção especial de ressocialização, relativamente ao cometimento por um arguido sem antecedentes criminais ou condenações posteriores, com 62 anos de idade, inserido social, familiar e profissionalmente, de um crime de abuso de confiança fiscal simples, de ilicitude baixa dentro do tipo simples, atento o valor do prejuízo causado à administração fiscal, numa altura em que a sociedade apresentava problemas financeiros, deverá ser fixada dentro ou próximo do terço inferior da moldura abstrata prevista pelo legislador para tal crime, ou seja, numa zona que vai até cerca de 120 dias de multa.
II – É certo que não se ignorando que, sendo o potencial aflitivo da pena de prisão muito superior ao da pena de multa, na fixação da pena de multa poderá ultrapassar-se a proporção (1/3, 2/3, etc…) que uma e outra atingem dentro da moldura abstrata. Aliás, será até com alguma naturalidade que tal resultado se verificará na prática, situando-se, por exemplo, a pena de prisão principal dentro do terço inferior da moldura abstrata e a multa que a substituiu no meio da pena, ou numa situação em que se colocaria a pena de prisão um mês acima do mínimo legal ou mesmo neste e, optando-se pela pena alternativa, o número de dias de multa iriam para o topo do terço inferior.
III – Só que, considerando o caso dos autos, ir mais além do topo do terço inferior da moldura abstrata da multa nestas circunstâncias afigura-se desnecessário para cumprimento dos fins da pena, pois que não só o cidadão comum habitualmente fiel ao direito ficará satisfeito e considerará como suficiente o mal da pena aplicada ao agente do crime, continuando a confiar nas normas que proíbem o abuso de confiança fiscal, como também o arguido, com a privação pecuniária que irá sofrer, ficará melhor preparado para, no futuro, não cometer crimes. Para lá de desnecessária em termos preventivos, afigura-se desproporcionada e ultrapassando a culpa pelo facto a fixação da pena em número de dias muito superior ao terço da moldura abstrata da pena.

[Sumário da responsabilidade do Relator]
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo n.º 140/18.0IDAVR.P1

Relator: William Themudo Gilman

1º Adjunto: Cláudia Sofia Rodrigues

2º Adjunto: Carla Oliveira


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Acordam em conferência no Tribunal da Relação do Porto:

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1-RELATÓRIO

No Processo Comum (Tribunal Singular) nº 140/18.0IDAVR, Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro, Juízo Local Criminal de Santa Maria da Feira - Juiz 1, após julgamento, foi proferida sentença em 04.10.2023 com o seguinte dispositivo:

Julgam-se procedentes a acusação e a pronúncia e condenam-se:

- A..., S.A.,

pela autoria de um crime de abuso de confiança fiscal simples, p. e p. pelos art.os 105.º, 1, 4 e 7, e 7.º, 1, ambos da Lei n.º 15/2001, de 05.06,

na pena de trezentos (300) dias de multa, à razão de vinte e cinco euros (€ 25) dia, num total de sete mil e quinhentos euros (€ 7 500);

e

- AA,

pela autoria material de um crime de abuso de confiança fiscal simples, p. e p. pelos art.os 105.º, 1, 4 e 7, 6.º, 1, e 7.º, 3, todos da Lei n.º 15/2001, de 05.06,

na pena de duzentos (200) dias de multa, à razão de dez euros (€ 10) dia, num total de dois mil euros (€ 2 000).

Verificada que seja a hipótese do art.º 49.º, 1, do Cód. Penal, cumprirá cento e trinta e três (133) dias de prisão subsidiária.

*”


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Não se conformando com esta sentença, ambos os arguidos recorreram em peça conjunta para este Tribunal da Relação, concluindo do seguinte modo:

«A. Delimitando-se as penas a aplicar aos Recorrentes na culpa destes e, bem assim, nas exigência de prevenção, não se poderão aceitar e compreender as penas aplicadas porque extravasam uma tal culpa e essas necessidades de prevenção e não tem, devidamente, em conta as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo, depõem a favor dos Recorrentes.

B. São de todo incompreensíveis, porque exageradas e desproporcionadas, as penas aplicadas aos Recorrentes, na medida em que, a conduta a punir se “resume” à não entrega de uma quantia devida a título de IVA à AT, na ordem dos € 12.016,76 (doze mil e dezasseis euros e setenta e seis cêntimos), sendo este o prejuízo relevante nos termos do disposto no art. 13º do R.G.I.T., mas ao qual não se poderá deixar de “descontar” os € 7.500,00 (sete mil e quinhentos euros) que a lei prevê para atribuir dignidade penal a uma qualquer conduta como a que se imputa aos ora Recorrentes,

C. Não se percebendo, nessa sequência, do porquê de, de modo absolutamente injustificado, ter sido aplicada ao ora Recorrente pessoa singular uma pena de multa que se situa acima do meio da pena abstratamente aplicável e á pessoa coletiva uma pena que se aproxima desse meio da pena.

D. Já no que respeita às circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depõem a favor dos Recorrentes, é de referir que, não parece ter sido devidamente valorada a total ausência de antecedentes criminais por parte dos ora Recorrentes, pois que, ainda que à presente data a pessoa coletiva tenha já averbada uma condenação no seu CRC, a verdade é que, à data dos factos tão pouco existia sequer proferida uma tal decisã ocondenatória, desconhecendo-se mesmo se existiria sequer Acusação deduzida e recebida judicialmente,

E. E, ainda, o facto de estar o ora Recorrente AA familiar, profissional e socialmente inserido, sem descurar que a conduta que se lhe imputa o foi enquanto “Presidente do Conselho de Admnistração” da co-arguida dos autos, sendo àquela destinados quaisquer proventos/benefícios e já não à sua própria pessoa,

F. E, essencialmente, o facto de a ora Recorrente pessoa coletiva apresentar uma situação de clara e manifesta fragilidade económica, pelo que, toda e qualquer provento que para a mesma adviesse seria apenas e só para tentar manter a sua atividade e assegurar os salários dos seus colaboradores.

G. Além do que, não se poderá descurar os mais de 5 (cinco) anos que dista já a factualidade em causa nos autos sem que existe uma qualquer notícia posterior da prática de quaisquer ilícitos por parte de qualquer um dos ora Recorrentes.

H. Também os quantitativos diários, de € 10,00 (dez euros) e € 25,00 (vinte e cinco euros) das penas de multa que o Tribunal “a quo” julgou por adequados aos ora Recorrentes, merecem a reprovação, na medida em que, ao fixar tais valores, não parece haver aquele Digníssimo Tribunal ponderado, devidamente, a “situação financeira e económica” dos aqui Recorrentes e os ”seus encargos”, incorrendo, dessa forma, numa clara violação do disposto no art. 15º do R.G.I.T.,

I. Pelo que, relevando aqui tudo quanto a lei “aponta” para a fixação desse quantitativo diário, deverá decidir-se pela aplicação a ambos os Recorrentes de uma taxa diária de de € 5,00 (cinco euros).

J. As penas aplicadas aos ora Recorrentes não são de forma alguma correctas e justas, revelando-se, aliás, como exageradas e desproporcionadas às exigências de prevenção geral e especial aqui reclamadas, não se enquadrando, por isso, de forma alguma, nos princípios legais reguladores da presente matéria, como sejam, os arts. 70º e 71º do C.Penal.

K. De igual modo, também os quantitativos diários das penas de multa aplicados aos ora Recorrentes se revelam como exagerados, e, em clara violação do disposto no art. 15º do R.G.I.T., por se afigurarem como desproporcionais às situações económicas e financeiras dos Recorrentes e aos seus encargos,

L. Donde, sempre será de concluir que, no caso presente, e atento tudo o exposto, sempre deverá decidir-se pela aplicação de penas e quantitativos diários substancialmente inferiores, na medida em que, das mesmas sempre resultarão perfeitamente prosseguidas as exigências de prevenção, resultando, daí, por realizadas, de forma adequada e suficiente, as finalidades da punição.

M. Não obstante, e porque mesmo na medida em que o foi fixada pelo Tribunal “a quo” se “apresenta“ a pena de multa aplicada à ora Recorrente “A..., S.A.” como abaixo do limite estabelecido para o efeito, sempre a mesma deverá ser substituída por caução, nos termos do art. 90º-D do C.Penal.

N. Pois que, para além de verificados todos os pressupostos formais, relativamente à medida da pena a substituir, sempre temos que, com tal substituição, se realizariam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.

O. A douta Sentença sob recurso violou os arts. 125º, 126º e 127º, todos do C.P.Penal, 12º, 13º, 15º, e 105º, nºs 1, 2, 4 e 7, do RGIT, 40º, 47º 71º e 90º-D do C.Penal, e 32 da Constituição da República Portuguesa.

Nestes termos, nos melhores de direito e com o sempre mui douto suprimento de V. Exas., sopesadas as conclusões acabadas de exarar, deverá ser dado provimento ao presente recurso e, por via disso, decidir-se pela aplicação a ambos os Recorrentes de penas substancialmente inferiores, nas suas medidas e quantitativos diários, sendo que a pena a aplicar à Recorrente “A..., S.A.” sempre deverá ser substituída nos termos disposto no art. 90º-D do C. Penal, com o que modestamente se entende, V. Exas. farão, como sempre, inteira e sã JUSTIÇA.»


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Foi proferido despacho a admitir o recurso.

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O Ministério Público, nas suas alegações de resposta, pronunciou-se pela manutenção da sentença recorrida, tendo formulado as seguintes conclusões:

«1.Condenados os arguidos, pessoa singular e sociedade arguida, pela prática de um crime de abuso de confiança fiscal, p. e p. pelo artigo 105.º, n.º 1, do Regime Geral das Infracções Tributárias, aprovado pela Lei nº 15/2001, de 05/06, nas penas, respectivamente, de 200 dias de multa à taxa diária de €10,00, e, 300 dias de multa à taxa diária de 25,00€, perfaz a quantia global de € 2.000,00 e € 7.500,00, vieram impugnar a concreta medida da pena como o quantum diário aplicados.

2.Invocam quanto à medida concreta da pena ser desproporcional e excessiva tal como determinada na decisão “sub judicie”, pugnando como justa e equilibrada, tendo em conta a moldura abstracta da pena, a aplicação de penas substancialmente inferiores, com taxa diária não superior a 5,00€.

3. No que tange à medida concreta da pena aplicada aos arguidos, cumpre referir que, atentos os fundamentos aduzidos na decisão ora em crise, sempre foram observados os critérios ínsitos nos artigos 40.º, 70.º e 71.º, todos do Código Penal, na medida em que, optando o Tribunal “a quo” por penas não detentivas, aplicou aos arguidos as penas em medida ajustada e proporcional atenta a culpa dos mesmos e das exigências de prevenção que no caso se faziam sentir, quer ao nível da prevenção geral, quer ao nível da prevenção especial.

4.Relativamente ao quantitativo diário, este deve ser fixado, nos termos do disposto no artigo 47.º, n.º 2, do Código Penal, entre € 5,00 e € 500,00 em função da «situação económica e financeira do condenado e dos seus encargos pessoais».

5.Ademais, mostram-se as penas a que foram condenados os arguidos adequadas às circunstâncias apuradas no caso concreto, tendo presente que, a finalidade das sanções penais, são a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade, revelam-se as mesmas justas considerando que as penas não podem ultrapassar, nunca, a medida da culpa - art. 40º, nº 1 e 2, do Código Penal e foram ponderadas as exigências de prevenção geral, que são elevadas, dada a proliferação de ilícitos desta natureza, bem como, das nefastas repercussões que tem na comunidade, a natureza dos interesses em causa, visando-se, com a incriminação tutelar o perigo de lesão do património fiscal e interesses patrimoniais do Estado, cumprindo os termos do artigo 71.º do Cód. Penal.

6.A determinação da medida da pena deve operar-se mediante recurso aos critérios gerais constantes do art. 71º do C.P., e, que o tribunal “a quo” ponderou na medida concreta da pena o grau de culpa dos arguidos nos termos do disposto no art.º 40º do C.P. em conformidade com o critério da escolha da pena que o art.º 70º do C.P. elege como a melhor prossecução das finalidades da punição, o qual atribui à pena, sempre, um fim utilitário.

7.O legislador não hierarquiza entre si, cada uma das diversas penas de substituição, atentas a finalidades da punição, contidas nos artigos 40º e 42º C Penal, será em função do critério legal da adequação e suficiência, de acordo com as necessidades de prevenção especial positiva presentes em cada caso, que o tribunal deve escolher entre elas, sem esquecer que de acordo com o princípio da proporcionalidade, previsto no artigo 18º/1 da CRP a suficiência significará que se deve optar pela pena de substituição menos grave.

8.As penas de substituição, tal como a prevista nos artigos 90º-D do Código Penal - caução de boa conduta, para serem decretadas, em substituição da pena de multa, implicam a formulação de um juízo segundo o qual as mesmas realizam, de forma adequada e suficiente, as finalidades da punição, o que ponderando as exigências de prevenção, se verifica que a sua aplicação tal como pretendido pela recorrente sociedade-arguida quanto à pena de substituição de caução de boa conduta não realiza, de modo minimamente suficiente, as finalidades da punição.

9.Não se vislumbrando que da sentença resulte qualquer violação às normas e princípios invocados pelos recorrentes, afigurando-se-nos que, In casu, da análise do específico contexto em que se desenvolveu a conduta dos arguidos, devem improceder, por não atendíveis, qualquer das razões apresentadas pelos recorrentes para impugnar a sentença proferida nos autos.

Dado o exposto e o douto suprimento de Vossas Excelências ― que sempre se espera ― será de, por manifesta improcedência, ser negado provimento ao recurso e por via dele mantida a decisão judicial proferida pelo M.mo Juiz do Tribunal a quo.

Contudo, V.ª Exªs, decidindo farão JUSTIÇA»


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Nesta instância o Ministério Público emitiu parecer, pronunciando-se no sentido de o recurso não merecer provimento.

 Foi cumprido o disposto no artigo 417º, n.º 2 do CPP.

Colhidos os vistos, foram os autos à conferência.

Cumpre apreciar e decidir.


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2-FUNDAMENTAÇÃO

2.1-QUESTÕES A DECIDIR

Conforme jurisprudência constante e assente, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso é pelas conclusões que o recorrente extrai da motivação apresentada, em que sintetiza as razões do pedido (artigo 412.º, n.º 1, do CPP), que se delimita o objeto do recurso e os poderes de cognição do Tribunal Superior.

Face às conclusões extraídas pelo recorrente da motivação apresentada, são as seguintes as questões a apreciar e decidir:

- Determinação da pena: redução da pena de multa (número de dias e montante diário); substituição da multa por caução.


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2.2- A DECISÃO RECORRIDA:

Tendo em conta as questões objeto do recurso, da decisão recorrida transcreve-se a fundamentação de facto:

« III. FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO.

A. OS FACTOS.

A audiência de julgamento realizou-se com observância de todo o formalismo legal,1 dela resultando os seguintes

factos provados:

1. A sociedade arguida é uma sociedade anónima, com sede na Avenida ..., ..., ..., Santa Maria da Feira.

2. Esta sociedade sempre teve por objecto as indústrias básicas de ferro e aço e, ainda, a construção, reparação e manutenção naval, obras de metalomecânica, execução de empreitadas de obras públicas, concepção e fabrico de máquinas, ferramentas e aparelhos destinados à indústria e, ainda, a consultoria técnica e inspecção de obras, no âmbito da engenharia industrial, tendo como CAE principal … e CAE secundário ….

3. A sociedade arguida foi declarada insolvente a 28.05.2018, às 09:30 horas, no âmbito do Processo 2306/18.3T8OAZ, que correu termos no Juízo de Comércio de Oliveira de Azeméis, J2, tendo sido nomeado administrador de insolvência, BB.

4. No período de seguida indicado, a sociedade enquadrava-se para efeitos de imposto sobre o valor acrescentado (IVA) no regime normal de periodicidade mensal.

5. No período de seguida indicado, o contrato social da sociedade previa que a forma de obrigar a sociedade era pela assinatura do Presidente do Conselho de Administração ou, em alternativa, pela assinatura de qualquer administrador delegado ou pela assinatura de qualquer mandatário constituído, nos limites dos poderes outorgados.

6. No período de seguida indicado, o arguido exercia as funções de Presidente do Conselho de Administração da sociedade arguida, sendo o responsável pelos negócios da sociedade, praticando todos e quaisquer actos indispensáveis ao regular funcionamento da mesma, designadamente, contratando trabalhadores, procedendo ao pagamento de salários e impostos, contraindo empréstimos bancários, sendo o rosto visível da sociedade nas relações comerciais mantidas com clientes, fornecedores e entidades bancárias.

7. A sociedade arguida remeteu à Autoridade Tributária e Aduaneira a declaração periódica de IVA referente ao período de Dezembro de 2017, de onde consta um valor total liquidado de € 79.138,93 (setenta e nove mil cento e trinta e oito euros e noventa e três cêntimos) a título do referido imposto.

8. Através da análise do extracto de conta constante no Portal das Finanças (e-fatura) e da facturação aí elencada, foi possível à Autoridade Tributária e Aduaneira apurar que o valor de IVA referente ao período de Dezembro de 2017 efectivamente liquidado se fixou em € 82.829,30 (oitenta e dois mil oitocentos e vinte e nove euros e trinta cêntimos).

9. Até à data limite de pagamento dos valores liquidados, a 10.02.2018, a sociedade arguida tinha efectivamente recebido dos seus clientes, a título daquele imposto, o montante de € 12.016,76 (doze mil, dezasseis euros e setenta e seis cêntimos), tendo sido tal quantia integrada no património da sociedade arguida.

10. Porém, a sociedade arguida, através do arguido, não entregou à Autoridade Tributária e Aduaneira aquele montante de € 12.016,76 (doze mil, dezasseis euros e setenta e seis cêntimos) até ao dia 10.02.2018, nem nos noventa dias subsequentes, que permanece por saldar, sendo que a sociedade arguida atravessava dificuldades económicas/financeiras em pagar as suas dívidas.

11. A 04.04.2019 o arguido, a título pessoal e na qualidade de legal representante da sociedade arguida, foi pessoalmente notificado para proceder ao pagamento da quantia de imposto em dívida, no prazo de 30 (trinta) dias, não o tendo feito, quer a título pessoal quer em representação da sociedade arguida, nos trinta dias subsequentes ao recebimento de tal notificação.

12. No dia 16.08.2019, BB foi notificado por carta postal com aviso de recepção para, na qualidade de Administrador de Insolvência da sociedade arguida, proceder ao pagamento da quantia de imposto em dívida, no prazo de 30 (trinta) dias, não o tendo feito em representação da sociedade arguida, nos trinta dias subsequentes ao recebimento de tal notificação.

13. Ao actuar da forma descrita, o arguido agiu de forma livre, consciente e deliberada, em nome e no interesse da sociedade arguida, com o propósito alcançado de integrar nos cofres da sociedade arguida a importância supra descrita e de a utilizar na sua gestão corrente, em proveito da sociedade arguida, bem sabendo que a sociedade arguida estava obrigada a entregá-la à Administração Tributária, nos prazos legalmente previstos, e que não era sua nem da sociedade para livremente dispor, causando assim um prejuízo patrimonial à Administração Tributária;

14. O arguido sabia que essa sua conduta era prevista e punida pela lei como crime.

Elementos pessoais dos arguidos:

15. A sociedade arguida obteve um RLE negativo relativo ao ano de 2022 de - € 315.247,81;

16. Foi condenada, a 14.06.2018, pela prática, a 20.12.2013, de um crime de abuso de confiança fiscal, em 320 dias de multa – extinta por prescrição a 03.09.2022.

17. O arguido aufere € 1.200 líquidos mensais no desempenho da sua actividade profissional; vive com a esposa, que aufere o SMN, em casa de familiar; tem o 9.º Ano de Escolaridade;

18. Não se lhe conhecem outras práticas criminais.»


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2.3- APRECIAÇÃO DO RECURSO.

2.3.1-Determinação da medida da pena – redução da pena de multa (número de dias e montante diário); substituição da multa por caução.

Como vimos, ambos os recorrentes foram condenados pela autoria de um crime de abuso de confiança fiscal simples, p. e p. pelos artigos 105.º, 1, 4 e 7, e 7.º, 1, do RGIT - Lei n.º 15/2001, de 05.06, em pena de multa, sendo 300 dias de multa à razão diária de 25 € para a sociedade e 200 dias de multa à razão de 10 € para o arguido pessoa singular.

Em resumo, entendem os recorrentes que as penas aplicadas se mostram desproporcionadas, extravasando a culpa e as necessidades de prevenção, argumentando com a ilicitude baixa da conduta consistente na não entrega dos € 12.016,76, quando o mínimo para constituir crime é de € 7.500,00, sendo a pena aplicada ao recorrente singular situada acima do meio da moldura penal e a da sociedade próxima do meio; os recorrentes não tinham antecedentes criminais à altura dos factos, embora a recorrente sociedade tenha uma condenação posterior; o recorrente está familiar, profissional e socialmente inserido, sendo na altura “Presidente do Conselho de Administração” da coarguida dos autos, sendo àquela destinados quaisquer proventos/benefícios e já não à sua própria pessoa; a fragilidade económica da sociedade; não há notícias da prática de novos factos ilícitos. Na fixação do quantitativo diário não foi tida em conta a situação financeira e económica, bem como os encargos dos recorrentes. Tal quantitativo deve ser fixado em 5 € para ambos recorrentes. Assim, pretendem a redução dos dias e quantitativos diários das penas de multa fixadas, bem como em relação à recorrente ainda a substituição da pena de multa por caução.

Vejamos o direito aplicável quanto à determinação da pena.

As regras aplicáveis nesta matéria são as do Código Penal, acrescentando o RGIT no seu artigo 13º que na determinação da medida da pena atende-se, sempre que possível, ao prejuízo causado pelo crime, o que acaba por ser apenas uma concretização da alínea a) do n.º 2 do artigo 71º do Código Penal, onde se impõe a consideração entre outras circunstâncias do grau de ilicitude do facto e da gravidade das suas consequências. Ora, o prejuízo causado com a prática do crime é uma consequência deste, sendo que se haverá de tomar em conta a diminuição patrimonial sofrida pela administração fiscal[1].

Nos termos do art.º 40º, nº 1, do Código Penal as finalidades das sanções penais são a proteção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade, não podendo nunca a pena ultrapassar a medida da culpa (art.º 40º, nº 2).

Dito de outro modo, a pena visa finalidades exclusivas de prevenção geral e especial, sendo que, dentro dos limites consentidos pela prevenção geral positiva (necessidade de manutenção da confiança da comunidade na validade da norma posta em crise pelo cometimento do crime), devem atuar as exigências de prevenção especial (necessidade de preparação do agente para, no futuro, não cometer crimes).

O artigo 70º do Código Penal, por outro lado, estabelece as regras de escolha da pena e dispõe o art.º 71º, nº 1, que a determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção. Acrescentando-se no nº 2 deste último artigo que na determinação concreta da pena o tribunal atende a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele, considerando, nomeadamente as que aí se encontram elencadas nas alíneas a) a f).

A moldura penal para o arguido pessoa singular é de prisão até três anos ou multa até 360 dias (artigos 41.º, 1, do Cód. Penal e 12.º, 1 e 105º, n.º 1 do RGIT) e para a arguida pessoa coletiva é o limite máximo da pena de multa é elevado para 720 dias, sendo o mínimo de 20 dias (art.º 12.º, 3 e 105º, n.º1   do RGIT).

No caso dos autos não foi colocada em causa a opção pela pena de multa em alternativa à pena de prisão.

Quanto à medida concreta da pena, esta envolve duas operações sucessivas: a) determinação do número de dias de multa; b) fixação do quantitativo diário. Relativamente ao número de dias de multa, cabe referir que este apura-se de acordo com o preceituado no artigo 71º do Código Penal e 13º do RGIT. O montante diário da pena de multa fixa-se, de acordo com o disposto no artigo 15º, n.º 1 do RGIT entre 1€ e 500€, tratando-se de pessoas singulares, e entre 5€ e 5000€, tratando-se de pessoas coletivas ou entidades equiparadas, em função da situação económica e financeira do condenado e dos seus encargos. Ou seja, uma regra em tudo semelhante à do Código Penal, com exceção dos montantes (ver artigos 47º, n.º 2 de 90º-B o Código Penal). A intenção desta regra é a de dar cumprimento ao princípio da igualdade de ónus e sacrifícios, imposto pelo artigo 13º da Constituição, e promover a eficácia preventiva da multa[2].

Na decisão recorrida considerou-se o seguinte:

«Importa, assim, considerar o elevado grau de ilicitude do facto, tendo em conta os interesses públicos envolvidos e o montante em jogo – que conforma valor elevado (cfr. art.º 202.º a) do Cód. Penal ex vi 3.º a) do RGIT);

A gravidade das suas consequências é elevada, considerando o período entretanto decorrido e o valor ainda em dívida;

A intensidade do dolo afigura-se mediana, por se admitir o dolo necessário: o arguido, em representação da sociedade arguida, representa os factos que preenchem o tipo de crime como consequência necessária da sua conduta;

Os motivos determinantes fundam-se em pretensão de fuga ao fisco, que se generalizou em Portugal, e em tentativa de contornar a lei, à boa maneira portuguesa, onde só paga impostos quem não consegue fugir a essa obrigação – o que conduz a uma sobrecarga de tributação daqueles que pagam –, e onde se enraizou a ideia de que não havia um controlo eficaz do Estado sobre tal matéria, sem olvidar a situação de dificuldades económicas/financeiras da empresa, com difícil acesso ao crédito, que foi, aliás, transversal a todo o tipo de actividades nas PME, nesse período conjuntural;

As condições pessoais e a situação económica do arguido afiguram-se medianas – considerando a sua idade, situação vivencial e profissional, rendimentos auferidos (e os da generalidade da população portuguesa) e despesas necessárias; a situação da sociedade arguida é de RLE negativo (- € 315 247,81) no último no fiscal;

O desconhecimento de antecedentes criminais relativo ao arguido é valorado como atenuante, por indiciar percurso de actividade conforme o direito e ser considerado primário; a prática criminal anterior conhecida à sociedade arguida tem a particularidade de ainda não ter sido objecto da solene censura resultante da condenação à data da conduta dos presentes autos;

Finalmente a necessidade de prevenção geral é elevadíssima, considerando a sua proliferação a nível nacional e numa comarca onde este tipo legal de crime permanece com consistente resiliência.

Por tudo o exposto, julgam-se concretamente adequadas as penas de:

- 300 dias de multa, à razão de € 25 dia (cfr. art.os 12.º, 13.º e 15.º, todos do RGIT), no que concerne à sociedade arguida; e

- multa – considerando a idade do arguido, o seu passado criminal impoluto, a sua indiciada inserção social, familiar e profissional, e o período conjuntural negativo, entende-se aquela pena susceptível de facilitar (e alcançar) a sua socialização, sem se mostrar incompatível com as exigências mínimas de integração, sob a forma de tutela do ordenamento jurídico –, que se fixa em 200 dias, à razão de € 10 dia (art.os 70.º do Cód. Penal, ex vi 3.º a) e 15.º, ambos do RGIT), no que respeita ao arguido. »

2.3.1.1-Redução do número de dias da pena de multa.

Tendo em conta os critérios de determinação da pena acima enunciados, é de considerar desde logo, contrariamente ao que se entendeu na sentença recorrida, o grau de ilicitude dentro do tipo de ilícito cometido como não elevado. Com efeito, é necessário ter em conta o prejuízo causado ao Estado com a não entrega do imposto devido, no montante de 12.016,76€, sendo que este tipo de ilícito do crime de abuso de confiança fiscal simples (artigo 105º, n.º 1 do RGIT) começa na quantia de € 7.500 (até lá é um ilícito de mera ordenação social sem relevância penal) e vai até aos 50.000 €, e só passando esta quantia é que entra na variante agravada do tipo de ilícito. Ora, num tipo de ilícito que prevê a apropriação de quantias de valor superior a 7.500 € e até 50.000€, a apropriação de 12.016,76€ (cerca de 4,000€ acima do mínimo do ilícito penal e distanciada do máximo ilícito penal simples em cerca de 47.000€) não pode ser de modo algum considerada como uma quantia de tal forma relevante que permita afirmar a elevada gravidade do prejuízo causado. Consequentemente, a ilicitude, dentro do tipo de ilícito cometido, tem de ser considerada baixa.

Quanto à intensidade do dolo, que se considerou na ponderação dos fatores de pena como «…mediana, mediana, por se admitir o dolo necessário:…», não vemos como considerar essa intensidade mediana, pois o dolo que resulta dos factos provados – pontos 13 e 14 - é o dolo direto do artigo 14º, n.º 1 do Código Penal, tendo o arguido agiu de forma livre, consciente e deliberada  com o propósito alcançado de integrar nos cofres da sociedade arguida a importância que esta estava obrigada a entregar à administração tributária, sabendo que a sua conduta era prevista e punida pela lei como crime. Assim, o dolo é na sua forma mais intensa, o que não implica que a culpa ultrapasse a mediania, pois conforme resulta dos factos provados a sociedade foi declarada insolvente em 28.05.2018 e obteve um RLE negativo relativo ao ano de 2022 de - € 315 247,81, donde resulta que a situação financeira não seria nada boa na altura dos factos, tal como hoje. Daí que a culpa esteja dentro da mediania, não obstante o dolo intenso.

Quanto aos motivos, é de ter em conta o propósito de não pagar o imposto, como consta dos factos provados, bem como o contexto de dificuldades financeiras já referidas.

Quanto às condições pessoais, económicas e sociais do arguido pessoa singular, além da inexistência de antecedentes criminais referida na decisão recorrida, haverá de se contar com, como mais à frente se refere na sentença, a idade do arguido (62 anos), o seu passado criminal impoluto, a sua indiciada inserção social, familiar e profissional, e o período conjuntural negativo.

 Quanto às condições da arguida sociedade considerou-se na sentença recorrida a existência de uma condenação anterior, mas que não foi alvo de censura solene. É certo que consta dos factos provados que foi condenada em 14.06.2018, pela prática, a 20.12.2013, de um crime de abuso de confiança fiscal, em 320 dias de multa – extinta por prescrição a 03.09.2022-, pelo que a sociedade arguida foi objeto de censura solene transitada em julgado em data posterior aos factos dos presentes autos, só não pagou foi a pena de multa que se extinguiu por prescrição. Assim haverá de se ter em conta que cometeu um crime antes de ter cometido o dos presentes autos, embora tenha sofrido a censura posteriormente e não tenha pago a multa por prescrição desta.

  Ponderados todos estes fatores, consideremos as exigências de prevenção - geral e especial - do crime dos presentes autos.

Quanto às exigências de prevenção geral haverá de se ponderar em especial, por um lado, a baixa ilicitude dos factos dentro do tipo de ilícito simples do abuso de confiança fiscal, atento o prejuízo causado próximo do mínimo criminoso e longe do máximo do tipo simples. Por outro lado, não poderá deixar de se ter em conta a frequência elevada da prática de crime fiscais no nosso país. Finalmente, são também de ponderar em termos de prevenção geral as condições pessoais do arguido, pois que a comunidade ao pensar no crime cometido não pesa apenas as condições relativas ao crime cometido, mas também as que dizem respeito ao seu autor. Ora, as condições pessoais do arguido são lhe favoráveis em termos de prevenção geral. O cidadão comum habitualmente fiel ao direito, a pessoa comum pressuposta pela ordem jurídica, não deixará de pesar como favoráveis as circunstâncias de o arguido encontrar-se integrado social, familiar e laboralmente, não ter antecedentes criminais nem condenações posteriores. Tudo visto, as exigências de prevenção geral relativas ao arguido são baixas. Já quanto à sociedade arguida, considerando o que atrás já se disse quanto à ilicitude baixa e à a frequência do cometimento destes crimes, bem como as condições económicas precárias da sociedade, mas não desconsiderando o facto de não ter sido facto criminoso único na vida da empresa, as exigências de prevenção geral já se mostram significativas a reclamar pela comunidade alguma firmeza na repressão deste tipo de criminalidade de modo a que a generalidade dos cidadãos sinta confiança nas normas que proíbem e punem o abuso de confiança fiscal.

  Relativamente às exigências de prevenção especial quanto ao arguido pessoa singular estas são, como parece evidente, baixas, pois encontra-se integrado social, familiar e laboralmente, não tem antecedentes criminais nem condenações posteriores. Já relativamente à sociedade arguida haverá de se ter em conta que este não foi o primeiro crime fiscal cometido, pelo que, não obstante a situação económica que culminou na insolvência bem como em resultados líquidos negativos, as exigências de prevenção especial são de importância já algo elevada.

Tudo visto, a fixação do número de dias de multa em ordem a cumprir as exigências de prevenção geral positiva e de prevenção especial de ressocialização, relativamente ao cometimento por um arguido sem antecedentes criminais ou condenações posteriores, com 62 anos de idade, inserido social, familiar e profissionalmente, de um crime de abuso de confiança fiscal simples, de ilicitude baixa dentro do tipo simples, atento o valor do prejuízo causado à administração fiscal, numa altura em que a sociedade apresentava problemas financeiros, deverá ser fixada dentro ou próximo do terço inferior da moldura abstrata prevista pelo legislador para tal crime, ou seja, numa zona que vai até cerca de 120 dias de multa.

 É certo que não ignoramos que sendo o potencial aflitivo da pena de prisão muito superior ao da pena de multa. Assim na fixação da pena de multa poderá ultrapassar-se, por comparação com a pena de prisão, a proporção (1/3, 2/3, etc…) que uma e outra atingem dentro da moldura abstrata. Aliás, será até com alguma naturalidade que tal resultado se verificará na prática, situando-se, por exemplo, a pena de prisão principal dentro do terço inferior da moldura abstrata e a multa que a substituiu no meio da pena, ou numa situação em que se colocaria a pena de prisão um mês acima do mínimo legal ou mesmo neste e, optando-se pela pena alternativa, o número de dias de multa iriam para o topo do terço inferior.

Só que, considerando o caso dos autos, ir mais além do topo do terço inferior da moldura abstrata da multa nestas circunstâncias afigura-se desnecessário para cumprimento dos fins da pena, pois que não só o cidadão comum habitualmente fiel ao direito ficará satisfeito e considerará como suficiente o mal da pena aplicada ao agente do crime, continuando a confiar nas normas que proíbem o abuso de confiança fiscal, como também o arguido com a privação pecuniária que irá sofrer ficará melhor preparado para, no futuro, não cometer crimes. Para lá de desnecessária em termos preventivos, afigura-se desproporcionada e ultrapassando a culpa pelo facto a fixação da pena em número de dias muito superior ao terço da moldura abstrata da pena.

No caso dos autos a pena de 200 dias de multa fixada ao arguido pessoa singular situa-se acima do meio da moldura abstrata e, face ao exposto, afigura-se ser de a reduzir para 120 dias, nesta parte procedendo o recurso do arguido pessoa singular.

 Quanto à sociedade arguida a conclusão a retirar já será diferente, pois não só as exigências de prevenção geral e especial são substancialmente maiores, como até a própria pena aplicada nem sequer atingiu o meio da moldura abstrata, pelo que se mostra adequada e proporcionada, não ferindo os princípios constitucionais da culpa, da igualdade, da necessidade e da proporcionalidade. Assim nesta parte da fixação do número de dias improcede o recurso da sociedade arguida.

2.3.1.2-Redução do quantitativo diário da pena de multa.

Pretendem os recorrentes a redução dos montantes diários da pena de multa de 10€ (pessoa singular) e de 25€ (sociedade arguida) para a quantia de 5€ a ambos os recorrentes.

Vejamos se lhes assiste razão.

 De acordo com o artigo 15º n.º 1 do RGIT o quantitativo diário da pena de multa fixa-se entre 1€ e 500€, tratando-se de pessoas singulares, e entre 5€ e 5000€, tratando-se de pessoas coletivas ou entidades equiparadas, em função da situação económica e financeira do condenado e dos seus encargos.

A regra é a de que considerados os rendimentos e encargos do arguido pessoa singular, com as devidas adaptações para as pessoas coletivas, deve fixar-se o montante diário da pena de multa naquilo que sobra dessas despesas, ou seja, no montante diário (entre 1€ e 500 €) correspondente à diferença entre os rendimentos que o condenado aufere e as suas obrigações correntes e necessidades de subsistência.

Relativamente às pessoas singulares, haverá de se considerar que existe uma realidade que não se pode deixar de ter em conta, aquilo a que os autores e a jurisprudência denominam de mínimo existencial[3].

Com efeito, quanto ao reconhecimento como direito subjetivo de um mínimo existencial de cada cidadão que deve ser protegido por ser inerente à dignidade da pessoa humana parece não haver muita discussão, seja na doutrina, nos textos internacionais sobre direitos fundamentais nem na interpretação que o Tribunal Constitucional tem feito da nossa Lei Fundamental. Aliás na própria lei ordinária, designadamente no processo civil e na lei fiscal a ideia de um mínimo existencial tem consagração.

É comummente aceite que o princípio da dignidade da pessoa humana é a base de tudo, podendo afirmar-se que o Estado só existe legitimamente se tiver como fim assegurar e promover a dignidade humana e, nessa medida, a autonomia, a liberdade e o bem-estar de todas as pessoas, em qualquer fase do seu desenvolvimento[4].

 Da consagração no artigo 1º da Constituição de que a nossa República é baseada na dignidade da pessoa humana resulta logicamente para os cidadãos o direito a um mínimo de existência condigna que não deve ser violado, seja pelo Estado seja pelos particulares. Do direito fundamental de cada pessoa a um mínimo de existência condigna ou mínimo existencial resulta o reconhecimento de um direito a não ser privado do que se considera essencial à conservação de um rendimento indispensável a uma existência minimamente condigna.

O Tribunal Constitucional tem sublinhado esta ideia em vários arestos – apontamos dois - Ac. 62/02[5], Ac. 509/02[6]. Também a lei ordinária consagra afloramentos deste princípio de não afetação do mínimo existencial, como por exemplo a impenhorabilidade ‘relativa’ de bens imprescindíveis à economia familiar (artigo 737º do CPC) ou de 2/3 dos vencimentos, salários e pensões e equivalentes (artigo 738º do CPC). A própria lei fiscal consagrou no artigo 70º (Mínimo de existência) do Código do Imposto do Rendimento sobre as Pessoas Singulares o princípio da defesa do mínimo existencial ao estipular o valor de referência do mínimo de existência, uma forma de garantir que todos os contribuintes têm um determinado rendimento disponível sobre o qual não pagam imposto, ficando assim com dinheiro suficiente para garantir a sua subsistência.

O conceito jurídico-constitucional do direito ao mínimo existencial, uma vez que não se encontra diretamente descrito na Constituição, antes se inferindo da dignidade da pessoa humana, deve ser construído a partir desta base da República. Partindo da dignidade da pessoa humana e levando-se a Constituição a sério como tem de ser, podemos afirmar que tal direito consiste no direito a um mínimo existencial para uma vida digna. Assim, o direito ao mínimo existencial não se esgota nem pode ser reduzido a um mero  mínimo vital, antes indo além desse mínimo de sobrevivência e devendo ser construído com base nos direitos fundamentais constitucionalmente reconhecidos[7] e tendo como fim a realização destes[8].  

Cremos não andar longe da realidade social, cultural e constitucional  se considerarmos que o mínimo existencial é em primeiro lugar integrado por um mínimo vital ou mínimo de garantia de sobrevivência da pessoa (por exemplo, prestações básicas em termos de alimentação, vestuário, abrigo, saúde ou os meios indispensáveis para a sua satisfação, assim garantindo que ninguém morre de fome, de hipertermia, de exposição aos elementos, ou por falta de assistência médica ou medicamentosa) e depois por um mínimo de sobrevivência condigna, um padrão de vida estabelecido, considerando o estado atual de evolução da sociedade, de acordo com o qual cada cidadão não pode ser privado de direitos fundamentais constitucionalmente protegidos como a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a habitação, o transporte, o lazer, a segurança, a segurança social, a cultura, a proteção à maternidade e à infância.

Assim, o mínimo existencial é constituído por um mínimo vital (alimentação, vestuário, abrigo, saúde) e por um mínimo de sobrevivência condigna (educação, trabalho, habitação, transporte, lazer, segurança, segurança social, cultura, proteção à maternidade e à infância), que o Estado não só não pode subtrair ao indivíduo, mas também como algo que o Estado deve positivamente assegurar, mediante prestações de natureza material[9].

Para assegurar esse mínimo existencial, na parte em que não é assegurado gratuitamente pelo Estado, são necessários recursos económicos individuais.

Do reconhecimento da existência e validade jurídico-constitucional e legal de um mínimo existencial que o Estado não pode subtrair ao indivíduo, resultam duas consequências para a fixação do montante diário da pena de multa.

O Tribunal na fixação do quantitativo diário da pena de multa tem de ter em conta que não pode subtrair ao condenado que se encontra acima do mínimo existencial recursos económicos que o façam colocar abaixo desse mínimo.

 Quando o condenado viva no mínimo existencial ou abaixo dele o quantitativo diário da pena de multa deve ser fixado, obrigatoriamente, no mínimo legal, sendo de converter de imediato na sentença ou decorrido o prazo de pagamento a pena de multa em prisão subsidiária e ser suspensa a sua execução com subordinação ao cumprimento de deveres e regras de conduta de conteúdo não económico ou financeiro[10] [11].

Na avaliação caso a caso deve o juiz fazer uso dos elementos de facto que conseguiu apurar no julgamento e apelar ao seu conhecimento da realidade social em que vive e do normal suceder das coisas da vida, e pensar quanto custa em média a alimentação, a habitação, o vestuário, a eletricidade, a água, a educação, o transporte, o lazer, a segurança, a segurança social, as atividades de cultura, as despesas ligadas à maternidade ou paternidade e à infância, bem outras despesas adequadas, em resumo, saber quanto custa viver condignamente na sociedade atual.

Apurado o direito, procedamos à sua aplicação.

Vejamos então, se a taxa diária fixada pela decisão recorrida (10€) coloca o arguido no mínimo existencial ou abaixo.

Consideremos os rendimentos e encargos do arguido em ordem a apurar se a decisão recorrida na fixação da taxa diária atingiu essa parte constitucionalmente protegida do mínimo existencial.

 Se atentarmos nos rendimentos e encargos do arguido, estando provado que aufere € 1 200 líquidos mensais no desempenho da sua atividade profissional, vive com a esposa, que aufere o SMN, em casa de familiar,  ainda que se considerem por estimativa[12] despesas usuais e necessárias de qualquer pessoa, chegamos à conclusão de que a quantia de 10€ diários, correspondendo grosso modo a cerca de no máximo 1/3 do excedente diário estimado, não é uma quantia de tal modo elevada que coloque o arguido sequer no limiar do mínimo existencial, quanto mais abaixo deste.

Fixar no caso dos autos o montante diário da multa abaixo dos 10 € ou pior ainda nos 5€ pretendidos pelo recorrente equivaleria a colocar em risco os efeitos preventivos gerais e especiais que cabem à pena, frustrando a intenção político criminal do legislador de reforço da confiança da generalidade dos cidadãos nas normas que proíbem o cometimento de abusos de confiança fiscais e não contribuindo para ajudar o arguido a no futuro conduzir a sua vida sem cometer crimes. Assim, quanto ao arguido pessoa singular, nesta parte do montante diário da pena de multa não merece qualquer censura a decisão recorrida.

Passemos à sociedade arguida.

Quanto a esta, a questão do mínimo existencial não se coloca como em relação ao arguido pessoa singular, pois por definição não é uma pessoa humana, mas apenas uma pessoa coletiva. Aliás, é possível aplicar a ‘pena de morte’ da pessoa coletiva: a pena acessória de dissolução da pessoa coletiva (artigo 16º-h do RGIT). Seja como for, não se querendo extinguir a empresa por dissolução também deve ser tida em conta a situação financeira da empresa na fixação do montante diário da pena de multa. Ora, como resulta dos factos provados a sociedade arguida não só foi declarada insolvente em 28.05.2018, como obteve um ‘Resultado Líquido do Exercício’ negativo relativo ao ano de 2022 de - € 315 247,81. Mas tendo sido declarada insolvente e tendo apresentado um resultado líquido negativo do último exercício conhecido, afigura-se que assiste razão à recorrente quando pretende que o montante diário da pena de multa baixe para 5€. Com efeito e não obstante o prejuízo causado à administração fiscal tenha sido de pouco mais de 12.000 €, que sempre poderão ser recuperados em execução fiscal ou em eventual reclamação de créditos, afigura-se desproporcionado fixar o quantitativo diário da pena de multa em 25 € quando a pessoa coletiva está insolvente e apresenta resultados negativos relevantes, mais de 300.000€. Assim, nesta parte tem provimento o recurso da sociedade arguida, fixando-se a taxa diária da pena de multa em 5€.

2.3.1.3-Substituição da multa por caução.

Quanto à substituição da pena de multa por caução, cabe referir que a caução de boa conduta prevista no artigo 90º-D do Código Penal para as pessoas coletivas constitui uma pena de substituição da pena principal de multa.

Sendo uma pena de substituição da pena principal está sujeita aos princípios gerais da realização das finalidades das penas consagrados nos artigos 40º e 70º do Código Penal.

Concretizando, critério material de aplicação das penas de substituição é que estas realizem de forma adequada e suficiente as finalidades da punição, as finalidades de prevenção - geral e especial – do crime (artigos 40º, n.º 1, 70º, 46º, n.º 1, 50º, n.º 1, 58º, n.º1, e 60º, n.º2 do CP)[13], sendo de acentuar que a pena tem como finalidade primordial a proteção de bens jurídicos e, sempre que possível, a reintegração do agente na sociedade, agindo a prevenção geral positiva como limite à atuação da prevenção especial de socialização.

É certo que a ilicitude dos factos é baixa e que a sociedade arguida não tem condenações anteriores aos factos dos autos, mas a verdade é que após os factos dos autos sofreu uma condenação por factos anteriores àqueles e por crimes da mesma natureza dos em causa nos presentes autos. Esta repetição de crimes afasta a possibilidade de a substituição da pena de multa satisfazer as necessidades de prevenção o caso dos autos, pondo-se em causa o mínimo de defesa do ordenamento jurídico e não se mostrando suficiente para que a sociedade arguida prossiga a sua atividade no futuro sem cometer crimes, designadamente de natureza fiscal.

Nesta parte da substituição da pena de multa é improcedente o recurso da sociedade arguida.


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3- DECISÃO.

Pelo exposto, acordam os juízes do Tribunal da Relação em conceder parcial provimento aos recursos de ambos os recorrentes e, em consequência, alteram parcialmente a sentença recorrida nos seguintes termos:

- o arguido AA fica condenado na pena de 120 dias de multa, mantendo-se, no mais, a decisão recorrida;

- a arguida ‘A..., S.A.’ fica com a pena de multa fixada à razão diária de 5€ mantendo-se, no mais, a decisão recorrida.


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Notifique.

Porto, 13 de março de 2024
William Themudo Gilman
Cláudia Rodrigues
Carla Oliveira
_________________
[1] Cfr. neste sentido Germano Marques da Silva, Direito Penal Tributário, 2ª edição, 2018, p.132.
[2] Cfr. neste sentido Jorge de Figueiredo Dias, Direito penal Português. As Consequências Jurídicas do Crime, Aequitas, 1993, p. 128; Maria João Antunes, Penas e Medidas de Segurança, 2ª edição, 2022, p.59.
[3] Cfr. sobre o mínimo existencial, Ingo Wolfgang Sarlet, DIGNIDADE (DA PESSOA) HUMANA, MÍNIMO EXISTENCIAL E JUSTIÇA CONSTITUCIONAL, Revista do CEJUR/TJSC: Prestação Jurisdicional, v. 1, n. 01, p. 29-44, dez. 2013, https://revistadocejur.tjsc.jus.br/cejur/article/view/24. E em referência ao mínimo existencial na fixação do quantitativo diário da multa, Jorge de Figueiredo Dias, Direito Penal Português. As Consequências Jurídicas do Crime, Aequitas, 1993, p. 130-131; Maria João Antunes, Penas e Medidas de Segurança, 2ª edição, 2022, p.59-60. Na jurisprudência, o Ac. TRP de 31-01-2024, proc. 1061/23.0SPPRT.P1 (William Themudo Gilman), in https://www.dgsi.pt/jtrp.nsf/56a6e7121657f91e80257cda00381fdf/e39353602a3ee99c80258ad9005433e9?OpenDocument
[4] Cfr. sobre esta noção e papel do Estado, Fernando António Rodrigues da Silva Coutinho Oliveira, Breves considerações a respeito do princípio da dignidade da pessoa humana, 2013, p. 32, https://repositorio-aberto.up.pt/bitstream/10216/68997/2/24817.pdf .
[5] https://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20020062.html
[6] https://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20020509.html
[7] Cfr. neste sentido Ingo Wolfgang Sarlet e Taís Hemann da Rosa, Breves notas sobre a dogmática do mínimo existencial no direito brasileiro, R. Dir. Gar. Fund., Vitória, v. 16, n. 1, p. 217-248, jan./jun. 2015, p. 228, in,
https://sisbib.emnuvens.com.br/direitosegarantias/article/view/741
[8] Cfr. Thadeu Weber, A ideia de um “mínimo existencial” de J. Rawls, p. 198, https://www.researchgate.net/publication/262746864_A_ideia_de_um_minimo_existencial_de_J_Rawls
[9] Cfr. neste sentido Ingo Wolfgang Sarlet, DIGNIDADE (DA PESSOA) HUMANA, MÍNIMO EXISTENCIAL E JUSTIÇA CONSTITUCIONAL, Revista do CEJUR/TJSC: Prestação Jurisdicional, v. 1, n. 01, p. 29-44, dez. 2013, https://revistadocejur.tjsc.jus.br/cejur/article/view/24 ; Cfr. o já citado Ac. TRP de 31-01-2024, proc. 1061/23.0SPPRT.P1 (William Themudo Gilman), in
https://www.dgsi.pt/jtrp.nsf/56a6e7121657f91e80257cda00381fdf/e39353602a3ee99c80258ad9005433e9?OpenDocument
[10] Cfr. quanto à fixação no mínimo legal e conversão imediata e suspensão, Jorge de Figueiredo Dias, Direito penal Português. As Consequências Jurídicas do Crime, Aequitas, 1993, p. 130-131; Maria João Antunes, Penas e Medidas de Segurança, 2ª edição, 2022, p.59-60.
[11] Cfr. no sentido da fixação da taxa diária da pena de multa no mínimo legal os Acórdãos do Tribunal da Relação do Porto: de 8.01.2020, processo n.º 618/19.8GBPNF.P1; de 14.04.2021, processo n.º 49/17.4GBFLG.P1; de 9.02.2022, processo n.º 20/20.9PEMAI.P2; de 23.03.2022, processo n.º 398/21.7GBFLG.P1; de 29.06.2022, processo n.º 178/21.0T9AVR.P1; 21.09.2022, processo n.º 238/20.4PTPRT.P1; de 16.11.2022, processo n.º 415/18.8PASTS.P1; de 16.11.2022, processo n.º 534/18.0T9VNG.P1; de 16.11.2022, processo n.º 349/14.5TASTS.P1; de 18.01.2023, processo n.º 1381/20.5T9AVR.P1; bem como a declaração de voto de vencido no Ac. TRP de 19-12-2023, processo 1137/20.5PBMTS.P1; nenhum deles publicado em www.dgsi.pt., mas consultáveis no livro de registo de sentenças desta Relação na plataforma Citius.
[12] Cfr., sobre o recurso à estimativa, Jorge de Figueiredo Dias, Direito penal Português. As Consequências Jurídicas do Crime, Aequitas, 1993, p. 133.
[13] Cfr. Jorge de Figueiredo Dias, Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, 1993, p. 331; Maria João Antunes, Penas e Medidas de Segurança, 2ª ed., 2022, p.92.