Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
175/23.0T8AMR.G1
Relator: MARIA DOS ANJOS NOGUEIRA
Descritores: COMPRA E VENDA
DEFEITOS
DENÚNCIA
CADUCIDADE
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 04/24/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I – Nos termos do art.º 921.º, do Cód. Civil, o comprador deve denunciar ao vendedor o vício ou a falta de qualidade da coisa até trinta dias depois de conhecido o defeito e dentro de seis meses após a entrega da coisa.
II – A garantia de bom funcionamento refere-se apenas à reparação ou substituição da coisa, independentemente de culpa do vendedor ou do produtor, mas não à anulação do contrato ou redução do preço, nem indemnização
III - A caducidade pode ser impedida, mas não interrompida ou suspensa, pelo que a única forma de evitar a caducidade é praticar, dentro do prazo correspondente, o acto que tenha efeito impeditivo.
IV - E, se tal prazo respeita ao exercício de uma acção judicial, a única forma de evitar a caducidade é propor a mesma dentro do prazo.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães

I - Relatório

AA, Número de Identificação Fiscal ...09 residente na Avenida ..., ..., ..., ..., (...), veio instaurar acção declarativa de condenação sob a forma de processo comum contra BB, residente na Estrada ..., ..., ... ..., ..., pedindo, na sequência da procedência da acção, seja o Réu condenado a pagar-lhe uma indemnização por danos patrimoniais, no valor de €3.825,28 (três mil oitocentos e vinte e cinco euros e vinte e oito cêntimos), bem como uma indemnização por danos não patrimoniais, em quantia nunca inferior a € 1.500,00 (mil e quinhentos euros), tudo acrescido de juros de mora à taxa legal aplicável, desde a citação até efectivo e integral pagamento.
Para tanto, e em síntese, a autora alegou que, no exercício da actividade profissional do R. de compra e venda de veículos usados, em 02.07.2019, este lhe vendeu o veículo usado de matrícula ..-..-NE, com 344.360 quilómetros já percorridos, pelo preço de € 2.800,00 e que, no dia 02.08.2020, e que esse veículo apresentou problemas mecânicos relacionados com o motor, designadamente com a junta da colaça, disso tendo informado o R., em 13.08.2020.
Referiu que, nessa sequência, no mês de Setembro de 2020, deixou o veículo na oficina, por indicação do réu, a fim de o veículo ser reparado, pelo que, não se tendo procedido a essa reparação, no dia 06.10.2022, dirigiu-se às instalações do stand do réu, altura em que o réu a insultou, o que originou que, em 22.12.2020, tivesse apresentado queixa crime contra o mesmo nos serviços do Ministério Público, o que deu origem ao processo n.º 5452/20...., processo no qual a autora deduziu acusação particular pela prática do crime de injuria e deduziu pedido de indemnização civil contra o réu, por via do qual peticionou a condenação do réu no pagamento dos danos decorrentes da reparação do veículo e dos danos não patrimoniais.
Mais referiu que, no âmbito desse processo, em 30.11.2022 foi proferida sentença que condenou o réu pela prática do crime de injúria e julgou parcialmente procedente o pedido de indemnização civil, condenando o réu no pagamento do montante de € 600,00 a título de compensação pelos danos não patrimoniais, tendo improcedido o pagamento dos danos patrimoniais atinentes à reparação do veículo.
A autora alegou, ainda, que procedeu à reparação do veículo, com o que despendeu o montante de € 1.635,28, e que esteve privada do uso do seu veículo desde ../../2020 até ao dia ../../2020, razão pela qual peticiona o pagamento de uma indemnização no montante de € 2.190,00 pela privação de uso do seu veículo, e alega que sofreu danos não patrimoniais, cuja compensação computa no montante de € 1.500,00.
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Pessoalmente citado, o réu deduz contestação, por via da qual impugnou os factos alegados pela autora e arguiu a excepção de caducidade, por terem decorrido mais de dois anos desde a data da denúncia dos defeitos do veículo até à data da propositura da acção.
Mais alega que inexiste qualquer causa de interrupção do prazo de caducidade, porquanto o pedido de indemnização civil no qual a autora peticionou o pagamento dos danos patrimoniais resultantes da reparação do veículo foi formulado na sequência de dedução de acusação particular somente pelo crime de injúria e não por outro crime que lhe permitisse peticionar tais danos.
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Notificada, a autora apresentou articulado de resposta, por via do qual alegou que não se verifica a caducidade da acção, porquanto dentro do prazo legal, após a denuncia das desconformidades, exerceu o seu direito de demandar o réu relativamente às avarias apresentadas pelo veículo, o que fez com a dedução do pedido de indemnização civil no referido processo crime, interrompendo o prazo, que começou a correr a partir da data da prolação de sentença naquele processo crime.
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O tribunal a quo proferiu decisão que julgou procedente a excepção de caducidade e, em consequência, absolveu o R. do pedido.
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II-Objecto do recurso

Não se conformando com a decisão proferida veio a A. interpor recurso, juntando, para o efeito, as suas alegações, e apresentando, a final, as seguintes conclusões:
I. A aqui Recorrente vem apresentar o presente recurso por não se conformar, de modo algum, com o despacho saneador proferido pelo Tribunal a Quo que, infundadamente, julgou no processo in mérito verificar-se a exceção de caducidade invocada pelo Réu, BB, com consequente absolvição do mesmo do pedido, conforme preceituado nos artigos 576.º, n.º3 e 579.º, do CPC.
II. Nessa conformidade, não pode, nem deve a Autora, aqui Recorrente, concordar com a posição adotada pela entidade recorrida, no sentido de que a caducidade da ação verificou-se no pretérito dia 28 de Abril de 2021, não se tendo verificado nenhum facto interruptivo ou suspensivo da mesma,
III. Pois, tendo na devida consideração que a denuncia dos defeitos da coisa vendida pelo Réu à Autora foi efetuada, por esta última, em 13 de Agosto de 2020, a mesma apenas dispunha de um prazo de seis meses para propor a presente ação.
IV. Vejamos:
V. Como decorre dos presentes autos, a Autora, no passado dia 19 de Julho de 2019, adquiriu ao Réu um veículo ligeiro de passageiros, usado, marca ..., matrícula ..-..-NE, cujo conta-quilómetros indicava um total de 344 360 mil quilómetros já percorridos, pelo preço de €2.800,00 (dois mil e oitocentos euros).
VI. Porém, em 02 de Agosto de 2020, o veículo supra referido apresentou problemas a nível mecânico, relacionados com o motor, designadamente com a junta da colaça, salvo melhor opinião técnica/especializada.
VII.Em face disso, a Autora tentou, junto do Réu, que este assumisse a competente reparação do veículo, remetendo, para além do demais, carta registada com aviso de receção com data de 13 de Agosto de 2020,
VIII. Tendo, nesse seguimento, o Réu dado indicações à Autora para colocar o veículo nas instalações do Stand EMP01..., e consequentemente numa oficina a fim de ser reparado, por conta e custo daquele,
IX. E emprestado, por umperíodo nãosuperiora 8(oito)dias um veículodesubstituição de modo a que a mesma se pudesse deslocar durante o período em que seu automóvel estaria em reparação.
X. Contudo, uma vez que a ordem de reparação, por parte do Réu à oficina, prolongava-se no tempo, a Autora, já não podendo mais aguardar, já que o veículo automóvel em causa lhe era imprescindível nas suas deslocações diárias,
XI. Procurou, juntamente com a sua filha, contactar o Réu, o que logrou fazer no dia 06 de Outubro de 2020, de modo a obter alguma justificação que pudesse motivar tais atrasos na reparação do seu veículo,
XII. Tendo, todavia, sido confrontada com impiedosos insultos por parte do mesmo, os quais foram alvos de devida participação crime.
XIII. E tanto assim o é, na medida em que no dia 22 de Dezembro de 2020, a Autora, aqui Recorrente, aprestou a competente queixa-crime contra o Réu, a qual originou o Processo n.º 5452/20...., o qual correu os seus devidos termos no Juízo Local Criminal de ....
XIV. E, nesta senda, mais se diga que a aqui Recorrente, no âmbito do referido processo, deduziu Acusação Particular e Pedido de Indemnização Civil, através do qual foram peticionados danos não patrimoniais e danos patrimoniais, designadamente, os danos decorrentes da reparação do veículo que o Réu havia vendido a esta última.
XV. Com efeito, o processo-crime seguiu os seus ulteriores termos, tendo, em 30 de Novembro de 2022, sido proferida sentença a qual condenou o aqui Réu pela prática de um crime de Injúrias,
XVI. E parcialmente procedente o pedido de indemnização civil deduzido, condenando o Réu no pagamento de € 600,00 (seiscentos euros), a título de compensação pelos danos não patrimoniais.
XVII.Como tal, resulta claro que da sentença proferida, o pedido quanto ao pagamento dos danos patrimoniais, resultantes das reparações que a Autora suportou no veículo que havia comprado ao aqui Réu, foi julgado improcedente, motivo pelo qual, esta última, viu-se impelida a deduzir a ação que deu origem aos presentes autos.
XVIII. Saliente-se, a este propósito, que a aqui Recorrente se viu impelida a intentar a competente ação de condenação, porquanto foi face àquele triste episódio ocorrido em 06 de Outubro de 2020, no qual a Autora foi veementemente injuriada,
XIX.Que a mesma se apercebeu que o Réu não pretendia efetuar a reparação do veículo que lhe vendera no ano de 2019, deixando de subsistir condições entre as partes que permitissem à Autora continuar a exigir, junto daquele, tal reparação,
XX.E, como tal, acabou a mesma por proceder à reparação do seu veículo automóvel, no Stand EMP02... – Comercio de automóveis, Reparação e Manutenção, pelo montante total de €1.635,28 (mil seiscentos e trinta e cinco euros e vinte e oito cêntimos).
XXI.Pagamento esseque apenas ocorreupelo facto do Réu ter injuriado cruelmente a Autora, aqui Recorrente, com o único propósito de intimidar a mesma e, dessa forma, libertar-se da sua obrigação legal de reparação do veículo aqui em crise.
XXII. Isto a significar que, em virtude da conduta perpetrada pelo Réu, é que a Autora, aqui Recorrente, deduziu procedimento criminal contra aquele, através do qual formulou um pedido de indemnização civil,
XXIII. Procurando, através dessa via ser integralmente ressarcida de todos os seus prejuízos, designadamente, dos custos inerentes à reparação do seu veículo automóvel.
XXIV. E só porque tal meio se veio a mostrar insuficiente, já que, o pedido de indemnização civil, foi apenas considerado parcialmente procedente, conforme supra se mencionou, tendo improcedido, no que respeita à compensação pelos prejuízos inerentes ao custo da reparação do veículo,
XXV. É que a aqui Recorrente se viu impelida a intentar a competente ação que deu origem aos presentes autos, a qual deu entrada em 08 de Maio de 2023 junto do Tribunal Judicial da Comarca de Braga.
XXVI. Citado que foi o Réu da interposição da ação, apresentou a competente contestação, invocando a exceção de caducidade, porquanto, de acordo com o n.º 4 do art.º 5.º A do DL n.º 67/2003 de 8 de Abril, em vigor naquela data, que tratando-se de bem móvel, os direitos atribuídos ao consumidor caducam decorridos dois anos a contar da data da denúncia.
XXVII. Todavia, e pese embora os Autores se terem devidamente pronunciado quanto a tal questão no sentido de não se verificar a exceção invocada, em 13 de Novembro de 2023, foi proferido, pelo Tribunal a Quo, despacho saneador, no qual, para além do demais, decide no sentido da procedência da exceção de caducidade invocada, absolvendo, nessa sequência, o Réu do pedido.
XXVIII.Contudo, e de acordo com o já salientado, não pode, nem deve, a Autora, aqui Recorrente aceitar tal decisão.
XXIX. In casu, a Autora, aqui Recorrente, quando se apercebeu que o veículo automóvel por si adquirido apresentou problemas mecânicos, rapidamente diligenciou no sentido de comunicar os mesmos ao Réu, ou seja, procedeu à denúncia das desconformidades, como resulta da missiva enviada para o mesmo em 13 de Agosto de 2020.
XXX. Todavia, e como decorre da petição inicial, o Réu sempre protelou a reparação do veículo da Autora, acabando por recursar-se a reparar o mesmo, insultando criminalmente esta última, o que, como se sabe, deu origem ao processo crime n.º 5452/20...., o qual correu os seus devidos termos no Juízo Local Criminal de ...,
XXXI. Processo no qual foi por esta apresentado pedido de indemnização civil, com vista ser compensada pelos danos patrimoniais que sofreu emvirtudedas avarias registadas no veículo que comprou ao Réu.
XXXII. Isto é, a Autora, aqui Recorrente, dentro do prazo legal, após a denúncia das desconformidades, exerceu o seu direito no sentido de demandar o Réu relativamente às avarias apresentadas pelo seu veículo automóvel, o qual, por sua vez, e como supra se referiu, improcedeu.
XXXIII.Desta feita, e tendo na devida consideração tudo o já aludido, importa referir que a caducidade é interrompida pela prática, dentro do prazo legal ou convencional, do ato a que a lei ou convenção atribua efeito impeditivo – artigo 331.º do Código Civil.
XXXIV.Logo, tendo a Autora, aqui Recorrente, exercido o seu direito, atempadamente, no âmbito do pedido de indemnização civil, como decorre do processo crime n.º 5452/20...., deu-se por interrompida a caducidade do seu direito, começando a correr novo prazo a partir do ato interruptivo, nomeadamente, a partir da Sentença proferida pelo Juízo Local Criminal de ..., com data de 30 de Novembro de 2022.
XXXV. Tudo isto a chamar à colação, sem necessidade de alegação ou prova em contrário, de que, aquando da distribuição da presente ação ainda não havia decorrido o prazo de caducidade de dois anos, estabelecido no artigo 5.º A do Decreto lei nº 67/2003 de 8 e Abril.
XXXVI. Nem tão pouco o prazo de caducidade de seis meses, previsto no artigo 917.º, do Código Civil, ao qual alude o Despacho Saneador de que ora se recorre.
XXXVII. Assim, e contrariamente ao entendimento adotado pelo Tribunal a Quo, impõe-se concluir que a presente ação se encontra em prazo porquanto, atendendo ao já aludido, ainda não tendo decorrido o prazo de caducidade de seis meses previsto naquele artigo 917.º, do Código Civil, muito menos o prazo de caducidade de dois anos estabelecido no artigo 5.º Ado Decreto lei nº 67/2003 de 8 e Abril.
XXXVIII. A jurisprudência dos tribunais superiores tem entendido que o prazo de caducidade do direito à ação previsto no artigo 917.º do Código Civil vale apenas em relação ao direito anulatório, único direito literal e expressamente referido na previsão normativa,
XXXIX. Não se aplicando em relação aos demais direitos (reparação, substituição, redução, resolução e indemnização).
XL. Isto porque, não sendo aplicável a exigência da propositura duma ação, pois tais demais direitos podem ser exercidos extrajudicialmente, e, por este modo oportunamente exercidos, a sua posterior (em relação ao anterior exercício extrajudicial) invocação, em ação judicial, por via de ação, reconvenção ou exceção,
XLI.Já não pode estar sujeita a qualquer prazo de caducidade, ficando apenas sujeitos, a partir do seu exercício extrajudicial, ao prazo de prescrição geral.
XLII. Nessa conformidade, tendo a Autora, aqui Recorrente, denunciado em tempo o defeito de que padecia o veículo automóvel e exercido  extrajudicialmente o  seu direito de resolução (por carta registada), a interposição de ação em que pede a indemnização pelos prejuízos sofridos não está dependente de qualquer prazo, à exceção do prazo geral de prescrição de 20 anos – cfr. artigo 309.º, do Código Civil.
XLIII. Mais ainda que assim não fosse, o que não se concebe, sempre os direitos de ação para exercício dos direitos por venda de coisa defeituosa são passíveis de interrupção e suspensão nos termos gerais,
XLIV. Sendo que apresentação da queixa-crime com o consequente pedido de indemnização civil importa a interrupção do referido prazo para o caso em que a acusação tenha soçobrado, situação em que o tribunal penal deixa de ter competência material para apreciar o pedido de indeminização cível.
XLV.E oi, de facto, o que sucedeu, pois a Autora, aqui Recorrente, denunciou os defeitos da coisa vendida dentro do prazo de trinta dias depois de conhecido o defeito: concretamente denunciou a avaria em 13 de Agosto de 2020 (porquanto, como se descreveu, o veículo automóvel apresentou problemas e a avaria somente decorrido um ano da respetiva compra e venda)
XLVI.E, depois do defeito ter sido denunciado, sem sucesso, e pedida a competente reparação, a Autora, aqui Recorrente, exerceu judicialmente os seus direitos, apresentando queixa-crime contra o Réu antes do decurso do prazo de seis meses após a denúncia dos defeitos, concretamente em 22 de Dezembro de 2020.
XLVII. Isto é, no âmbito desse processo-crime, a aqui Recorrente deduziu pedido de indemnização civil, não tendo obtido êxito na sua pretensão, unicamente por ter sido decidido que o pedido de indemnização cível não configurava o meio adequado,
XLVIII. Sendo que o tribunal penal não tem competência material para apreciar o pedido cível quando, não se verificando os pressupostos da responsabilidade civil extracontratual, esteja exclusivamente em causa a responsabilidade contratual - (cfr. art. 377.º, n.º 1, do CPP, e o Assento n.º 7/99 de 17/06/1999, in DR, I Série – A, de 3/08/99, p. 5016 e ss.) –
XLIX. Pelo que, assim sendo, o prazo de caducidade para propor a presente ação civil só deve contar a partir do trânsito em julgado da decisão proferida no processo-crime.
L- Desse modo, apenas se pode concluir que, tendo a sentença penal no âmbito do processo n.º5452/20.... sido proferida em 30 de Novembro de 2022, e transitado em julgado em 17 de Janeiro de 2023, só a partir daí se inicia a contagem de um novo prazo de caducidade para interposição da ação judicial, prazo esse que se estendeu até ../../2023.
LI. Assim, e sem necessidade de mais amplas considerações, tendo a presente ação sido intentada em 08 de Maio de 2023, foi tempestivamente intentada e consequentemente deve a decisão recorrida ser revogada, sendo, assim, proferida decisão no sentido de não se verificar a exceção de caducidade, só assim se fazendo inteira Justiça Material!
LII. Sem prescindir, o que de modo algum se concebe, ainda se dirá que, nos termos do previsto no artigo 331.º, n.º2, do Código Civil, não existe qualquer dúvida que o Réu assumiu o direito da Autora, aqui Recorrente, à reparação.
LIII. E tanto assim o é, na medida em que, nesta senda importa reiterar, que em meados do mês de Setembro de 2020, o supra indicado veículo automóvel, por indicações do Réu, foi colocado nas instalações do Stand EMP01..., e consequentemente numa oficina a fim de ser reparado, por conta e custo daquele,
LIV. E, nessa linha de raciocínio, emprestado, por aquele, por um período não superior a 8 dias, à Autora, um veículo de substituição de modo a que a mesma se pudesse deslocar durante o período em que seu automóvel estaria em reparação.
LV.Isto a revelar que tudo isto, ou seja, as condutas manifestadas pelo Réu são significativas de assunção do direito da Autora à reparação do veículo automóvel.
LVI.No caso em apreço, o supra referido quanto às atitudes e comportamentos manifestado pelo Réu aquando da denúncia, pela Autora do defeito, assume a virtualidade de consubstanciar um motivo impeditivo dessa caducidade,
LVII. Na medida em que nele se reconhece o direito à existência de defeitos e eliminação destes, relativamente ao veículo automóvel vendido, sendo certo que, veja-se, o mesmo até foi colocado numa oficina pelo Réu, com vista à sua reparação.
LVIII.É assim manifesto que o Réu reconheceu, explícita ou implicitamente, a existência de avarias no veículo automóvel em causa, bem como o direito da Autora, aqui Recorrente, à sua concreta eliminação: como já se disse, o Réu tomou as diligências necessárias para a reparação do veículo, colocando-o até numa oficina do seu conhecimento.
LIX. Daí que, sendo patente que o reconhecimento impeditivo da caducidade deve ser tal que torne o direito do credor certo, no caso concreto, pelo que se deixa exposto, a atitude do Réu é certa, como traduz um comportamento continente ao  do  reconhecimento a favor da Autora.
LX. Em suma, e por tudo o supra explanado, existiu um reconhecimento do direito por parte do Réu, de molde a impedir a caducidade por si invocada e judicialmente declarada, pelo que, mas uma vez, é de concluir pela tempestividade da presente ação e, nessa conformidade, é entendimento da Autora, aqui  Recorrente, que devem V/Exas., Venerandos Desembargadores, como certamente decidirão, proferir decisão no sentido de revogar a decisão recorrida, substituindo-a por outra a julgar improcedente a exceção perentória de caducidade e a determinar o prosseguimento da ação, só assim se fazendo inteira Justiça Material!
Nestes termos, e nos melhores de Direito, deve o presente recurso ser julgado procedente e, consequentemente, ser revogada a decisão recorrida, substituindo-a por outra a julgar improcedente a exceção perentória de caducidade e a determinar o prosseguimento da ação, só assim se fazendo inteira Justiça Material!
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O R. não apresentou contra-alegações.
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Recebido o recurso, foram colhidos os vistos legais.
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III. O objecto do recurso

Como resulta do disposto nos arts. 608.º, n.º 2, ex. vi do art.º 663.º, n.º 2; 635.º, n.º 4; 639.º, n. os 1 a 3; 641.º, n.º 2, alínea b), todos do Código de Processo Civil, (C.P.C.), sem prejuízo do conhecimento das questões de que deva conhecer-se ex. officio, este Tribunal só poderá conhecer das que constem nas conclusões que, assim, definem e delimitam o objecto do recurso.
Face às conclusões das alegações de recurso, cumpre apreciar e decidir sobre a excepção de caducidade da acção.
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Fundamentação de facto

- a matéria fáctico-processual elencada no ponto I, do relatório supra.
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Fundamentação jurídica

Na decisão proferida afastada foi a integração da pretensão da A. no regime jurídico resultante do Decreto-Lei n° 67/2003, de 08 de Abril, ou seja, na venda de um bem para consumo, antes da entrada em vigor do Decreto-Lei nº 84/2021, de 18 de Outubro, em vigor em 01.01.2022, face à data anterior da celebração do contrato entre as partes.
Ora, de facto, nos termos do seu artigo 1.º-A, n.º 1, o regime estabelecido no Decreto-Lei nº 67/2003 só «é aplicável aos contratos de compra e venda celebrados entre profissionais e consumidores», incluindo bens móveis e imóveis, novos e usados (v. al. b) do artigo 1º-B).
Segundo o artigo 1º-B, als. a) e c), do Decreto-Lei nº 67/2003, de 08 de Abril, considera-se «“consumidor” aquele a quem sejam fornecidos bens, prestados serviços ou transmitidos quaisquer direitos, destinados a uso não profissional, por pessoa que exerça com carácter profissional uma actividade económica que vise a obtenção de benefícios, nos termos do nº 1 do artigo 2º da Lei nº 24/96, de 31 de julho», e «“vendedor”» qualquer pessoa singular ou colectiva que, ao abrigo de um contrato, vende bens de consumo no âmbito da sua actividade profissional».
Ora, pese embora, nenhuma dúvida se coloque quanto ao alegado facto do R. ter vendido o veículo automóvel no âmbito da sua actividade profissional, o facto é que, na petição inicial, a A. não alegou facticamente a sua qualidade de consumidora, nem articulou factos susceptíveis de sustentar o uso não profissional do veículo a título exclusivo.
Assim, não se pondo sequer também em causa a falta de enunciação desses elementos necessários para a aplicação do regime resultante do Decreto-Lei nº 67/2003, de 08 de Abril, em especial o prazo de caducidade previsto no seu artigo 5º-A, nº 2, deve proceder-se a essa análise no âmbito do contrato celebrado entre as partes, como de compra e venda, nos termos do artigo 879.º do CCiv.
Acontece que a coisa entregue pelo vendedor pode estar afectada de vícios jurídicos ou vícios materiais, sendo que para o caso dos autos apenas nos interessam estes últimos.
A este respeito, o artigo 913.º, n.º 1 do CCiv, alude a coisa vendida que sofre de «vício que a desvalorize ou impeça a realização do fim a que é destinada ou não tiver as qualidades asseguradas pelo vendedor ou necessárias para a realização daquele fim».
Portanto, diz-se defeituosa a coisa em relação à qual se verifique, pelo menos, uma das seguintes circunstâncias:
a) Sofra de vício que a desvalorize;
b) Sofra de vício que impeça a realização do fim a que é destinada (sendo que nos termos do nº 2 do artigo 913º, no caso de a finalidade a que é destinada não resultar do contrato, releva a função normal das coisas da mesma categoria);
c) Não tenha as qualidades asseguradas pelo vendedor;
d) Não tenha as qualidades necessárias para a realização do fim a que é destinada.
Na qualificação de Calvão da Silva, in Compra e venda de coisas defeituosas, 4ª edição, Almedina, pág. 41, o vício corresponde a imperfeições relativamente à qualidade normal das coisas daquele tipo, enquanto a desconformidade representa a discordância com respeito ao fim acordado.
Para o caso de um desses ‘defeitos’, o comprador deve denunciar ao vendedor o vício ou a falta de qualidade da coisa, «até trinta dias depois de conhecido o defeito e dentro de seis meses após a entrega da coisa». Consagra-se assim um prazo curto para a denúncia do vício ou falta de qualidade, sendo que o comprador apenas não tem o ónus dessa denúncia no caso de o vendedor ter usado de dolo (parte final do n.º 1 do art. 916.º), o que in casu não se coloca, por não ter sido sequer alegada essa situação.

Reza, por sua vez, o art.º 921.º do mesmo diploma, que:

“1. Se o vendedor estiver obrigado, por convenção das partes ou por força dos usos, a garantir o bom funcionamento da coisa vendida, cabe-lhe repará-la, ou substituí-la quando a substituição for necessária e a coisa tiver natureza fungível, independentemente de culpa sua ou de erro do comprador”.
2. No silêncio do contrato, o prazo da garantia expira seis meses após a entrega da coisa, se os usos não estabelecerem prazo maior.
3. O defeito de funcionamento deve ser denunciado ao vendedor dentro do prazo da garantia e, salvo estipulação em contrário, até trinta dias depois de conhecido.
4. A acção caduca logo que finde o tempo para a denúncia sem o comprador a ter feito, ou passados seis meses sobre a data em que a denúncia foi efetuada”.

Como daqui decorre, a garantia de bom funcionamento refere-se apenas à reparação ou substituição da coisa, independentemente de culpa do vendedor ou do produtor, mas não à anulação do contrato ou redução do preço, nem indemnização (cfr. neste sentido Luis Manuel Teles de Menezes de Leitão, “Direito das Obrigações”, Vol. III, Contratos em Especial, pág. 130/131).
Assegura-se, assim, por certo período de tempo, um determinado resultado, a manutenção em bom estado ou o bom funcionamento (idoneidade para o uso) da coisa – cfr. Calvão da Silva, Compra e Venda de Coisas Defeituosas, p. 62 e 63.
Tal como, aliás, também assim determinava o art. 4.º da Lei 24/96, de 31 de Julho (Lei da Defesa dos Consumidores), na redacção anterior à que lhe foi dada pelo citado DL 67/2003.
Devendo, na venda de veículos automóveis ligeiros de passageiros usados ser prestada garantia de usado: prazo, quilómetros ou outra que o vendedor conceda – art. 2.º, n.º 1, al. g) do DL 74/93, de 10 de Março - valendo, desde logo, como prazo de garantia de bom funcionamento o fixado em cláusula contratual – n.º 2 do citado art. 921.º.
Deve, no entanto, o defeito de funcionamento ser denunciado ao vendedor dentro do prazo da garantia (n.º 3 do citado art. 921.º), e a acção proposta passados seis meses sobre a data em que a denúncia foi efectuada.
A caducidade é, assim, a extinção do direito pelo seu não exercício durante certo tempo e o seu fundamento específico é a necessidade de certeza jurídica já que, como ensina Manuel Andrade, in Teoria Geral da Relação Jurídica, vol. II, p. 464, ‘certos direitos devem ser exercidos durante certo prazo para que ao fim desse tempo fique inalteravelmente definida a situação jurídica das partes. É de interesse público que tais situações fiquem, assim, definidas duma vez para sempre com o transcurso do respectivo prazo’.
Em suma, o decurso do tempo é especificamente causa de extinção ou perda de direitos, por inobservância do prazo para o seu exercício.
Como tal, não sendo a acção proposta dentro do prazo, o exercício do direito dirigido à efectivação de tais direitos, por via jurisdicional, extingue-se por caducidade (artigo 298.º, n.º 2, do Código Civil).

Estabelece, ainda, o direito substantivo civil - art.º 331.º do Código Civil - que:
“1. Só impede a caducidade a prática, dentro do prazo legal ou convencional, do acto a que a lei ou convenção atribua efeito impeditivo.
2. Quando, porém, se trate de prazo fixado por contrato ou disposição legal relativa a direito disponível, impede também a caducidade o reconhecimento do direito por parte daquele contra quem deva ser exercido.”

Na verdade, se o direito é reconhecido pelo beneficiário da caducidade, não faria sentido, nem seria razoável que o titular desse direito tivesse de propor a acção no prazo legal, face ao já reconhecido direito pela parte contrária.
E, se se trata do prazo de proposição de uma acção judicial, o reconhecimento “deve ser tal que torne o direito certo e faça as vezes de sentença, porque tem o mesmo efeito que a sentença pela qual o direito fosse reconhecido” - P. Lima e A. Varela, CCAnotado, vol. I., p 295 e 296, citando Vaz Serra -, pelo que tal reconhecimento deve ser efectuado perante o respectivo titular, de forma que inequivocamente o exprima, no sentido de aceitar que o cumprimento se apresenta como defeituoso – Acs do STJ de 25/1/98, Bol. 481, p. 430 e de 13/12/07 (Pº 07A4160), www.dgsi.pt - , por forma a tornar desnecessário o recurso à via judicial – Ac. do STJ de 4/7/2002 (Pº 02B1932), www.dgsi.pt.
Acresce que, a caducidade pode ser impedida, mas não interrompida ou suspensa - art. 328.º, do Cód. Civil.
Impedindo-se, porém, a caducidade pelo exercício do direito dentro dos limites prefixados, ou seja, pela prática, dentro do prazo legal ou convencional, do acto a que a lei ou convenção atribua efeito impeditivo – art. 331º, nº 1 - a única forma de evitar a caducidade é praticar, dentro do prazo correspondente, o acto que tenha efeito impeditivo.
E, se tal prazo respeita ao exercício de uma acção judicial, a única forma de evitar a caducidade é propor a mesma dentro do prazo – art. 332.º, do CCivil e Carvalho Fernandes, Teoria Geral do Direito civil, vol. II, p. 571.
Por outro lado, para a decisão a proferir importa atentar na Lei n.º 1-A/2020, de 19.03, que aprovou medidas excepcionais e temporárias de resposta à situação epidemiológica provocada pelo coronavírus SARS-CoV-2.
A Lei n.º 4-B/2021, de 1.02, que procedeu à nona alteração à Lei n.º 1-A/2020 e entrou em vigor no dia 2.02.2021 (cfr. artigo 5.º), veio prever nos n.ºs 1 a 4 do seu artigo 6.º-B o seguinte:
“1 - São suspensas todas as diligências e todos os prazos para a prática de actos processuais, procedimentais e administrativos que devam ser praticados no âmbito dos processos e procedimentos que corram termos nos tribunais judiciais, tribunais administrativos e fiscais, Tribunal Constitucional e entidades que junto dele funcionem, Tribunal de Contas e demais órgãos jurisdicionais, tribunais arbitrais, Ministério Público, julgados de paz, entidades de resolução alternativa de litígios e órgãos de execução fiscal, sem prejuízo do disposto nos números seguintes. (…)
3 - São igualmente suspensos os prazos de prescrição e de caducidade relativos a todos os processos e procedimentos identificados no n.º 1.
4 - O disposto no número anterior prevalece sobre quaisquer regimes que estabeleçam prazos máximos imperativos de prescrição ou caducidade, aos quais acresce o período de tempo em que vigorar a suspensão. (…)”.
Tal regime excepcional instituído pelo artigo 6.º-B da Lei n.º 4-B/2021 produziu efeitos a 22 de janeiro de 2021 (cf. artigo 4.º da Lei 4-B/2021).
Este regime de suspensão de prazos processuais e procedimentais adoptado no âmbito da pandemia da doença COVID-19 esteve em vigor até à entrada em vigor da Lei n.º 13-B/2021, de 5.04, que, procedendo à décima alteração à Lei n.º 1-A/2020, lhe pôs fim.
A Lei n.º 13-B/2021, que entrou em vigor em 6.04.2021 (cfr. artigo 7.º), determina, no seu artigo 5.º: “Sem prejuízo do disposto no artigo anterior, os prazos de prescrição e caducidade cuja suspensão cesse por força das alterações introduzidas pela presente lei são alargados pelo período correspondente à vigência da suspensão”.
No seu artigo 5.º da Lei n.º 13-B/2021, veio dispor-se que, sem prejuízo do disposto no artigo anterior, os prazos de prescrição e de caducidade cuja suspensão cessa por força das alterações introduzidas pela presente lei são alargados pelo período correspondente à vigência da suspensão.
Daqui resulta que findo o período de suspensão do prazo de caducidade, os prazos de caducidade em curso têm de ser calculados como se essa suspensão não tivesse existido (uma vez que o preceito que a previa deixou de existir no ordenamento jurídico), mas tais prazos de caducidade devem ser alargados pelo período de tempo correspondente ao período de suspensão entre 22.01.2021 e 05.04.2021 (num total de 74 dias) - neste sentido, v.g., Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 16.03.2023, proc. n.º 41/21.4T8CLB.G1, disponível in www.dgsi.pt).
Face ao exposto e perante o caso concreto, constata-se que, na petição inicial, a autora alegou que efectuou a denúncia dos defeitos da coisa vendida ao réu em 13.08.2020, o que significa que a autora dispunha do prazo de 6 meses a contar da denuncia para propor a acção, ou seja, até ao dia ../../2021.
Mesmo considerando um eventual reconhecimento por parte do R. ao ter aceite alegadamente custear a sua reparação, o facto é que, a 6.10.20, a A. constatou que o R. não iria assumir qualquer responsabilidade pelo ‘vício’ que o veículo apresentaria, pelo que sempre, a acção tinha de ser proposta até ../../2021.
Ainda que aplicado o regime excepcional decorrente da Covid, mesmo assim à mesma conclusão se teria de chegar, quanto à sua extemporaneidade, considerando que a acção só foi proposta em Maio de 2023 e uma vez que o pedido de indemnização cível apresentado no âmbito do processo crime também só foi deduzido a 8.3.22.
De qualquer das formas o facto é que esse processo apenas dizia respeito ao crime de injúrias e não a um outro qualquer ilícito referente directamente ao alegado ‘defeito’ da viatura.
Lamentavelmente, face ao quadro jurídico exposto, e considerando a factualidade a ter em conta, tem de se concluir, como o fez o tribunal a quo, que os direitos que a A. pretendia fazer valer contra o Réu se encontram extintos por caducidade.
Nestes termos, tem, pois, de se julgar improcedente o recurso, mantendo, em consequência a decisão proferida.
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IV. DECISÃO

Pelo exposto, acorda-se nesta 2.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães em julgar improcedente o recurso, mantendo, em consequência a decisão proferida.
Custas pela A/Recorrente.
Registe e notifique.
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Guimarães, 24 de Abril de 2024
(O presente acórdão foi elaborado em processador de texto pela primeira signatária, sem observância do novo acordo ortográfico, a não ser nos textos reproduzidos e transcritos, e é assinado electronicamente pelo colectivo)