Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
3903/17.0T8VFX-A.L1-1
Relator: MANUEL RIBEIRO MARQUES
Descritores: INSOLVÊNCIA CULPOSA
APRESENTAÇÃO À INSOLVÊNCIA
NEXO CAUSAL
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 04/23/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: 1.Tendo o relatório a que alude o art. 155º do CIRE sido apresentado no prazo estabelecido na sentença declaratória da insolvência, não pode deixar de se contar o prazo de 15 dias a que alude o art. 188º, n.º 1, do mesmo diploma, a partir da junção do mesmo aos autos e não da sua notificação aos interessados.

2.A fixação em 15 dias do prazo em análise, contado nos termos sobreditos, não se revela uma medida excessiva, desrazoável, desnecessária ou desproporcionada, posto que a mera notificação da sentença que declara a insolvência, imposta no artigo n.º 2 do artigo 37.º do CIRE, colocará qualquer interessado em perfeitas condições de determinar o termo inicial do prazo de 15 dias que dispõe para requerer o incidente de qualificação da insolvência.

3.Só assim não seria se aquele relatório tivesse sido apresentado fora do prazo legal, caso em que se impunha a sua notificação aos interessados.

4.A Lei n.º 9/2022, de 11 de Janeiro, que veio expressar a natureza peremptória do prazo de 15 dias previsto no n.º 1 do art. 188º do CIRE é uma lei interpretativa, integrando-se na lei interpretada, nos termos do art. 13º do C. Civil, pelo que tal prazo deve ter-se como peremptório mesmo nas situações jurídicas verificadas antes da vigência dessa Lei.

5.Tendo o incidente de qualificação da insolvência sido deduzido fora do prazo legal, encontrando-se extinto o direito à prática do acto, o juiz não poderia declarar aberto o incidente.


Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam na 1ª Secção de Comércio do Tribunal da Relação de Lisboa:


I.–Por sentença proferida dia 16/11/2017, transitada em julgado, foi nos autos principais declarada a insolvência da sociedade R., Lda.

Nessa sentença decidiu-se, além do mais:
10.Dispenso a realização da Assembleia de Apreciação do Relatório a que alude o art.º 156.º, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, uma vez que não se afigura previsível a apresentação de um plano de insolvência e a massa insolvente indicia-se reduzida (art.º 36.º, nº 1, al. n), do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas).
(…)
Caso não venha a ser designada data para realização de assembleia de apreciação do relatório (cfr. art.º 36.º, nº 3, do CIRE), deverá o Sr. Administrador da Insolvência apresentar nos autos o relatório a que alude o art.º 155.º do CIRE entre 45 a 60 dias contados da data da presente sentença”.

No dia 15/01/2018 o Administrador da Insolvência juntou aos autos o relatório a que alude o art. 155º do CIRE.


Por requerimento de 5/02/2018, junto aos autos principais, o MP solicitou a abertura do incidente de qualificação de insolvência nos seguintes termos:
“O MºPº, em defesa da legalidade e do Estado Português, vem, nos termos e para os efeitos do disposto nos art.ºs 185.º, do CIRE, requerer a abertura do incidente de qualificação de insolvência com fundamento no facto de a insolvente não ter cumprido a obrigação legal de apresentação de contas e ter encerrado a sua atividade em 2013 sem se ter apresentado insolvência.

Mais e requer que o Exmº AI seja notificado para apresentar o seu parecer e que após nos seja aberta “vista”.

Por despacho de 9/04/2018 decidiu-se:

“(…)

II–Com cópia do requerimento do Ministério Público apresentado em 05/02/2018, notifique o Sr. Administrador de Insolvência para, em 20 dias, emitir parecer fundamentado com a formulação de proposta de qualificação da presente insolvência como fortuita ou culposa e, caso conclua que a presente insolvência deva ser qualificada de culposa, indicar as pessoas que, em seu entender, devem ser afectadas pela qualificação como culposa com descrição objectiva dos factos onde suporte tal asserção.”

Após, diversos credores foram notificados do teor do relatório acima referenciado apresentado pelo AI, conforme certificação Citius de 12/04/2018.


No dia 21/05/2018 o Administrador da Insolvência emitiu parecer no sentido da qualificação da insolvência como fortuita.

Por decisão proferida nos autos principais a 3/12/2018, decidiu-se:
A- Do encerramento do processo.
Por constatar a insuficiência da massa insolvente (não foi apreendido qualquer bem, rendimento ou direito), o Sr. Administrador da Insolvência propôs que o tribunal declare encerrado o processo, ao abrigo do disposto nos art.ºs 230.º, nº 1, al. d), e 232.º, do CIRE.
De acordo com o disposto no art.º 230.º, nº 1, al. d), do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas - CIRE, «prosseguindo o processo após a declaração de insolvência, o juiz declara o seu encerramento quando o administrador da insolvência constate a insuficiência da massa insolvente para satisfazer as custas do processo e as restantes dívidas da massa insolvente».
Por seu turno, dispõe o art.º 232.º, nº 2, do CIRE:
«Ouvidos o devedor, a assembleia de credores e os credores da massa insolvente, o juiz declara encerrado o processo, salvo se algum interessado depositar à ordem do tribunal o montante determinado pelo juiz segundo o que razoavelmente entenda necessário para garantir o pagamento das custas do processo e restantes dívidas da massa insolvente».
A insolvente e os credores foram notificados da proposta apresentada pelo Sr. Administrador da Insolvência para se pronunciarem, querendo, sobre a proposta de encerramento do processo por insuficiência da massa insolvente e nada disseram.
Assim, face ao exposto e em conformidade com os preceitos legais citados, cabe proferir decisão e determinar o encerramento do presente processo de insolvência, ao abrigo do disposto nos art.ºs 230.º, nº 1, al. d) e 232.º, nº 2, do CIRE.
Pelo exposto, declaro encerrado o presente processo de insolvência por insuficiência da massa insolvente, ao abrigo do disposto nos art.ºs 230.º, nº 1, al. d), e 232.º, nº 2, do CIRE.
Notifique, publicite e registe – art.º 230.º, nº 2, do CIRE.
Custas a liquidar pela massa insolvente.”
A 4/06/2019 o MP emitiu parecer, dizendo que:
- Nos 3 anos anteriores à data da instauração do processo de insolvência, a insolvente teve como sócios-gerentes PR, RR e JC;
- aos gerentes cabe gerir a insolvente, o que significa, designadamente, tomar todas as decisões relativas à sua gestão e à área financeira, decidir da afetação dos recursos financeiros à satisfação das respetivas necessidades e sobre os pagamentos a efetuar aos fornecedores e credores da insolvente, dar ordens aos funcionários, realizar encomendas, representá-la perante clientes, fornecedores e repartições públicas, bem como, zelar pela cobrança e entrega dos impostos e das contribuições para com a Segurança Social e para com a Administração Tributária.
- a apresentação à insolvência só ocorreu em 2017, porém, encerrou a sua atividade de facto mas não de direito - nem sequer declarou a cessação de atividade à AT - em 2013;
- na CRC mantinha-se ativa mas sem depositar as contas – que permitiria um controlo por partes dos sujeitos económicos da vitalidade da empresa – desde há muito mais do que 3 anos antes da apresentação à insolvência;
- as dívidas à AT iniciaram-se em 2012 e continuaram-se a vencer novos impostos até 2017, atingindo um valor de 35 498,86€ - o que só ocorreu porque não houve apresentação à insolvência antes dessa data.
- não houve colaboração com o Exmº AI. Encontra-se, neste momento, indiciados factos que consubstanciam o disposto no art.º 186.º, n.º1, n.º2, al. i), e nº3, al. a) e b), do CIRE”.

Requereu ainda que a notificação do AI para prestar algumas informações.

Em 18-07-2019 e em resposta a uma promoção do MP, a insolvente veio dizer, em síntese, que a sociedade não exerce, de facto, actividade desde 2013, o que se deveu à recente crise económica e financeira que afectou, entre outros sectores, a mediação imobiliária; que a situação de insolvência é alheia a qualquer conduta dos seus gerentes, nem emerge de qualquer incumprimento do dever de apresentação à insolvência ou do dever de depósito de contas, inexistindo o respectivo nexo de causalidade; que a falta de depósito das contas se deve a uma conduta omissiva do TOC, o que era do desconhecimento da sociedade e dos seus gerentes; que as dívidas à AT após 2013 resultam de liquidações oficiosas de IVA e IRC, sendo alheias aos gerentes da sociedade; que não existiu falta de colaboração por parte dos gerentes, menos ainda reiterado ou que tivesse levado à criação/agravamento da situação de insolvência.

Concluiu pela qualificação da insolvência como fortuita.

Por despacho proferido dia 7/10/2019 nos autos principais, decidiu-se:
I. Notifique o Sr. AI para, em cinco dias, apresentar, por apenso, a lista de credores reconhecidos nos termos do art. 129.º do CIRE, cumprindo o despacho proferido em 03-12-2018, sob ref.ª 139343177.
II. Crie apenso de Incidente de Qualificação de Insolvência e, nele, incorpore as seguintes peças processuais: ref.ª 6508094; 6949773; 141402192; 8594208. Após, abra neste conclusão.

Criado o apenso, por despacho de 06-01-2020, foi declarado aberto o Incidente de Qualificação da Insolvência, com carácter limitado.

Esse despacho tem o seguinte teor:
“Declaro aberto o incidente de qualificação da insolvência – artigo 188.º, n.º 2, do CIRE, ex vi artigo 191.º, n.º 1 do mesmo diploma.
Publique – artigo 188.º, n.º 2, do CIRE.
Notifique o Sr. Administrador para apresentar o parecer a que alude o artigo 188.º, n.º 3 e alínea a), do n.º 1, do artigo 191.º, do CIRE, no prazo de 15 dias.
No mesmo prazo, deverá juntar os elementos/informações a que se refere a Digna Magistrada do Ministério Público na promoção sob ref.ª 141402192, cuja cópia se deverá remeter.
*
Junto o parecer, abra vista ao Ministério Público – art. 188.º n.º 4, do CIRE.”

O AI apresentou parecer, junto aos autos dia 06-02-2020, propondo a qualificação da insolvência da devedora, como fortuita, referindo, síntese, que, não obstante o incumprimento, pelos gerentes da insolvente, dos deveres de apresentação à insolvência, de prestação de contas e de colaboração com o Administrador da Insolvência, tendo em conta o encerramento de facto da actividade em 2013, a falta de colaboração do TOC e a circunstância do vencimento da generalidade dos créditos reclamados e reconhecidos ser contemporâneo ou anterior a 2013, tal não terá criado/agravado a situação de insolvência, posto que, apesar de haverem processos de execução fiscal posteriores a 2013, afigura-se advirem do incumprimento das obrigações declarativas.
O Ministério Público apresentou, em 25-05-2020 o seu parecer, pronunciando-se no sentido da qualificação da insolvência como culposa, devendo por ela ser afectados os gerentes PR, RR e JC.

Alegou o seguinte:
- a apresentação à insolvência só ocorreu em 2017, porém, a requerida encerrou a sua atividade de facto mas não de direito - nem sequer declarou a cessação de atividade à AT - em 2013;
- na CRC mantinha-se ativa mas sem depositar as contas – que permitiria um controlo por partes dos sujeitos económicos da vitalidade da empresa – desde há muito mais do que 3 anos antes da apresentação à insolvência;
- as dívidas à AT iniciaram-se em 2012 e continuaram-se a vencer novos impostos até 2017, atingindo um valor de 35 498,86€
- o que só ocorreu porque não houve apresentação à insolvência antes dessa data.
- não houve colaboração com o Exmº AI. (…) -pelo menos desde 2013 que a requerida se encontrava em insolvência técnica;
- há divida à Seg. Social que se reconduz a uma apropriação ilegal de quantias descontadas no vencimento dos trabalhadores.”.

Considerou verificado o disposto no art. 186.º, n.º 1, n.º 2, als. a), d) e i) e n.º 3, als. a) e b), do CIRE.
Notificada, a requerida insolvente silenciou.
Citado, o requerido PR deduziu oposição, na qual reiterou a posição do Sr. Administrador da Insolvência (inexistência de dolo ou culpa grave/de criação/agravamento da situação da insolvência).
Acrescentou que as dívidas contraídas junto da AT posteriormente a 2013, não constituem novas e verdadeiras dívidas, dado que decorrem do incumprimento de obrigações declarativas; que era o único gerente de facto da sociedade, sendo os outros dois gerentes apenas gerentes de direito; que do parecer do Ministério Público não constam quaisquer factos concretos que sejam subsumíveis ao invocado art. 186.º, n.º 2, als. a), e d), do CIRE, nem poderia existir dissipação de património entre 2014 e 2016, dado que a sociedade nunca foi proprietária de bens imóveis ou bens móveis (a não ser material de escritório); que a inexistência de declaração de cessação de actividade em 2013 e de depósito de contas na CRComercial, bem como o incumprimento da obrigação de entrega de declarações na AT e na Segurança Social, se deve a omissão da sociedade que tratava da contabilidade da sociedade, que se recusou a entregar a contabilidade a outra empresa, o que sucedeu por ser a insolvente devedora da remuneração devida pelos serviços prestados; que  a sociedade não se apropriou das quantias descontadas no vencimento dos trabalhadores, referentes a quotizações (11%), sendo que o crédito reclamado pelo ISS, IP respeita a contribuições, isto é, à parte referente à empresa de 23,75%, sendo anterior a 2013; que desconhecia a gerência que a empresa tinha a obrigação legal de se apresentar à insolvência logo após o encerramento da sua actividade comercial, tendo sido aconselhada a fazê-lo em 2017; que nunca teve conhecimento da carta que o Sr. Administrador da Insolvência refere que enviou a solicitar a entrega da contabilidade; que na data do envio da carta, 24-11-2017, já não residia na morada para a qual foi enviada, em Lisboa, em virtude de separação de facto da ex-mulher, que continuou a residir na mesma.
Concluiu pela qualificação da insolvência como fortuita.
Citada, a requerida RR deduziu oposição.
Arguiu a extemporaneidade do Incidente de Qualificação da Insolvência.
Alegou para tanto que:
1.–O presente Apenso de Qualificação da Insolvência foi declarado aberto em 10.01.2020 (cfr. Informação nos termos do art. 188º, nº 2, do CIRE, publicado na Plataforma Citius).
Ora, nos termos do art. 188º, nº 1, do CIRE, o Incidente de qualificação da Insolvência deve ser declarado aberto nos 25 dias (15 + 10) após a junção aos autos do Relatório a que se refere o art. 155º do CIRE.
Considerando que o Relatório do art. 155º do CIRE foi apresentado em 15.01.2018 (tendo sido dispensada a assembleia de apreciação do mesmo) e que o Processo de Insolvência a que este Incidente é apenso foi declarado encerrado no final do ano de 2018 (cfr. Anúncio de 05.12.2018 que se anexo como Doc. 1), temos de concluir que o presente Incidente é manifestamente extemporâneo, assim devendo ser julgado, o que conduzirá à respetiva extinção (neste sentido, o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 1193/13.2TBBGC-A.G1, de 30-05-2018).
(…)
3.–De facto, ainda que se entenda que o prazo referido no citado art. 188º, nº 1, do CIRE (25 dias = 15 + 10), é um prazo meramente ordenador, admitindo-se a abertura do incidente da qualificação da insolvência em momento posterior se os elementos necessários para o efeito só tiverem sido conhecidos posteriormente, o limite temporal para a abertura do incidente de qualificação será sempre o encerramento do processo de insolvência: isto é, o Despacho que declara aberto o incidente de qualificação da insolvência não pode ser proferido após o encerramento do processo de insolvência (neste sentido, , o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, processo nº 991/12.9TYVNG-D.P1, de 09.01.2020)

Ora, no caso que nos ocupa, importa constatar o seguinte: (i) o processo de insolvência em causa foi encerrado em Dezembro de 2018, isto é, mais de um ano antes da abertura do presente incidente de qualificação; (ii) os factos alegados pelo Requerente da qualificação da insolvência como culposa não são factos novos, são, aliás, factos conhecidos desde o início do processo de insolvência; e (iii) o próprio Administrador de Insolvência já se tinha pronunciado em Maio de 2018 no sentido de esta insolvência dever ser qualificada como fortuita (cfr. Parecer apresentado neste Apenso pelo Sr. Administrador de Insolvência em 27.01.2020).

4.–Deste modo, o incumprimento do prazo do art. 188º, nº 1, do CIRE, não se deveu à complexidade da insolvência ou dos factos que poderiam relevar para a qualificação da insolvência, mas sim à inércia (certamente explicável) do Tribunal na declaração de abertura deste Incidente, pelo que, no caso que nos ocupa, a admissão deste incidente de qualificação de insolvência 13 meses após o encerramento do processo de insolvência e sem factos novos que o suportem configura uma evidente violação deste preceito e dos princípios estruturantes da certeza e da segurança jurídicas.
Deduziu ainda oposição ao pedido de qualificação da insolvência, dizendo que no parecer do Ministério Público não se alegam factos, devendo o Incidente ser julgado extinto.

Citado, o requerido JC não deduziu oposição.

Por decisão de 30/05/2022 proferida no processo principal decidiu-se:
“Encerramento do processo por insuficiência da massa insolvente
Nos presentes autos de processo especial de insolvência foi declarada a insolvência de R., Lda., por sentença de 16-11-2017, transitada em julgado.
O Sr. AI pronunciou-se pelo encerramento do processo por insuficiência da massa insolvente para a satisfação das custas do processo e das restantes dívidas da massa insolvente, nos termos do art. 232.º, n.º 1, do CIRE.
Devedora e credores reconhecidos, nada disseram.
Não foi efectuado depósito à ordem do tribunal do montante que se entendesse necessário para garantir o pagamento das custas do processo e restantes dívidas da massa insolvente.
Estabelece o art. 230.º, n.º 1, al. d), do C.I.R.E. que: «Prosseguindo o processo, após a declaração de insolvência, o juiz declara o seu encerramento: (…)
d)-Quando o administrador da insolvência constate a insuficiência da massa insolvente para satisfazer as custas do processo e as restantes dívidas da massa insolvente».
De harmonia com o disposto no referido art. 232.º, n.º 2, do C.I.R.E.
«Ouvidos o devedor, a assembleia de credores e os credores da massa insolvente, o juiz declara encerrado o processo, salvo se algum interessado depositar à ordem do tribunal o montante determinado pelo juiz segundo o que razoavelmente entenda necessário para garantir o pagamento das custas do processo e restantes dívidas da massa insolvente».
Atento o teor da proposta do Sr. AI, a não oposição de credor e a inexistência de quantias depositadas, ao abrigo do disposto no art. 232.º, n.º 2, do C.I.R.E., declaro encerrado este processo de insolvência, por insuficiência da massa insolvente para a satisfação das custas do processo e das restantes dívidas da massa insolvente.
Considere-se os efeitos do encerramento previstos no art. 233.º do C.I.R.E..
Notifique o Sr. AI para os efeitos do disposto no art. 233.º, n.º 5, do C.I.R.E.
Registe, notifique e publicite (cfr. artigo 230.º, n.º 2, do C.I.R.E.).
Comunique o encerramento (e o património da sociedade, caso haja) ao serviço de registo competente, nos termos e para os efeitos do disposto no art. 234.º, n.º 4, do CIRE.”

Por despacho de 04-07-2022, foi dispensada a audiência prévia e proferido despacho saneador, no qual se indeferiu a arguição de extemporaneidade do incidente de qualificação da insolvência.
 Foi também proferido despacho de identificação do objecto do litígio e de enunciação dos temas da prova.
Naquele despacho de indeferimento exarou-se a seguinte fundamentação:
“Da “extemporaneidade” do Incidente de Qualificação da Insolvência invocada pela Requerida RR.
Na oposição que apresentou, a Requerida RR requereu a extinção do presente Incidente por extemporaneidade.
Alegou, em suma, que o incidente de qualificação da insolvência foi declarado aberto cerca de 13 meses após o encerramento do processo e sem factos novos que o suportem o que contende com o art. 188.º, n.º 1, do CIRE e com os princípios estruturantes da certeza e da segurança jurídicas.
Em Resposta, o Ministério Público refere, em síntese, que o pedido para abertura do incidente foi apresentado em 05-02-2018, sendo de concluir que a sua abertura foi atempada.
Cabe apreciar.
O art. 188.º, n.º 1, do CIRE, na redacção vigente à data e anterior à conferida pela Lei n.º 9/2022, de 11-011 , prevê que até 15 dias após a assembleia de apreciação do relatório, ou no caso de dispensa da realização desta, após a junção aos autos do relatório a que se refere o art. 155.º do CIRE, o administrador da insolvência ou qualquer interessado pode apresentar o requerimento de abertura do incidente de qualificação da insolvência, cabendo ao juiz conhecer dos factos alegados e, se o considerar oportuno, declarar aberto o incidente de qualificação da insolvência, nos 10 dias subsequentes.
No caso,
1.- A assembleia de credores de apreciação do relatório do art. 155.º do CIRE foi dispensada - ponto 10 do segmento decisório da sentença declaratória de insolvência, de 16-11-2017 – ref.ª 135510664 do processo principal.
2.- O relatório do art. 155.º do CIRE foi junto aos autos a 15-01-2018 – ref.ª 6418931 do processo principal.
3.- Os credores foram notificados em 12-04-2018 – ref.ª 137062570 e ss do processo principal.
4.- O Ministério Público apresentou requerimento de abertura de incidente de qualificação da insolvência, em 05-02-2018, no processo principal (ref.ª 6508094), tendo sido notificado o Sr. Administrador da Insolvência para se pronunciar, o que fez (ref.ª
5.- Por despacho de 03-12-2018 foi declarado encerrado o processo (ref.ª 139343177 do processo principal).
6.- Por despacho de 07-10-2019, foi determinada a criação do Incidente de Qualificação da Insolvência (ref.ª 142521046).
7.- Por despacho de 06-01-2020 – em termo de conclusão desta data - foi declarado aberto o presente Incidente com carácter limitado (ref.ª 143481419 deste Apenso).
Como se torna evidente, o despacho que declara aberto o incidente de qualificação da insolvência (06-01-2020) é posterior ao despacho de encerramento do processo (03-12-2018), porém, incide sobre requerimento apresentado nos autos, tempestivamente, em 05-02-2018, quando o relatório foi apresentado nos autos em 15-01-2018 e notificado aos credores em 12-04-2018.
A significar que, pese embora o despacho de encerramento anterior, o incidente de qualificação de insolvência, embora ainda não formalizado em apenso, já se encontrava em curso tendo início em 05-02-2018, servindo as notificações que se lhe seguiram, para sustentar a declaração de abertura do incidente subsequente, e tanto assim, que no dito despacho não se deu cumprimento ao disposto no n.º 6 do art. 233.º, não tendo sido declarado o carácter fortuito da insolvência.
Ademais, a legislação acautela os termos do prosseguimento do incidente de qualificação de insolvência nos casos em que o processo é encerrado (cfr. arts. 39.º, 233.º, n.º 5, e 191.º, todos do CIRE), pelo que não se vislumbra a estanquicidade jurídica que a Oponente pretende assinalar.
Termos em que não se declara a extinção do presente Incidente, por extemporaneidade.”

Realizado o julgamento, foi proferida sentença na qual se decidiu julgar procedente o incidente e, em consequência:
A)-Qualifico como culposa a insolvência de R., Lda., NIPC …, com sede na Rua …..
B)-Declaro afectados pela referida qualificação, PR e JC;
C)-Decreto a inibição de PR para administrar patrimónios de terceiros, por um período de 2 (dois) anos;
D)-Decreto a inibição de JC  para administrar patrimónios de terceiros, por um período de 3 (três) anos;
E)-Declaro PR inibido para o exercício do comércio, bem como para a ocupação de qualquer cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de actividade económica, empresa pública ou cooperativa, durante um período de 2 (dois) anos;
F)-Declaro JC inibido para o exercício do comércio, bem como para a ocupação de qualquer cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de actividade económica, empresa pública ou cooperativa, durante um período de 3 (três) anos;
G)-Condeno PR e JC a indemnizarem os credores da sociedade devedora em montante a liquidar em execução de sentença, nos termos do n.º 4 do art. 189.º do CIRE, até ao montante máximo dos créditos não satisfeitos, considerando a força do seu património;
H)-Absolvo RR do pedido contra si formulado.
Custas do incidente a cargo dos afectados pela qualificação – art. 303.º do CIRE.

Inconformados com o assim decidido, vieram os afectados PR e JC interpor recurso de apelação, em cujas alegações formularam as seguintes conclusões:

A.–O erro estruturante do despacho recorrido de 04.07.2022, proferido em sede de despacho saneador, na análise/decisão da invocada extemporaneidade foi ter atendido, não à decisão de 06.01.2020 que declarou aberto este incidente (como devia), mas sim ao requerimento do Ministério Público de 05.02.2018 que requereu a abertura de incidente de qualificação da insolvência: constatando que esse requerimento foi tempestivamente apresentado e que o despacho recorrido se limitou a decidir o que aí vinha peticionado, concluiu-se pela tempestividade deste despacho. No entanto, as razões que vinham invocadas e o regime legal a que se apela não têm que ver com a tempestividade desse Requerimento do Ministério Público: têm exclusivamente que ver com o despacho de 06.01.2020 que declarou aberto este incidente.

B.–Assim, o despacho recorrido não conheceu nem decidiu a questão invocada (extemporaneidade do despacho de 06.01.2020 que declarou aberto este incidente) mas sim outra (tempestividade do requerimento do Ministério Público de 05.02.2018 que requereu a abertura de incidente de qualificação da insolvência, decidido no despacho de 06.01.2020), pelo que, para além do mais, é nulo por omissão de pronúncia.

C.–O presente apenso de qualificação da insolvência foi declarado aberto em 06.01.2020. Ora, nos termos do art. 188, nº 1, do CIRE, o Incidente de qualificação da Insolvência deve ser declarado aberto nos 25 dias (15 + 10) após a junção aos autos do Relatório a que se refere o art. 155 do CIRE. Considerando que o Relatório do art. 155 do CIRE foi apresentado em 15.01.2018 (tendo sido dispensada a assembleia de apreciação do mesmo) e que o Processo de Insolvência a que este incidente é apenso foi declarado encerrado no final do ano de 2018 (cfr. anúncio de 05.12.2018), temos de concluir que o presente incidente é manifestamente extemporâneo, assim devendo ser julgado, o que conduzirá à sua extinção.

D.–Ainda que se entenda que o prazo referido no citado art. 188, nº 1, do CIRE (25 dias = 15 + 10), é um prazo meramente ordenador, admitindo-se a abertura do incidente da qualificação da insolvência em momento posterior se os elementos necessários para o efeito só tiverem sido conhecidos posteriormente, o limite temporal para a abertura do incidente de qualificação será sempre o encerramento do processo de insolvência: isto é, o despacho que declara aberto o incidente de qualificação da insolvência não pode ser proferido após o encerramento do processo de insolvência.

E.–Importa ter presente que os motivos que levam alguma jurisprudência dos nossos Tribunais a considerar o prazo do art. 188, nº 1, do CIRE como um prazo com natureza ordenadora prendem-se com (i) a consideração de os interesses públicos subjacentes ao preceito não se compadecerem com a possibilidade de deixar o exercício da qualificação da insolvência totalmente dependente da diligência do administrador ou de outros interessados, no cumprimento do referido prazo e, também, (ii) com a complexidade dos factos habitualmente em causa nestas situações de insolvência, que leva frequentemente a que os factos relevantes para a utilização do instituto da qualificação da insolvência só sejam conhecidos ao longo do processo de insolvência e da atividade do administrador da insolvência, o que poderia razoavelmente inviabilizar o cumprimento do prazo aqui em causa.

F.–Ora, no caso que nos ocupa, importa constatar o seguinte: (i) conforme refere a própria Mmª Juiz a quo no despacho recorrido, o despacho de encerramento do processo foi proferido em 3 de dezembro de 2018, isto é, mais de um ano antes da abertura do presente incidente de qualificação; (ii) os factos alegados pelo requerente da qualificação da insolvência como culposa não são factos novos, são, aliás, factos conhecidos desde o início do processo de insolvência; e (iii) o próprio Administrador de Insolvência já se tinha pronunciado em Maio de 2018 no sentido de esta insolvência dever ser qualificada como fortuita (cfr. Parecer apresentado neste apenso pelo Sr. Administrador de Insolvência em 27.01.2020).

G.–Deste modo, o incumprimento do prazo do art. 188, nº 1, do CIRE, não se deveu à complexidade da insolvência ou dos factos que poderiam relevar para a qualificação da insolvência, mas sim à inércia (certamente explicável) do Tribunal na declaração de abertura deste incidente, pelo que, no caso que nos ocupa, a admissão deste incidente de qualificação de insolvência 13 meses após o encerramento do processo de insolvência e sem factos novos que o suportem configura uma evidente violação deste preceito e dos princípios estruturantes da certeza e da segurança jurídicas, devendo, em consequência, ser revogado o douto despacho recorrido, determinando-se a extemporaneidade do presente incidente, com a consequente extinção do mesmo e demais consequências legais.

H.–Quanto à sentença recorrida, não ficaram provados quaisquer factos concretos que permitam a qualificação da insolvência como culposa, ou seja, que a situação de insolvência tenha sido criada ou agravada nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência, sendo que o período temporal relevante para esse efeito situa-se entre 14.11.2014 e 14.11.2017.

I.–Lendo o teor da sentença recorrida, chama desde logo a atenção o facto de nela vir mencionados os números 2 e 3 do art. 186 do CIRE, mas não o seu número um, sendo este o seu principal vício, ou seja, a desconsideração dessa regra.

J.–Mesmo recorrendo às afirmações conclusivas que resultam da sentença, é manifesto que não foi respeitado o balizamento temporal do número um do art. 186 do CIRE.

K.–A norma em causa tem uma baliza temporal perfeitamente definida: a situação de insolvência tem de ser criada ou agravada nos últimos três anos, sendo que o número dois, quer o número três da norma em questão estão delimitados pela baliza temporal estabelecida no seu número um.

L.–Ora, a empresa requerida está totalmente inativa desde o ano de 2013, sendo que o encerramento da mesma se deveu à crise económica e financeira, que também afetou o setor da mediação imobiliária.

M.–E dos factos provados, não resulta que tenha sido praticado qualquer ato relacionado com o seu objeto social de mediação imobiliária desde essa altura e muito menos que os gerentes recorrentes tenham praticado qualquer ato que tenha criado ou agravado a situação de insolvência da sociedade depois do encerramento da atividade da empresa em 2013.

N.–Pois é manifesto que, senão antes, pelo menos em 2013, a situação de insolvência da empresa estava verificada e consolidada, como, aliás, reconhece a Mmª Juiz a quo na sentença (facto sob o), pelo que não estão preenchidos os pressupostos temporais previstos no número um do art. 186 do CIRE, e, portanto, a insolvência não pode considerar-se culposa.

O.–Quanto à eventual aplicação da alínea i), do nº 2, do art. 186 do CIRE, afetando apenas o recorrente JC, resulta provado que o Senhor Administrador da Insolvência remeteu uma única carta, datada de 24.11.2017 a cada um dos gerentes, tendo o recorrente JC recebido tal missiva, mas não respondeu à mesma, tendo sido esse único facto, a não resposta a essa carta, o que levou a que a Mmª Juiz a quo considerasse que o mesmo, embora não sendo gerente de facto, mas apenas de direito, incumpriu, de forma reiterada, os seus deveres de apresentação e de colaboração.

P.–Existe desde logo um facto irrefutável que faz com que o recorrente JC nunca possa ser legalmente considerado culpado pelo referido incumprimento, que é a data da carta que lhe foi remetida pelo Sr. Administrador de Insolvência, 24-11-2017, pois a mesma encontra-se já fora do período temporal delimitado e previsto no número um do art. 186 do CIRE.

Q.–Acresce que ficou provado que o recorrente JC só recebeu aquela carta e não teve mais nenhum pedido de contacto por parte do Sr. Administrador de Insolvência, como o próprio admitiu no seu depoimento, quando refere que, neste caso, não fez novas tentativas de contacto com os gerentes, conforme consta da motivação dos factos sob j), k), l) e m).

R.–Ora, tal facto demonstra inequivocamente que não existiu neste caso um incumprimento, de forma reiterada, dos deveres de colaboração por parte do recorrente JC.

S.–Pois, segundo o entendimento perfilhado por esse Tribunal da Relação, exige-se que o incumprimento dos deveres de apresentação e colaboração seja reiterado, isto é, repetido ou renovado, que se repita mais do que uma vez, na sequência de mais do que uma solicitação.

T.–Ora, está provado que o recorrente JC só recebeu uma única solicitação – a carta de 24-11-2017 - para entrega da documentação referente à contabilidade da Requerida R., Lda, que, aliás, estava entregue e na posse da sociedade T., Unipessoal, Lda. e que não recebeu mais qualquer solicitação para colaborar por parte do A.I.

U.–Ora, o incumprimento do dever de colaboração só qualifica a insolvência como culposa se for reiterado (cfr. art.º 186.º, n.º 2, al. i) do CIRE), facto que nem sequer é alegado - e ainda menos demonstrado - pelo Ministério Público, pois limitou-se a referir, em termos vagos e genéricos, “que não houve colaboração com o Exmo. AI”. Além disso, tal incumprimento apenas conduziria à qualificação da insolvência como culposa no caso de existir nexo de causalidade com a situação de insolvência, facto que também não é alegado - e ainda menos demonstrado - pelo mesmo Ministério Público (cfr. vista de 04.06.2019 e parecer de 25.05.2020).

V.–Assim, como o ónus da prova cabe a quem imputa a insolvência como culposa, neste caso, apenas e só, ao Ministério Público, fica claramente manifesto que não o conseguiu lograr, até porque não alegou nem demonstrou, por inexistência absoluta de factualidade, que tal situação aconteceu.

W.–Vemos assim que, ao contrário do que defende a sentença recorrida, não estão preenchidos os pressupostos da situação indicada, nos termos do art. 186 nº 1 e da alínea i) do número 2 do art. 186 do CIRE.

X.–Mas o mesmo sucede no que se refere à aplicação da alínea a) do nº 3 do art. 186 do CIRE, aos recorrentes JC e PR.

Y.–Quem imputa a insolvência, ou seja, o Ministério Público, terá de provar a verificação da situação referida nessa alínea do número três do art. 186, bem como o nexo de causalidade entre a mesma e a criação ou agravamento do estado de insolvência, podendo os afetados pela insolvência, neste caso, os recorrentes, fazer prova para afastar a sua culpa grave.

Z.–Ora, o Ministério Público, no seu requerimento de abertura do presente incidente de qualificação, limitou-se a dizer, de forma genérica e conclusiva, que vem requerer esse incidente com “fundamento no facto da insolvente ter encerrado a sua atividade em 2013 sem se ter apresentado à insolvência”.

AA.–Ou seja, não alega nem prova a existência de qualquer nexo de causalidade entre a omissão de apresentação à insolvência em 2013 e a criação ou o agravamento dessa situação de insolvência, até porque, segundo o que alegou no seu parecer de 25.05.2020: “pelo menos desde 2013 que a requerida se encontrava em insolvência técnica”.

BB.–No entanto, a Mmª Juiz a quo, considerou que: ”de 2014 a 2017 – constituíram-se créditos tributários, que respeitam ao incumprimento de obrigações declarativas fiscais e que, independentemente da natureza dos créditos e da razão da sua constituição, facto é que ocorre aumento do passivo na esfera jurídica da sociedade e que a não apresentação tempestiva à insolvência fez agravar a situação de insolvência face ao acentuar do desequilíbrio entre activo/liquidez/passivo, assim se verificando o nexo de causalidade.”

CC.–Ora, tendo ficado provado que a sociedade está totalmente inativa e encerrada desde 2013, que não praticou desde essa altura qualquer negócio ou outro ato relacionado com a sua atividade de mediação imobiliária e que não existe qualquer património, para além dos bens móveis que estavam na sua sede, em 2013, é evidente que a contabilidade posterior eventualmente existente da sociedade devedora a declarar à Autoridade Tributária seria algo vazio e irrelevante, ou seja, passaria por apresentar declarações fiscais a zeros.

DD.–Ficou ainda provado que a contabilidade da requerida estava entregue à sociedade T., Unipessoal, Lda., a qual, em virtude de dívida, pela requerida, de remuneração pelos serviços de contabilidade prestados, deixou de cumprir com as comunicações e obrigações fiscais, nomeadamente com a declaração de cessação de atividade, sendo essa a única razão para a existência desses “créditos fiscais”.

EE.–Ora, essa falta de apresentação das declarações periódicas por parte dessa empresa de contabilidade era do perfeito desconhecimento dos recorrentes, pois, conforme consta dos autos, eles deixaram de ter qualquer contacto e entraram em rutura com a mesma, por vontade desta, que nada lhes disse acerca do incumprimento dessas obrigações fiscais, sendo que essa conduta omissiva da T foi feita sem o conhecimento, consentimento e à total revelia da sociedade e dos seus gerentes.

FF.–Por outro lado, não se pode considerar no caso em apreço que estejamos perante um verdadeiro aumento do passivo da empresa, pois, como a própria Mmª Juiz a quo refere, esses créditos respeitam apenas e tão só ao incumprimento de obrigações declarativas formais perante o Fisco, ou seja, não são “verdadeiros impostos” devidos à Autoridade Tributária, pois não correspondem a liquidações reais, sobre transações comerciais e rendimentos reais, que não existem, pelo menos desde 2013.

GG.–É que, não tendo tido a sociedade qualquer atividade desde 2013 e inexistindo desde então qualquer facto tributário, as liquidações operadas posteriormente estão relacionadas com liquidações oficiosas de IVA e de IRC (e respetivas coimas e encargos), contrárias, inclusivamente, ao princípio constitucional da tributação sobre o rendimento real (cfr. art.º 104.º, n.º 2 da Constituição da República Portuguesa).

HH.–Liquidações essas que, por serem oficiosas, são igualmente totalmente alheias à sociedade insolvente e/ou aos seus gerentes, pelo que nunca poderia delas resultar qualquer atuação, dolosa ou com culpa grave, dos mesmos e ainda menos, que tivesse agravado a situação de insolvência.

II.–Mas mesmo que se considere que existe aumento de passivo, concretamente, no valor de €15.555,65 no período em causa, por via da falta de entrega dessas declarações periódicas, que teriam de ser obrigatoriamente entregues a zeros, ou das liquidações oficiosas efetuadas pela própria AT, esse facto, por si só, não pode levar necessariamente a concluir-se que existe um agravamento da situação de insolvência.

JJ.–Pois, igualmente, segundo o entendimento perfilhado por esse Tribunal da Relação, não basta o aumento do passivo para se considerar verificado o nexo de causalidade entre o incumprimento do dever de apresentação à insolvência e o agravamento da situação de insolvência.

KK.–Assim, para além do suposto aumento do passivo, que até pode ser elevado, têm de existir obrigatoriamente outros elementos concretos, da responsabilidade objetiva dos gerentes, para se considerar verificado esse nexo de causalidade, como pode ser por exemplo, o agravamento da situação de impossibilidade de cumprimento das obrigações vencidas por parte da devedora.

LL.–Ora, neste caso concreto, constata-se que não existe de todo esse risco de agravamento da impossibilidade da devedora poder cumprir com as suas obrigações vencidas perante os seus credores, por força desse aumento de passivo e do eventual acentuar do desequilíbrio entre ativo/liquidez/passivo, mencionado pela Mmª Juiz a quo.

MM.–E manifestamente não existe pela simples razão de esse eventual aumento do passivo não colocar minimamente em causa a proteção dos credores, que continua a ser a mesma e também não há qualquer risco da diminuição do património social da sociedade.

NN.–Concretizando, a proteção dos credores mantém-se a mesma desde 2013, data de encerramento da atividade da empresa e não se agravou desde então, pois a sociedade deixou igualmente de ter qualquer património desse essa altura, pelo que também não existe esse risco de diminuição de património, porque simplesmente ele já não existe desde 2013.

OO.–Ressalta ainda um outro elemento decisivo para a boa decisão deste incidente, que é o facto da Jurisprudência considerar que não se pode concluir pela culpa grave do gerente da insolvente (e que este logrou ilidir a presunção juris tantum que sobre ele recaia), quando se mostra que a insolvência resultou de fatores económicos alheios à sua vontade.

PP.–Ora, ficou provado, que o encerramento da atividade da sociedade devedora deveuse, nomeadamente, à crise económica e financeira que afectou, entre outros sectores, a mediação imobiliária (facto sob p).

QQ.–E que não existiu má gestão ou gestão dolosa por parte dos gestores recorrentes, pois não ficou provado nos autos que os mesmos tenham destruído, danificado, inutilizado, ocultado, ou feito desaparecer, no todo ou em parte considerável, o património do devedor e/ou disposto dos bens do devedor em proveito pessoal ou de terceiros (alíneas a) e d) do nº 2 do art. 186 do CIRE), ao contrário do que defendia o Ministério Público.

RR.–Pelo que a única conclusão lógica e razoável a que se pode chegar, devidamente comprovada pela fundamentação de facto da sentença recorrida, é que a insolvência da sociedade se deveu a razões económicas externas, totalmente independentes e alheias à vontade dos gerentes e que estes nunca poderiam nem conseguiriam contrariar as mesmas na sua gestão normal e corrente da empresa.

SS.–Pelo que, face ao atrás referido e, por maioria de razão, os recorrentes conseguiram ilidir a presunção de culpa grave prevista na alínea a) do nº 3 do art. 186 do CIRE, o que se invoca, para todos os efeitos legais.

TERMOS em que deve ser concedido provimento ao presente recurso, revogando-se a decisão recorrida e substituindo-a por outra que julgue não provado e improcedente o incidente da qualificação da insolvência, não a qualificando como culposa, mas antes como fortuita, absolvendo os recorrentes do pedido, com todas as consequências legais, assim se fazendo a devida JUSTIÇA.

O M.P. apresentou contra-alegações, nos quais formulou as seguintes conclusões:

a)-O Ministério Público apresentou requerimento de abertura de incidente de qualificação da insolvência, em 05-02-2018;

b)-Nessa data a abertura do incidente era atempada;

c)-É irrelevante que apenas em 2020 tenha sido declarado aberto o incidente;

d)-O prazo do art.º 188.º, do CIRE, dirige-se aos intervenientes processuais e não ao Tribunal;

e)-A douta sentença não desconsiderou a regra temporal prevista no art.º 186.º, n.º1, do CIRE;

f)-Com efeito, foi dado como provado que as dívidas fiscais se foram vencendo até 2017, agravando o passivo;

g)-A falta de colaboração legalmente exigida ao Recorrente inicia-se em 2017 e prolonga-se até 2020, face à notificação da sentença de insolvência, das posteriores notificações nos autos e da missiva do AI em 2017 a ele dirigida;

h)-A contabilidade depois de 2013 nunca seria algo de “vazio e irrelevante” quando sabemos que a empresa tinha património mobiliário, não tinha feito cessar a sua atividade na AT e, consequentemente, teria (como teve) impostos presumidos e processos contraordenacionais pelo não cumprimento das suas obrigações fiscais;

i)-Não pode o gerente de direito desonerar-se dos seus deveres enquanto tal apenas porque celebrou um contrato de prestação de serviços com uma empresa de contabilidade;

j)-O MºPº não tem o ónus da prova da culpa grave e do nexo causal entre o incumprimento e o agravamento da situação de insolvência porque beneficia de uma presunção jure et de jure;

l)-Não é verdade que o agravamento do passivo seja apenas assente em liquidações oficiosas, porquanto da certidão fiscal resulta que existiram inúmeros processos fiscais contraordenacionais instaurados, cujas datas de vencimento se prolongam até 8/9/2017;

m)-Isto é, porque o Recorrente não fez cessar a sua atividade junto da AT esta teve os custos acrescidos relacionados com a tramitação das liquidações oficiosas e das contraordenações (estas devidas pela não apresentação atempada dos competentes documentos contabilísticos);

n)-Não é verdade que “esse eventual aumento do passivo não coloca minimamente em causa a proteção dos credores”;

o)-Parece inquestionável que a posição da credora AT ficou mais fragilizada, isto é, aumentou o passivo e teve uma atividade (contraordenacional) que não foi paga pela insolvente;

p)-Não foi provada que a causa da insolvência assente apenas em razões económicas externas, isso é mera especulação do Requerido que não recorreu da matéria de facto;

q)-Pelo que deverá concluir-se pela improcedência das conclusões das alegações de recurso e, por consequência, pela improcedência deste, com o que V. Exas. farão a costumada JUSTIÇA!

Por despacho do relator determinou-se a notificação das partes para, querendo, em 10 dias, se pronunciarem sobre a questãode saber se o requerimento para a abertura do incidente de qualificação da insolvência apresentado dia 5/02/2018 pelo MP foi deduzido no prazo legal de 15 dias a que alude o art. 188º, n.º 1, do CIRE e se esse prazo se conta desde a apresentação pelo AI do relatório a que alude o art. 155º (relatório apresentado dia 15/01/2018) ou da sua notificação aos credores (operada dia 12/04/2018)”, posto que “na decisão recorrida, a tempestividade da decisão de abertura do incidente foi feita decorrer, essencialmente, da tempestividade do requerimento do MP a peticionar a qualificação da insolvência como culposa, constituindo, por isso, esta um fundamento da decisão que desatendeu a questão da extemporaneidade da abertura do incidente de qualificação da insolvência”.

Veio então a Magistrada do MP dizer que reiterao que a esse propósito já se mostra alegado nas contra alegações de recurso produzidas na 1ª instância em 7/10/22 e 27/6/23”.

Colhidos os vistos, cumpre decidir.

*

II.–As questões a decidir resumem-se a saber:

- se a decisão recorrida de 4/07/2022 é nula, por omissão de pronúncia;

- se é caso de revogação dessa decisão, por extemporaneidade do requerimento para a abertura do incidente de qualificação da insolvência como culposa e do despacho que declarou a abertura deste;

- se, em caso de procedência do recurso da aludida decisão, tal importa a anulação da sentença recorrida;

- se é caso de revogar essa sentença, por não preenchimento dos pressupostos da qualificação da insolvência plasmados no art. 186º, n.ºs 1, 2, al. i) e 3, al. a) do CIRE.

*

III.–São os seguintes os factos considerados provados em 1ª instância:

a)-A requerida R., Lda. é uma sociedade comercial por quotas, que foi constituída em 28-03-2006, com o NIPC …, com sede social na Rua … e objecto social “Mediação Imobiliária”.

b)-Tem o capital social de € 5 000, 00, realizado em três quotas, uma no valor de € 3 150, 00, da titularidade de PR, outra, no valor de € 1 350, 00, da titularidade de JC e outra, no valor de € 500, 00, da titularidade de RR.

c)-O Requerido PR, NIF …, é seu gerente desde a data da constituição, a Requerida RR, NIF …, desde Outubro de 2008 e o Requerido JC, NIF …, desde Abril de 2011.

d)-A sociedade obriga-se com a intervenção de dois gerentes.

e)-O último acto registado data de 14-07-2012 e reporta-se a prestação de contas referente ao ano de 2011.

f)-Mediante petição inicial entrada em juízo em 14-11-2017, a Requerida R., Lda. apresentou-se à insolvência.

g)-Por sentença de 16-11-2017, transitada em julgado, foi declarada em estado de insolvência.

h)-Foram reconhecidos créditos no total de € 75 008, 95, incluindo à Autoridade Tributária no montante de € 35 498, 86, vencido 2012 a 2017 (IVA, IRC e coimas), sendo € 15 155, 65, vencido de 2014 a 2017, e ao ISS, IP, no montante de € 2 043, 03, vencido de Julho de 2012 a Março de 2013 (contribuições), sendo que os restantes créditos reconhecidos - Lisgarante, NOS, Novo Banco, S.A., Cabot Securization - venceram-se, na generalidade, em 2012 e 1.º trimestre de 2013.

i)-Por despacho de 30-05-2022, no processo principal, foi declarado encerrado o processo, por insuficiência de bens, nos termos do art. 232.º do CIRE.

j)-Por cartas registadas, com aviso de recepção, datadas de 24-11-2017, endereçadas, respectivamente, a JC, a RR e a PR, o Sr. Administrador da Insolvência solicitou a entrega da documentação referente à contabilidade da Requerida R., Lda..

k)-O Requerido JC recebeu a referida carta e não respondeu.

l)-As cartas remetidas aos Requeridos RR e PR foram devolvidas ao remetente com a menção “Objecto Não Reclamado” e “Não Atendeu”.

m)-A carta endereçada ao Requerido PR foi remetida para a morada fixada na sentença declaratória de insolvência: “Rua …. Lisboa”.

n)-Em Novembro de 2017, o Requerido PR já não residia na referida morada, por se encontrar separado de facto da sua ex-mulher, a aqui Requerida RR, desde 2012.

o)-A Requerida sociedade encerrou a actividade em 2013.

p)-O referido encerramento deveu-se, nomeadamente, à crise económica e financeira que afectou, entre outros sectores, a mediação imobiliária.

q)-As dívidas tributárias contraídas após 2013 advêm do incumprimento, pela sociedade insolvente, da obrigação de entrega das declarações periódicas (IVA e IRC).

r)-A contabilidade da Requerida estava entregue à sociedade T., Unipessoal, Lda., a qual, em virtude de dívida, pela Requerida, de remuneração pelos serviços de contabilidade prestados, deixou de cumprir com as comunicações e obrigações fiscais.

s)-A sociedade Requerida era proprietária do material de escritório (impressoras e telefones) que se encontrava na sua sede e que aqui permaneceu aquando da entrega, em 2013, das instalações ao senhorio.

t)-O Requerido PR praticava, em exclusividade, os actos de gestão corrente da sociedade e tomada de decisões relacionadas com a actividade comercial da mesma, sem intervenção dos Requeridos JC e RR.

u)-A Requerida RR só foi designada como gerente da Requerida sociedade por necessidade para a obtenção da ligação à rede Remax, dado ser exigido que um dos gerentes fosse licenciado, o que era o seu caso.

v)-A Requerida esteve sempre ausente da gerência e dos assuntos da sociedade, desde sempre e, em especial, após a separação de facto do ex-cônjuge, o Requerido PR, desde 2012.

w)-Os Requeridos RR e PR casaram em 1998 e divorciaram-se em Abril de 2015.

x)-O Sr. Administrador da Insolvência apresentou o parecer da qualificação da insolvência, em 26-02-2020.

Facto considerado não provado em 1ª instância:

1.–Os Requeridos apropriaram-se de quantias descontadas no vencimento dos trabalhadores, que não entregaram à Segurança Social.

*

IV.–Do mérito do recurso:

O presente recurso incide sobre a decisão proferida dia 4/07/2021 e sobre a sentença proferida nos autos que qualificou a insolvência como culposa.

Do recurso da decisão de 4/07/2022:

Da questão da nulidade, por omissão de pronúncia, do despacho recorrido:

Decorre do disposto nos arts. 613º, n. 3, e 615º, n.º d) do CPC que a decisão é nula quando o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar.

Ora, na decisão recorrida conheceu-se do pedido de extinção do incidente de qualificação da insolvência como culposa formulado pela gerente da insolvente RR na oposição que deduziu a esse incidente.

Sustentou esta que o despacho de 6/01/2020 que declarou aberto o incidente foi  proferido fora dos prazos previstos na lei [nos 25 dias (15 + 10) após a junção aos autos do Relatório a que se refere o art. 155º do CIRE] e que, em qualquer caso, o limite para a abertura do incidente de qualificação será sempre o encerramento do processo de insolvência e este ocorreu dia 3/12/2018.

Na decisão recorrida decidiu-se: “(…) não se declara a extinção do presente Incidente, por extemporaneidade.”

Nessa decisão conheceu-se, pois, do pedido formulado, sendo que o assim decidido afecta, directamente, não só a requerente RR, mas também os demais gerentes afectados pelo incidente de qualificação da insolvência como culposa.

E são estes últimos quem, na apelação, impugna o decidido, dizendo que o erro estruturante do despacho recorrido de 04.07.2022, foi ter atendido, não à decisão de 06.01.2020 que declarou aberto este incidente, mas sim ao requerimento do Ministério Público de 05.02.2018 que requereu a abertura de incidente de qualificação da insolvência, não tendo assim o despacho recorrido conhecido e decidido a questão da extemporaneidade do despacho de 06.01.2020 - conclusões A) e B).

Não assiste razão aos apelantes.

Efectivamente, no despacho recorrido fundamenta-se a decisão dizendo, além do mais, que “o despacho que declara aberto o incidente de qualificação da insolvência (06-01-2020) é posterior ao despacho de encerramento do processo (03-12-2018), porém, incide sobre requerimento apresentado nos autos, tempestivamente, em 05-02-2018, quando o relatório foi apresentado nos autos em 15-01-2018 e notificado aos credores em 12-04-2018”.

Ou seja, nessa decisão fundamenta-se o indeferimento da requerida extinção do incidente na circunstância do mesmo ter sido deduzido tempestivamente, ainda que a decisão que o declarou aberto seja posterior ao encerramento dos autos de insolvência, afirmando-se que “a legislação acautela os termos do prosseguimento do incidente de qualificação de insolvência nos casos em que o processo é encerrado (cfr. arts. 39.º, 233.º, n.º 5, e 191.º, todos do CIRE), pelo que não se vislumbra a estanquicidade jurídica que a Oponente pretende assinalar”.

Deste modo, a situação que se verifica é que na decisão recorrida não foram atendidas as razões aduzidas pela oponente RR nos moldes propugnados por esta, e que os ora apelantes reiteram, mas tal não inquina a decisão com o vício da nulidade, podendo, quanto muito, a mesma enfermar de erro de julgamento, questão de que adiante conheceremos.

Por este conjunto de razões, desatende-se a arguida nulidade da decisão recorrida.

Da questão da eventual extemporaneidade do requerimento/decisão que declarou aberto o incidente de qualificação da insolvência:
Esse incidente, nos termos em foi declarado aberto – na respectiva decisão alude-se ao artigo 188.º, n.º 2, do CIRE, ex vi artigo 191.º, n.º 1 do mesmo diplomaconsubstancia a abertura de um incidente de qualificação com carácter limitado, pois que à data da prolação desse despacho já tinha sido declarado encerrado o processo de insolvência por insuficiência da massa, nos termos do art. 232, n.º 2, do CIRE.
Acontece que, em data anterior à do encerramento do processo de insolvência (3/12/2018), o MP havia requerido (5/02/2018) a abertura do incidente de qualificação da insolvência como culposa, com carácter pleno, sem que, todavia, tivesse sido proferida decisão nesse sentido antes daquele encerramento.
E é, essencialmente, com base nesse facto que os apelantes propugnam pela extemporaneidade do despacho que declarou aberto o incidente de qualificação, dizendo que ainda que se entenda que o prazo referido no art. 188, nº 1, do CIRE (25 dias = 15 + 10) é um prazo meramente ordenador, o limite temporal para a abertura do incidente de qualificação será sempre o encerramento do processo de insolvência (conclusão D)).
Vejamos.
A decisão recorrida decidiu não declarar a extinção do presente Incidente, por extemporaneidade”, aduzindo-se na mesma a seguinte fundamentação:
“(…)
O art. 188.º, n.º 1, do CIRE, na redacção vigente à data e anterior à conferida pela Lei n.º 9/2022, de 11-011 , prevê que até 15 dias após a assembleia de apreciação do relatório, ou no caso de dispensa da realização desta, após a junção aos autos do relatório a que se refere o art. 155.º do CIRE, o administrador da insolvência ou qualquer interessado pode apresentar o requerimento de abertura do incidente de qualificação da insolvência, cabendo ao juiz conhecer dos factos alegados e, se o considerar oportuno, declarar aberto o incidente de qualificação da insolvência, nos 10 dias subsequentes.
 (…)
Como se torna evidente, o despacho que declara aberto o incidente de qualificação da insolvência (06-01-2020) é posterior ao despacho de encerramento do processo (03-12-2018), porém, incide sobre requerimento apresentado nos autos, tempestivamente, em 05-02-2018, quando o relatório foi apresentado nos autos em 15-01-2018 e notificado aos credores em 12-04-2018. (sublinhado nosso)
A significar que, pese embora o despacho de encerramento anterior, o incidente de qualificação de insolvência, embora ainda não formalizado em apenso, já se encontrava em curso tendo início em 05-02-2018, servindo as notificações que se lhe seguiram, para sustentar a declaração de abertura do incidente subsequente, e tanto assim, que no dito despacho não se deu cumprimento ao disposto no n.º 6 do art. 233.º, não tendo sido declarado o carácter fortuito da insolvência.
Ademais, a legislação acautela os termos do prosseguimento do incidente de qualificação de insolvência nos casos em que o processo é encerrado (cfr. arts. 39.º, 233.º, n.º 5, e 191.º, todos do CIRE), pelo que não se vislumbra a estanquicidade jurídica que a Oponente pretende assinalar.
Termos em que não se declara a extinção do presente Incidente, por extemporaneidade.”

Na apelação, os recorrentes manifestam o seu inconformismo quanto ao decidido, mas as conclusões recursivas não são claras quanto a saber se aqueles pretendem impugnar a fundamentação vertida na decisão recorrida, quando nesta se concluiu pela tempestividade do requerimento para a abertura do incidente de qualificação da insolvência formulado pelo MP.
Com efeito, em primeira linha, os recorrentes, tal como já o havia feito a requerente RR, fazem derivar a extemporaneidade do incidente de qualificação da insolvência da circunstância deste ter sido declarado aberto já depois do encerramento do processo de insolvência – conclusão C).
Todavia, os mesmos parecem também (vide conclusão D)) fazer decorrer, ainda que de modo implícito, a extemporaneidade do incidente da circunstância do despacho de abertura do incidente ter sido prolatado para além do prazo previsto no art. 188, nº 1, do CIRE (25 dias = 15 + 10), sendo que os referidos 15 dias (a contar da data da apresentação do relatório a que alude o art. 155º do CIRE) mais não são do que o prazo previsto na lei para o administrador ou qualquer outro interessado requerer essa abertura.
Seja como for, face ao teor da decisão recorrida, esta não é passível de ser segmentada em duas decisões distintas: uma a considerar tempestivo o requerimento para a abertura do incidente e outra a considerar tempestivo o despacho de abertura desse mesmo incidente.
Com efeito, no despacho recorrido, a tempestividade da decisão de abertura do incidente foi feita decorrer, essencialmente, da tempestividade do requerimento do MP a peticionar a qualificação da insolvência como culposa, constituindo, por isso, este o principal fundamento da decisão que desatendeu a questão da extemporaneidade da abertura do incidente de qualificação da insolvência.
Conclui-se, pois, que os recorrentes, nas conclusões da alegação, não restringiram o objecto do recurso à “questão” da extemporaneidade do despacho que declarou a abertura do incidente de qualificação.
De resto, dada a ligação intrínseca de ambas as “questões” abordadas na decisão recorrida, na apelação não poderá deixar de estar em causa a reapreciação de ambas, como um todo, não se tendo, pois, consolidado no processo ter sido tempestivamente apresentado pelo MP o requerimento para a abertura do incidente de qualificação da insolvência.
Importa, assim, a este Tribunal da Relação apreciar todos os fundamentos em que assentou a decisão recorrida.

Como se assinalou na decisão recorrida, prolatada dia 4/07/2021, o art. 188º, n.º 1, do CIRE, na redacção então vigente, dispunha que até 15 dias após a assembleia de apreciação do relatório ou, no caso de dispensa da realização desta, após a junção aos autos do relatório a que se refere o art. 155.º, o administrador da insolvência ou qualquer interessado pode apresentar o requerimento de abertura do incidente de qualificação da insolvência, cabendo ao juiz conhecer dos factos alegados e, se o considerar oportuno, declarar aberto o incidente de qualificação da insolvência, nos 10 dias subsequentes.
Ora, na sentença declaratória da insolvência decidiu-se dispensar a realização da Assembleia de Apreciação do Relatório a que alude o art.º 156.º, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas – ponto 10º do dispositivo.
Mais se decidiu que: Caso não venha a ser designada data para realização de assembleia de apreciação do relatório (cfr. art.º 36.º, nº 3, do CIRE), deverá o Sr. Administrador da Insolvência apresentar nos autos o relatório a que alude o art.º 155.º do CIRE entre 45 a 60 dias contados da data da presente sentença”.
Esse relatório foi apresentado dia 15/01/2018 (no 60º dia posterior ao da prolação da sentença que declarou a insolvência) e não teve lugar a assembleia de apreciação do relatório, tendo os credores sido notificados do seu teor dia 12/04/2018 – ref.ª 137062570 e ss do processo principal, não constando dos autos ter o mesmo sido expressamente notificado ao M.P.
Porém, tendo esse relatório sido apresentado no prazo estabelecido na sentença declaratória da insolvência (ainda que no último dia), não pode deixar de se contar o prazo de 15 dias a que alude o art. 188º, n.º 1, citado, a partir da junção do mesmo aos autos e não da sua notificação aos interessados.
Esta interpretação do disposto no art.º 188º do CIRE não afronta o disposto no art.º 20º da Constituição (acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva).
Dispõe este artigo:
1. A todos é assegurado o acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos, não podendo a justiça ser denegada por insuficiência de meios económicos.
2. Todos têm direito, nos termos da lei, à informação e consulta jurídicas, ao patrocínio judiciário e a fazer-se acompanhar por advogado perante qualquer autoridade.
3. A lei define e assegura a adequada protecção do segredo de justiça.
4. Todos têm direito a que uma causa em que intervenham seja objecto de decisão em prazo razoável e mediante processo equitativo.
5.Para defesa dos direitos, liberdades e garantias pessoais, a lei assegura aos cidadãos procedimentos judiciais caracterizados pela celeridade e prioridade, de modo a obter tutela efectiva e em tempo útil contra ameaças ou violações desses direitos.
A Constituição garante assim a todos o direito de acesso aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente legítimos (n.º 1), através de um processo equitativo (n.º 4) e célere (n.º 5).
Como se escreveu no Acórdão do T, Constitucional n.º 251/2017:
«(…) o direito de acesso aos tribunais ou à tutela jurisdicional implica a garantia de uma proteção jurisdicional eficaz ou de uma tutela judicial efetiva, cujo âmbito normativo abrange nomeadamente: (a) o direito de ação, no sentido do direito subjetivo de levar determinada pretensão ao conhecimento de um órgão jurisdicional; (b) o direito ao processo, traduzido na abertura de um processo após a apresentação daquela pretensão, com o consequente dever de o órgão jurisdicional sobre ela se pronunciar mediante decisão fundamentada; (c) o direito a uma decisão judicial sem dilações indevidas, no sentido de a decisão haver de ser proferida dentro dos prazos preestabelecidos, ou, no caso de estes não estarem fixados na lei, dentro de um lapso temporal proporcional e adequado à complexidade da causa; (d) o direito a um processo justo baseado nos princípios da prioridade e da sumariedade, no caso daqueles direitos cujo exercício pode ser aniquilado pela falta de medidas de defesa expeditas»
(cfr. Acórdão n.º 839/2013).

No caso, a questão que se poderia colocar é a de saber se a fixação do prazo de 15 dias para a formulação de pedido de qualificação da insolvência como culposa traduz condicionamento desproporcionado do exercício do direito de acção, nas situações, como a presente, em que o acto que marca o início desse prazo (a junção aos autos do relatório a que alude o art.º 155º do CIRE) não foi notificado ao requerente (MP).

A resposta não poderá deixar de ser negativa.

Efectivamente, como assinala o Ac. TC n.º 609/2013:
A celeridade processual constitui uma dimensão do direito de acesso aos tribunais (cfr. artigo 20.º, n.º 5, da Constituição República Portuguesa) e, nessa medida, deve estar presente na configuração de todo e qualquer processo judicial. Da própria previsão constitucional decorre que a tutela jurisdicional dos direitos e interesses legalmente protegidos deve ser efetuada “mediante um processo equitativo” e cujos procedimentos possibilitem uma decisão em prazo razoável e sejam “caracterizados pela celeridade e prioridade, de modo a obter tutela efetiva e em tempo útil contra ameaças ou violações desses direitos”. Também o direito de acesso aos tribunais se encontra, pois, sujeito a regras ou condicionamentos procedimentais e a prazos razoáveis de ação ou de recurso.
Indispensável é que esses condicionamentos, designadamente ao nível dos prazos, não se revelem desnecessários, desadequados, irrazoáveis ou arbitrários, e que não diminuam a extensão e o alcance do conteúdo daquele direito fundamental. Relativamente ao regime normativo em presença cumpre notar, antes do mais, que a atribuição da natureza urgente atinge todo o incidente de qualificação da insolvência (…). Além disso, o reconhecimento da natureza urgente do processo implica, não apenas o encurtamento dos respetivos prazos, como também o seu processamento em período de férias e com prioridade sobre outros processos.
Tendo em conta os interesses em presença, deve concluir-se que existem motivos atendíveis que justificam a urgência do processo.
Como decorre do acima já consignado, todo este regime implementador da celeridade no procedimento de qualificação da insolvência encontra justificação bastante na finalidade visada pelo incidente em presença.
Não faria sentido que o processado destinado a classificar a natureza da insolvência, como culposa ou meramente fortuita, pudesse arrastar-se no tempo, em prejuízo, desde logo, dos credores e do devedor, dada a implicação que a classificação da insolvência como culposa tem na própria estabilização do colégio de credores e delimitação dos créditos a solver. Mas, o arrastar do procedimento implicaria também prejuízos para as próprias pessoas afetadas pela qualificação da insolvência como culposa, as quais têm, naturalmente, interesse em ver a sua situação definida, dadas as consequências que podem sofrer ao nível da sua situação profissional.
Acresce que o decurso do tempo corre contra a recolha e genuinidade da prova indispensável à qualificação da insolvência, para além de potenciar a dissipação do património garante do pagamento das dívidas.
Ora, no processo de insolvência a necessidade de celeridade assume especial intensidade por se repercutir na esfera jurídico-económica de um universo de sujeitos tendencialmente elevado (os credores da insolvência) o que torna ainda mais premente a tomada de medidas urgentes.
É o próprio regime especial do processo de insolvência que salvaguarda o interesse constitucionalmente tutelado consistente no direito à tutela jurisdicional efetiva dos vários sujeitos do processo, impondo ao legislador a adoção de procedimentos que, caracterizando-se pela celeridade e prioridade, possibilitem uma decisão em prazo razoável de modo a obter tutela efetiva, e em tempo útil, desses direitos.

São, pois, razões de celeridade que se encontram na base do estabelecimento do prazo de 15 dias para a dedução do incidente de qualificação da insolvência, a contar da junção aos autos do relatório a que alude o art.º 155º do CIRE e não da notificação aos interessados do teor desse relatório, impondo-se a estes o ónus de acompanhamento da marcha do processo, devendo, agindo com a diligência devida, estar atentos à sequência dos prazos, de molde a poderem deduzir, aquele incidente, em conformidade com o disposto no art.º 188º, n.º 1 do CIRE.
De resto, assinale-se que os interessados também não são notificados do relatório nos casos em que é designada data para a realização da assembleia de apreciação do relatório, sendo apenas notificados da data dessa diligência.
Assim, a fixação em 15 dias do prazo em análise, contado nos termos sobreditos, não se revela uma medida excessiva, desrazoável, desnecessária ou desproporcionada, posto que a mera notificação da sentença que declara a insolvência, imposta no artigo n.º 2 do artigo 37.º do CIRE, colocará qualquer interessado em perfeitas condições de determinar o termo inicial do prazo de 15 dias que dispõe para requerer o incidente de qualificação da insolvência: o termo final do prazo de 45 a 60 dias concedido ao administrador da insolvência para apresentar na secretaria do tribunal o relatório a que alude o art. 155º.
Só assim não seria se o relatório a que alude o art. 155º tivesse sido apresentado fora do prazo legal, caso em que se impunha a notificação do relatório aos interessados (vide Ac. TC 16/2018, no qual se julgou inconstitucional por violação do n.º 4 do artigo 20.º da Constituição, em conjugação com o n.º 2 do respetivo artigo 18.º, a norma extraída do n.º 1 do artigo 130.º do CIRE, de acordo com a qual o insolvente não deve ser notificado da lista de credores reconhecidos, quando essa lista for apresentada para lá do decurso do prazo que resulta do que tiver sido fixado na sentença que declarou a insolvência
Assim, aquele prazo de 15 dias conta-se desde a data da junção aos autos do relatório a que alude o art. 155º do CIRE (15/01/2018) e não da sua notificação.
Consequentemente, tal prazo terminou dia 30/01/2018.
Beneficiando, porém, o MP do acréscimo do prazo de três dias úteis a que alude o art. 139º, n.º 5, do CPC (vide neste sentido o Ac. STJ de 12/12/2023, proc. n.º  3410/21.6T8VNG-Q.P1.S1, António Barateiro Martins (relator), acessível em www.dgsi.pt, assim como os acórdãos adiante citados), esse prazo terminou dia 2/02/2018.
Consequentemente, o requerimento apresentado pelo MP no dia 5/02/2018 (ou seja, no 4º dia útil subsequente) a deduzir pedido de abertura do incidente de qualificação da insolvência como culposa foi apresentado fora do prazo estabelecido na lei.
Certo é que, à data, existia um dissenso na doutrina e na jurisprudência sobre se o prazo mencionado no art. 188º, n.º 1, do CIRE, tinha a natureza ordenadora ou peremptória.
Sustentavam uns que o Tribunal poderá apenas declarar aberto o incidente/apenso de qualificação da insolvência mediante iniciativa do administrador ou de qualquer interessado e nos termos e prazos (peremptórios e não meramente ordenadores) estipulados no artigo 188.º n.º 1 do CIRE.

Assim, no acórdão da Relação de Coimbra de 10.03.2015, proc. n.º 631/13.9TBGRD-L.C1, Maria Catarina Ramalho Gonçalves (Relatora) entendeu-se que:
Após as alterações introduzidas pela Lei nº 16/2012 de 20/04, “o referido incidente deixou de ter carácter obrigatório, sendo que a lei apenas prevê a sua abertura em duas situações e momentos: na sentença em que se declara a insolvência (situação em que é aberto oficiosamente pelo juiz, caso disponha, nesse momento, de elementos que o justifiquem) ou num momento posterior, se o juiz o considerar oportuno em face das alegações que, a propósito dessa matéria, sejam efectuadas pelo administrador da insolvência ou por qualquer interessado nos quinze dias subsequentes à realização da assembleia de apreciação do relatório (ou, tendo em conta o disposto no art. 36º, nº 4, nos quinze dias subsequentes ao 45.º dia subsequente à data da prolação da sentença de declaração da insolvência, caso não haja lugar à aludida assembleia)”.

Na mesma linha de entendimento, no Ac RG de 25 de Fevereiro de 2016, Proc. n.º 1857/14.3TBGMR-D.G1, Cristina Cerdeira (relatora), entendeu-se que não estáconsagrada legalmente a possibilidade de o juiz actuar oficiosamente no tocante à abertura do incidente de qualificação da insolvência, para lá do momento em que é proferida a sentença que declarou a insolvência”.
E que o prazo fixado no nº. 1 do art. 188º do CIRE “não é um prazo meramente regulador ou ordenador, porquanto o que aí está em causa é uma iniciativa processual - que pode ser exercida pelo Administrador da Insolvência ou por qualquer interessado – no sentido de desencadear a possível abertura do incidente de qualificação da insolvência e que apenas poderá ser admitida se for apresentada dentro do prazo que está fixado na lei”.

Esta interpretação das normas legais teve também acolhimento no Ac. da RG de 30 de Maio de 2018, proc. n.º 1193/13.2TBBGC-A.G1, José Fernando Cardoso Amaral-relator.
Assinalou-se aí:
“A Lei 16/2012 (…), querendo, por um lado, afastar a automaticidade e obrigatoriedade da declaração de abertura do incidente de qualificação da insolvência, pelo Juiz, na sentença, e condicioná-los à existência e verificação de elementos disponíveis no processo justificativos do seu desencadeamento, visou, por outro, e para contrabalançar essa limitação, conferir, quer ao administrador quer aos demais interessados, a possibilidade de, nos prazos cominados, aportarem dados ao processo, alegando, fundamentadamente, por escrito, em requerimento a autuar por apenso, o que – os factos, entenda-se – tiverem por conveniente para aquele efeito (qualificação como culposa) e de indicarem as pessoas que deverão ser afectadas, assim introduzindo uma dimensão caracteristicamente dispositiva (embora mitigada) na iniciativa deles.
Coerentemente, atribuiu ao juiz a possibilidade de, nesse segundo momento, ainda declarar aberto o incidente”.
“Daqui se retiram duas consequências incontornáveis:
-a primeira é de que, caso o prazo de 15 dias previsto no nº 1, do artº 188º, ou o de 45 dias previsto na alínea a), do nº 1, do artº 191º, decorram sem que o administrador ou qualquer interessado aleguem, fica precludido o direito de o fazerem.
-a segunda é de que, caso o juiz, na referida oportunidade e prazo, face ao requerido, não declare aberto o incidente, jamais, depois, poderá fazê-lo.
A lei não contempla outros”.

Outra corrente, que temos por maioritária, entendia que o prazo fixado no nº 1 do art. 188º do CIRE para o administrador da insolvência ou qualquer interessado requerer a qualificação da insolvência como culposa tem natureza ordenadora ou disciplinadora do processado e não se traduz num prazo peremptório ou preclusivo da prática daquele acto (neste sentido Luís A. Carvalho Fernandes e João Labareda, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, Quid Juris, 2015, págs. 687-688; Ac RP de 7.5.2019, proc. n.º 521/18.9T8AMT-C.P1 (Rodrigues Pires) e de 24 de Outubro de 2019, proc. n.º 393/19.6T8AMT-B.P1 (Carlos Portela); Ac. STJ de 13-07-2017, proc. n.º 2037/14.3T8VNG-E.P1.S2, João Camilo (Relator).

Neste acórdão do STJ assinala-se que:
“Este nosso entendimento apoia-se (…) no princípio do inquisitório previsto especialmente para o presente incidente no art. 11º que ao facultar ao juiz, neste tipo especial de incidente, a livre averiguação de factos, está a indiciar que os interesses prosseguidos pela lei nesta matéria em causa não podem ficar subordinados a regras estritas de natureza processual de preclusão ou de dependência da observação de apertados prazos de impulso dos intervenientes processuais.
O nosso entendimento fundamenta-se também nos interesses públicos subjacentes ao preceito do nº 1 do art. 188º que se não compadecem com a possibilidade de deixar o exercício da qualificação da insolvência totalmente dependente da diligência do administrador – ou de outros interessados - no cumprimento de tão apertado prazo.
Também a complexidade dos factos habitualmente em causa nestas situações de insolvência leva frequentemente a que o administrador da insolvência apenas se aperceba de factos relevantes para a utilização do instituto previsto no nº 1 do art. 188º ao longo do desenrolar da sua atividade de administrador da insolvência. o que pode razoavelmente inviabilizar o cumprimento do apertado prazo aqui em causa.
Por outro lado, a certeza e a segurança jurídica dos recorrentes não podem sobrepor-se aos interesses públicos prosseguidos com a necessidade de sancionamento da sua eventual conduta culposa na eclosão da insolvência”.

Foi no quadro desta controvérsia que o legislador entendeu intervir, esclarecendo que o prazo em questão tem uma natureza peremptória.
Assim, por efeito da Lei nº 9/2022, de 11 de Janeiro, o nº 1 do art. 188º passou a dispor:
O administrador da insolvência ou qualquer interessado pode alegar, fundamentadamente, por escrito, em requerimento autuado por apenso, o que tiver por conveniente para efeito da qualificação da insolvência como culposa e indicar as pessoas que devem ser afetadas por tal qualificação, no prazo perentório de 15 dias após a assembleia de apreciação do relatório ou, no caso de dispensa da realização desta, após a junção aos autos do relatório a que se refere o artigo 155.º, cabendo ao juiz conhecer dos factos alegados e, se o considerar oportuno, declarar aberto o incidente de qualificação da insolvência, nos 10 dias subsequentes.

Trata-se, por isso, de uma lei interpretativa (art. 13º do C. Civil) – cfr. neste sentido o Ac. da RP de 30/01/2024, proc. n.º 5137/18.7T8VNG-E.P1, Rui Moreira (relator). 

Como refere Baptista Machado (Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, Coimbra, 1983, Almedina, pag. 247), para que uma LN possa ser realmente interpretativa são necessários dois requisitos:que a solução do direito anterior seja controvertida ou pelo menos incerta; e que a solução definida pela nova lei se situe dentro dos quadros da controvérsia e seja tal que o julgador ou o intérprete a ela poderiam chegar sem ultrapassar os limites normalmente impostos à interpretação e aplicação da lei.”

E acrescenta-se no já citado Ac. da RP:
“Basta analisar a proposta de lei apresentada pelo Governo que esteve na base da nova lei para se concluir pela sua natureza interpretativa.
Com efeito, a exposição de motivos da Proposta de Lei n.º 115/XIV/3.ª, referia: “Por último, a presente proposta de lei contém ainda alterações, que visam, no essencial, a clarificação pontual de aspetos processuais ou substantivos sobre os quais há imprecisão na lei, dissenso na doutrina ou jurisprudência e fomentar uma capaz operacionalização dos institutos vigentes, permitindo, assim, uma melhor e mais célere aplicação do Direito, com a consequente elevação da tutela de credores e devedores.
(…)
Neste sentido, quanto ao incidente de qualificação de insolvência, no qual se apura da responsabilidade civil pela causa ou agravamento da situação de insolvência do devedor, prevê-se de forma expressa o caráter perentório do prazo para abertura do incidente de qualificação de insolvência…”.

Assim, e nos termos do art. 13º, n.º 1, do C. Civil, uma vez que a lei interpretativa se integra na lei interpretada, conclui-se que o prazo previsto no n.º 1, do art. 188º do CIRE, na redacção vigente à data da apresentação do requerimento de qualificação da insolvência, era peremptório.

Refere a este propósito Catarina Serra (O incidente de qualificação da insolvência depois da Lei n.º 9/2022, Julgar, n.º 48, pag. 15):
“(…) a abertura do incidente passou a estar limitada a dois momentos/duas fases: a fase da declaração de insolvência, com o que se visa abranger os casos em que a conveniência da abertura é visível logo de início, e a fase posterior à junção (e à eventual apreciação) do relatório a que se refere o art. 155º, com o que se visa abranger os casos em que a conveniência da abertura apenas se torna visível mais tarde.
(…) É razoável entender que a letra da lei, colocando a abertura do incidente nesta segunda fase na dependência da iniciativa dos interessados, reflecte a intenção do legislador de limitar, em geral, a abertura do incidente na estrita medida em que os interessados se movessem. Corresponde isto a uma clara privatização do incidente de qualificação de insolvência” - Catarina Serra, O incidente de qualificação da insolvência depois da Lei n.º 9/2022, Julgar, n.º 48, pag. 15.
E sendo o prazo estabelecido no n.º 1 do art. 188º, do CIRE um prazo judicial/processual e não um prazo substantivo (cfr. neste sentido o citado Ac STJ de 12/12/2023), o mesmo é de conhecimento oficioso e o seu decurso extingue o direito à prática do acto - nº 3 do artigo 139º do CPC.

Efectivamente, tal como observa Catarina Serra (ob. cit. pag. 16), o prazo de 15 dias fixado no art. 188º, n.º 1, do CIRE funciona como prazo-limite absoluto para a abertura do incidente.
Esse prazo, como vimos, não foi no caso observado pelo MP, posto que este praticou o acto no 4º dia útil posterior ao seu termo.
Não tendo o incidente sido requerido nesse prazo de 15 dias (acrescido dos 3 dias a que alude o art. 139º, n.º 5, do CPC), já não poderia ser aberto o incidente.

Dizem ainda os apelantes que o tribunal não pode, depois do decurso do prazo de 15 dias previsto no art. 188º, n.º 1, do CIRE, declarar ex officio aberto o incidente de qualificação da insolvência como culposa. Só o poderá fazer, a requerimento dos interessados, deduzido no prazo estabelecido nesse normativo, e nunca após o encerramento dos autos de insolvência (arts. 232º, n.º5, e 233º, n.º 6, do CIRE).

Como referem João Labareda e Carvalho Fernandes (CIRE ANOTADO, 3ª edição, pag. 835), verificando-se, no curso do processo, o seu encerramento por insuficiência da massa, duas hipóteses podem ocorrer, em sede de incidente de qualificação da insolvência:
a)-O incidente estar já terminado;
b)-O incidente estar ainda em curso.
Ora, no caso, o incidente de qualificação da insolvência já estava em curso na data do encerramento do processo (iniciou-se com a apresentação das alegações pelo MP), apenas não tendo sido proferido despacho pelo juiz a declarar a sua abertura (este despacho não tem carácter definitivo quanto à qualificação da insolvência, a qual é irrecorrível, posto que o juiz formula um mero juízo liminar sobre  se os elementos disponíveis justificam a abertura do incidente) ou a recusar a mesma (tratando-se de uma decisão que, a transitar, tem carácter definitivo quanto à não qualificação da insolvência, é a mesma recorrível).
E, ao contrário do propugnado pelos apelantes, o prazo de 10 para o juiz declarar a abertura do incidente, tem natureza ordenadora ou disciplinadora do processado e não se traduz num prazo peremptório ou preclusivo da prática daqueles actos – neste sentido cfr. Ac RC de 10.03.2015, proc. n.º 631/13.9TBGRD-L.C1, Maria Catarina Ramalho Gonçalves (Relatora)
Tratando-se de um acto obrigatório que corresponde ao cumprimento de um dever funcional do juiz este não pode deixar de proferir decisão, ainda que ultrapassado o prazo legalmente previsto para o efeito.
Efectivamente, em regra, consideram-se impróprios, por não preclusivos, os prazos impostos aos actos exercidos pelo juiz, pois que se o acto não for praticado no prazo previsto não se extingue o dever de o realizar – cfr. Ac RG de10 de Julho de 2019, prc. n.º 10464/15.2T8VNF-E.G1, Sandra Melo (relatora).

Seja como for, tendo o incidente de qualificação da insolvência sido deduzido fora do prazo legal, encontrando-se extinto o direito à prática do acto, o juiz não poderia declarar aberto o incidente, impondo-se, por isso, a revogação da decisão recorrida, com o consequente reconhecimento da extemporaneidade do incidente de qualificação da insolvência e da abertura desse incidente.

A revogação da decisão recorrida determina ainda a anulação dos actos posteriores que dela dependem, nos quais se inclui a sentença recorrida, na qual se qualificou a insolvência da R., Lda. como culposa e se decretou a afectação dos ora apelantes por tal qualificação (art. 660º, do CPC), ficando assim prejudicado o conhecimento do recurso interposto da mesma.

Procede nestes termos a apelação.

Sumário:
1.-Tendo o relatório a que alude o art. 155º do CIRE sido apresentado no prazo estabelecido na sentença declaratória da insolvência, não pode deixar de se contar o prazo de 15 dias a que alude o art. 188º, n.º 1, do mesmo diploma, a partir da junção do mesmo aos autos e não da sua notificação aos interessados.
2.-A fixação em 15 dias do prazo em análise, contado nos termos sobreditos, não se revela uma medida excessiva, desrazoável, desnecessária ou desproporcionada, posto que a mera notificação da sentença que declara a insolvência, imposta no artigo n.º 2 do artigo 37.º do CIRE, colocará qualquer interessado em perfeitas condições de determinar o termo inicial do prazo de 15 dias que dispõe para requerer o incidente de qualificação da insolvência.
3.-Só assim não seria se aquele relatório tivesse sido apresentado fora do prazo legal, caso em que se impunha a sua notificação aos interessados.
4.-A Lei n.º 9/2022, de 11 de Janeiro, que veio expressar a natureza peremptória do prazo de 15 dias previsto no n.º 1 do art. 188º do CIRE é uma lei interpretativa, integrando-se na lei interpretada, nos termos do art. 13º do C. Civil, pelo que tal prazo deve ter-se como peremptório mesmo nas situações jurídicas verificadas antes da vigência dessa Lei.
5.-Tendo o incidente de qualificação da insolvência sido deduzido fora do prazo legal, encontrando-se extinto o direito à prática do acto, o juiz não poderia declarar aberto o incidente.

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V.– Decisão:

Pelo acima exposto, decide-se:
a.-Julgar procedente a apelação, revogando-se a decisão proferida dia 4/07/2021, na parte em que na mesma se declarou a não extemporaneidade do incidente de qualificação da insolvência como culposa, declarando-se a extemporaneidade do mesmo e da abertura desse incidente, anulando-se, em consequência, a sentença recorrida;
b.-Custas da apelação pela massa insolvente, nos termos previstos no art. 303º do CIRE;
c.-Notifique.

Lisboa, 23 de Abril de 2024


(Manuel Marques - Relator)
(Paula Cardoso - 1ª Adjunta)
(Nuno Teixeira - 2º Adjunto)