Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
3901/04.3TBBCL.G1
Relator: ISABEL SILVA
Descritores: FGADM
ALIMENTOS DEVIDOS A MENORES
ACTUALIZAÇÃO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 10/08/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário: 1. A imutabilidade da sentença conferida pelo caso julgado material não ocorre nos processos de jurisdição voluntária, como expressamente se refere no nº 2 do art. 619º do CPC.
2. O incidente de garantia dos alimentos a cargo do FGADM não se confunde com o incidente de incumprimento por parte do progenitor.
3. O incidente de garantia dos alimentos a cargo do FGADM não é de jurisdição voluntária, pelo que não permite a prevalência do critério de equidade, nem é aplicável o princípio da modificabilidade da decisão relativa a cada ano.
4. O montante da prestação a cargo do FGADM está sujeita obrigatoriamente a revisões anuais (art. 3º nº 6 da Lei nº 75/98 e art. 9º nº 4 do Decreto-Lei nº 164/99), nas quais o tribunal tem de ter em conta a capacidade económica do agregado familiar e as necessidades específicas do menor na data em causa (art. 2º nº 2, 3º nº 3 da Lei nº 75/98 e art. 3º nº 5, 4º nº 1 e 9º nº 2 do Decreto-Lei nº 164/99).
5. Sendo obrigatório ponderar, em cada ano, as circunstâncias factuais vigentes na altura, por esta via se concretizam as pretendidas atualizações da prestação a pagar pelo FGADM.
6. A obrigação de prestação alimentar a cargo do FGADM não é, de per si, passível de se lhe introduzir um qualquer fator corretivo de atualização, designadamente um que atenda às taxas de inflação.
Decisão Texto Integral: ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES

I - HISTÓRICO DO PROCESSO
1. Na sentença datada de 13.11.2006, que decretou as responsabilidades parentais relativamente aos menores AA, BB e CC, decidiu-se que o pai dos menores pagaria uma prestação mensal de € 100,00 a cada um dos menores, a qual seria anualmente atualizada de acordo com os índices de preços ao consumidor publicados pelo Instituto Nacional de Estatística (de futuro, apenas INE).
Sob impulso da mãe dos menores, veio depois a suscitar-se incidente de incumprimento dessa obrigação alimentar.
Por sentença datada de 06.07.2007, constatada a ausência de quaisquer bens ou rendimentos do pai dos menores, decidiu-se fixar em € 125,00 a prestação a efetuar pelo Fundo de Garantia de Alimentos devidos a Menores (de futuro, apenas FGADM) para cada um dos menores, nada se referindo quanto a atualizações.
Interposto recurso dessa decisão, veio o Supremo Tribunal de Justiça (de futuro, apenas STJ), por acórdão de 10.07.2008, a decidir que o FGADM pagaria os montantes fixados em 1ª instância, desde 18.12.2008, deduzindo o que provisoriamente já havia liquidado.
Tendo entretanto os menores AA e BB atingido a maioridade, declarou-se cessada a obrigação do FGADM quanto a eles, por decisões datas de 19.05.2011 e de 16.09.2013, respetivamente.
Após sucessivas avaliações da necessidade de manutenção ou cessação da intervenção do FGADM, veio o Ministério Público (de futuro, apenas Mº Pº) promover, desta feita apenas quanto à menor CC, em 06.01.2015, nos seguintes termos:
«1. (…) a manutenção (…) da prestação mensal a pagar pelo Fundo de Garantia de Alimentos devidos a Menores (…).
2. (…) que se reveja e altere a decisão inicial, de fls. 281, no que tange ao critério de actualização anual a fim de passar-se a adoptar o critério do aumento anual da prestação do F.G.A.D.M. segundo as taxas de inflação (preços ao consumidor) publicadas pelo I.N.E,conforme coincidente critério actualizador constante da sentença de fls. 209 que condenou inicialmente o devedor originário à obrigação alimentícia na qual ficou sub-rogado aquele mesmo Fundo de Garantia de Alimentos Devidos a Menores.».
Sobre tais promoções, versou a seguinte decisão, datada de 08.01.2015:
«Decorrido um ano, e depois de feita a renovação da prova prevista no art. 9º, n.º 4, do DL n.º 164/99, de 13 de Maio, o tribunal determinou a manutenção da referida prestação.
Decorrido mais um ano, veio a mãe da menor renovar a prova da manutenção dos pressupostos subjacentes à atribuição da referida prestação.
Analisada a prova junta pela mãe da menor, concluímos que de facto se mantêm os pressupostos subjacentes á atribuição da prestação de alimentos a cargo do Fundo de Garantia de Alimentos Devidos a Menores acima referida.
Pelo exposto, e nos termos promovidos, o tribunal decide manter a prestação de alimentos a cargo do Fundo de Garantia de Alimentos Devidos a Menores, indeferindo-se no mais a promoção antecedente uma vez que está esgotada nessa parte o poder jurisdicional previsto no art. 619º do Código de Processo Civil.».
A sentença de fls. 209, a que alude o Mº Pº, foi a atrás referida e proferida em 13.11.2006.
Quanto à sentença de fls. 281 foi a atrás referida como datada de 06.07.2007.
Em todas as anteriores decisões de avaliação, considerou-se ser de manter a necessidade de intervenção do FGADM, sempre pelo referido montante de € 125,00.

2. Inconformado, vem o Mº Pº apelar, formulando as seguintes CONCLUSÕES [ [] Como é sabido, são as conclusões que delimitam o objeto do recurso ou “thema decidendum”; as alegações servirão para explanar os argumentos na defesa da tese do recorrente quanto à demonstração das questões suscitadas; já as conclusões devem referir, de forma sucinta, os pontos em que se considera ter havido erro de julgamento (seja quanto à matéria de facto, seja quanto à de direito), em conformidade com o nº 1 e 2 do art. 639ºdo CPC.
Constatando-se que em algumas das "conclusões", o Recorrente apenas reproduz o texto de preceitos legais, dispensamo-nos de aqui os reproduzir.]:

«1. – No caso que nos ocupa, quem necessita de alimentos «está no fim da linha», são os «párias» que a egoística decadência de valores e a dura dinâmica económico-social vão criando, são os mais carenciados dos carenciados, são os indefesos que são crianças;
2. – A intervenção do Fundo de Garantia de Alimentos Devidos a Menores depende da existência de uma obrigação de alimentos judicialmente decretada, que não é satisfeita, nem se mostra possível satisfazê-la pela forma prevista no artigo 189.° do Decreto-Lei n.º 314/78, de 27 de Outubro, e do facto do alimentado não ter rendimento líquido superior ao salário mínimo nacional nem beneficiar nessa medida de rendimentos de outrem a cuja guarda se encontre;
3. – A fixação daquela prestação alimentícia é feita atendendo às actuais condições do menor e do seu agregado familiar, podendo ser diferente da anteriormente fixada;
4. – A criação do Fundo de Garantia de Alimentos Devidos a Menores, gerido pelo Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social, deveu-se ao elevado número de situações de incumprimento das prestações de alimentos devidos a menores;
5. – O referido Fundo de Garantia não visa substituir definitivamente uma obrigação legal de alimentos devida a menor, antes reveste natureza subsidiária, visto que é seu pressuposto legitimador a não realização coactiva da prestação alimentícia já fixada, através das formas previstas no artigo 189.° da Organização Tutelar de Menores;
6. – Ora os presentes autos e os incidentes deles dependentes – como o presente – têm a natureza de procº de jurisdição voluntária (tal como decorre por força do disposto no Artº150º da Organização Tutelar de Menores natureza esta que há que se entender ser extensível a todos os incidentes umbilicalmente dependentes da causa principal onde se hajam fixado os alimentos ao devedor originário);
7. – Ademais estes processos, onde se Regulam as Responsabilidades Parentais e onde se processam os incidentes de incumprimento da prestação alimentícia e onde (por impossibilidade de se obter a cobrança desta através do mecanismo de incumprimento próprio p. no Artº. 189º da O.T.M.) se processa, como no presente, o incidente, legal e logicamente subsequente, p. no Artº. 1º da Lei 75/98 de 19/XII e no Artº. 3º nº1, do D.L.164/99 de 13 de Maio vigora – por tudo isto ser como dito jurisdição voluntária – o princípio da Equidade;
8. – Chama-se Juízo de Equidade àquele em que o juiz resolve o caso que lhe é posto de acordo com um critério de justiça material, e, embora sem recurso linear a uma norma jurídica pré-estabelecida, dando, no entanto, uma solução que, no momento e segundo as circunstancias concretas averiguadas se afigura a mais justa…e, não sendo Fonte de Direito é critério de Correcção do Direito.
9. – De tal Equidade como princípio conformador geral dos processos de jurisdição voluntária, provém, como precipitado natural, o princípio da modificabilidade das decisões por parte do Tribunal que as haja proferido – mesmo das decisões finais – vigorando aqui o disposto no artº 988.º do Cod. Procº Civil: (Valor das resoluções): (…)
10. – O que, sintomaticamente e como sinal duma reveladora unidade do sistema e da ordem jurídica, tudo entronca no artº 619º do Codº Procº Civil em que se estribou genericamente o indeferimento judicial ora em crise, o qual não atentou, porém, no estabelecido no respectivo nº2: (…)
11. – Fosse pelo disposto no nº2 do artº 619º do Codº Procº Civil fosse pelo disposto no artº988º do mesmo Código, o Tribunal recorrido podia (e devia) ter alterado a decisão inicial que condenou o Fundo de Garantia proferida a 06.07.2007 (cfr.fls.277-281 destes autos) e,
12. –Tê-la alterado «…no que tange ao critério da actualização anual, a fim de indexara prestação do Fundo ao aumento anual segundo as taxas de inflação (preços aoconsumidor) publicadas pelo I.N.E. tal como consta da obrigação do devedor originário,fixada na sentença de fls. 31-32 dos autos principais (aqui Apenso-A)»;
13. – É que essa decisão judicial proferida inicialmente no presenteincidente de incumprimento é já datada de 06.07.2007 (cfr.fls.277-281destes autos) e, nessa altura, já a prestação alimentícia do devedororiginário se encontrava aumentada por virtude de um critérioactualizador prudentemente fixado, como se disse, na Sentença de fls. 200-209 destes mesmos autos que condenou tal obrigado originárioe que, por sua vez, é datada de 13.11.2006.
14. – Ora, como dito supra, o Fundo de Garantia é efectivamente umgarante e não um substituto das prestações em falta: na verdadeatribuiu-se ao Estado, nos casos em que os alimentos judicialmentefixados ao filho menor não podem ser cobrados nos termos dos meiospré-executivos previstos no art. 189.° da O.T.M. a obrigação de garantiro pagamento até ao efectivo cumprimento da obrigação peloprogenitor devedor, ficando o mesmo Estado sub-rogado em todos osdireitos dos menores a quem sejam atribuídas as prestações, com vistaa ser reembolsado do que pagou (ex vi artigo 5.°, n.º 1, do Decreto-Lei n.º164/99, de 13 de Maio).
15. – Se isto assim é, então não se percebe porque é que a suaobrigação garantística não fica também sujeite a uma idênticacláusula actualizadora da prestação alimentar garantida, tal como jáfixado para o devedor originário na Sentença que condenára esteúltimo em tais alimentos;
16. – Como se sabe, os factos notórios não carecem de ser alegados:Artigo 412.º do Codº Procº Civil: (…)
17. –No caso, são manifestos e notórios os factos supervenientes queimpunham, independentemente de promoção ou requerimentoalegatório, que o Tribunal alterasse a decisão condenatória inicialintroduzindo-lhe a necessária cláusula actualizadora anual:
18. – Seja o aumento anual (embora actualmente numa taxa inflacionária baixa)do custo de vida, seja o estado depauperado da economia nacional,sejam os números dramáticos do desemprego e das famíliasacossadas pela falta dos rendimentos do trabalho, sejam asnecessidades crescentes dos menores nas suas várias fases etárias,sejam as estatísticas europeias que dão as crianças (em particular as daGrécia, Portugal e Irlanda) como o sector da população mais duramenteatingido pela pobreza;
19. – Assim, atento o tempo decorrido avulta por si própria, e porelementar prudência ponderativa, a necessidade de estabelecer ummecanismo realmente equitativo que acautele uma adequadaactualização da prestação alimentícia a que está obrigado o Fundode Garantia de Alimentos devidos a Menores, actualização essa queseja, por um lado, compatível com o referido panorama de pesadacrise sócio-económica reinante e, por outra banda, esteja à altura nãosó do actual nível da inflação e do custo de vida mas tambémconsonante com as reais e sempre crescentes necessidades com aalimentação, vestuário, cuidados de saúde e despesas de educaçãoque o(s) menor(es) aqui abrangido(s) demanda(m) nas fasessucessivas da infância, adolescência e juventude até à maioridade,necessidades essas que são sempre superiores àquelas dos adultos ese não compadecem com estritos calculismos e aritméticaseconomicistas;
20. – Tal alteração aqui pugnada da decisão judicial proferidainicialmente a fls.50-58 destes autos, impõe-se, naturalmente, comoresultado de um mandatório Juízo de Equidade que, como se dissesupra, é aquele em que o Juiz resolve o caso que lhe é posto deacordo com um critério de justiça material: e não lavando as mãosnum errado entendimento do que é o caso julgado em matéria dealimentos a menores;
21. – Pelo exposto, e porque também mais conforme à Equidade, éentendimento do Ministério Público nesta Instância Central de Famíliae Menores de Barcelos que as prestações a suportar pelo Fundo deGarantia de Alimentos Devidos a Menores deverão sempre seracompanhadas da imposição de uma cláusula actualizadora anual[segundo as taxas de inflação (preços ao consumidor) publicadas pelo I.N.E.],devendo ser rejeitada interpretação diversa, como aquela acolhidana Sentença ora em crise,
22. – A qual, violou, directamente, o disposto nos artigos 619º n.º 2, 987º e988° do Código de Processo Civil, 150º da Organização Tutelar deMenores, 1.° da Lei n.º 75/98, de 19 de Novembro, 3.° e 5.° do Decreto-Lei n.º 164/99, de 13 de Maio, 2004.° do Código Civil, e 24°, n.º 1, e 69.°,n.os 1 e 2 da Constituição da República Portuguesa;
23. – Deverá ser julgado procedente o Recurso em apreço revogando-separcialmente e substituindo-se a Sentença ora recorrida por outra que– mantendo embora a condenação do Fundo de Garantia de Alimentos Devidos aMenores-F.G.A.D.M. nos termos em que o fez – estabeleça e imponha umaadjuvante cláusula actualizadora anual daquela obrigaçãopecuniária alimentícia [segundo as taxas de inflação (preços ao consumidor)publicadas pelo I.N.E.];
TERMOS EM QUE, deverá ser julgado procedente o Recurso em apreço revogando-separcialmente e substituindo-se, nos termos expostos, a douta decisãorecorrida;
Com o que, decidindo pelo modo ora pugnado farão,V.as Ex.as, Colendos Desembargadores,Mui Boa e Avisada Justiça,Como é, aliás, Vº. Mui Alto e Honrado Mister…»

3. Não houve contra-alegações.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

II - FUNDAMENTAÇÃO
4. Com pertinência para o conhecimento do recurso, releva o circunstancialismo elencado no Relatório (ponto 1.).

5. O MÉRITO DO RECURSO
O objeto do recurso é delimitado pelas questões suscitadas nas conclusões dos recorrentes, e apenas destas, sem prejuízo de a lei impor ou permitir o conhecimento oficioso de outras: art. 608º nº 2, ex vi do art. 663º nº 2, do Código de Processo Civil (de futuro, apenas CPC).
No caso, o recurso suscita uma única QUESTÃO: a obrigação de prestação alimentar a cargo do FGADM pode ser sujeita a cláusula atualizadora?

5.1. A VERTENTE PROCESSUAL
Concorda-se com o Mº Pº quando refere que, quer o processo de regulação das responsabilidades parentais, quer os seus incidentes, são processos de jurisdição voluntária: art. 150º da Organização Tutelar de Menores (de futuro, apenas OTM).
E, como se sabe, a caraterística destes processos reside no facto de as decisões aí proferidas poderem “ser alteradas, sem prejuízo dos efeitos já produzidos, com fundamento em circunstâncias supervenientes que justifiquem a alteração; dizem -se supervenientes tanto as circunstâncias ocorridas posteriormente à decisão como as anteriores, que não tenham sido alegadas por ignorância ou outro motivo ponderoso”: art. 988º nº 1 do CPC.
Ou seja, a imutabilidade da sentença conferida pelo caso julgado material não ocorre nos processos de jurisdição voluntária, como expressamente se refere no nº 2 do art. 619º do CPC.
Igualmente marcante é a caraterística de o tribunal não estar sujeito a critérios de legalidade estrita, devendo antes adotar soluções de oportunidade e equidade: art. 987º do CPC.

Mas, será o “incidente de garantia de alimentos a cargo do FGADM” um processo de jurisdição voluntária?
É que, uma coisa é o incidente de incumprimento por parte do progenitor [[] Falamos aqui em “progenitor” por facilidade de linguagem, devendo entender-se que tal ocorre relativamente a qualquer “pessoa judicialmente obrigada”, como é referido no art. 189º da OTM.] e, outra bem diferente, o incidente de garantia dos alimentos a cargo do FGADM.
Na verdade, ele não só está previsto em legislação avulsa, como tem pressupostos processuais e substantivos diversos, pelo que deve ser considerado procedimento especial.
De registar ainda que ele não está previsto na OTM, antes sendo regulado em legislação avulsa.
Também não faz parte dos processos regulados no “título XV” (processos de jurisdição voluntária, artigos 986º e seguintes) do CPC.
Sendo uma das modalidades de processos especiais [[] Neste sentido, Antunes Varela, J. Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, “Manual de Processo Civil”, 2ª edição, 1985, Coimbra Editora, pág. 69, bem como Lebre de Freitas, A. Montalvão Machado e Rui Pinto, “Código de Processo Civil Anotado”, vol. 2º, 2ª edição, 2008, Coimbra Editora, pág. 229.], os processos de jurisdição voluntária apenas aqueles aos quais a lei atribui tal natureza.
Ainda que comungando com eles da natureza de processo especial, isso não transforma o “incidente de garantia de alimentos a cargo do FGADM “ em processo de jurisdição voluntária.
A prevalência do critério da equidade sobre a legalidade estrita só é possível “quando haja disposição legal que o permita”: art. 4º al. a) do Código Civil (de futuro, apenas CC).
Nos processos de jurisdição voluntária existe disposição legal específica a permitir a adoção de critérios de equidade (art. 987º do CPC e art. 150º da OTM), mas tal já não acontece quanto ao incidente de garantia dos alimentos a cargo do FGADM, como se extrai dos diplomas que o regulam: Lei nº 75/98, de 19.11 [cujos preceitos serão aqui considerados com o determinado no art. 1º nº 2 al. c) da Lei nº 70/2010, de 16.06 e com a redação dada pela Lei nº 66-B/2012, de 31.12] e Decreto-Lei nº 164/99, de 13.05 (este na redação atualizada pela Lei nº 70/2010, de 16.06).
Concluindo, o incidente de garantia dos alimentos a cargo do FGADM, sendo um incidente/processo especial, não é de jurisdição voluntária nem permite a prevalência do critério de equidade.
Não tendo natureza de jurisdição voluntária, não lhe são aplicáveis os princípios da modificabilidade da decisão nem o da prevalência do critério da equidade pelo que não havia lugar à pretendida revisão e alteração da decisão inicial que fixou a prestação devida pelo FGADM (fls. 281 dos autos), de molde a acrescentar-lhe uma cláusula de atualização anual.
Aos processos especiais são-lhe aplicáveis as regras que especificamente os disciplinam.
Quer o art. 3º da Lei nº 75/98, quer o art. 9º nº 4 do Decreto-Lei nº 164/99, ao determinarem a obrigatoriedade da revisão anual da prestação fixada, constituem mecanismos processuais próprios de se proceder, em cada ano, à atualização que se impuser.

5.2. A VERTENTE SUBSTANTIVO-MATERIAL
Outro aspeto da questão é o de saber se as prestações pagas pelo FGADM permitem que lhes seja aposta uma qualquer cláusula de atualização.
Na verdade, em tanto se cifrava a pretensão do Mº Pº quando, na sua douta promoção pretendeu: (i) por um lado, que se mantivesse a prestação mensal que vinha sendo paga pelo FGADM e, (ii) por outro, que fosse revista e alterada a decisão inicial (fls. 281) que havia fixado tal prestação em € 125,00, de molde a que se lhe apusesse o critério de atualização anual segundo as taxas de inflação (preços ao consumidor) publicadas pelo INE.
Mediante a Lei nº 75/98, o Estado assumiu a obrigação de garantir o pagamento das prestações alimentares devidas a menores quando o respetivo progenitor o não fizer: art. 1º.
O Estado assumiu, portanto, uma obrigação de garantia, a executar através do FGAM.
Assim, de acordo com esse art. 1º, —— e uma vez demonstrado (i) o incumprimento por parte do progenitor e que (ii) o menor não tem rendimento ilíquido superior ao valor do indexante dos apoios sociais (de futuro, apenas IAS) nem beneficia de rendimentos de outrem a cuja guarda se encontre ——, o Estado assegura as prestações de alimentos a que o progenitor se encontra obrigado.
A obrigação alimentar do progenitor constitui, portanto, o referente da obrigação do FGADM.
Como refere Tomé d’Almeida Ramião, «O valor da prestação a cargo do devedor subsidiário tem que ter como limite o valor da prestação a que está obrigado o devedor principal e que corresponde na exata medida ao direito de crédito do menor.». [[] In “Organização Tutelar de Menores, Anotada e Comentada”,10ª edição (revista e ampliada), Quid Juris, 2012, pág. 200.]
Se a sentença que fixou a prestação alimentar a cargo do progenitor determinou a sua atualização, essa atualização integra a obrigação do progenitor em cada momento a que a ela houver lugar.
Por exemplo, uma obrigação alimentar fixada em 2010 em € 100,00 e com atualização anual em 3%, corresponderá, em 2011, a uma prestação de € 103,00 (€ 100,00 + 3), em 1012 a uma prestação de € 106,09 (€ 103,00 + 3,09) e assim sucessivamente.
Ou seja, se a prestação a pagar pelo progenitor estiver sujeita a atualizações, será o montante atualizado que deve ser tido em conta em cada ano, quando se procede à avaliação da manutenção ou cessação da obrigação do FGADM, nos termos do art. 3º nº 4 e nº 6 da Lei nº 75/98 e art. 9º 4 do Decreto-Lei nº 164/99.
De acordo com as regras gerais, a garantia não pode exceder o valor da dívida principal, como aliás veio a ser decidido (posto que com outros argumentos) o Acórdão de Uniformização de Jurisprudência (de futuro, apenas AUJ) n.º 5/2015, estatuindo que «nos termos do disposto no art.º 2.º da Lei 75/98 de 10/11 e no art.º 3.º, n.º 3, do D.L. 164/99 de 13/05, a prestação a suportar pelo Fundo de Garantia de Alimentos Devidos a Menores não pode ser fixada em montante superior ao da prestação de alimentos a que está vinculado o devedor originário». [[] Acórdão de uniformização de jurisprudência nº 12/2009, de 19.03.2015 (processo 252/08.8TBSRP-B-A.E1.S1-A), disponível em http://www.dgsi.pt/, sítio a ter em conta nos demais arestos que vierem a ser citados sem outra menção de origem, e publicado no Diário da República, Iª Série, nº 85, de 04-05-2015.]
Para além disso, no uso do direito que assiste a um garante, o Estado decidiu limitar a sua garantia: nos termos do art. 2º nº 1 da Lei 75/98 e art. 3º nº 5 do Decreto-Lei nº 164/99 estabeleceu um teto máximo mensal de 1 IAS, por cada devedor, independentemente do número de filhos menores (os credores).
Mas, o facto de a garantia não poder exceder o valor da dívida principal, não significa que o tribunal não tenha em conta a atualização fixada para o devedor principal. Se a dívida principal contém atualização, o que está em dívida é o valor atualizado, sob pena de se estar a atender a um valor inferior ao devido!
A bitola de tal cálculo é a obrigação do devedor.
Tendo esta integrada uma atualização anual, só tendo em conta as atualizações devidas se fica em condições de operar com o limite de que a prestação do FGADM não pode ser superior à do progenitor.
De todo o exposto decorre que, ao apreciar a obrigação do FGADM, o juiz deve: 1º - ter por demonstrado o incumprimento por parte do progenitor; 2º - ter por confirmado que o menor não tem rendimento ilíquido superior ao valor do IAS nem beneficia de rendimentos de outrem a cuja guarda se encontre (apuramento nos termos do nº 2 e 3 do art. 3º do Decreto-Lei nº 164/99); 3º - apurar qual o valor da prestação alimentar a cargo do progenitor, considerando as atualizações determinadas na sentença que a fixou; 4º - fixar a prestação a cargo do FGADM tendo em conta para o efeito a capacidade económica do agregado familiar e as necessidades específicas do menor; 5º - verificar se o montante assim encontrado é superior ao montante da prestação do progenitor, atualizada ao momento da decisão e, nesse caso, reduzi-la até esse montante; 6º - por fim, verificar se tal montante é superior ao montante de 1 IAS e, em caso afirmativo, reduzi-la ainda até montante equivalente.

A obrigação do FGADM é autónoma da do progenitor/devedor principal, no sentido de que tem pressupostos próprios para ser devida, e também critérios diversos para o apuramento do montante devido.
Quanto ao progenitor, a prestação alimentar é devida até à maioridade ou até que o menor obtenha proventos do seu trabalho ou outros (art. 1879º e 1905º do CC); quanto ao FGADM, a prestação só é devida no pressuposto de incumprimento por parte do progenitor judicialmente obrigado (num quadro do art. 1905º do CC) e de o menor não ter rendimento ilíquido superior ao do IAS, nem beneficiar de rendimentos de outrem a cuja guarda se encontre (art. 1º da Lei nº 75/98 e art. 3º do Decreto-Lei nº 164/99).
Quanto ao apuramento do montante devido, no caso do progenitor o montante é fixado pelo binómio necessidades do menor versus possibilidades do progenitor (art. 2004º do CC); já no caso do FGADM, opera-se com os limites da prestação fixada ao progenitor e com o montante de 1 IAS (art. 2º nº 1 da Lei nº 75/98 e art. 3º nº 5 do Decreto-Lei nº 164/99).

Concorda-se que as circunstâncias da vida não são imutáveis.
Porém, também aí são diversos os critérios usados pelas disposições legais atinentes a cada um dos institutos.
No caso do progenitor, projeta-se uma obrigação prolongada no tempo já que persiste até à maioridade ou até que o menor obtenha proventos do seu trabalho; faz por isso sentido, fixar-lhe um qualquer critério de atualização que acompanhe a consabida inflação.
Para além desta atualização, que poderemos apelidar de normal, está ainda prevista uma outra, extraordinária, sempre que se alterem de forma significativa as necessidades do menor ou as possibilidades do progenitor.
Se as circunstâncias de vida se alteraram (de forma que o fator de atualização se mostre obsoleto) ou se necessidades do menor se alteraram —— não se esqueça que um dos limites máximos da prestação do FGADM é o equivalente ao montante devido pelo progenitor ——, o que há a fazer é despoletar a alteração da prestação alimentar do progenitor, com o competente exercício do contraditório.
Não se esqueça que a obrigação do FGADM é subsidiária da obrigação do progenitor pelo que terá sempre de se operar com esta como baliza para aquela.
Quanto ao montante da prestação a cargo do FGADM —— porque perspetivada para persistir apenas perante o incumprimento do progenitor (para além, naturalmente, da maioridade) —— já atrás o referimos, está sujeita obrigatoriamente a revisões anuais: art. 3º nº 6 da Lei nº 75/98 e art. 9º nº 4 do Decreto-Lei nº 164/99.
Ora, em cada uma dessas revisões anuais, o tribunal tem de ter em conta a capacidade económica do agregado familiar e as necessidades específicas do menor: art. 2º nº 2, 3º nº 3 da Lei nº 75/98 e art. 3º nº 5, 4º nº 1 e 9º nº 2 do Decreto-Lei nº 164/99.
Sendo obrigatório ponderar, em cada ano, as circunstâncias factuais vigentes na altura (concretas necessidades do menor/possibilidades do agregado familiar), por esta via se concretizam as pretendidas atualizações da prestação a pagar pelo FGADM.
Concluindo, a obrigação de prestação alimentar do FGADM não é, de per si, passível de se lhe introduzir um qualquer fator corretivo de atualização, designadamente um que atenda às taxas de inflação.

6. SUMARIANDO (art. 663º nº 7 do CPC)
a) A imutabilidade da sentença conferida pelo caso julgado material não ocorre nos processos de jurisdição voluntária, como expressamente se refere no nº 2 do art. 619º do CPC.
b) O incidente de garantia dos alimentos a cargo do FGADM não se confunde com o incidente de incumprimento por parte do progenitor.
c) O incidente de garantia dos alimentos a cargo do FGADM não é de jurisdição voluntária, pelo que não permite a prevalência do critério de equidade, nem é aplicável o princípio da modificabilidade da decisão relativa a cada ano.
d) O montante da prestação a cargo do FGADM está sujeita obrigatoriamente a revisões anuais (art. 3º nº 6 da Lei nº 75/98 e art. 9º nº 4 do Decreto-Lei nº 164/99), nas quais o tribunal tem de ter em conta a capacidade económica do agregado familiar e as necessidades específicas do menor na data em causa (art. 2º nº 2, 3º nº 3 da Lei nº 75/98 e art. 3º nº 5, 4º nº 1 e 9º nº 2 do Decreto-Lei nº 164/99).
e) Sendo obrigatório ponderar, em cada ano, as circunstâncias factuais vigentes na altura, por esta via se concretizam as pretendidas atualizações da prestação a pagar pelo FGADM.
f) A obrigação de prestação alimentar a cargo do FGADM não é, de per si, passível de se lhe introduzir um qualquer fator corretivo de atualização, designadamente um que atenda às taxas de inflação.


III. DECISÃO
7. Pelo que fica exposto, acorda-se nesta secção cível da Relação de Guimarães em negar provimento ao recurso e, ainda que por outros fundamentos, manter-se a decisão recorrida.
Sem custas, por o Mº Pº delas estar isento.
Guimarães, 08.10.2015

Isabel Silva

Heitor Gonçalves

Carvalho Guerra