Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
189/20.2GAOHP-B.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ALCINA DA COSTA RIBEIRO
Descritores: RECURSO
TRANSCRIÇÃO DE JULGAMENTO
Data do Acordão: 03/20/2024
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COIMBRA (JUÍZO DE COMPETÊNCIA GENÉRICA DE OLIVEIRA DO HOSPITAL)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS. 364º, 101º, 363º E 412º, N.º 4, DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL
Sumário:
I. - O artigo 412.º, n. º 4, do Código de Processo Penal não confere ao arguido o direito a obter a transcrição da prova registada e gravada no Citius; 
II. - A transcrição não se destina a permitir que o Recorrente organize a sua defesa, mas a facilitar o Tribunal da Relação na apreciação da matéria de facto objecto de impugnação, pelo que a recusa da transcrição para efeitos de impugnação de facto não viola o direito de acesso ao direito e a um processo justo e equitativo nem quaisquer direitos de defesa do arguido.
Decisão Texto Integral:
*


I - RELATÓRIO

1 -  Pelo Tribunal Judicial da Comarca de Coimbra, Juízo de Competência Genérica de Oliveira do Hospital, foi proferido o seguinte despacho:

«1.1. O arguido veio requerer a transcrição da audiência de julgamento em requerimento de 03-07-2023 (cf. ref.ª 8189305), alegando que pretende interpor recurso e proceder à impugnação da matéria de facto.

1.2. Aberta vista, a Digna Magistrada do Ministério Público veio promover o indeferimento por falta de fundamento legal (cf. 05-07-2023, ref.ª 91756625).

Cumpre apreciar e decidir.


*

1.3. Dispõe o artigo 412.º, n.º 4, do Código de Processo Penal, na sua versão actual e em vigor, que: «Quando as provas tenham sido gravadas, as especificações previstas nas alíneas b) e c) do número anterior fazem-se por referência ao consignado na acta, nos termos do disposto no n.º 3 do artigo 364.º, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação.» [sublinhado nosso]

1.4. Advém desta norma que a motivação do recurso quanto à matéria de facto apenas exige a identificação das concretas passagens da gravação da audiência de julgamento que funda a impugnação.

Daqui resulta um regime distinto da anterior versão do artigo 412.º, n.ºs 3 e 4, do Código de Processo Penal, alterada pela Lei 48/2007 de 29-08.

Hoje, ao contrário da versão anterior a 2007, não existe o ónus de se proceder à transcrição dos meios de prova enquanto motivação à impugnação à matéria de facto e condição para a mesma ser apreciada pelo Tribunal ad quem.

Acresce que tendo sido entregue ao arguido na pessoa do seu Ilustre Defensor suporte duradouro contendo as gravações da audiência de julgamento em momento prévio ao requerimento (cf. 20-06-2023, ref.ª 91631759) e não tendo neste sido especificado quais os segmentos da gravação da audiência de julgamento cuja transcrição pretende e que motivariam a sua impugnação à matéria de facto, sempre se concluiria pela falta de fundamento legal da pretensão atento o disposto no actual n.º 4, do artigo 412.º, do Código de Processo Penal..

1.4. Assim, indefere-se por falta de fundamento legal o requerido, porquanto o acto de transcrição não é necessário para fundar a impugnação da matéria de facto em sede de recurso, bem como não cumpriu o ónus prescrito no artigo 414.º, n.º 4, do Código de Processo Penal. indeferido o acto de transcrição da audiência requerida pelo arguido.

2 - Inconformado, interpôs recurso o arguido AA, concluindo a sua motivação do modo seguinte:

«B - O presente despacho viola o nº1 da Lei n.º 34/2004, de 29 de Julho, porquanto “O sistema de acesso ao direito e aos tribunais destina-se a assegurar que a ninguém seja dificultado     ou     impedido,   em     razão     da     sua     condição     social     ou     cultural,     ou     por insuficiência de meios económicos, o conhecimento, o exercício ou a defesa dos seus direitos.”

C - O mui douto Ac. do Tribunal da Relação do Porto, Proc. 3498/08.5TBVFR-B. P1, porquanto “I- A parte que beneficia do apoio judiciário na modalidades de dispensa total, ou parcial, de taxa de justiça e demais encargos com o processo, não tem que suportar os custos de certidões requisitadas pelo tribunal a outras entidades ou quando exigidas pela lei processual.”

D - Sendo as transcrições imprescindíveis para o recurso da matéria de facto, além de necessárias na consideração e liberdade procedimental e intelectual do mandatário, e se o arguido não tem meios para o fazer, então é lhe vedado esse direito.

Ao que acresce;

E - Salvo melhor entendimento, a consideração ou análise interpretativa realizada pelo Tribunal a quo do nº1 do art. 20 da nossa Constituição da República Portuguesa, na senda do perfeito acesso ao direito, é inconstitucional, que bem se deixa expressamente arguida, para e com os necessários e advindos efeitos legais, posto que nos termos do nº1 do art. 20º da CRP, “A todos é assegurado o acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos, não podendo a justiça ser denegada por insuficiência de meios económicos.”

F - A interpretação do Tribunal a quo de que o arguido - que não tem meios e não as pode fazer de outra forma - não ter fundamento legal para pedir as transcrições, necessárias em sede de recurso, afigura-se inconstitucional

G - Se o arguido não tem dinheiro para realizar as transcrições, se pediu o apoio jurídico na modalidade mais ampla que podia pedir e assim lhe foi concedido, mais não pode fazer para ter acesso ao direito, senão pedir ao Tribunal, como o fez, as necessárias transcrições, caso contrário não pode condignamente e de forma viável recorrer e ter um processo justo

H - O arguido pediu a transcrição integral, de todas as sessões e o nº4 do art.414º do CPP, “Quando as provas tenham sido gravadas, as especificações previstas nas alíneas b) e c) do número anterior fazem-se por referência ao consignado na ata, nos termos do disposto no n.º 3 do artigo 364.º, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação.”, apenas se aplica ao recursos e não se aplica naturalmente aos requerimentos a pedir as transcrições para preparação do recurso.

I - O arguido pediu a transcrição integral, para o seu Mandatário ou rectius Defensor, poder     analisar     todas     as     falas,     comparar,     preparar     e     elaborar     o     recurso     como entendesse, aliás permitam-nos, até se na sua liberdade profissional e intelectual o Defensor quiser apresentar todas as transcrições e depois nas conclusões do recurso apenas fazer menção e assim fazer salientar as concretas passagens ou de outra forma qualquer, com certeza terá essa liberdade funcional.

J - Tal é uma não questão – e até porque se não fosse e até pudesse ser um argumento válido, estaríamos com certeza perante uma má fé lamentável quando não se pergunta, se houvesse dúvidas, quais eram as passagens em causa – porque o Tribunal a quo simplesmente afirma que o arguido não tem esse direito, i.e. não tem o direito de pedir transcrições. (…) ».

3 – O Ministério Público, em primeira instância, respondeu ao recurso interposto pelo arguido, pugnando pelo não provimento.

4 - O Ex.mo Procurador-geral Adjunto, neste Tribunal, da Relação emitiu parecer no sentido de que o recurso deverá improceder, mantendo-se o despacho recorrido.

5 – Cumprido o disposto no art.417.º, n.º 2 do Código de Processo Penal, colhidos os vistos, cumpre decidir.

II – FUNDAMENTAÇÃO

A primeira questão a decidir consiste em saber se o tribunal está obrigado a proceder à transcrição da audiência para efeitos de impugnação de facto.

Conforme preceitua o artigo 99.º, n.º 1 e 2, do Código de Processo Penal, o auto respeitante ao debate instrutório e à audiência denomina-se acta e rege-se complementarmente pelas disposições legais que este Código lhe manda aplicar.

Para audiência, dispõe o artigo 363º do Código de Processo Penal: 

«As declarações prestadas oralmente na audiência são sempre documentadas na acta, sob pena de nulidade.».

 Sob a forma a que deve obedecer a documentação, rege o artigo 364º, do mesmo diploma:

«1 - A audiência de julgamento é sempre gravada através de registo áudio ou audiovisual, sob pena de nulidade, devendo ser consignados na ata o início e o termo de cada um dos atos enunciados no número seguinte.

2 - Além das declarações prestadas oralmente em audiência, são objeto do registo áudio ou audiovisual as informações, os esclarecimentos, os requerimentos e as promoções, bem como as respetivas respostas, os despachos e as alegações orais.

3 -  (…)

4 - A secretaria procede à transcrição de requerimentos e respetivas respostas, despachos e decisões que o juiz, oficiosamente ou a requerimento, determine, por despacho irrecorrível.

5 - A transcrição é feita no prazo de cinco dias, a contar do respetivo ato; o prazo para arguir qualquer desconformidade da transcrição é de cinco dias, a contar da notificação da sua incorporação nos autos.

Por seu turno, estatui o artigo 101.º, do Código de Processo Penal (ex vi artigo 364.º, n.º 6, do Código de Processo Penal):

«1 - O funcionário referido no n.º 1 do artigo anterior pode redigir o auto utilizando os meios estenográficos, estenotípicos ou outros diferentes da escrita comum, bem como, nos casos legalmente previstos, proceder à gravação áudio ou audiovisual da tomada de declarações e decisões verbalmente proferidas.

2 - Quando forem utilizados meios estenográficos, estenotípicos ou outros meios técnicos diferentes da escrita comum, o funcionário que deles se tiver socorrido faz a transcrição no prazo mais curto possível, devendo a entidade que presidiu ao ato certificar-se da conformidade da transcrição antes da assinatura.

3 -  As folhas estenografadas e as fitas estenotipadas ou gravadas são conservadas em envelope lacrado à ordem do tribunal, sendo feita menção no auto, de toda a abertura e encerramento dos registos guardados pela entidade que proceder à operação.

4 - Sempre que for utilizado registo áudio ou audiovisual não há lugar a transcrição e o funcionário, sem prejuízo do disposto relativamente ao segredo de justiça, entrega, no prazo máximo de 48 horas, uma cópia a qualquer sujeito processual que a requeira, bem como, em caso de recurso, procede ao envio de cópia ao tribunal superior.».

5 - Em caso de recurso, quando for absolutamente indispensável para a boa decisão da causa, o relator, por despacho fundamentado, pode solicitar ao tribunal recorrido a transcrição de toda ou parte da sentença.».

Da conjugação destas disposições, importa reter.

As declarações orais prestadas em audiência são sempre documentadas em acta.

A audiência de julgamento é sempre gravada através de registo áudio ou audiovisual, devendo ser consignados na acta o início e o termo as declarações prestadas oralmente, os esclarecimentos, os requerimentos e as promoções, bem como as respetivas respostas, os despachos e as alegações orais.

Não há lugar à transcrição das declarações prestadas. Excepciona-se desta regra, a transcrição de requerimentos e respectivas respostas, despachos e decisões que o juiz, oficiosamente ou a requerimento, determine, ou, quando, em caso de recurso for absolutamente indispensável para a boa decisão da causa, a transcrição da sentença, no todo ou em parte.

No que respeita à impugnação de facto, dita o artigo 412.º, n.º 4, do Código de Processo Penal:

«Quando as provas tenham sido gravadas, as especificações previstas nas alíneas b) e c) do número anterior fazem-se por referência ao consignado na ata, nos termos do disposto no n.º 3 do artigo 364.º, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação».

Neste caso, o tribunal procede à audição ou visualização das passagens indicadas e de outras que considere relevantes para a descoberta da verdade e a boa decisão da causa. [artigo 412.º, n.º 6, do Código de Processo Penal].

Daqui retira-se, manifesta e expressamente, que, mesmo em caso de recurso, não há lugar à transcrição da prova gravada em audiência.

Nem sempre foi assim.

Com a revisão do Código de Processo Penal, levada a cabo pela Lei n.º 59/98, de 25 de Agosto, consagra-se um duplo grau de jurisdição do julgamento da matéria de facto fixada pelo Tribunal colectivo[1], ampliando o conhecimento da matéria de facto por parte da Relação, que passa a reapreciar a prova produzida na audiência de julgamento da 1.ª instância, desde que cumprido o ónus da especificação inscrito no artigo 412.º, n.º 3 e 4 do Código de Processo Penal.

Dispõe este preceito:

 «(…)

3. Quando impugne a decisão proferida sobre matéria de facto, o recorrente deve especificar:

a) Os pontos de facto que considera incorrectamente julgados;

b) As provas que impõem decisão diversa da recorrida;

c) As provas que devem ser renovadas”.

4. Quando as provas tenham sido gravadas, as especificações previstas nas alíneas b) e c) do número anterior fazem-se por referência aos suportes técnicos, havendo lugar a transcrição

Mas a quem incumbia realizar a transcrição? Ao Tribunal ou ao recorrente?

A questão, amplamente discutida com decisões contraditórias, veio a ser resolvida   pelo Assento n.º 2/2003[2] que fixou jurisprudência no sentido de que:

«Sempre que o recorrente impugne a decisão proferida sobre matéria de facto, em conformidade com o disposto nos n.ºs 3 e 4 do artigo 412.º do Código de Processo Penal, a transcrição ali referida incumbe ao tribunal».

Ou seja, a exigência da transcrição para os casos de impugnação de facto era satisfeita pelo Tribunal.

Polémicas à parte sobre estas questões, certo é que o legislador de 2007, através da revisão do Código de Processo Penal operada pela Lei n.º 48/2007, de 29 de agosto, veio a suprimir do n.º 4, do citado artigo 412.º, a expressão «havendo lugar à transcrição”.

Ao mesmo tempo, altera os artigos 363.º e 364.º, do Código de Processo Penal, dando preferência ao registo das declarações prestadas oralmente através de gravação magnetofónica ou audiovisual - consignando na acta o início e o termo da gravação de cada declaração - sem prejuízo da utilização de meios estenográficos ou estenotípicos, ou de outros meios técnicos idóneos a assegurar a reprodução integral daquelas.

E, desta forma, eliminou-se a obrigação da transcrição da prova em sede de recurso. Bem se compreende que assim seja. A transcrição, para além constituir um dos factores do aumento da morosidade processual e de agravar os custos para todos os intervenientes, revela-se um acto inútil, já que é possível aceder às declarações prestadas em audiência através da audição da gravação em áudio.

Pelo que, bem andou o tribunal recorrido em indeferir a transcrição da prova produzida em audiência requerido pelo arguido.

Como efeito, mesmo na vigência da norma anterior, a transcrição que então se exigia para efeitos de recurso, não se destinava à preparação da defesa [o que, como resultava daquele transcrito artigo 412.º, n.º 4, devia ser feito através e «por referência aos suportes técnicos»] mas sim a facultar ao Tribunal de recurso reexame da prova[3].

O que constitui elemento essencial à organização e preparação da defesa é o acesso à prova produzida registada através de meios de áudio ou audiovisuais. Dispondo o recorrente de cópia dos suportes técnicos, nada o impede de analisar e apreciar a prova e de elaborar a impugnação de facto.

Conforme decidiu o Supremo Tribunal de Justiça:

«A transcrição das gravações não constitui mais do que passar a escrito aquilo que oralmente ocorreu na audiência de julgamento, à qual o arguido e seu defensor estiveram presentes, gravação a cujos suportes o recorrente teve acesso, ou podia ter acesso, requerendo a respectiva cópia.

(…)

Para a impugnação da matéria de facto não se torna necessário que o recorrente disponha da transcrição, uma vez que tem acesso aos suportes da gravação, que contêm a documentação de toda a prova produzida, podendo, portanto, o recurso ser fundamentado sem necessidade da transcrição.»[4].

Neste sentido, ainda a vigência da versão de 1998, decidiu o Acórdão do Tribunal Constitucional nº 677/99[5], ao julgar não ser inconstitucional a interpretação da lei no sentido de que o ónus da transcrição incumbe ao recorrente.

Aí se lê:

Uma das garantias de defesa no processo penal é o direito ao recurso (cf. o art. 32º nº 1, da Constituição).

Com o recurso não se pretende, porém, um novo julgamento da matéria de facto, pois - como se advertiu no Acórdão nº 124/90 e se repetiu, entre outros, no Acórdão nº 322/93 (publicados no Diário da República, 2ª Série, de 8 de Fevereiro de 1991 e de 29 de Outubro de 1993, respectivamente) - «tratando-se de matéria de facto, há razões de praticabilidade e outras (decorrentes da exigência da imediação da prova) que justificam não poder o recurso assumir aí o mesmo âmbito e a mesma dimensão que em matéria de direito: basta pensar que uma identidade de regime, nesse capítulo, levaria, no limite, a ter de consentir-se sempre a possibilidade de uma repetição integral do julgamento perante o tribunal de recurso.

(…)

Pois bem: se a prova produzida na audiência de julgamento perante o tribunal colectivo foi gravada e o arguido que pretenda impugnar em via de recurso a decisão da matéria de facto pode utilizar essas gravações para o efeito de demonstrar que certos pontos de facto foram incorrectamente julgados (cf. o artigo 412º nº 3, alínea a)) bastando que especifique as provas que, em seu entender, impõem decisão diversa da recorrida (cf. o artigo 412º nº 3, alínea b)) e que proceda à transcrição das passagens da gravação em que se fundamenta (cf. o artigo 412º nº 4), isso é suficiente para se poder concluir que o recurso cumpre os objectivos exigidos por um processo justo e leal (a due process of law).

Ora, um recurso assim constitui suficiente garantia de defesa - uma garantia de defesa no sentido do nº 1 do artigo 32º da Constituição.

(…)

Impor-se ao recorrente o ónus de transcrever as pertinentes passagens da gravação da prova em que se baseia para extrair a conclusão da existência de erro no julgamento da matéria, de facto, não priva, pois, o arguido do direito de recorrer, nem tão-pouco toma o exercício deste direito particularmente oneroso. E, assim, não afecta o direito ao recurso, que, constituindo, embora, no processo penal uma importante garantia de defesa não é, todavia, um direito irrestrito tal que o legislador não possa condicionar mediante a imposição de certos ónus ao recorrente». (sublinhado nosso).

Igual posição tomou o Tribunal Constitucional, no Acórdão n.º 473/2007[6], ao não julgar inconstitucional a norma do artigo 412.º, n.º 4, do Código de Processo Penal, interpretado no sentido de que não é obrigatório, para efeitos de interposição de recurso abrangendo também a decisão da matéria de facto, o fornecimento pelo tribunal ao arguido da transcrição da gravação da prova produzida em audiência de julgamento, bastando, para esse efeito, o fornecimento dos suportes magnéticos dessa gravação.

E isto porque, escreve-se no Aresto:

« (…) Pretendendo o recorrente colocar em causa a forma como o tribunal apreciou a prova, deverá indicar expressamente quais os depoimentos testemunhais ou declarações produzidas que imporiam diversa decisão de facto, o que deverá fazer por referência aos suportes magnéticos contendo os depoimentos gravados (…)

Compete ao recorrente especificar (artigo 412.º, n.ºs 3 e 4, do CPP), com indicação dos suportes técnicos e com a citação ou invocação das passagens que justificam decisão diversa, inseridas num contexto mínimo que permita ao tribunal enquadrar tais passagens na globalidade da prova, pois sobre ele recai o ónus de enunciar as exactas questões que pretende ver reapreciadas pelo tribunal e com referência a concretos factos de cuja fixação discorda.

E ao recorrido é dada a faculdade de indicar outro enquadramento em que se inserem as ditas passagens e de citar outras passagens desses depoimentos ou indicar outros depoimentos que servem para demonstrar que, no contexto global em que se inserem uns e outros, não terá razão de ser a discor­dância do recorrente.

Esta a forma correcta de sustentar um recurso de facto, o que é viabilizado pela faculdade de acesso que os sujeitos processuais têm às cópias das cassetes áudio contendo a gravação da prova.

Imporse ao recorrente o ónus de fazer referência às pertinentes passagens da gravação da prova em que se baseia, por referência aos suportes respectivos, para extrair a conclusão de que o tribunal cometeu um erro de julgamento da matéria de facto, não priva o arguido do direito de recorrer nem torna o exercício de tal direito excessivamente oneroso, conhecendo o recorrente o teor dos depoimentos prestados e o seu sentido, pois de outro modo não faria sentido a sua discordância acerca da forma como o tribunal avaliou a prova.

Não se mostra, pois, que a referida interpretação lese qualquer direito fundamental do recorrente, nomeadamente o que alega.

Tratase da concretização do dever de as partes especificarem claramente o âmbito e motivos da sua dissidência em relação ao decidido na 1.ª instância, apontando e especificando quais os exactos pontos de facto que con­sidera incorrectamente julgados e quais as concretas provas mal valoradas pelo julgador.

Foi decidido pelo Pleno das Secções Criminais do STJ, por Acórdão de 16 de Janeiro de 2003, que a transcrição referida no artigo 412.º, n.ºs 3 e 4, incumbe ao tribunal, o que não contraria, assim o entendemos, o ónus que se impõe sobre o recorrente atrás enunciado.

A transcrição, como se disse, não se destina a possibilitar o recurso em matéria de facto, para tanto existem os suportes técnicos e a documentação escrita quando esta foi feita, mas sim permitir ao tribunal de recurso a identificação e apreciação das questões concretas em matéria de facto colocadas em crise pelo recorrente pelo que a ela só haverá lugar se for interposto recurso da matéria de facto.

Só esta interpretação encontra contexto nas normas respeitantes ao recurso sobre matéria de facto e de obrigatoriedade da documentação dos depoimentos orais mencionados e é a que se mostra mais ajustada ao sentido literal do artigo 412.º, n.º 4, do CPP, sem comprometer as finalidades acerca da admissibilidade de recurso da matéria de facto.

(…)

Quando as provas tenham sido gravadas, dispõe o n.º 4 do artigo 412.º, as especificações previstas nas alíneas b) e c) do n.º 3 fazemse por referência aos suportes técnicos, havendo lugar a transcrição.

Esta disposição, que descreve um iter procedimental para quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, separa inteiramente dois momentos, partindo do pressuposto e da função da gravação da prova e dos respectivos suportes técnicos e da função e finalidade da transcrição das provas gravadas.

A gravação da prova, enquanto meio que permite a constituição de uma base para a reapreciação da decisão em matéria de facto pelo tribunal de recurso, obedece a modos regulamentados de execução constantes dos artigos 3.º a 9.º do Decreto-Lei n.º 39/95, de 15 de Fevereiro.

Dos procedimentos regulados quanto ao modo como se efectua a gravação resulta que os suportes técnicos (fitas magnéticas ou outros suportes con­tendo a gravação) devem ser colocados pelo tribunal à disposição das partes no prazo máximo de oito dias a contar da respectiva diligência.

Deste modo, é a tais suportes técnicos (fitas gravadas ou outros) que a lei se refere no artigo 412.º, n.º 4, do CPP, e não a quaisquer transcrições da prova gravada; a especificação das provas que no entender do recorrente impõem decisão diversa e das provas que devem ser renovadas não é feita por re­ferência à transcrição, mas por referência aos suportes técnicos donde consta a gravação das provas.

E como decorre da lógica imediata da sequência dos procedimentos, só após tal identificação e na estrita medida da referência feita, é que se procederá à transcrição do que for relevante - não transcrição de toda a prova, mas apenas dos elementos que sejam previamente identificados e referidos pelo recor­rente no cumprimento do ónus de especificação que lhe impõe a referida norma do artigo 412.º, n.º 4, do CPP.»

Reitere-se, que a finalidade da transcrição é a de facilitar ao tribunal superior a apreciação da prova documentada e não «habilitar o recorrente a elaborar a sua motivação (que, bem compreendida, deve constituir tãosó a enunciação dos fundamentos do recurso, com a função de delimitar o respectivo objecto, podendo o recorrente desenvolver a fundamentação nas alegações, orais ou escritas, a produzir no tribunal ad quem - artigos 411.º, n.º 4, e 423.º, n.º 3, do CPP), pois para tal lhe basta, para lá da assistência e intervenção em toda a audiência de julgamento e do conhecimento do teor integral da decisão condenatória, o acesso às gravações da prova produzida (até porque é em relação a estes suportes técnicos, e não à sua posterior transcrição, que devem ser feitas as especifica­ções exigidas nas alíneas b) e c) do n.º 3 do artigo 412.º do CPP) - reforçam o juízo de razoa­bilidade do regime estabelecido que, na sequência do Acórdão n.º 433/2002, se entende não poder ser reputado como envolvendo uma limitação constitucionalmente intolerável do direito de recurso em matéria penal.[7]».

Em suma:

- A audiência de julgamento deve ser gravada no sistema Citius;

- O arguido tem o direito a aceder à gravação integral, através da entrega de uma cópia da gravação;   

- O artigo 412.º, n. º 4, do Código de Processo Penal não confere ao arguido o direito a obter a transcrição da prova registada e gravada no Citius; 

- A transcrição não se destina a permitir que o Recorrente organize a sua defesa, mas a facilitar o Tribunal da Relação na apreciação da matéria de facto objecto de impugnação, pelo que a recusa da transcrição para efeitos de impugnação de facto não viola o direito de acesso ao direito e a um processo justo e equitativo nem quaisquer direitos de defesa do arguido.

III - DECISÃO

Nestes termos e pelos fundamentos expostos acordam os juízes do Tribunal da Relação de Coimbra em julgar não provido o Recurso.

Custas pelo Recorrente, com taxa de justiça que se fixa em 4 UCS. (artigos 513º, nºs

Coimbra, 20 de março de 2024

Relatora: Alcina da Costa Ribeiro

1.º Adjunto: Rui Pedro Lima

2.º Adjunto: João Novais





[1] Vide Exposição de Motivos da Proposta de Lei n.º 157/VII, in Diário da Assembleia da República, II Série - A, n.º 27, de 28-01-1998 e, mias tarde Acórdão de Uniformização de Jurisprudência n.º 10/2005, de 20-10-2005, publicado no DR, I-A Série, de 07-12-2005.
[2] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 16 de janeiro de 2003, proferido no Proc.º n.º 3632/2001 – 3.ª Secção, Relatar: Conselheiro Luís Flores, publicado no Diário da República n.º  25,  Série I-A, de 30 de janeiro de 2003.
[3]  Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 17/06, de 6 de janeiro de 2006, processo n.º 383/04: Relator: Conselheiro Mário Torres, acessível https://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20060017.html.
[4] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 20 de dezembro, de 2007, Proc. n º 06P775;  Relator: Conselheiro Arménio Sottomayor, acessível em  https://jurisprudencia.pt/acordao/135023.
[5] de 21 de Dezembro, publicado no DR - II Série, de 2000/02/28,
[6]  Proc. n.º 534/2007, DR n.º 211, Série de 2 de novembro de 2007, acessível em Acórdão n.º 473/2007, em  https://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20060017.html.

[7] Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 435/2997 citado.