Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
46/21.5T9CTB.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JORGE JACOB
Descritores: PERÍCIA MÉDICO-LEGAL
PEDIDO CÍVEL
CONSULTOR TÉCNICO
INAPLICABILIDADE DO C.P.C.
Data do Acordão: 03/20/2024
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: CASTELO BRANCO (JUÍZO LOCAL CRIMINAL DE CASTELO BRANCO)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTS. 154º, 155º, 158º, 159º DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL; 2º, N.º 1, DA LEI N.º 45/2004, DE 19.8; 50º, 467º, 478º, N.º 1, 480º, N.º 3, DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL
Sumário: I - As perícias efectuadas no âmbito do processo penal – independentemente de servirem um escopo indemnizatório no âmbito de um pedido de indemnização civil
formulado ao abrigo do princípio da adesão – seguem a tramitação prevista no Código de Processo Penal.

II - O «consultor técnico» a que se refere o art. 155º do Código de Processo Penal, pessoa da confiança de quem o nomeia para acompanhar a perícia ordenada [seja

no decurso da sua realização, propondo a realização de diligências que se ofereçam como pertinentes ou formulando observações ou objecções, seja apenas na fase pós-perícia, inteirando-se do relatório produzido pelo(s) perito(s)], não se confunde com o «assessor técnico» nos termos em que o configura o art. 50º do Código de Processo Civil. Este último tem por missão prestar assistência técnica ao advogado da parte nos casos em que se suscitem no processo questões de natureza técnica para as quais o advogado não tenha a necessária preparação, podendo intervir durante a produção da prova e a discussão da causa para se ocupar dessas questões.

III - O recurso às normas de processo civil só será de admitir relativamente aos casos em que se verifique a existência de uma lacuna na regulamentação processual penal não colmatável por analogia com as normas deste ordenamento processual, devendo a existência de lacuna ser aferida do ponto de vista da própria lei, partindo da intenção reguladora que a ela presidiu, dos fins prosseguidos pela lei e do plano legislativo que esteve na sua génese. A mera circunstância de a mesma matéria contar com uma regulamentação diversa em outros ramos do direito, só por si, não consubstancia a existência de lacuna no ordenamento processual penal.

IV - O disposto nos arts. 478º, nº 1 e 480º, nº 3, do Código de Processo Civil, não tem aplicação no âmbito da perícia ordenada em processo penal.

V - A circunstância de ter sido interposto recurso do despacho que indeferiu a arguição de nulidade da perícia não contende com a apreciação e decisão do requerimento de realização de segunda perícia. Tratando-se de recurso que sobe diferidamente e com efeito devolutivo, qualquer acto que um sujeito processual pudesse validamente praticar se não tivesse sido interposto recurso continua a ser admissível independentemente do recurso interposto e sem vinculação à sua decisão (futura e hipotética); afirmação que não é prejudicada pela circunstância de, em função da decisão do recurso retido, o acto admitido poder perder a sua utilidade intrínseca.


(Sumário elaborado pelo Relator)
Decisão Texto Integral: Adjuntos: Maria José Guerra
Helena Lamas

*

Acordam em conferência no Tribunal da Relação de Coimbra:

I – RELATÓRIO:

            Nestes autos de processo comum (tribunal singular) que correram termos pelo Juízo Local Criminal ... - Juiz ..., o Ministério Público deduziu acusação contra AA, com os demais sinais dos autos, pela autoria material de um crime de ofensa à integridade física por negligência, previsto e punido pelo artigo 148.º, n.º 1 do Código Penal, por referência ao artigo 21.º do Decreto Regulamentar n.º 22-A/98, de 1-10.

O ofendido BB deduziu pedido de indemnização civil contra a Seguradora / demandada A... – COMPANHIA DE SEGUROS, S.A.

No decurso do processo, a demandada arguiu a nulidade do exame pericial de avaliação do dano corporal em direito civil, realizado em 24.01.2023, que veio a ser conhecida por despacho de 03.03.2023 que, na parte agora relevante, tem o seguinte teor:

             Requerimento de 13.02.2023 (ref.ª 3146390)

            Por requerimento de 13.02.2023, veio a demandada civil, A... – COMPANHIA DE SEGUROS, S.A., invocar a nulidade do exame pericial (de 07.02.2023).

            Para tanto, alega, em síntese, que o legislador, com os artigos 478.º e 480.º do Código de Processo Civil, quis salvaguardar os princípios da igualdade de armas e do Contraditório e, nesta medida, impôs que para as diligências que constituem a perícia, devem as partes ser convocadas e permitida sua assistência.

            Mais sufraga que não foi notificada da informação quanto ao local, data e hora fixada para realização do exame pericial, por forma a permitir à mesma indicar assistente técnico (médico) para acompanhar a diligência.

            Nesta medida, conclui a demandada civil que foi surpreendida, pelo ofício com ref.ª citius 35517902, a dar conhecimento do relatório pericial produzido pelo INML, datado de 03.02.2023, de cuja realização do exame a demandada desconhece por não ter sido notificada.

            Assim, uma vez que não procedeu à notificação da demandada civil da data, hora e local do exame pericial, o Tribunal violou o disposto nos artigos 478.º, n.º 1 e 480.º, n.º 1 do CPC, colocando em causa os princípios do contraditório e da igualdade das partes (artigos 3.º e 4.º do CPC e 74.º n.º 3 do CPP) e, consequentemente, originando uma nulidade da diligência - perícia - e subsequentes actos, nos termos e para os efeitos do artigo 195.º do CPC e artigo 123.º do CPP.

            Termina, pugnando pela a nulidade do exame pericial realizado e, consequentemente, a repetição do exame pericial ao ofendido, sendo as partes, nos termos do artigo 478.º, n.º 1 do CPC, notificadas da data, hora e local do mesmo, por forma a poderem assistir à diligência, nos termos do artigo 480.º do CPC.  

            O demandante civil, BB, por requerimento de 15.02.2023, veio exercer o contraditório, rejeitando a existência de qualquer nulidade.

            De acordo com o sufragado pelo demandante civil, por força do art.º 3.º, n.º 1, da Lei n.º 45/2004, de 19 de Agosto, e atenta a natureza das perícias do INML, não é de permitir que o denominado assessor técnico (consultor técnico na linguagem utilizada pelo CPP) de um interveniente processual acompanhe a perícia a realizar pelo INML.

            Acrescenta, ainda, que a restrição à participação na realização da perícia de elementos estranhos ao INML e a inadmissibilidade de indicação de consultor técnico, não ofende o princípio do contraditório. (neste sentido o Ac. RL de 22/09/2020 proc. nº 164/17.4PTAMD-A.L1-5 in www.dgsi.pt).

            Cumpre analisar e decidir.

            Dispõe o artigo 478.º do Código de Processo Civil o seguinte:

            “1 - No próprio despacho em que ordene a realização da perícia e nomeie os peritos, o juiz designa a data e local para o começo da diligência, notificando-se as partes. 2 - Quando se trate de exames a efetuar em institutos ou estabelecimentos oficiais, o juiz requisita ao diretor daqueles a realização da perícia, indicando o seu objeto e o prazo de apresentação do relatório pericial.

(…)” (sublinhado da nossa autoria).

            Por sua vez, prevê o artigo 480.º do Código de Processo Civil:

            “1 - Definido o objeto da perícia, procedem os peritos à inspeção e averiguações necessárias à elaboração do relatório pericial.

            2 - O juiz assiste à inspeção sempre que o considere necessário.

            3 - As partes podem assistir à diligência e fazer-se assistir por assessor técnico, nos termos previstos no artigo 50.º, salvo se a perícia for suscetível de ofender o pudor ou implicar quebra de qualquer sigilo que o tribunal entenda merecer proteção.

            4 - As partes podem fazer ao perito as observações que entendam e devem prestar os esclarecimentos que o perito julgue necessários; se o juiz estiver presente, podem também requerer o que entendam conveniente em relação ao objeto da diligência.” (sublinhado da autoria da signatária).

            Uma vez que nos presentes autos está em causa uma perícia médico legal, importa chamar à colação o disposto no artigo 467.º, n.º 3 do Código de Processo Civil, de acordo com o qual “As perícias médico-legais são realizadas pelos serviços médico-legais ou pelos peritos médicos contratados, nos termos previstos no diploma que as regulamenta.” (sublinhado da autoria da aqui signatária).

            O Regime Jurídico das Perícias Médico-Legais e Forenses encontra-se previsto na Lei n.º 45/2004, de 19 de Agosto.

            Resulta do artigo 3.º, n.º 1 daquele diploma legal que “As perícias solicitadas por autoridade judiciária ou judicial são ordenadas por despacho da mesma, nos termos da lei de processo, não sendo, todavia, aplicáveis às efetuadas nas delegações do INMLCF, I. P., ou nos gabinetes médico-legais e forenses as disposições contidas nos artigos 154.º e 155.º do Código de Processo Penal, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 78/87, de 17 de fevereiro, na sua redação atual, podendo contudo o examinado fazer-se acompanhar por uma pessoa da sua confiança para a realização do exame pericial, exceto em situações em que tal comprometa o objeto da perícia.” (sublinhado da autoria da aqui signatária).

            De acordo com o previsto no artigo 155.º, n.º 1 do Código de Processo Penal, “Ordenada a perícia, o Ministério Público, o arguido, o assistente e as partes civis podem designar para assistir à realização da mesma, se isso ainda for possível, um consultor técnico da sua confiança.”.

            O Tribunal Constitucional, no Acórdão n.º 133/2007, decidiu que a norma constante do artigo 3.º n.º 1 da Lei n.º 45/2004, de 19 de Agosto, na parte em que inviabiliza a participação de consultores técnicos nas perícias médico-legais realizadas em delegação do Instituto Nacional de Medicina Legal, não é inconstitucional.

            Por se mostrarem especialmente esclarecedoras, fazemos uso das seguintes passagens daquele aresto, “É (…)manifesto que a norma impugnada [n.º 1 do artigo 3º da Lei n.º 45/2004], ao introduzir uma distinção quanto às perícias médicas realizadas no Instituto Nacional de Medicina Legal, teve comprovadamente em conta que esta é uma instituição com natureza judiciária, cujos peritos, para além de abrangidos pelo segredo de justiça (como os demais), estão vinculados ao dever de sigilo profissional, e gozam de total autonomia técnico-científica, garantindo um elevado padrão de qualidade científica.

            (…)

            Decorre claramente do que já se observou que o direito de nomear um consultor técnico permitido pelo artigo 155º do Código de Processo Penal, não é um direito conferido especificamente a título de "garantia de defesa", no seu sentido mais estrito: no decurso da prova pericial não impende sobre o arguido qualquer ónus de contradizer ou afirmar qualquer facto; não é atribuída qualquer eficácia ao acordo expresso ou tácito sobre factos não contraditados.

            O que aqui vale, seguramente, é a busca da verdade material e da realização da justiça, do dever de investigação judicial autónoma da verdade, com independência e imparcialidade, embora sem excluir o auxílio das partes – artigo 340º n.º 1 do Código de Processo Penal – objectivo que representa uma das finalidades do processo penal. À autoridade judiciária incumbe rodear a produção de prova pericial das condições necessárias a que dela se retire a verdade material, processualmente válida. Ora, na decorrência desse grande objectivo do processo penal, o sistema português adoptou um regime de perícia oficial – não contraditória – essencialmente disciplinado pelos artigos 152º n.º 1 e 154º n.º 1 do citado Código, no domínio da qual o perito é um perito do Tribunal, sujeito ao mesmo dever de imparcialidade e de busca da verdade material que oneram a actividade judiciária.”.

            (…)

            Esclarecida a verdadeira natureza da actuação dos participantes processuais neste âmbito, é mais fácil compreender que o direito do arguido de acompanhar a perícia através de um consultor técnico não constitui uma imperiosa exigência do princípio do contraditório. Com efeito, o princípio do contraditório, na sua caracterização mais rigorosa, corresponde a uma concepção próxima do direito de audiência e da oportunidade processual de influenciar, através da sua audição pelo Tribunal, o resultado do processo. Ora o exercício deste contraditório para os intervenientes processuais – e, portanto, também para o arguido –, resulta aqui do direito que a lei lhes confere de pedir esclarecimentos aos peritos, e até de requerer ao tribunal que determine a realização de nova perícia, ou a renovação da anterior.”.

            Ora, aqui chegados, não pode, pois, aceitar-se que a ausência de notificação do dia, hora e local onde se iria realizar a perícia constitua uma nulidade.

            Invoca a demandada civil que tal omissão a impossibilitou de fazer-se assistir por assessor técnico, no entanto, como já deixámos claro, a lei não admite a participação de consultores técnicos nas perícias médico-legais realizadas em delegação do Instituto Nacional de Medicina Legal.

            Assim, mesmo que a notificação tivesse sido realizada, tal acto não permitiria à demandada civil retirar do mesmo as consequências que pretende, ou seja, a participação de consultor técnico.

            Por outro lado, não se mostram violados os princípios da igualdade de armas e do Contraditório.

Por todo o exposto, julga-se improcedente a invocada nulidade.

Inconformada, a demandada A... interpôs recurso, formulando as seguintes conclusões:

I. Por despacho com ref.ª citius 35573083, que ora se recorre, foi julgada improcedente a nulidade, arguida pela ora Recorrente, nos termos dos artigos 195.º do CPC e 123.º do CPP, do exame pericial medico legal, para avaliação de dano corporal em direito civil, realizado a 24.01.2023 e do qual não foi a Demandada Civil notificada, em violação do disposto nos artigos 478.º, n.º 1 e 480.º, n.º 3 do CPC.

II. Ausência/omissão de notificação que feriu igualmente os princípios do contraditório e da igualdade das partes, previstos nos artigos 3.º e 4.º do CPC e 74.º, n.º 3 do CPP e artigo 20.º, n.º 4 da CRP, viciando aquela diligência e todos os actos subsequentes.

III. Não obstante não negar a falta de notificação, entendeu o Tribunal a quo, por um lado, (i) afastar a invocada nulidade por, ao abrigo do artigo 3.º da Lei n.º 45/2004, de 19.09, não ser admitida a participação de consultores técnicos nas perícias médico-legais realizadas no Instituto Nacional de Medicina Legal, e, por outro lado, (ii) mesmo que tivesse a notificação sido realizada, entende o Tribunal a quo que o efeito que a notificação visava salvaguardar – a comparência e participação de consultor técnico – não seria possível.

IV. Com efeito, salvo devido respeito, parte o Tribunal a quo de um ponto de partida erróneo: a confusão entre as figuras de assessor técnico e de consultor técnico.

V. O assessor técnico (consagrado nos artigos 480.º, n.º 3 e 50.º CPC) e o consultor técnico (previsto no artigo 155.º CPP), apesar de ambas intervirem no acto inspectivo, são figuras totalmente distintas, com poderes e propósitos distintos e, bem assim, regimes distintos, não podendo ser confundidos.

VI. Sendo certo que, do n.º 1 do artigo 3.º da Lei 45/2004, de 19/08 – que consagra o Regime Jurídico das Perícias Médico-Legais e Forenses – o legislador teve o cuidado de apenas prever expressamente a possibilidade de excluir da perícia o consultor técnico (referência ao artigo 155.º CPP), nada referido quanto ao assessor técnico (CPC);

VII. Contrariamente ao exposto pelo Tribunal “a quo” no despacho de que ora se recorre, daquele artigo 3.º da Lei 45/2004, 19.08, não resulta qualquer exclusão à participação de assessor técnico (CPC),

VIII. E uma interpretação que equiparasse a figura do assessor técnico ao consultor técnico, como a pugnada no despacho de que ora se recorre, implicaria uma interpretação em desconformidade com o sentido e alcance da lei, conforme impõe o artigo 9.º do Código Civil, uma vez que o legislador do CPC e do CPP consagrou figuras distintas. Não cabendo, pois, a intérprete distinguir, onde a lei não distingue.

IX. Assim, contrariando a fundamentação do Tribunal “a quo” no despacho ora em crise, a exclusão prevista no n.º 1 do artigo 3.º daquele diploma (Lei 45/2004, 19.08) é apenas e só aplicável aos consultores técnicos (artigo 155.º CPP), pelo que faz o mesmo uma errada aplicação daquela disposição.

X. A intervenção do assessor técnico, caso tivesse, como devia, sido notificada à Demandante, ora Recorrente, significaria que a parte teria um intérprete do conteúdo, em concreto, do ato inspetivo “com a precisão de quem domina a especialidade em causa e em termos que sejam acessíveis para este [o advogado], de modo que o mesmo possa mais eficazmente exercer o contraditório através das reclamações que futura e eventualmente venha a fazer ao relatório pericial” (acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 28.11.2018).

XI. Pelo que, a ausência de notificação do dia, hora e local da perícia, nos termos do n. º1 do artigo 478.º do CPC, coartou o direito da parte de ser coadjuvada ou assistida, nos termos supra expostos, por assessor técnico em perícia médico legal.

XII. Igualmente não pode a Recorrente conformar-se com o entendimento plasmado no despacho de que a falta de notificação não implica uma violação dos princípios da igualdade de armas e do contraditório.

XIII. O princípio do contraditório, consagrado no artigo 3.º do CPC, não se esgota na influência imediata que a participação da parte tenha sobre o resultado do processo. Antes reclama que às partes seja dada a possibilidade de, querendo, poder recorrer a essa prerrogativa legal e assim influenciar o curso do processo.

XIV. Não tendo sido a Recorrente notificada do dia, hora e local da perícia médico legal, a Demandada, ora Recorrente, não se pôde fazer assistir e não pôde, por isso, ver-se devidamente esclarecida em termos técnicos enquanto a perícia era realizada e, caso assim entendesse, “influenciar o resultado do processo pela sindicância que venha a fazer[-se] ao relatório pericial” (acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 28.11.2018).

XV. Outro não pode ser o entendimento, ante a ausência de notificação para que o assessor técnico estivesse ou pudesse estar presente, de que não estavam as partes em igualdade de armas e com posições semelhantes (conhecimento, em concreto, do exame pericial e termos em que o mesmo ocorreu) para poderem, perante o relatório pericial, reclamar, pedir esclarecimentos ou a realização de nova perícia.

XVI. Com efeito, é evidente que o acompanhamento de um assessor técnico no decurso do exame pericial representa a presença de um olhar clínico e uma mente treinada para, enquanto o exame decorre, haver um alerta ou uma chamada de atenção (entre as partes) quanto aos pontos críticos do mesmo. E, deste modo, ficaria, efetivamente, garantido – em igualdade de armas – o contraditório a exercer sobre o relatório pericial.

XVII. Ora, não pode afirmar-se que às partes se garantiu o exercício do contraditório em condições de absoluta igualdade quando à Recorrente não foi dada a possibilidade de assistir e/ou fazer-se assistir por assessor técnico, condicionando a posterior avaliação que viesse a ser feita do relatório pericial elaborado, e na esfera do Demandante, por ter sido notificado da data, hora e local do exame, manteve-se intacta a possibilidade de, querendo, fazer-se acompanhar de assessor técnico.

XVIII. Pronunciou-se já o Tribunal da Relação de Coimbra em acórdão de 23.11.2021 no sentido de “com o principio da igualdade das partes consagrada no art.º 4º do NCPC, nos termos do qual o tribunal deve assegurar, ao longo de todo o processo, um estatuto de igualdade substancial das partes, designadamente no exercício de faculdades, no uso de meios de defesa, na aplicação de cominações ou de sanções processuais”.

XIX. No caso sub judice o Tribunal “a quo” impossibilitou o exercício de uma faculdade legal – a assessoria técnica no âmbito de perícia médico legal – a apenas uma das partes, ferindo a regra de igualdade das partes, consagrada no artigo 4.º do CPC.

XX. Deste modo, ao não ter sido notificada, à Demandada Civil ora Recorrente, a data, hora e local do exame pericial ao Demandado – impedido que a mesma indicasse assessor técnico para acompanhar a diligência - foi incumprindo o disposto no artigo 478.º, n.º 1 do CPC, com a consequente violação dos princípios do contraditório, igualdade de armas e justiça equitativa, consagrados nos artigos 3.º e 4.º do CPC, 74.º do CPP e artigo 20.º n.º 4 da CRP, implicando a nulidade daquela diligência;

XXI. O douto despacho agora recorrido, faz uma errada interpretação e aplicação do artigo 3.º, n.º 1 da Lei 45/2004, de 91.08;

XXII. O douto Despacho de que ora se recorre ao julgar improcedente a nulidade arguida, mantendo válida a perícia medico legal, realizada sem o cumprimento das formalidades/notificações legalmente previstas, e subsequentes actos, viola o disposto nos artigos 3.º, 4.º, 50.º, 476.º, n.º 1 e 480.º, n.º 3, todos do CPC, artigo 74.º do CPP, e artigo 20.º, n.º 4 da CRP.

XXIII. Devendo o Despacho recorrido ser revogado e substituído por outra decisão a declarar a nulidade da perícia médico legal realizada e actos subsequentes, nos termos dos artigos 195.º do CPC e 123.º do CPP, e ordenando a repetição do exame pericial médico legal ao Ofendido/Demandante Civil, com a notificação das partes, nos termos do artigo 478.º, n.º 1 do CPC, da data, hora e local do mesmo, por forma a poderem as mesmas assistir à diligência, nos termos do artigo 480.º, n.º 3, do CPC.

Termos em que, deve o presente recurso ser admitido e, em consequência,

a) Revogado o despacho de que ora se recorre; e

b) Declarada a nulidade da perícia médico legal realizada, devendo ser ordenada a repetição do exame pericial médico legal ao ofendido/demandante civil, sendo as partes, nos termos do n. º1 do artigo 478.º do CPC, notificadas da data, hora e local do mesmo, por forma a poderem assistir à diligência, nos termos do artigo 480.º, n.º 3 do CPC.

Respondeu o M.P., concluindo pela forma seguinte:

            1. Apesar de se entender o alcance do despacho judicial colocado em crise pelo presente recurso, a verdade é que, em obediência ao Princípio da Legalidade a que está adstrito o Ministério Público, temos que concordar, de forma objectiva, e com o devido respeito por quem proferiu o despacho recorrido, que, em termos técnico-jurídicos, assiste razão ao recorrente.

            Assim, e de forma resumida, temos que a nulidade foi invocada no prazo legal de dez dias previsto no C. P. Civil, conforme atesta o despacho recorrido e a consulta dos autos.

            Por outro lado, conforme também resulta dos autos e do despacho recorrido, é patente que não foi a demandada civil, A... – COMPANHIA DE SEGUROS, S.A, notificada do dia, hora e local da realização da perícia médico-legal efectuada pelo INML.

            2- Por outro lado, apesar de o despacho recorrido lançar mão do Acórdão n.º 133/2007 do Tribunal Constitucional, em bom rigor, a fundamentação e o argumentário do mesmo aplicam-se tendo por pressuposto que a Lei não impõe como obrigatória a presença de consultou técnico, mas não afasta a presença de assessor técnico, cuja presença é facultativa.

            Conforme consta da fundamentação do recurso interposto, o Tribunal “a quo”, entendeu, por um lado, afastar a invocada nulidade por entender não ser admitida a participação de consultores técnicos nas perícias médico-legais realizadas no Instituto Nacional de Medicina Legal, e, por outro lado, entendeu que, mesmo que tivesse a notificação sido realizada, o efeito que a notificação visava salvaguardar – a comparência e participação de consultor técnico – não seria possível.

            3- Ainda segundo a fundamentação do recurso que nos é dado responder, e com a qual concordamos, foi gerada, pelo Tribunal “a quo” uma certa confusão entre as figuras de assessor técnico e de consultor técnico. O assessor técnico (consagrado nos artigos 480.º, n.º 3 e 50.º CPC) e o consultor técnico (previsto no artigo 155.º CPP), apesar de ambas intervirem no acto inspectivo, são figuras totalmente distintas, com poderes e propósitos distintos e, bem assim, regimes distintos. Sendo certo que, do n.º 1 do artigo 3.º da Lei 45/2004, de 19/08 – que consagra o Regime Jurídico das Perícias Médico-Legais e Forenses – o legislador teve o cuidado de apenas prever expressamente a possibilidade de excluir da perícia o consultor técnico (referência ao artigo 155.º CPP), nada referido quanto ao assessor técnico.

            4 - Assim, contrariando a fundamentação do Tribunal “a quo” no despacho ora em crise, entendemos que a exclusão prevista no n.º 1 do artigo 3.º daquele diploma (Lei 45/2004, 19.08) é apenas e só aplicável aos consultores técnicos (artigo 155.º CPP).

            Por outro lado, também concordamos com o alegado, em como, com a intervenção do assessor técnico, caso tivesse, como devia, sido notificada à Demandante, significaria que a parte teria um intérprete do conteúdo, em concreto, do acto inspetivo, nos termos do que consta do Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 28.11.2018, in www.gdsi.pt, (passa-se a citar): «com a precisão de quem domina a especialidade em causa e em termos que sejam acessíveis para este [o advogado], de modo que o mesmo possa mais eficazmente exercer o contraditório através das reclamações que futura e eventualmente venha a fazer ao relatório pericial».

            5- Pelo que deverá ser declarada procedente a invocada questão em como o Tribunal “a quo”, coartou o direito da parte de ser coadjuvada ou assistida, nos termos supra expostos, por assessor técnico em perícia médico legal, com a falta ou ausência de notificação do dia, hora e local da perícia, nos termos do n. º1 do artigo 478.º do CPC.

            6. Quanto à segunda questão, onde se alega que deve ser revogado o despacho de que ora se recorre e ser declarada a nulidade da perícia médico legal realizada, devendo ser ordenada a repetição do exame pericial médico legal ao ofendido/demandante civil, sendo as partes, nos termos do n. º1 do artigo 478.º do CPC, notificadas da data, hora e local do mesmo, por forma a poderem assistir à diligência, nos termos do artigo 480.º, n.º 3 do CPC, também deve proceder.

            7. Em bom rigor, deve a mesma ser igualmente procedente, uma vez que, existindo nulidade, e tendo a mesma sido arguida nos prazos legais, conforme consta dos autos, daí devem ser extraídas as legais consequências, nomeadamente devendo ser ordenada a  repetição do exame pericial médico legal ao ofendido/demandante civil, sendo as partes, nos termos do n.º1 do artigo 478.º do CPC, notificadas da data, hora e local do mesmo, por forma a poderem assistir à diligência, nos termos do artigo 480.º, n.º 3 do CPC.

            Desta sorte, afigura-se-nos que o recurso merece provimento.

Entretanto, a demandada requereu a realização de 2ª perícia, tendo incidido sobre esse requerimento o despacho de 22/05/2023 que, na parte relevante, tem o seguinte teor:

            Segunda perícia

            A decisão que indeferiu a nulidade da primeira perícia encontra-se em fase de recurso.

Assim, não estando, ainda, definitivamente fixada a sua validade, indefere-se a realização de segunda perícia.

A demandante A..., inconformada uma vez mais com o decidido, interpôs recurso, formulando a final as seguintes conclusões:

I. Por despacho com ref.ª citius 35815978, que ora se recorre, foi indeferida a realização de segunda perícia médico legal para avaliação de dano corporal em Direito Civil, em termos colegiais, requerido pela Demandada Civil, ora Recorrente.

II. Salvo devido respeito, atento o artigo 487.º do CPC, aos efeitos do recurso interposto quanto à validade da primeira perícia – meramente devolutivo –, e aos princípios de igualdade de armas, do contraditório, do inquisitório e da boa gestão processual, não assiste razão ao Tribunal a quo.

III. Em primeiro lugar, o requerimento para realização de segunda perícia foi tempestivo e devidamente fundamentado com as razões da sua discordância face ao relatório pericial apresentado, com indicação expressa das omissões e inexatidões daquele, nomeadamente quanto à fixação errada da data de consolidação das lesões do Demandante Civil, do período de Défice Funcional Temporário Total e das alegadas sequelas e respetiva valoração em termos de défice funcional (incapacidade), bem como da falta de resposta aos quesitos formulados pela Demandada Civil.

IV. Em segundo lugar, atento ao efeito meramente devolutivo do recurso, salvo melhor opinião, a primeira perícia mantém-se tal qual como admitida pelo Tribunal a quo até à decisão do Tribunal da Relação de Coimbra.

V. Por outro lado, segundo o disposto no artigo 476.º, n.º 1 e 2 do CPC, o juiz deve deferir o requerimento sempre que a diligência se não revele impertinente ou dilatória e as questões suscitadas sejam relevantes, sendo que, no caso dos autos, é imprescindível a realização de uma segunda perícia para dissipar as concretas dúvidas sérias, omissões e inexatidões que decorrem do relatório de perícia médico legal.

VI. Ora, no caso do recurso ser improcedente e o Tribunal da Relação de Coimbra venha a confirmar a validade da perícia médico legal, o que apenas se equaciona por mera hipótese académica, e se a Recorrente não tivesse requerido a 2.ª perícia, como fez por requerimento de 20.02.2023 (reiterado em 30.03.2023), ficaria a ora Recorrente impossibilitada de requerer uma segunda perícia, tendo em conta o prazo de 10 dias, plasmado no artigo 487.º do CPC, contados desde o conhecimento do resultado da primeira, já teria decorrido, em virtude do efeito devolutivo do recurso e a decisão do Tribunal da Relação de Coimbra ser proferida a final.

VII. A contrario, caso o recurso interposto da decisão de indeferimento da nulidade arguida seja julgado procedente, conforme se concebe, será anulada a primeira perícia e a segunda (ato subsequente), o que é o normal efeito no processo, sendo, em consequência, a primeira perícia repetida, proferido novo relatório e iniciado novo prazo para requerer esclarecimentos ou 2.º perícia.

VIII. Deste modo, deveria o Tribunal a quo ter deferido o pedido de realização da segunda perícia médico legal cumprindo-se, o disposto no artigo 487.º CPC e também, por esta via, o princípio do contraditório e do inquisitório, conforme estatuído no artigo 411.º do CPC, para além de se salvaguardar a igualdade das partes (artigo 4.º do CPC) e da boa gestão processual (artigo 6.º do CPC), o que, desde já, se requer.

Deve o presente recurso ser admitido e, em consequência, revogado o despacho de que ora se recorre e substituído por outro em seja deferida e ordenada a realização de segunda perícia medico legal, em termos colegiais, tal como requerido.

Respondeu o lesado BB, concluindo pela forma seguinte:

            1ª A recorrente não se conformou com o despacho de indeferimento da realização de segunda perícia e por tal recorreu do mesmo.

            2ª No dia 30/03/2023 com a refª 3197788, a recorrente pediu a realização de uma segunda perícia.

            3ª O recorrido considera que os motivos de discordância da recorrente não são aptos, do ponto de vista objetivo e atentas as circunstâncias do caso concreto, para criar dúvida sobre se a perícia efetuada padece dos vícios indicados e sobre poder ser alcançado resultado distinto relativamente à primeira perícia. Pois limita-se, sumariamente, a duvidar do resultado alcançado por contrariar os dos serviços clínicos da companhia de seguros recorrente.

            4ª Assim, não deve ser deferida a realização da segunda perícia já que a parte que a requer se limita a indicar um ou mais critérios que considere alternativos ou preferíveis ao que foi utilizado pelo perito interveniente na primeira perícia remetendo para os resultados dos serviços clínicos da companhia.

            Nestes termos requer a V.Exªs se dignem considerar improcedente e não provado o presente recurso.

O M.P. respondeu também, renovando a posição afirmada relativamente ao recurso anterior.

Após julgamento com documentação da prova produzida em audiência foi proferida sentença de cujo dispositivo consta o seguinte:

 (…)

Por todo o exposto, julga-se procedente a acusação nos termos expostos e, em consequência, condena-se a arguida AA como autora material de um crime de ofensa à integridade física por negligência, previsto e punido pelo 148º, nº1 do Código Penal na pena de 80 dias de multa à taxa diária de 7 euros.

(…)

Julgam-se parcialmente procedentes o pedido cível e, em consequência , condena-se a requerida A... Companhia de Seguros a pagar ao lesado a quantia de 50 000 euros, quantia acrescida de juros moratórios sobre 45 OOO, contados desde a notificação até integral pagamento.,

(…)

Novamente inconformada, recorre a demandada A... - Companhia de Seguros, S.A., formulando as seguintes conclusões:

I. Da análise da Sentença ora em crise, atento os desenvolvimentos do processo e à prova produzida em sede de audiência de julgamento, salvo o devido respeito, verifica-se que a mesma incorre em (i) falta de fundamentação (ii) omissão de pronúncia, (iii) erro material de facto e (iv) errada interpretação e aplicação de Direito ao caso concreto, com influência na decisão proferida.

(Do interesse nos Recursos Retidos – artigo 412.º, n.º 5 do CPP)

II. Ora, na pendência dos presentes autos por requerimento de 24.03.2023 (ref:ª 45121932), a ora Recorrente interpôs recurso do despacho, datado de 03.03.2023, com referência citius 35573083, na parte em que se pronunciou e julgou improcedente a nulidade do exame pericial de avaliação de dano corporal em direito civil, realizado em 24.01.2023, arguida pela Demandada Civil, ora Recorrente.

III. Conforme resulta das motivações e conclusões – para as quais se remete e que aqui se dão por integralmente reproduzidas – no recurso interposto, a Demandada Civil vem requerer a alteração do despacho que, assente numa errada interpretação e aplicação do artigo 3.º, n.º 1 da Lei 45/2004, de 19.08, veio manter válida uma perícia médico-legal realizada sem o cumprimento das formalidades/notificações legalmente previstas e atos subsequentes, em clara violação do disposto nos artigos 3.º, 4.º, 50.º, 476.º, n.º 1 e 480.º, n.º 3 do CPC, artigo 74.º do CPP e artigo 20.º, n.º 4 da CRP.

IV. Assim, a procedência do recurso interposto, com a consequente anulação da perícia realizada, implicará a realização de nova perícia e subsequente atos, com implicações na decisão final oram em crise.

V. Nessa medida, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 412.º, n.º 5 do CPP, a Demandada Civil, ora Recorrente, declara manter interesse no recurso interposto em 24.03.2024, do despacho, datado de 03.03.2023, com referência citius 35573083, na parte em que se pronunciou e julgou improcedente a nulidade do exame pericial de avaliação de dano corporal em direito civil, realizado em 24.01.2023, arguida pela Demandada Civil, ora Recorrente.

VI. Por outro lado, veio a Demandada Civil requerer realização de segunda perícia médico-legal, vindo o Tribunal a quo, por despacho de 22.05.2023 (referência citius), indeferir o requerimento de realização de segunda perícia. Despacho do qual a ora Recorrente veio, por requerimento de 21.06.2022, com ref.º 45918476, interpor recurso, posteriormente aceite, quanto ao indeferimento do pedido de segunda perícia médico legal, com as motivações e conclusões que se dão aqui por integralmente reproduzidas.

VII. Face ao exposto, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 412.º, n.º 5 do CPP, a Demandada Civil, ora Recorrente, declara manter interesse no recurso interposto em 21.06.2023, do despacho, datado de 22.05.2023, com referência citius 35815978, na parte em que indeferiu o pedido de realização de segunda perícia médico legal para avaliação de dano corporal em direito civil.

(Da Nulidade da Sentença – artigo 374.º, n.º 2 (ex vi artigo 379.º n.º 1, alínea a)) e artigo 379.º n.º 1, alínea c) do CPP e artigo 609.º CPC – Falta de Fundamentação e Omissão de Pronúncia.)

VIII. Sem prescindir, deverá a sentença proferida em 1ª instância ser nula, nos termos do disposto nos artigos 374.º, n.º 2 e 379.º, n.º 1, alínea a) do CPP, tendo em conta a falta de fundamentação, uma vez que as motivações do Tribunal a quo para concluir pela matéria que deu como provada são vagas e escassas, não sendo possível entender quais as razões de ciência e experiência que levaram o Tribunal a adoptar uma versão do sinistro em detrimento de outra – quando há versões contraditórias – e nem os fundamentos para desconsiderar o depoimento do Senhor Professor CC e o seu relatório, quando foi o médico que assistiu o Recorrido.

IX. Em 08.02.2023, veio o Demandante, em articulado superveniente e a acrescer ao pedido inicial, deduzir dois novos pedidos, requerendo a condenação da Demandada Civil, ora Recorrente, no pagamento do montante de € 5.092,00 (cinco mil e noventa e dois euros), a título de perdas salariais no período de incapacidade temporária, e do montante de € 45.887,13 (quarenta e cinco mil, oitocentos e oitenta e sete euros e treze cêntimos), a título de dano patrimonial por perda de capacidade de ganho, tendo a ora Recorrente exercido o contraditório a 17.03.2023, pugnando pela inadmissibilidade e improcedência da ampliação do pedido.

X. Contudo, chamado a pronunciar-se sobre as questões controvertidas naqueles requerimentos, nunca o Tribunal a quo se pronunciou sobre as mesmas - nem em sede de despacho, nem em sede de sentença – violando o disposto no artigo 379.º, n.º 1, alínea c) do CPP (e artigo 615.º, n.º 1, alínea d) do CPC), implicando a nulidade da decisão ora recorrida, que aqui expressamente se argui, devendo a mesma ser revogada, com as demais legais consequências.

(Do erro de julgamento sobre matéria de facto (artigo 412.º, n.º 1, 3 e 4 CPP)

XI. Relativamente à matéria de facto, a Recorrente discorda dos factos da acusação 2., 3.,4., 7., 8., 10., 11., 12. e F) dados como provados pelo Tribunal recorrido.

XII. Atento depoimento das testemunhas DD (testemunha arrolada pelo próprio Ministério Público e ofendido) e EE e a Arguida AA que – depuseram de forma clara, isenta e objetiva, mantendo sempre a versão a mesma versão dos factos (diferente da constante na acusação) – nunca poderia o Tribunal de 1ª instância ter dado como provado aqueles factos da acusação;

XIII. Mais se refere que os depoimentos das testemunhas DD e FF reforçam a dinâmica descrita pela Arguida AA, uma vez que referiram que o ofendido se deslocava no sentido Mercado/Rotunda da Europa.

XIV. Acresce que resulta do relatório de peritagem, fotos juntas pela Arguida com a contestação e do depoimento das testemunhas GG, chefe de oficina, e DD, que todos os danos no veículo seguro na ora Recorrente, propriedade da Arguida AA, aquando do embate do motociclo, se encontravam na lateral direita, pelo que, pela experiência comum, tudo aponta que o motociclo conduzido pelo ofendido BB vinha do lado direito, sentido Mercado/Rotunda da Europa

XV. Por outro lado, salvo o devido respeito, foram os factos 3, 4, 7, 8, 10, 11 e 12 incorretamente dados como provados, o que veio a ter influência na decisão final, uma vez que todas as testemunhas que presenciaram o acidente alegaram que a arguida AA respeitou a sinalização vertical B2 e atuou com todos os cuidados e precauções na via, assim cumprindo as regras estradais.

XVI. Posto isto, atento o erro de julgamento em que incorreu o Tribunal a quo, ao abrigo no artigo 412.º, n.º 1, 3 e 4 do CPP, a decisão quanto à matéria de facto proferida na sentença apelada deve ser parcialmente revogada, por erro do Tribunal a quo na apreciação da prova produzida e, consequentemente, ser a Recorrente absolvida dos pedidos contra si formulados e ser sentença recorrida substituída por douto Acórdão proferido por V. Exas. que dê as seguintes respostas aos seguintes quesitos, por referência aos factos da acusação dados como provados:

- Ponto 2 da acusação – não provado

- Ponto 3 da acusação – não provado;

- Ponto 4 da acusação – não provado;

- Ponto 7 da acusação – não provado;

- Ponto 8 da acusação – não provado;

- Ponto 10 da acusação – não provado;

- Ponto 11 da acusação – não provado;

- Ponto 12 acusação – não provado.

XVII. Acresce que da prova documental junta aos autos – relatório da delegação do centro de serviços químicos e toxicologia forenses do INML, de 29.10.2020 – resulta que o Recorrido testou positivo na análise clínica efetuada para detetar a presença da substância de canabinóides no sangue por LC/MS, no dia 13.08.2020, não estando, assim, o mesmo em condições de conduzir em segurança, à data do sinistro.

XVIII. Implicando que o mesmo, condutor inexperiente, com menos de um ano de carta, ficasse alheado às características e condições da via na qual circulava e ao trânsito que se processava ao seu redor e com os seus reflexos e discernimento diminuídos e afetados.

XIX. Apontando os factos para que a responsabilidade pela produção do sinistro tenha sido do Recorrido.

XX. Assim, não provados os factos alegados na Acusação e PIC, salvo o devido respeito, por força do princípio do in dúbio pro reo (artigo 32.º CRP), impõe-se a alteração da decisão recorrida no sentido de absolver a Arguida e, em consequência, julgar o pedido de indemnização civil improcedente, por não provado (artigo 342.º do Código Civil), absolvendo a Demandada Civil do pedido.

XXI. Sem prejuízo, no que refere aos factos provados sob a alínea F) do ponto B dos factos provados, atendendo ao relatório e depoimento do Professor Doutor CC – reconhecido e notório médico especialista de dano corporal e médico que acompanhou o Recorrido na fase de recuperação - e ao relatório do INML de 09.03.2021 (Avaliação dano corporal de direito penal), devem aqueles factos ser alterados no sentido de: F) As lesões foram causa de:

- Período de Défice Funcional Temporário Total sendo assim fixável num período de 12 dias.

- Período de Défice Funcional Temporário Parcial assim fixável num período de 161 dias.

- Período de Repercussão Temporária na Atividade Profissional Total sendo assim fixável num período total de “0” dias.

[…]

- Défice Funcional Permanente da Integridade Físico-Psíquica fixável em 2 pontos.

- As sequelas das lesões são, em termos de Repercussão Permanente na Atividade Profissional, compatíveis com o exercício da atividade habitual.”

XXII. Com as consequências legais que tal alteração tem para efeitos do apuramento ou não de indemnizações a fixar.

Sem prejuízo,

(Da errada interpretação e aplicação do Direito (artigo 412.º n.º 1 e 2 do CPP)

(Danos patrimoniais)

XXIII. Relativamente aos danos patrimoniais peticionados pelo ora Recorrido, o mesmo, tanto à data do sinistro, como em momento anterior, era (é) estudante, e não auferia (aufere) rendimentos, uma vez que não exerce qualquer profissão, não tendo, igualmente, resultado dos relatórios médicos realizados qualquer incapacidade permanente do Recorrido para o trabalho, termos em que a sentença recorrida faz uma errada interpretação e aplicação dos artigos 564.º e 566.º do Código Civil.

XXIV. Dito isto, não existe uma perda concreta e exata de ganho que o Recorrido teve ou que possa vir a resultar da incapacidade que lhe sobreveio após o acidente.

XXV. Nem nenhuma incapacidade para o trabalho resulta dos autos.

XXVI. Nessa medida, não existindo perda concreta nem previsível, não assiste qualquer indemnização, nos termos dos artigos 566.º e 564.º CC, pelo que deve a decisão ser alterada em consequência e absolvida a Recorrente deste pedido;

XXVII. Sem prejuízo, entendendo-se ser possível o apuramento de um valor por danos patrimoniais futuros, nos termos em que se apura aos sujeitos que efectivamente trabalham e que perdem rendimentos, não se pode aceitar o valor apurado pelo Tribunal a quo, atento aos pressupostos em que assenta e à jurisprudência precedente de casos análogos, sob pena de violação do artigo 8.º do Código Civil.

XXVIII. Configurou o Tribunal a quo que o ora recorrido trabalha desde os 17 anos, sendo, porém, que o mesmo era estudante e atualmente continua a sê-lo. No entanto, a ser ficcionado uma idade para efeitos de período de início da atividade laboral, deveria o Tribunal a quo ter considerado os 25 anos (idade média definida pelo Código Civil, nomeadamente no seu artigo 1905.º, n.º 2).

XXIX. Assim, a atenta a estimada idade de início de atividade e da reforma, a esperança média de vida ativa a ficcionar seria de 25 anos para 66 anos, totalizando 36 anos e não os 48 anos definidos pela Sentença de que se recorre.

XXX. Por outro lado, fixou o Tribunal a quo a indemnização a título de danos futuros, desconsiderando que o valor será pago antecipadamente e de uma só vez.

XXXI. Ora, o recebimento total antecipado do capital justifica uma dedução baseada na equidade, tendo por referência os possíveis ganhos resultantes da aplicação financeira do capital antecipadamente recebido (taxa de capitalização) – conforme Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, Proc. n.º 397/03.0GEBNV.S1, de 25.11.2009.

XXXII. Assim ao valor apurado tendo por base os pressupostos (i) anos de vida ativa laboral, (ii) remuneração correspondente a contrato de trabalho com salário mínimo (iii) défice funcional físico-psiquico, deverá necessariamente ser retirado 1/3 ao valor de referência, pelo que, caso fosse para ser aplicável ao caso concreto, o que por mera cautela se equaciona, as regras de apuramento de dano futuro são aplicadas aos casos de trabalhadores efetivos, nunca poderia o valor a fixar ser superior a € 5.158,27 (IPP 2 pontos) ou 18.053,95 (no caso de uma IPP 7 pontos);

(Juros de mora)

XXXIII. Finalmente, quanto aos juros de mora, salvo o devido respeito, errou o Tribunal a quo ao determinar juros de mora sobre a indemnização a título de danos futuros, fixada por equidade, contados desde a notificação até integralmente, uma vez que os valores fixados encontram-se necessariamente atualizados à data da decisão/sentença (momento em o Tribunal, ponderados os pressupostos, fixa o valor que entende ser equitativo), pelo que os juros de mora somente deverão ser calculados a partir da prolação da sentença - entendimento fixado pelo Supremo Tribunal de Justiça no seu Acórdão Uniformizador de Jurisprudência n.º 4/2002, de 9 de Maio.

XXXIV. Deste modo, atento ao disposto nos artigos 562.º, 566.º, 805.º e 806.º do Código Civil, deve a sentença ora em crise ser revogada, quanto a este ponto dos juros de mora, e substituída no sentido de os juros de mora a que a demandada seja condenada sejam calculados a partir da data de prolação da sentença e sobre as quantias apuradas após dedução dos valores pagos a título de reparação provisória.

XXXV. A sentença recorrida viola, entre outras normas e princípios legais, o disposto nos artigos 74.º, 374.º, n.º 2 e 379.º, n.º 1, alíneas a) e c) do CPP, artigos 3.º, 4.º, 50.º, 476.º, n.º 1, 480.º, n.º 3 e 609.º do CPC, artigos 20.º, n.º 4 e 32.º, n.º 2 e 205, n.º 2 da CRP e artigos 8.º, 483.º, 564.º, 566.º, n.º 2 e 3 e 805.º, n.º 1 do Código Civil.

Termos em que deve o presente Recurso ser julgado procedente e, em consequência, ser a Sentença recorrida revogada nos termos expostos, com as demais consequências legais.

            O M.P., respondeu, concluindo nos seguintes termos:

            1- A recorrente demandada civil vem manifestar interesse na manutenção dos dois recursos intercalares já interpostos nos autos, quanto à nulidade do exame pericial de avaliação do dano corporal em direito civil, sendo que, quanto a esta questão, ambos os referidos recurso foram respondidos pelo MP, pelo que se remete para as respostas ali proferidas, dando-se as mesmas como integralmente reproduzidas.

            2- A recorrente levanta a questão da nulidade da sentença, quanto à parte criminal, por falta de fundamentação, omissão de pronúncia, erro material de facto e errada aplicação do Direito ao caso concreto, sendo que, em nosso entender, carece de legitimidade para contestar a decisão quanto à parte criminal.

            3- É o que decorre do disposto no art. 401º, n.º 1, al. c) do C. P. Penal, na medida em que, sendo a recorrente uma parte civil, apenas tem legitimidade para recorrer da parte da decisão que contra si foi proferida.

            4- Além disso, é o que resulta da Doutrina e Jurisprudência (Cfr. Ac. TRL de 3-12-2008, proc. 9428/2008-3, in www.dgsi.pt, e Acordão Relação de Guimarães, de 6 de Março de 2006, proc. 1563/05, in www.dgsi.pt).

            5- Por fim, e quanto a esta questão, temos que o art. 74º, n.º 3 do C. P. Penal, refere expressamente:

            «3. Os demandados e os intervenientes têm posição processual idêntica à do arguido quanto à sustentação e à prova das questões civis julgadas no processo, sendo independente cada uma das defesas.»

            6- Por tudo o exposto, e uma vez que a recorrente demandada civil carece de legitimidade para recorrer quanto à parte criminal, deve o recurso ser rejeitado, nesta parte, pelos motivos supra invocados.

            Caso assim não se entenda, o que não se concede, sempre se dirá que, em nosso entender, a sentença recorrida, não padece dos vícios que lhe são assacados, tendo a prova sido apreciada de forma correcta e com o uso das regras da experiência, além de que não existe qualquer omissão de pronúncia nem aplicação incorrecta do Direito ao caso concreto.

            7- Quanto às questões levantadas sobre o PIC, cálculo de montantes indemnizatórios e juros devidos, entendemos, salvo o devido respeito, que a sentença se mostra bem fundamentada e a decisão está alicerçada nas normas legais aplicáveis, não merecendo qualquer reparo, pelo que deverá manter-se o decido, também quanto a esta concreta parte da sentença recorrida.

            Pelo exposto, julgando o presente recurso improcedente e mantendo a decisão do Tribunal de 1ª instância, farão Vossas Excelências inteira JUSTIÇA.

            Respondeu também o lesado BB, concluindo nos seguintes termos:

            1ª Reiteram-se as doutas contra-alegações apresentadas pelo MºPº em 10/11/2023.

            2ª Tal como defende o MºPº não se vislumbra qualquer nulidade por falta de fundamentação pois o tribunal “a quo” justificou a sua motivação.

            3ª A falta de motivação da decisão de facto não consubstancia uma nulidade do art.668º do CPC, isto é, não conduz à nulidade da sentença ou à anulação do julgamento, levando apenas a que o tribunal da Relação, a requerimento das partes, faça remeter os autos à 1ª instância a fim de aí ser suprida tal deficiência.

            4ª Após o contraditório o PIC passou a ter o valor ampliado pelo recorrido por legal e admissível. Sendo que na sentença recorrida consta tal decisão de aceitação da ampliação, “BB deduziu pedido de indemnização civil contra a Seguradora / demandada A..., Companhia de Seguros, peticionando a sua condenação a pagar-lhe a quantia global de 71 777,13 euros, quantia acrescida e juros moratórios contados desde a notificação.”

            5ª Por não ser assistente carece a recorrente de legitimidade para recorrer da matéria de facto. Mesmo que admissível tal sindicância deve ser rejeitada a impugnação da matéria de facto levada a cabo pela recorrente. As passagens dos depoimentos das testemunhas e das partes ressalvados pela recorrente nas suas alegações, mais não se tratam do que uma versão diferente da que foi considerada provada e não provada pelo tribunal “a quo”. Pelo que, por estas razões agora aduzidas terá de improceder o recurso da matéria de facto mantendo-se inalterada a matéria considerada provada e a não provada, pois não estamos face a qualquer erro de julgamento.

            6ª Inalterada a matéria de facto logo perde o interesse o alegado pela recorrente quanto aos danos.

            7ª A indemnização fixada pelo tribunal “a quo” não foi objecto de actualização. Assim, bem andou o tribunal “a quo” em condenar a recorrente em juros de mora desde a notificação do PIC.

            Nestes termos requer a V.Exªs se dignem considerar improcedente e não provado o presente recurso.

            Nesta instância o Exmº. Procurador-Geral Adjunto pronunciou-se pela procedência do primeiro dos recursos interlocutórios, resultando prejudicado o segundo desses recursos. Quanto ao recurso da decisão final, pronunciou-se pela impossibilidade de a demandante impugnar a decisão de facto em matéria penal e pelo bem-fundado da decisão penal, abstendo-se, por falta de legitimidade, de se pronunciar sobre a parte relativa à indemnização arbitrada.

            A demandada respondeu, mantendo as posições anteriormente assumidas

            Foram colhidos os vistos legais.

Delimitando-se o âmbito do recurso pelas conclusões formuladas, as questões a conhecer são as seguintes:

A – Quanto ao primeiro recurso interlocutório:

- Verificar se as expressões «assessor técnico» e «consultor técnico» utilizadas, respectivamente, nos artigos 50º do Código de Processo Civil e 155º do Código de Processo Penal traduzem uma mesma realidade ou se são figuras distintas;

- Verificar se foi violado o princípio da igualdade de armas entre o demandante e a demanda por ausência de notificação a esta última da data designada para realização da perícia médico-legal, daí resultando a nulidade daquela perícia;

- Suscitando-se oficiosamente e a título prévio a questão de saber se as normas dos artigos 478.º, n.º 1 e 480.º, n.º 3 do Código de Processo Civil eram aplicáveis no caso vertente;

B – Quanto ao segundo recurso interlocutório:

- Verificar se o tribunal a quo podia recusar-se a apreciar o pedido de realização de segunda perícia com fundamento na circunstância de ter sido interposto recurso do despacho que arguiu a sua nulidade;

C – Quanto ao recurso da sentença:

- Verificar se a sentença é nula na parte penal por falta de fundamentação;

- Verificar se ocorre nulidade decorrente de omissão de pronúncia quanto à ampliação do pedido indemnizatório;

- Verificar se ocorreu erro de julgamento quanto à matéria de facto;

- Verificar se ocorreu violação do princípio in dúbio pro reo;

- Conhecendo ainda da questão suscitada pelo M.P. em alegações de recurso e acompanhada pelo demandante, relativamente à legitimidade da demandada para recorrer da vertente penal da decisão;

 - Verificar se foram erradamente interpretados e aplicados os artigos 483.º, 562º, 564.º, 566.º, n.º 2 e 3 e 805.º, n.º 1 e 806º, todos do Código Civil.

II – FUNDAMENTAÇÃO:

           

            Como resulta das conclusões do recurso da sentença, a demandada A... declarou manter interesse nos dois recursos interlocutórios que previamente interpôs.

            Apreciemos então o primeiro desses recursos, de cujas conclusões fluem como linhas de fractura relativamente à decisão recorrida a distinção entre «assessor técnico» e «consultor técnico» e a violação do princípio de igualdade de armas entre as partes civis.

            A primeira daquelas questões não suscita dúvidas de maior. O assessor técnico e o consultor técnico constituem efectivamente figuras diversas e satisfazem finalidades distintas.

            Surpreende-se no texto do art. 155º do Código de Processo Penal a função atribuída ao consultor técnico, que deverá ser pessoa da confiança de quem o nomeia para acompanhar a perícia ordenada, seja no decurso da sua realização, seja apenas na fase pós-perícia, inteirando-se do relatório produzido pelo(s) perito(s). Quando acompanhe a perícia, pode propor a realização de diligências que se ofereçam como pertinentes ou formular observações ou objecções, tudo ficando a constar do auto da perícia.

            Por seu turno, o assessor técnico, nos termos em que o configura o art. 50º do Código de Processo Civil, tem por missão prestar assistência técnica ao advogado da parte. O nº 1 daquele artigo limita a intervenção do assessor técnico aos casos em que se suscitem no processo questões de natureza técnica para as quais o advogado não tenha a necessária preparação, facultando-lhe a possibilidade de ser assistido durante a produção da prova e a discussão da causa por pessoa dotada de competência especial para se ocupar dessas questões. Estabelece complementarmente o nº 4 que em relação às questões para que tenha sido designado, o técnico tem os mesmos direitos e deveres que o advogado, mas deve prestar o seu concurso sob a direção deste e não pode produzir alegações orais [1].

            Traçada esta distinção, atentemos na segunda das questões que identificámos, a saber, a violação do princípio de igualdade de armas entre as partes civis.

            A título prévio, há que dilucidar questão não directamente suscitada, mas a que esta Relação se não pode eximir, qual seja, a de averiguar se as normas do Código de Processo Civil que disciplinam a intervenção do assessor técnico têm aplicação no âmbito do Processo Penal; aplicação que só poderá decorrer de eventual lacuna no ordenamento processual penal, visto o disposto no art. 4º do CPP. Na verdade, e por força deste normativo, o recurso às normas do Código de Processo Civil apenas será de admitir nos casos omissos, quando as disposições do Código de Processo Penal não puderem aplicar-se por analogia e apenas relativamente às normas que se harmonizem com o processo penal. Retenha-se, de todo o modo, que o processo penal tende a ser um ordenamento completo e autossuficiente, sem espaços carecidos de regulação, e constitui, tanto pela limitação e especificidade das matérias e das regulações, como pela pretensão de completude, um campo normativo onde não será esperado encontrar demasiadas lacunas [2].

            Assim, o ponto de partida para a indagação subsequente residirá na verificação da existência no Código de Processo Penal de uma regulamentação para a questão suscitada. Mas ainda que o ordenamento processual penal a não consagre, não se segue sem mais que estejamos em presença de uma lacuna, não havendo que confundir uma diversa regulamentação em outros ramos do direito com a existência de uma lacuna no ordenamento processual penal [3], sendo mister verificar se o tema se encontra regulado de modo autónomo, ainda que diverso do previsto noutras regulamentações adjectivas, maxime, na processual civil, ou mesmo se não se encontra regulado por desnecessidade decorrente de uma concepção diversa da que presidiu à formulação normativa em outros ramos do direito. A omissão poderá corresponder apenas a um «silêncio eloquente» da lei, para utilizar a expressão feliz de Henriques Gaspar [4]. Também Cavaleiro de Ferreira refere a existência de «lacunas aparentes», que não são verdadeiras lacunas mas apenas casos que aparentando não terem sido regulados pela lei na verdade o foram, como resultará da interpretação; são apenas casos obscuros que a interpretação esclarece. Lacunas reais são só aquelas que não cabem no conteúdo da lei, depois de submetida a todas as formas possíveis de interpretação [5].

            Em síntese, poderemos afirmar, à laia de conclusão:

            - A aferição da existência de uma lacuna faz-se a partir do ponto de vista da própria lei, partindo da intenção reguladora que a ela presidiu, dos fins prosseguidos pela lei e do plano legislativo que esteve na sua génese;

            - Só haverá lacuna quando um princípio, mecanismo ou instituto não regulado no Código de Processo Penal carecer efectivamente de regulação processual penal;

            - Haverá que lançar mão das normas do processo civil para responder à omissão quando a solução não for alcançável por analogia com as normas do processo penal e as normas do processo civil se harmonizem com o processo penal;

            - Não sendo colmatável por essa via, haverá que atender aos princípios gerais do processo penal.

           

            Debrucemo-nos, pois, sobre o caso concreto. O que desde logo sobressai é a circunstância de o Código de Processo Penal conter uma regulamentação completa e autónoma em matéria de perícias, convergindo em alguns aspectos com a solução processual civil e nela divergindo noutros. O mesmo é dizer que o legislador quis que as perícias efectuadas no âmbito do processo penal – independentemente de servirem um escopo indemnizatório no âmbito de um pedido de indemnização civil formulado ao abrigo do princípio da adesão – seguissem a tramitação que especificamente previu para este domínio processual. Se outro fosse o intuito legislativo, o Código de Processo Penal teria distinguido as perícias que servem um intuito de investigação criminal das que visam a prova das questões de natureza meramente civil.

            No que concretamente respeita às perícias a realizar com intervenção dos Institutos de Medicina Legal, a regulamentação do Código de Processo Penal é mais extensa e minuciosa do que a que resulta do Código de Processo Civil, como resulta do confronto entre os artigos 159º do CPP e 467º do CPC:

            Sob a epígrafe «Perícias médico-legais e forenses» dispõe a primeira das normas apontadas:

            1 - As perícias médico-legais e forenses que se insiram nas atribuições do Instituto Nacional de Medicina Legal são realizadas pelas delegações deste e pelos gabinetes médico-legais.

            2 - Excepcionalmente, perante manifesta impossibilidade dos serviços, as perícias referidas no número anterior podem ser realizadas por entidades terceiras, públicas ou privadas, contratadas ou indicadas para o efeito pelo Instituto.

            3 - Nas comarcas não compreendidas na área de actuação das delegações e dos gabinetes médico-legais em funcionamento, as perícias médico-legais e forenses podem ser realizadas por médicos a contratar pelo Instituto.

            4 - As perícias médico-legais e forenses solicitadas ao Instituto em que se verifique a necessidade de formação médica especializada noutros domínios e que não possam ser realizadas pelas delegações do Instituto ou pelos gabinetes médico-legais, por aí não existirem peritos com a formação requerida ou condições materiais para a sua realização, podem ser efectuadas, por indicação do Instituto, por serviço universitário ou de saúde público ou privado.

            5 - Sempre que necessário, as perícias médico-legais e forenses de natureza laboratorial podem ser realizadas por entidades terceiras, públicas ou privadas, contratadas ou indicadas pelo Instituto.

            6 - O disposto nos números anteriores é correspondente aplicável à perícia relativa a questões psiquiátricas, na qual podem participar também especialistas em psicologia e criminologia.

            7 - A perícia psiquiátrica pode ser efectuada a requerimento do representante legal do arguido, do cônjuge não separado judicialmente de pessoas e bens ou da pessoa, de outro ou do mesmo sexo, que com o arguido viva em condições análogas às dos cônjuges, dos descendentes e adoptados, ascendentes e adoptantes, ou, na falta deles, dos irmãos e seus descendentes.

            Em termos bem mais incipientes, dispõe o Código de Processo Civil, no nº 3 do art. 467º:

                 As perícias médico-legais são realizadas pelos serviços médico-legais ou pelos peritos médicos contratados, nos termos previstos no diploma que as regulamenta.

            Verificada a evidente distinção do regime das perícias nos âmbitos processual penal e processual civil, há que averiguar se a norma do art. 480º, nº 3, do CPC tem aplicação no âmbito da perícia ordenada em processo penal.

            Segundo aquele normativo, as partes podem assistir à diligência e fazer-se assistir por assessor técnico, nos termos previstos no artigo 50.º, salvo se a perícia for suscetível de ofender o pudor ou implicar quebra de qualquer sigilo que o tribunal entenda merecer proteção.

            No regime das perícias a efectuar em processo penal não existe norma equivalente. Existe, isso sim, a previsão do art. 155º do Código de Processo Penal que, por seu turno, não tem equivalente no domínio das perícias a efectuar em processo civil.

            Dispõe este último artigo:

            1 - Ordenada a perícia, o Ministério Público, o arguido, o assistente e as partes civis podem designar para assistir à realização da mesma, se isso ainda for possível, um consultor técnico da sua confiança.

            2 - O consultor técnico pode propor a efectivação de determinadas diligências e formular observações e objecções, que ficam a constar do auto.

            3 - Se o consultor técnico for designado após a realização da perícia, pode, salvo no caso previsto na alínea a) do n.º 5 do artigo anterior, tomar conhecimento do relatório.

            4 - A designação de consultor técnico e o desempenho da sua função não podem atrasar a realização da perícia e o andamento normal do processo.  

            O consultor técnico referido nestas normas pode intervir na generalidade das perícias ordenadas em processo penal, mas não nas que devam ser realizadas nas delegações do Instituto Nacional de Medicina Legal e Ciências Forenses, I. P. (INMLCF, I. P.) ou nos gabinetes médico-legais e forenses, por expressa disposição do art. 2º, nº 1, da Lei n.º 45/2004, de 19 de Agosto, em cujos termos as perícias solicitadas por autoridade judiciária ou judicial são ordenadas por despacho da mesma, nos termos da lei de processo, não sendo, todavia, aplicáveis às efetuadas nas delegações do INMLCF, I. P., ou nos gabinetes médico-legais e forenses as disposições contidas nos artigos 154.º e 155.º do Código de Processo Penal, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 78/87, de 17 de fevereiro, na sua redação atual, podendo contudo o examinado fazer-se acompanhar por uma pessoa da sua confiança para a realização do exame pericial, exceto em situações em que tal comprometa o objeto da perícia.

            A referência à lei de processo não tem outro significado que não seja a distinção entre os vários tipos de processo que podem originar perícias no INMLCF, nomeadamente, entre o processo laboral, o processo civil e o processo penal, distinção que esteve bem presente no espírito do legislador, tanto assim que introduziu expressa restrição à aplicação dos artigos 154º e 155º do Código de Processo Penal a essas perícias.

            Chegámos assim ao pomo da discórdia, pois diz a recorrente que não excluindo o art. 2º, nº 1, da Lei n.º 45/2004 a intervenção de assessores técnicos mas tão-só a intervenção de consultores técnicos, teriam sido violados os seus direitos de defesa enquanto demandada civil por lhe não ter sido facultada a possibilidade de indicar e se fazer representar por assessor técnico na perícia médico-legal que incidiu sobre o lesado.

            À luz de tudo o que já se adiantou não nos oferece dúvida a inconsistência do alegado. Sendo ponto assente, por decorrer de norma expressa, que a perícia não poderia ter sido acompanhada por consultor técnico, apresenta-se com igual transparência a conclusão de que também não haveria lugar à participação de assessor técnico por a perícia ter sido ordenada no domínio do processo penal, onde essa figura não está prevista, sem que se deva concluir que tal omissão decorre de uma lacuna legal e que se deva, por essa razão, colmatá-la por recurso a normas do Código de Processo Civil.

            De resto, ao estatuir sobre a responsabilidade civil emergente de crime dispondo que a indemnização de perdas e danos emergente de crime é regulado pela lei civil, o art. 129º do Código Penal tem em vista exclusivamente o direito substantivo relativo à determinação da indemnização, não já as normas processuais ou adjectivas.

Assim, a ausência de notificação à demandada civil da data e local da realização do exame médico-legal não traduz violação do disposto nos artigos 478.º, n.º 1 e 480.º, n.º 3 do CPC, normas inaplicáveis ao caso; e que essa notificação também não poderia ser feita por via das normas processuais penais é  conclusão que se alcança pela análise do nº 4 do art. 154º do Código de Processo Penal (que prevê a notificação do despacho que ordena a perícia ao Ministério Público, ao arguido, ao assistente e às partes civis com a antecedência mínima de três dias sobre a data indicada para a sua realização) a par do disposto no art. 2º, nº 1, da Lei n.º 45/2004. Este último afasta expressamente a aplicação do art. 154º do Código de Processo Penal às perícias a efectuar nas delegações do INMLCF ou nos gabinetes médico-legais e forenses.

De igual modo, não ocorre violação dos princípios do contraditório e da igualdade das partes na acepção pretendida pela recorrente, na medida em que o demandante está igualmente impedido de se fazer acompanhar por assessor técnico, não se verificando, pois, uma posição de privilégio deste ante a demandada.

Conclui-se assim que não foi cometida a nulidade arguida pela recorrente quanto à falta de notificação da data da realização da perícia médico-legal.

Alcançada esta conclusão, impõe-se agora a apreciação do segundo recurso interlocutório, que recaiu sobre o despacho que indeferiu a realização de segunda perícia.

Esse indeferimento teve como fundamento a circunstância de a decisão que indeferiu a nulidade da primeira perícia se encontrar em fase de recurso, não estando assim definitivamente fixada, por essa razão, a sua validade.

No caso, esta fundamentação não pode ser acolhida.

É verdade que a decisão recorrida não transitará em julgado senão quando for definitivamente apreciada pelo tribunal superior. Transitaria também se porventura a recorrente tivesse desistido do recurso ou não tivesse declarado no recurso da decisão final que mantém o interesse na apreciação do recurso retido (desistência tácita). Contudo, a simples circunstância de ter sido interposto recurso do despacho que indeferiu a arguição de nulidade da perícia não contende com a apreciação e decisão do requerimento de realização de segunda perícia. Estamos perante recurso que sobe diferidamente e com efeito devolutivo (e assim foi admitido), não se estabelecendo quanto aos subsequentes actos processuais um nexo de dependência com a decisão do recurso. Qualquer acto que um sujeito processual pudesse validamente praticar se não tivesse sido interposto recurso continua a ser admissível independentemente do recurso interposto e sem vinculação à decisão (futura e hipotética) desse recurso; afirmação que não é prejudicada pela circunstância de, em função da decisão do recurso interposto, o acto admitido poder perder a sua utilidade intrínseca.

Ou seja, nada autoriza o tribunal de 1ª instância a recusar, com fundamento na pendência de recurso retido, a prática de qualquer acto que fosse lícito praticar no processo. Essa recusa contende com o regime de recursos previsto no CPP e é susceptível de se repercutir negativamente na marcha do processo.

Aliás, em abstrato, concluindo o tribunal pela admissibilidade da nova perícia, a sua realização poderia inclusivamente determinar a eventual perda de interesse da requerente no recurso anteriormente interposto, com evidente ganho para a gestão processual.

No caso dos autos, para além de demonstrar o seu inconformismo com a perícia efectuada, a demandada requereu a realização de segunda perícia. Esse requerimento é lícito, à luz do disposto no art. 158º, nº 1, al. b), do Código de Processo Penal, que admite a formulação de requerimento para realização de nova perícia ou a renovação da perícia anterior a cargo de outro ou outros peritos [6], não obstando à validade do requerimento a sua formulação por referência ao CPC porquanto o tribunal conhece oficiosamente do direito. Nessa medida, deveria o tribunal de 1ª instância ter apreciado os fundamentos do requerimento à luz do proémio do art. 158º, aferindo a pertinência do requerido pelo interesse para a descoberta da verdade.

Tanto basta para que se conclua pela procedência deste segundo recurso, ainda que com consequências algo distintas das pretendidas pela recorrente, na medida em que não tendo o tribunal a quo apreciado os fundamentos do requerimento que ante si foi formulado para realização de segunda perícia, não pode o Tribunal da Relação substituir-se-lhe, admitindo desde já uma nova perícia, sob pena de se pronunciar sobre questão ainda não conhecida em primeira instância. A decisão a proferir não pode ir além da determinação no sentido de serem apreciados os fundamentos invocados pela requerente e da subsequente decisão como for de direito.

Por fim, importa consignar que decorre do agora decidido, para além do mais, que seria prematuro conhecer desde já das questões suscitadas no recurso interposto da sentença.

III – DISPOSITIVO:

            Pelo exposto, acordam nesta Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra nos seguintes termos:

            a) Nega-se provimento ao recurso interposto do despacho que indeferiu a arguição de nulidade da perícia;

            b) Concede-se provimento ao recurso do despacho que recusou conhecer do requerimento para a realização de nova perícia, ainda que com fundamentos diversos e com consequências distintas das pretendidas.

            c) Não se conhece do recurso interposto da decisão final por força do carácter prejudicial do recurso provido.

Fixa-se a taxa de justiça devida pelo decaimento no primeiro destes recursos em 3 UC.


*


                                                                             Coimbra, 20 de Março de 2024

                                        (Processado e revisto pelo relator a assinado electronicamente)


[1] - Para desenvolvimento veja-se, quanto aos consultores técnicos, Maria do Carmo Silva Dias, Comentário Judiciário do Código de Processo Penal, tomo II, anot. ao art. 156º; e quanto aos assessores técnicos, Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, vol. I, anot. ao art. 43º.
[2] - Henriques Gaspar, Código de Processo Penal Comentado, anot. ao art. 4º.
[3] - Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, vol. I, pág. 104.
[4] - idem.
[5] - Curso de Processo Penal, I, pág. 60.
[6] - Esta norma é aplicável às perícias referidas no art. 159º, sofrendo apenas a compressão prevista no art. 12º da Lei nº 45/2004.