Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
1325/23.2.T8BGC.G1
Relator: VERA SOTTOMAYOR
Descritores: AÇÃO EMERGENTE DE ACIDENTE DE TRABALHO
CASO JULGADO
DANOS NÃO PATRIMONIAIS
PRECLUSÃO DO DIREITO À REPARAÇÃO
INDEFERIMENTO LIMINAR
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 04/18/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: SECÇÃO SOCIAL
Sumário:
I- Os direitos à reparação do sinistrado, vitima de acidente de trabalho, devem ser todos apreciados na ação especial emergente de acidente de trabalho.
II – Tendo corrido os seus termos a ação emergente do acidente de trabalho a que os autos se reportam, com decisão transitada em julgado, sem que nessa ação a autora/apelante tivesse alegado, em sede da tentativa de conciliação levada a efeito no mencionado processo n.º 893/20.... a culpa da sua entidade empregadora na produção do sinistro, designadamente por violação de regras de segurança no trabalho, nem reclamado aí o que quer que fosse a título de indemnização por danos não patrimoniais, levou a que ficasse precludido o eventual direito a reparação por danos não patrimoniais, já que após trânsito em julgado da decisão proferida em tais autos, não pode mais ser suscitada a questão referente à culpa do empregador na ocorrência do acidente.
Decisão Texto Integral:
Acordam na Secção Social da Relação de Guimarães

APELANTE: AA
APELADA: EMP01..., S.A.
Tribunal Judicial da Comarca de Bragança, Juízo do Trabalho de Bragança

I – RELATÓRIO

AA, residente na Alameda .... – centro – ... ..., instaurou a presente ação declarativa de condenação, com processo comum contra EMP01..., S.A., com sede em Estrada Nacional ...14, ... ... - ... e pede a condenação da Ré no pagamento da quantia de €15.000,00 a título de compensação por danos não patrimoniais decorrentes de um acidente de trabalho que deu origem ao Proc. n.º 893/20...., que correu termos no Juízo do Trabalho de Bragança.
Alega, em síntese, que no âmbito do processo especial emergente de acidente de trabalho foi-lhe concedida a indemnização devida pelos danos patrimoniais decorrentes do acidente, mas além desses sofreu danos de natureza não patrimonial, que decorrem de facto ilícito e culposo imputável à Ré, designadamente a violação culposa de normas de segurança no trabalho e da falta de formação profissional.
Em face do teor da petição inicial a Mmª Juiz a quo julgou procedente a exceção dilatória inominada insanável de preclusão do direito invocado pela autora e, em consequência indeferiu liminarmente a petição inicial, nos termos dos artigos 54.º do CPT. e 278.º n.º 1 al. e), 576.º, n.º 2 e 578.º do CPC.
      
Inconformada com esta decisão, dela veio a Autora interpor recurso de apelação para este Tribunal da Relação de Guimarães, apresentando alegações que termina mediante a formulação das seguintes conclusões:
“CONCLUSÕES

I - A recorrente está cônscia que a matéria sobre a qual versará o presente recurso não tem respaldo – que conheçamos (através de jurisprudência publicada) – que dê razão à sua pretensão.
II - a função do advogado é pugnar pela aplicação da Lei; porém, quando a tal Lei se revelar INJUSTA (como parece ser o caso); então, o causídico suplicará por JUSTIÇA!...
III - A Lei escrita é um mero caminho para se atingir – através da interpretação jurídica – a NORMA JUSTA!... (o sentido normativo a que apela Castanheira Neves nas suas Superiores Lições).
IV - Se os advogados se acomodassem à jurisprudência (mesmo aquela que resulta de recursos de revista ampliada), a evolução do Direito inexistiria. Aconteceria a “cristalização” da juridicidade. (recordemos que, na grande Reforma de 1996/1997 do Código de Processo Civil, também o artigo 2º do Código Civil foi revogado, para se acabar com a força vinculativa dos Assentos).
V - A referida Reforma veio trazer um novo paradigma à praxis jurídica, a saber: O DIREITO SUBSTANTIVO PREVALECE SOBRE O DIREITO PROCESSUAL.
VI - Estamos no domínio dos direitos indisponíveis.
VII - A autora sofreu um acidente de trabalho, no dia 25-04-2020, que deu origem à abertura de um processo especial oficioso de acidente laboral, cujos autos tiveram o n.º 893/20....; e na qual lhe foi determinada uma indemnização que abrangeu apenas os direitos patrimoniais.
VIII - Agora, tempestivamente, foi impetrada a competente acção de indemnização, por danos morais, decorrentes do referido acidente laboral, no Tribunal de competência genérica de ....
IX - O referido Tribunal declarou-se incompetente em razão da matéria e apontou o Tribunal de Trabalho de Bragança como sendo o competente.
X - De modo a aproveitar o prazo de propositura (para evitar a prescrição) a autora, tempestivamente, transferiu a instância para o Tribunal de Trabalho de Bragança.
XI - O Tribunal a quo entendeu que se verificava uma “excepção dilatória inominada”, nos termos dos artigos 54º do CPT e 278º, n.º 1 al. e), 576º, nº 2 e 578º do CPC.
XII - O Tribunal recorrido decidiu indeferir liminarmente a acção; sem possibilidade de suprimento ou correcção da excepção dilatória dita inominada.
XIII - A honestidade intelectual impõe que admitamos que – apesar das buscas jurisprudenciais empreendidas para sustentar o presente recurso – não encontramos nenhuma decisão jurisprudencial que sustentasse o nosso pensamento da busca incessante de uma decisão JUSTA.
XIV - Não obstante, decidimos interpor o presente recurso, porque “é da discussão que nasce a luz” e se aperfeiçoa o direito, porque, ao contrário, estaria condenado à estagnação.
XV - Prevê o artigo 2º, n.º 2 do CPC que “a todo o direito […] corresponde uma acção adequada a fazê-lo reconhecer em juízo […] ou a reparar a violação dele…”
XVI - Parece inequívoco que, a autora terá direito a ser reparada pelos danos não patrimoniais, decorrentes do acidente laboral (pelo menos em abstracto… porque, em concreto, avaliar-se-á depois da prova produzida).
XVII - A autora peticionou – e acautelou a tempestividade – na acção ajuizada, perante o Tribunal a quo.
XVIII - Convém sublinhar – a traço grosso – que a autora classificou a presente acção como de “PROCESSO COMUM”; e não, como acção especial emergente de acidente de trabalho (aliás, se se tratasse de tal forma de processo, a sua tramitação seria urgente; e, este recurso deveria ter sido interposto no prazo de 15 dias).
XIX - A autora não compreende, nem aceita, que estes autos sejam convertidos (ou convertíveis) em processo especial emergente de acidente de trabalho; porquanto, a tipologia dos direitos aqui litigados e pretendidos, pela impetrante são DIREITOS MORAIS E INDISPONIVEIS, com a particularidade de terem sido causados por acidente de trabalho.
XX - Da leitura (e interpretação) do artigo 15º do CPT nada impõe que tais direitos sejam, apenas, ressarcíveis através daquele tipo de acções.
XXI - Por altura do cálculo e fixação da quantia indemnizatória, decorrente do acidente laboral causador dos danos não patrimoniais aqui litigados, não se equacionou o ressarcimento dos danos morais.
XXII - A manter-se a decisão recorrida – e, esperamos que não se mantenha – uma parte dos danos (os morais) provocados pelo acidente ficam sem tutela, apenas (e, tão-só) por razões de ordem processual não imputáveis à autora.
XXIII - Dizemos que, almejamos pela revogação da decisão de 1ª instância, porque a maior “revolução” do direito processual civil operada em Portugal, depois do 25 de Abril (a referida Reforma de 1996/1997), foi a perfilhação do seguinte princípio: “Nenhum direito substantivo poderá ser preterido por razões de ordem processual”; ou, dito de outro modo: “O Direito substantivo prevalece – sempre e em quaisquer circunstâncias – sobre o direito processual”.
XXIV - A decisão proferida pela instância recorrida – a vingar (e, não vingará com toda a certeza, porque “ainda existem juízes em Berlim”!... ou, no TRG) – postergaria a tutela, de forma INJUSTA, de um direito moral que assiste à autora suplicar.
XXV - não podemos olvidar que “a todo o direito corresponde uma acção” (artigo 2º, n.º 2 do CPC); isto é, uma acção especial se a houver… e, na falta de acção especial (como acontece no caso dos autos) terá de ser a acção comum a tutelar o direito pretendido pela autora.
XXVI - Não podemos nunca esquecer o artigo 2º da CRP, subordinado à epígrafe [Estado de direito democrático]: «A República Portuguesa é um Estado de direito democrático, baseado na soberania popular, no pluralismo de expressão e organização política democráticas, no respeito e na garantia de efetivação dos direitos e liberdades fundamentais e na separação e interdependência de poderes, visando a realização da democracia económica, social e cultural e o aprofundamento da democracia participativa.»
Termos em que, devem as presentes alegações e respectivas conclusões ser julgadas procedentes; e, por consequência, deverão – Vossas Excelências, Venerandos Desembargadores – revogar a decisão proferida pelo Tribunal a quo, por outra que admita o petitório impetrado e determine o prosseguimento dos termos da acção, conforme é de Direito; e, de resto, impõe-se pela almejada
JUSTIÇA!...”

Foi admitido o recurso na espécie própria, com o adequado efeito e regime de subida, tendo sido determinada a citação da Ré para os termos da ação e do recurso.
A Ré não respondeu ao recurso.
Os autos foram remetidos a este Tribunal e foi determinado que se desse cumprimento ao disposto no artigo 87.º n.º 3 do C.P.T., tendo o Exma. Procuradora-Geral Adjunto emitido douto parecer, no sentido da improcedência do recurso.
Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.

II - OBJECTO DO RECURSO

Delimitado o objeto do recurso pelas conclusões do recorrente (artigos 635º, n.º 4, 637.º n.º 2 e 639.º, nºs 1 e 3, do Código de Processo Civil), não sendo lícito ao tribunal ad quem conhecer de matérias nele não incluídas, salvo as de conhecimento oficioso e tendo presente que poderá ficar prejudicado o conhecimento das conclusões de recurso pelo conhecimento anterior de outras, a única questão que se coloca respeita ao apuramento da existência de fundamento legal para indeferimento liminar da petição inicial.

III – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

Com interesse para a decisão relevam os elementos processuais descritos no relatório supra, acrescidos dos seguintes:

- a) A ora A. participou neste Juízo do Trabalho de Bragança, em 15/09/2020, ter sido vítima de um acidente de trabalho em 25/04/2020, do qual resultaram lesões que lhe determinaram incapacidade para o trabalho.
b)Tal participação deu origem ao processo especial emergente de acidente de trabalho que correu termos neste Juízo sob o n.º 893/20.....
c) Neste processo foi convocada pela Digna Magistrada do Ministério Público e teve lugar, em 14/12/2021, uma tentativa de conciliação na qual estiveram presentes a ora A., AA, e EMP02... - Companhia de Seguros, S.A., representada por BB.
d) No âmbito de tal acto processual, a Digna Magistrada do Mº Pº fez consignar o seguinte:
 “A análise dos elementos constantes destes autos, conjugados com as declarações agora prestadas pelas partes, fazem-nos concluir pela ocorrência de um acidente de trabalho, com as seguintes características:
Local : .../...
Data : 25.04.2020
Hora : 07:15 horas.
Entidade Patronal da sinistrada no momento do acidente: EMP01..., S.A
Funções da sinistrada : trabalhadora agrícola
Salário auferido pela sinistrada à data de acidente: € 635,00 x 14 meses, acrescido de sub. alimentação de € 2.50, 242 dias, acrescido de outros subsídios de € 255,31 x 12 meses, o que perfaz o salário anual de € 12.558,72.
Descrição do acidente: quando a sinistrada estava a colher cogumelos no 6º nivel da sala ...4, do lado direito, junto á parede, ao tentar fazer avançar o escadote da colheita, uma das rodas do mesmo saiu da linha, tendo virado e provocado a queda da sinistrada de uma altura de 3 metros, com queda do cesto de metal em cima da mesma.
Consequências do acidente:Em consequência do acidente a sinistrada sofreu TCE frontoparietotemporal direito, com perda de consciência, trauma dorso lombar e ancas.
Responsabilidade/retribuição transferida para a seguradora: a responsabilidade infortunística da entidade patronal encontra-se transferida para a EMP02... - Companhia de Seguros, S.A, através da apólice nº ...30 e pelo salário mensal de € 635,00 x 14 meses, acrescido de sub. alimentação de €2.50, 242 dias, acrescido de outros subsidios de € 255,31 x 12 meses
Períodos das incapacidades temporárias e respectivos graus: em consequência do acidente esteve a sinistrada de incapacidade temporária absoluta e parcial, melhor discriminadas no auto de exame de fls.149 a 152.
Indemnização devida pelos períodos de incapacidade temporária: €6.093,56.
Montante de indemnização já pago pela seguradora: € 3.034,74
Montante de indemnização ainda em divida pela seguradora: € 3.058,82
Data da Alta: pelo perito médico foi dada alta em 16.03.2021
Incapacidade Permanente : tendo sido atribuída à sinistrada a IPP de 23,8806%
Despesas de transporte reclamadas pela sinistrada: € 50,40 (42 Kmx2x€0.20x3 deslocações ) tabela nº IV anexa ao Decreto Lei nº52/2011 de 13 de Abril
ACORDO
O acidente é de trabalho, há nexo de causalidade entre o acidente e as lesões, pelo que se propõe o seguinte acordo:
De acordo com o salário acima referido a sinistrada tem direito, nos termos do artº 48º - 3 al. d) e e) do Regul. AT, uma indemnização total de € 6.093,56 pelos períodos de incapacidade temporária. Que já recebeu da seguradora € 3.034,74 encontrando-se em divida € 3.058,82.
Tem ainda direito ao capital de remição de uma pensão anual e vitalícia, no montante de € 2.099,37 a partir de 17.03.2021, acrescida de juros desde o seu vencimento, nos termos dos artºs 8º, 9º 23º 48º - 3 c) do Regul.AT (Lei 98/2009 de 04/Set.) e aos transportes reclamados.
Assim tem ainda direito e por isso pagará:
a Companhia de Seguros à sinistrada:
-O capital de remição de uma pensão anual e vitalícia, no montante de €2.099,37 a partir de 17.03.2021, acrescida de juros desde o seu vencimento, calculada com base no salário transferido acima referido e na IPP de 23,8806%, de acordo com o disposto nos artigos 8º, 9º 23º 48º - 3 c) do Regul.AT (Lei 98/2009 de 04/Set.).
-Diferenças de It´s no valor de € 3.058,82.
-Despesas de transporte reclamadas pela sinistrada no valor de € 50,40.
e) Mais se consignou que:
Dada a palavra à sinistrada, por ela foi dito que concorda:
com os dados e elementos do acidente, o salário auferido, o montante das despesas de transporte.
Não aceita o resultado do exame do GML. Diz não estar curada pois sente muita dificuldade em andar, em estar de pé porque começa a ter fortes dores na perna esquerda e quando se senta começa a ter dores no pescoço que irradiam para os ombros, não conseguindo assim exercer a sua atividade profissional anterior, não sendo compatível a sua atual situação com o seu posto de trabalho, pelo que foi mudada de lugar o que influencia a sua remuneração final.
Após o acidente tem sofrido caimbras nas mãos e dormência nos pés.
Por isso não aceita o acordo nos termos propostos pela Sra Procuradora da República
Dada a palavra à seguradora, por ela foi dito que concorda:
com os dados e elementos do acidente, a caracterização do acidente como de trabalho, o nexo de causalidade entre as lesões e o acidente, o montante do salário para si transferido de € 635,00 x 14 meses, acrescido de sub. Alimentação de € 2.50, 242 dias, acrescido de outros subsidios de € 255,31 x 12 meses, os períodos de incapacidades temporárias e respectivos graus, com alta em 20.11.2020, o montante da indemnização já paga pela sua representada pelos períodos de incapacidades temporárias.
Aceita pagar as despesas de transporte de € 50,40.
Não aceita os períodos de incapacidades temporárias absoluta e parcial atribuidas pelo GML. Não aceita o grau de incapacidade permanente de 23,8806%, apenas aceita as lesões e a incapacidade constantes do seu boletim de alta (11%).
No que respeita às ajudas técnicas, as mesmas deverão ser definidas em junta médica.
Por isso não aceita o acordo nos termos propostos pela Srª Procuradora da República
f) Seguidamente a Digna Magistrada do Ministério Público proferiu o seguinte despacho:
“Face a discordância do resultado do exame médico, não é viável obter o acordo entre as partes.
A divergência neste caso só pode resolver-se através de junta médica.
Assim aguardem os autos na secretaria geral o requerimento, nos termos do disposto no artº 138º, nº 2 do CPC.
Notifique a sinistrada para em 15 dias apresentar documento médico comprovativo de se achar afetado de incapacidade diferente da que lhe foi atribuída pelo perito do GML, bem como cópia da última declaração de IRS, a fim de ser requerido exame com intervenção de junta médica, com a advertência de que, caso tal assim não faça, e decorrido o prazo do artº 122, nº 1 do CPT (20 dias) vão os autos conclusos à Mmª Juiz para ser proferida decisão, conforme dispõe o artº 138º, nº 2 do mesmo código.
(…).”
g) Frustrada a conciliação, nos termos supra expressos, o processo n.º 893/20.... seguiu termos para a sua fase contenciosa, com apresentação de requerimentos para realização de junta médica, por parte da ali sinistrada, ora A., representada pela Digna Magistrada do Mº Pº e da seguradora responsável, com vista à fixação da incapacidade da sinistrada.
h) Realizada a junta médica, foi proferida sentença no processo 893/20.... com o seguinte dispositivo:
“3. Perante o exposto, considerando a matéria de facto apurada e ao abrigo das disposições legais citadas, julgo procedente a presente acção e, em consequência,
1- Nos termos do art. 140º nº 1 do Cód. Proc. Trabalho, fixo à sinistrada AA:
- Os seguintes períodos de incapacidade temporária: ITA de 26/04/2020 a 23/07/2020; ITP 20% de 24/07/2020 a 30/09/2020; ITA de 01/10/2020 a 20/10/2020; e ITP 20% de 21/10/2020 a 16/03/2021;
- Uma Incapacidade Parcial Permanente para o trabalho de 16,5% desde ../../2021;
2- Condeno a R. EMP02... – Companhia de Seguros, S.A. a pagar à sinistrada:
a) o capital de remição de uma pensão anual e vitalícia no valor de €1.450,53 (mil quatrocentos e cinquenta euros e cinquenta e três cêntimos), com início em 17/03/2021, a calcular oportunamente de acordo com as regras constantes da Portaria nº 11/2000 de 13/1;
b) a quantia de €631,03 (seiscentos e trinta e um euros e três cêntimos) a título de diferenças na indemnização por incapacidade temporária;
c) a quantia de €50,40 (cinquenta euros e quarenta cêntimos) a título de reembolso de despesas com deslocações obrigatórias;
c) Juros de mora vencidos e vincendos, à taxa legal, desde o dia seguinte ao da alta quanto ao capital de remição e indemnização por incapacidade temporária em dívida e desde a data da tentativa de conciliação quanto à despesas de transporte, nos termos do art.º. 135º do Cód. Proc. Trabalho.
(…)”
i)Tal sentença foi notificada às partes em 22/7/2022, não tendo havido recurso da mesma.      

IV - APRECIAÇÃO DO RECURSO

Da existência de fundamento legal para indeferimento liminar da petição inicial.

Insurge-se a Recorrente quanto ao facto de o Tribunal a quo ter indeferido a petição inicial, no âmbito da qual se pretendia obter a condenação numa indemnização por dano não patrimonial resultante de acidente de trabalho que alegadamente terá ocorrido por culpa do empregador.
Como é consabido os Juízos do Trabalho são competentes em razão da matéria para conhecer das ações em que se reclamem indemnizações com base em danos não patrimoniais emergentes de acidente de trabalho causados por culpa do empregador, sendo ainda sabido que a ação especial emergente de acidente de trabalho, prevista na Secção I do Capitulo II, Título VI do Código do Processo do Trabalho, constitui o processo adequado para discutir e caracterizar um acidente qualificável como de trabalho, com as consequências daí decorrentes.   
Em conformidade com o prescrito no n.º 2 do art.º 2.º do CPC., (do qual resulta que a todo o direito corresponde uma ação adequada a fazê-lo reconhecer em juízo, a prevenir ou a reparar a sua violação), é esta ação própria não só para apurar a ocorrência ou não de um acidente qualificável como de trabalho, mas também para apurar sobre a entidade (s) responsável (eis) pela reparação do acidente, quer sobre as concretas prestações devidas ao sinistrado a qualquer título, designadamente a título de danos não patrimoniais que apenas são devidos nas situações em que o acidente ocorra por atuação culposa do empregador.
Do exposto podemos concluir que os direitos à reparação do sinistrado, vitima de acidente de trabalho, devem ser todos apreciados na ação especial emergente de acidente de trabalho, sendo certo que em sede de jurisdição laboral, apenas pode existir um único processo, para cada evento.
Na verdade, quer por força da sua natureza oficiosa (cfr. artº. 26, n.º 3, do CPT), quer pela irrenunciabilidade dos direitos em causa, todas as questões jurídicas que se possam colocar relativamente a um evento que possa ser qualificado de acidente de trabalho têm necessariamente de ser apreciadas num único processo.
Aqui chegados importa agora apurar se em face ao alegado pela autora na petição inicial a mesma poderia interpor a presente ação, ainda que sob a forma de ação especial para efetivação de direitos resultantes de acidente de trabalho (pois o processo comum não é aplicável quando existe forma de processo especial para apreciar o direito que se pretende reparar), nos termos em que o fez.
Resulta da factualidade apurada que no dia 25.04.2020, pelas 7h15m em .../..., quando a autora, exercia as funções de trabalhadora agrícola por conta de EMP01..., Lda e se encontrava a colher cogumelos no 6.º nível da sala ...4, ao tentar fazer avançar o escadote da colheita, caiu de uma altura de 3 metros, com queda do cesto de metal em cima de si, em consequência do que sofreu lesões corporais fortemente incapacitantes, tendo corrido termos pelo Juízo do Trabalho da Tribunal da Comarca de Bragança o processo n.º 893/20....., no âmbito do qual ficou acordado na tentativa de conciliação a caracterização do acidente como de trabalho, a transferência da responsabilidade pela reparação para a Companhia de Seguros EMP02..., pelo salário anual de €12.558,72, e o nexo causal entre o acidente e as lesões. As partes discordaram apenas do grau de incapacidade parcial permanente, bem como dos períodos de incapacidade temporária atribuídos, pelo GML, razão pela qual os autos prosseguiram para a fase contenciosa, com a apresentação de requerimento de junta médica por ambas as partes (cfr. art.º 138.º n.º 2 do CPT.). Realizado o exame por junta médica veio a ser proferida sentença no referido processo n.º 893/20...., que julgou procedente a ação e fixou ou períodos de ITA, de ITP e de IPP e condenou a Ré Seguradora na respetiva reparação. Tal sentença transitou em julgado.
Desta factualidade podemos concluir que os danos patrimoniais sofridos pela Autora/sinistrada decorrentes do acidente a que os presentes autos se reportam estão reparados, mas o que dizer dos danos não patrimoniais.
Ora, para apurarmos da preclusão ou não do direito que a autora agora pretende ver reconhecido impõe-se uma breve resenha sobre o quadro processual aplicável a este tipo de processos especiais, tendo em conta, a versão em vigor do Código de Processo de Trabalho aprovada pela Lei n.º 107/2019, de 9 de Setembro, com as alterações introduzidas pela Lei n.º 13/2023 de 3 de Abril, diploma a que pertencem as disposições que, de ora em diante viermos a citar apenas com a indicação de CPT.
O processo emergente de acidente de trabalho é caracterizado como um processo especial que se inicia por uma fase conciliatória dirigida pelo Ministério Público, tendo por base a participação do acidente - art. 99.º, nº 1 do CPT. e como objetivo a composição amigável, em conformidade com o previsto na lei.
Nesta fase impõe-se instruir o processo com todos os elementos necessários para a identificação de beneficiários e responsáveis e para a definição dos direitos e obrigações de uns e de outros, de modo a que reunidos todos os interessados e todos os elementos, designadamente os respeitantes à obrigação de reparação do acidente se proceda à realização de uma tentativa de conciliação, ato este presidido pelo Ministério Público, tendo em vista a obtenção de um acordo que obedecendo aos parâmetros legais venha a ser homologado. O Ministério Público deve ainda assegurar-se, pelos necessários meios de investigação, da veracidade dos elementos constantes do processo e das declarações das partes – cfr. artigos 104.º n.º 1, 109.º e 114.º do CPT.
Em conformidade com o previsto no artigo 108.º n.º 1 do CPT. à tentativa de conciliação são chamados o sinistrado ou seus beneficiários legais, as entidades empregadoras ou seguradoras, conforme os elementos constantes da participação, sendo certo que quando haja noticia ou conhecimento, pelos responsáveis da reparação ou pelo sinistrado ou seus familiares, ou por qualquer outro meio, de que o acidente se ficou a dever à violação de regras de saúde e segurança no trabalho pelo empregador ou ao comportamento do sinistrado que conduza à descaracterização do acidente, nos termos dos artigos 14.º e 18.º da Lei n.º 98/2009, de 4/09 (NLAT), antes de designar dia para tentativa de conciliação o Ministério Público, deve requisitar inquérito urgente e sumário às autoridades com competência inspetiva nos termos do artigo 104.º n.º 2 do CPT. Acresce dizer que mesmo no decurso da tentativa de conciliação se o Ministério Público constatar pelas declarações prestadas, a necessidade de fazer intervir outras entidades, como responsáveis pela reparação do evento infortunístico, deve em conformidade com o previsto no artigo 108.º n.º 2 do CPT. designar novo dia para esta diligência, convocando para o possível responsável indicado.
 Em face do previsto no n.º 1 do artigo 109.º do CPT. na tentativa de conciliação, presidida pelo Ministério Público, este promove o acordo de harmonia com os direitos consignados na lei, tomando por base os elementos fornecidos pelo processo, nomeadamente o resultado de exame médico e as circunstâncias que possam influir na capacidade geral de ganho do sinistrado.
Perante a proposta apresentada pelo Ministério Público das duas uma: ou as partes estão de acordo, aceitando-a, ou não estão de acordo, rejeitando-a.
Caso haja acordo, de harmonia com o disposto no artigo 111.º do CPT., têm de constar dos autos os seguintes factos:
- A identificação completa dos intervenientes;
- A indicação precisa dos direitos e obrigações que lhes são atribuídos;
- A descrição pormenorizada acidente;
- A descrição pormenorizada dos factos que servem de fundamento aos referidos direitos e obrigações.
Obtido o acordo, este é de imediato submetido à apreciação do juiz que o homologa por simples despacho exarado no próprio auto se verificar a sua conformidade com os elementos fornecidos pelo processo e pelas normas legais, regulamentares ou convencionais – cfr. artigo 114.º, n.º 1 do CPT. Homologado o acordo e transitado o despacho homologatório, finda a fase conciliatória do processo, não havendo, neste caso, lugar à fase contenciosa prevista no artigo 117.º e ss. do CPT.
Em caso de falta de acordo, de harmonia com o previsto no artigo 112º do CPT., têm de constar nos autos o seguinte:
- consignação dos factos sobre os quais tenha havido acordo, referindo-se expressamente se houve acordo ou não acordo acerca da existência e caracterização do acidente, do nexo causal entre a lesão e o acidente, da retribuição do sinistrado, da entidade responsável e da natureza e grau da incapacidade atribuída.
Acresce dizer que o interessado que se recuse a tomar posição sobre cada um dos factos atrás mencionados, estando já habilitado a fazê-lo é, a final, condenado como litigante de má-fé - cfr. artigo 112º, nº2 do CPT.
Importa ainda realçar que a factualidade sobre a qual tenha incidido acordo na fase conciliatória, delimita o objeto do litigio a dirimir na fase contenciosa, ficando assim, esta circunscrita às questões de facto relativamente às quais não tenha sido possível alcançar o acordo, ficando excluídas todas aquelas sobre as quais incidiu o acordo, entre os interessados na fase conciliatória.
Daqui resulta que ao julgador se impõe, na fase contenciosa e no despacho saneador considerar assentes os factos, sobre os quais incidiu acordo, nos termos do artigo 131.º n.º 1, al. c) do CPT, para ulteriormente os levar à sentença final nos termos do artigo 135.º do mesmo código.
Não havendo acordo inicia-se a fase contenciosa deste tipo de processo especial, que, em conformidade com o previsto no artigo 119.º do CPT., pode assumir dois regimes diferentes, consoante o âmbito da discordância entre as partes na fase conciliatória do processo, ou seja:
- Quando na tentativa de conciliação apenas tiver havido discordância quanto à questão da incapacidade – cfr. artigo 138.º, nº 2 do CPT. -, a fase contenciosa do processo inicia-se mediante requerimento, do interessado que não se tiver conformado com o resultado do exame médico realizado na fase conciliatória do processo – cfr. artigos 117.º, nº 1, alínea b) e 138.º n.º 2 ambos do CPT -, no qual formula pedido de junta médica. Após, segue-se a realização do exame pedido em conformidade com o previsto no artigo 139.º do CPT. e a sentença onde se fixa de modo definitivo a natureza, o grau de desvalorização do sinistrado e o valor da causa, como dispõe o artigo 140º, nº 1 do CPT.
Quando a questão da discordância entre as partes não se cinge apenas à questão da incapacidade, a fase contenciosa tem o seu início com a petição inicial, em que o sinistrado, doente ou respetivos beneficiários formulam o pedido, expondo os seus fundamentos – cfr. artigo 117.º, nº 1, alínea a) do CPT. -, contra a entidade responsável, seguindo-se a citação (artigo 128.º do CPT.), a contestação (artigo 129.º do CPT.), a resposta quando a ela haja lugar (artigo 129.º, nº 3 do CPT), o saneamento e condensação processual (artigo 131º do CPT), a instrução (artigo 63º e ss, por remissão do artigo 131º, nº 2 do CPT) – realizando-se exame por Junta Médica, se for caso disso (artigo 138º, nº 1 do CPT), o qual corre por apenso (artigo 131.º, nº 1, alínea e) e 132.º, ambos do CPT) – o julgamento e a sentença (artigo 135º do CPT), em que se decide globalmente a causa.
Do exposto, podemos afirmar que é no auto de conciliação que se devem equacionar todos os pontos decisivos à determinação dos direitos do sinistrado, quer haja ou não acordo, sendo por isso certo que na fase contenciosa apenas se podem e devem discutir os factos por que o pedido não logrou acordo na fase conciliatória, ou seja, aqueles que ficaram por dirimir na fase conciliatória e que obstaram ao acordo total, à plena reparação, relativamente à pretensão e direitos que o sinistrado reclamou.
Do confronto dos artigos 111.º do CPT. referente ao conteúdo dos autos de acordo e 112.º do CPT. referente ao conteúdo dos autos na falta de acordo, conjugado ainda com o artigo. 131.º n.º 1. al. c) do CPT. necessariamente teremos de concluir que não é possível a posterior discussão de questões acordadas em auto de conciliação.
Neste tipo de processo especial impõe-se aos seus intervenientes que na tentativa de conciliação celebrada na fase conciliatória, se pronunciem sobre todas as questões relevantes para o desfecho da ação, estando por isso as partes obrigadas a exprimir as suas posições acerca do que lhe é proposto, quer quanto aos factos, quer quanto ao direito emergente, pois que a inobservância deste dever tem como consequência a preclusão de eventuais direitos que pretendessem vir a reclamar, já que o auto de conciliação, delimita o objecto do processo de acidente de trabalho, só sendo apreciadas em sede contenciosa as questões que em sede conciliatória, não obtiveram acordo.
Como se refere a este propósito no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 7/09/2015, proferido no processo n.º 628/14.1TTPRT.P1, consultável em www.dgsi.ptComo vimos, é no âmbito do processo emergente de acidente de trabalho, e não fora dele, que o sinistrado pode e deve obrigatoriamente reclamar os danos não patrimoniais, caso entenda que o acidente tenha sido provocado pelo empregador, seu representante ou entidade por aquele contratada e por empresa utilizadora de mão-de-obra, ou se o mesmo for resultado da falta de observação, por aqueles, das regras sobre segurança, higiene e saúde no trabalho – artigo 18º da NLAT.
O que o sinistrado não pode reclamar são quaisquer danos não patrimoniais quando o acidente não provenha de alguma das situações elencadas no aludido artigo 18º. Mas isso, não o pode fazer nem no processo comum, nem no processo emergente de acidente de trabalho, na medida em que a lei, nestes casos, não prevê qualquer direito a indemnização pelos danos não patrimoniais. E, isso, como é lógico, tem explicação pela génese da responsabilidade por acidentes de trabalho.
Tendo transitado a decisão que definiu os direitos da sinistrada advenientes do acidente de trabalho e não tendo a sinistrada, na tentativa de conciliação, equacionado ou discutido que o acidente, de que foi vítima, tivesse ocorrido, por culpa da sua entidade empregadora, nem reclamado quaisquer danos não patrimoniais, e, tendo a tentativa de conciliação a finalidade de delimitar e definir os direitos resultantes do acidente, é manifesto, no nosso ponto de vista, que já o não pode fazer depois, seja no âmbito da acção emergente de acidente de trabalho, seja através da acção de processo comum.”
E ainda como se sumariou no Ac. da Relação de Lisboa de 03.05.2017, proc. n.º 21837/16.3T8LSB.L1-4
“1.–Não tendo o sinistrado alegado, em sede da tentativa de conciliação levada a efeito em processo emergente de acidente de trabalho, a culpa da sua entidade empregadora na produção do sinistro, mormente por violação de regras de segurança no trabalho, nem reclamado aí o que quer que fosse a título de indemnização por danos não patrimoniais, limitando-se a aceitar o acordo que, com base no art. 48º e não no art. 18º da Lei n.º 98/2009 de 04-09, fora propostos pelo Ministério Público, leva a que fique precludido o eventual direito a reparação por danos não patrimoniais, já que após trânsito em julgado da decisão homologatória de tal acordo, esta questão não pode mais ser suscitada;
2.–Para que tal pudesse ser possível, necessário seria que, antes disso, o sinistrado obtivesse a anulação judicial daquele acordo e a revisão da sentença homologatória do mesmo nos termos do art. 291º n.º 2 do NCPC;
3.–Tendo o sinistrado deduzido, posteriormente, petição inicial com que deu início a novo processo emergente de acidente de trabalho instaurado contra a sua entidade empregadora e a seguradora para quem esta transferira a sua responsabilidade infortunística, invocando o direito a indemnização a título de danos não patrimoniais, tal petição, para além de não constituir meio adequado de se dar início a tal processo, não pode deixar de ser liminarmente indeferida por força do disposto no art. 54º n.º 1 do CPT conjugado, agora, com o art. 590º n.º 1 do NCPC.
Revertendo ao caso em apreço constatamos que a autora veio propor ação de processo comum, peticionando a condenação da Ré no pagamento de uma indemnização por dano não patrimonial resultante do acidente de trabalho de que foi vitima. Decorre do acima exposto que este pedido enquanto prestação reclamada pela autora resultante da ocorrência de acidente de trabalho, só tem cabimento na ação especial emergente de acidente de trabalho que observe a tramitação prevista no Código do Processo do Trabalho e acima exposta, o que não se verificou no caso.
Por outro lado, no Juízo do Trabalho de Bragança correu termos o processo especial de acidente de trabalho com o n.º 893/20.... que apreciou o acidente a que os autos se reportam e fixou a responsabilidade pelo acidente apenas pelo risco, tendo ficado a reparação do acidente a cargo da seguradora para a qual a entidade empregadora havia transferido a responsabilidade emergente de acidentes de trabalho ocorridos com a Autora/Apelante, sem que a pretensão agora formulada pela autora tivesse sido apreciada. Era nesses autos e só nesses autos que a pretensão da autora deveria ter sido formulada e apreciada.
Contudo, não é só pelo erro na forma de processo, mas sobretudo em face do decidido na ação de acidente de trabalho, não pode admitir-se a existência e prosseguimento da presente ação, porquanto a causa de pedir desta ação impõe que de novo se aprecie a dinâmica do acidente e se determine a entidade responsável pela sua reparação, o que já foi decidido, na ação própria sem possibilidade de recurso ordinário.
 Na verdade, na acção especial emergente de acidente de trabalho apenas foram chamadas há tentativa de conciliação a Recorrente e a Seguradora. E do auto de não conciliação resulta manifesto que nem a sinistrada, nem a seguradora em momento algum alegaram que o acidente se deveu a violação das regras de segurança ou de saúde por parte do empregador, como seria do seu interesse em conformidade com o previsto nos artigos 18.º e 79.º n.º 3 da NLAT. Em regra, é na tentativa de conciliação que as causas do acidente são conhecidas de todos os intervenientes e que as partes as conhecem e ponderam e, quando chegam a acordo, o fazem porque entendem que todos os direitos e deveres resultantes do acidente ficam garantidos.
No caso, a sinistrada, ora apelante não alegou a culpa da entidade empregadora, nem reclamou qualquer prestação a título de indemnização por danos morais e não o tendo feito precludiu o eventual direito à reparação dos danos morais.
Caso assim não entendêssemos, poderíamos estar perante uma incompatibilidade juridicamente inadmissível, ou seja, no processo de acidente de trabalho tínhamos como responsável principal e única a entidade seguradora a responder pelas prestações normais, e neste processo, julgar-se-ia responsável principal a entidade patronal (pois só assim haveria lugar à reparação pelo dano não patrimonial), o que daria lugar a pensões agravadas e apenas à responsabilidade subsidiária da seguradora. Este seria o risco que se correria caso se aceitasse a pretensão formulada pela apelante nestes autos.
Vejamos melhor!
Na ação especial emergente de acidente de trabalho n.º 893/20...., julgou-se, por sentença já transitada em julgado, que não haveria lugar a responsabilidade por parte da entidade patronal, pelo que apenas a seguradora foi condenada no pagamento das prestações normais.
Ao permitir-se reabertura daquele processo ou a propositura de uma nova ação colocava-se em risco a decisão então proferida, pois que se poderia concluir agora pela culpa da entidade patronal, com todas as consequências que daí decorrem. E nem se diga que a questão agora suscitada pela Apelante – a eventual ocorrência de violação de regras de segurança por parte da entidade empregadora – não tenha sido devidamente ponderada no processo n.º 893/20...., apesar de ela não ter sido então suscitada pela Autora. É que esta questão é de averiguação oficiosa, quer pelo M.P, quer pelo Juiz, pelo que não é legitimo falar agora de “reabertura da instância civil para conhecimento de direitos que não foram anteriormente apreciados”.
Acresce dizer que é neste sentido que tem vindo a decidir este Tribunal da Relação de Guimarães, designadamente no Acórdão de 21.04.2016, proferido no proc. nº 385/14.1T8VRL.G1, relatado por Manuela Fialho, disponível em www.dsgi.pt, onde se escreveu:
É nosso entendimento que, efetivamente, associada à reclamação de direitos emergentes de acidente de trabalho está a observância de um especial conjunto de regras de tramitação que impõem deveres às partes intervenientes.
Entre esses deveres encontra-se o de, no processo desencadeado por força da ocorrência do acidente, se suscitarem todas as questões tendentes à apreciação da responsabilidade dele emergente.
Sufragamos, assim, a tese emergente do despacho recorrido, sustentada, aliás, também no Ac. da RP de 8/11/2010, segundo o qual “tendo transitado em julgado a decisão que homologou o acordo obtido na fase conciliatória dos autos de acidente de trabalho entre os beneficiários e a seguradora, assente na responsabilidade objetiva, não podem agora os mesmos beneficiários propor outra ação especial de acidente de trabalho pedindo indemnização por danos morais por responsabilidade subjetiva (culposa) da empregadora, sem que antes tenham obtido a anulação judicial daquele acordo e revisão da decisão homologatória nos termos do art. 301º/2 do CPCivil. (Procº 128/10.9TTVCT, in www.dgsi.pt). No mesmo sentido ainda o Ac. da RP de 21/10/2013, Procº 44/12.0TTVRL, visível no mesmo sítio.
É que ocorre no caso uma especial exceção dilatória inominada que impede que, transitado em julgado o despacho homologatório do acordo, a instância se renove.
Tal como ensina Leite Ferreira, “com o trânsito em julgado do despacho de homologação a instância extingue-se por autocomposição da lide” (Código do Processo de Trabalho Anotado, 48 ed., pg. 532).
Aliás não faria sentido que a lei vedasse às partes intervenientes no processo a sustentação de teses distintas das suscitadas na fase conciliatória e permitisse a uma dessas partes fazer tábua rasa de todo o regime e vir, após extinção da lide, com uma nova ação contra terceiros ali não chamados.
A natureza dos direitos em presença não é impeditiva desta conclusão na medida em que é a própria lei que permite a celebração de acordo tendo em vista a autocomposição do litígio”.
Por conseguinte, decorre de tudo quanto deixámos expresso que existe um processo adequado à efetivação de todos os direitos emergentes de acidente de trabalho, que é ação especial emergente de acidente de trabalho, processo este que tem duas fases sucessivas com carácter preclusivo relativamente à definição e estabilização, no seu decurso, dos direitos emergentes do acidente de trabalho.
Tendo corrido os seus termos a ação emergente do acidente de trabalho a que os autos se reportam, com decisão transitada em julgado, sem que nessa ação a autora/apelante tivesse alegado, em sede da tentativa de conciliação levada a efeito no mencionado processo n.º 893/20.... a culpa da sua entidade empregadora na produção do sinistro, designadamente por violação de regras de segurança no trabalho, nem reclamado aí o que quer que fosse a título de indemnização por danos não patrimoniais, levou a que ficasse precludido o eventual direito a reparação por danos não patrimoniais, já que após trânsito em julgado da decisão proferida em tais autos, não pode mais ser suscitada a questão referente à culpa do empregador na ocorrência do acidente.[1]
Em face do exposto entendemos que à Recorrente não assiste razão, sendo de manter a decisão recorrida de indeferimento liminar da petição inicial por manifesta improcedência da pretensão deduzida por preclusão do invocado direito não patrimonial

V – DECISÃO

Pelo exposto, e ao abrigo do disposto nos artigos 87.º do CPT. e 663.º do CPC., acorda-se, neste Tribunal da Relação de Guimarães em negar provimento ao recurso de apelação interposto por AA, confirmando-se na íntegra a decisão recorrida.
Custas a cargo da sinistrada.
Notifique.
Guimarães, 18 de Abril de 2024

Vera Maria Sottomayor (relatora)
Antero Dinis Ramos Veiga
Maria Leonor Barroso


[1] Neste sentido ver entre outros, Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 16-02-1990 proferido no processo n.º 002395, Acórdão da Relação do Porto de 08-11-2010 proferido no processo n.º 128/10.9TTVCT.P1, Acórdãos da Relação de Lisboa de 03-02-2010, de 13-07-2016 e de 03.05.2017, proferidos respetivamente nos processos n.ºs 165/09.6TTBRR.L1-4, 244/12.2TBVPV-AL1-4 e 21837/16.3T8LSB.L1-4, todos acessíveis em www.dgsi.pt.