Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
565/21.3JALRA-D.S1
Nº Convencional: 5.ª SECÇÃO
Relator: ORLANDO GONÇALVES
Descritores: RECURSO DE REVISÃO
PRESSUPOSTOS
PERÍCIA MÉDICO-LEGAL
RECURSO ORDINÁRIO
FALSIDADE DE TESTEMUNHO OU PERÍCIA
REJEIÇÃO DE RECURSO
Data do Acordão: 02/29/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO DE REVISÃO
Decisão: NEGADO PROVIMENTO.
Sumário :
I - A revisão com fundamento em falsidade dos meios de prova só é permitida, de acordo com o estabelecido na alínea a) do n.º 1 do art. 449.º do CPP, por outra sentença, transitada em julgado, que tiver considerado falsos os meios de prova que tenham sido determinantes para a decisão revidenda.
II - A alteração das declarações prestadas em audiência de julgamento por parte das ofendidas, em alegada confidência destas a uma terceira pessoa, cuja inquirição requereu na revisão, não é bastante para fundamentar uma revisão extraordinária de sentença transitada em julgado.
Decisão Texto Integral:

Proc. n.º 565/21.3JALRA-D.S1


Recurso extraordinário de revisão


*


Acordam, em Conferência, na 5.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça


I- Relatório


1. No Tribunal Judicial da Comarca de Leiria - Juízo Central Criminal de ... - J... ., no âmbito do proc. n.º 565/21.3JALRA, foi o arguido AA pronunciado e submetido a julgamento em processo comum, com intervenção do Tribunal Coletivo e, no seu final, condenado, por acórdão de 30 de janeiro de 2023, transitado em julgado a 1 de março de 2023, pela prática de cada um dos três crimes de abuso sexual de criança agravados, p. e p. pelos artigos 171.º, nº 1 e n.º 2 e 177.º, n.º 1, alínea b) do Código Penal [relativos à menor BB], na pena de 5 (cinco) anos e 6 (seis) meses de prisão; pela prática de cada um dos dois crimes de abuso sexual de criança agravados, p. e p. pelos artigos 171.º, n.º 1 e nº 2 e 177.º, n.º 1, alínea b) do Código Penal [relativos à menor CC], na pena de 5 (cinco) anos de prisão; e, em cúmulo jurídico das penas referidas, foi condenado na pena única de 10 (dez) anos de prisão.


2. Invocando como fundamentos de revisão, os previstos no art.449.º, n.º 1, alíneas d) e f), do Código de Processo Penal, vem o condenado AA interpor recurso extraordinário de revisão de sentença, nos termos seguintes (transcrição parcial):


“1º Súmula do Acórdão do Tribunal Processo: 565/21.3JALRA, Juízo Central Criminal de Leiria - Juiz 1


2º Porquanto:


3º (…)


Factos integradores do artigo 449 CPP e por isso merecedores do recurso Extraordinário de Acórdão Transitado em Julgado


c) Os factos que servirem de fundamento à condenação forem inconciliáveis com os dados como provados noutra sentença e da oposição resultarem graves dúvidas sobre a justiça da condenação;


O recurso de revisão constitui um meio extraordinário de reapreciação de uma decisão transitada em julgado, e tem como fundamento principal a necessidade de se evitar uma sentença injusta, de reparar um erro judiciário, por forma a dar primazia à justiça material em detrimento de uma justiça formal.


Ora a questão da prova pericial medico legal.


Da preterição pelo Tribunal Aquo das regras da perícia medica legal, constitui prova pericial e, como tal, subtraída à livre apreciação do julgador. Ao fazer a sentença tábua rasa do exame pericial junto aos autos, concluindo, sem qualquer fundamentação, em sentido diverso deste, está a violar o disposto nos artigos 127.º e 163.º do CPP e a consubstanciar a nulidade da sentença prevista no artigo 379.º, n.º 1, al. c), do mesmo diploma I - É prova pericial a análise incidente sobre discos rígidos de máquinas apreendidas, donde se extrai o conteúdo da informação depositada naqueles, porquanto a percepção e/ou apreciação do conteúdo dos mesmos só é realizável por quem detém especiais conhecimentos técnicos, concretamente na área informática. II- Na actividade desenvolvida pelo perito tanto podem estar presentes a percepção, como a apreciação/valoração, ou ambas, de todos os factos juridicamente relevantes desde logo, mas não só, para a existência ou inexistência do crime. III - No âmbito desse desempenho, não está, de modo algum, vedado ao perito socorrer-se de deduções e induções, as quais, associadas aos seus especiais conhecimentos, lhe vão permitir retirar conclusões.


Foi violado o artigo 127.º do CPP, sendo inconstitucional a interpretação da norma levada a efeito na sentença;


- Se verifica violação do pro reo


8º Artigo 163.º do CPP dispõe expressamente que o juízo técnico, científico ou artístico inerente à prova pericial se presume subtraído à livre apreciação do julgador, o qual deve fundamentar a sua divergência sempre que a sua convicção divergir do juízo contido no parecer dos peritos 9º


Erro Judiciário


Artigo 449 nº1 alinea F) CPP


f) Seja declarada, pelo Tribunal Constitucional, a inconstitucionalidade com força obrigatória geral de norma de conteúdo menos favorável ao arguido que tenha servido de fundamento à condenação;


Violação da ordem das provas contra legem


10º A acrescer ao exame médico legal realizado às mesmas (no qual se conclui que não foram observados inequívocos sinais de lesões traumáticas, SIC da perícia medico legal


11º Desmistificando pelas regras da perícia medica legal efectuada às ofendidas não mostra pericialmente que tenham sido violadas -Vaginal e Anal .


10º Não é consentâneo com as regras da experiência comum prevista no artigo 127 CPP a utilização sempre de lubrificante para não deixar vestígios – tese sustentada na perícia medica legal em limite


coito anal,


coito oral


ou introdução vaginal


ou anal


de partes do corpo


se utilizadas em todas as ocasiões Lubrificante para poder caber na única exepção levantada pela perícia medica legal no sentido deixar ausência de vestígios sexuais.


11º A Livre Apreciação da prova artigo 127 do CPP – homem medio parece é inverosímil que o arguido tivesse esse cuidado


12º Utilizar preservativo aceita-se para o homem medio, pois as pessoas nestes casos não desejam gravidezes indesejadas, mas lubrificante para o mesmo homem médio não é provável nem expectável..


13º Ou seja, a interpretação e valoração nos termos do artigo 127 CPP a perícia medica legal é forçosamente uma excepções da livre apreciação da prova.


14º A livre convicção não pode confundir-se com a íntima convicção do julgador, impondo-lhe a lei que extraia das provas um convencimento lógico e motivado, avaliadas as provas com sentido da responsabilidade e bom senso, e valoradas segundo parâmetros da lógica do homem médio e as regras da experiência.


15º Se hipoteticamente estivéssemos, mas sabendo nós que a ausência de vestígios não significa que o abuso não tenha ocorrido, porquanto, atenta, com utilização de lubrificante, possível é que não deixasse lesões traumáticas inequívocas).


16º Lubrificantes nas dez vezes ??? é quase impossível fora do comum até que não foi encontrado nenhuma prova “ lubrificante nas provas físicas dos autos.


17º A interpretação dada pelo tribunal A quo viola o artigo 127 CPP e viola o princípio Constitucional In dúbio pro reo aplicando-se aqui O presente recurso é sustentado pela incorreta interpretação que o Tribunal recorrido faz do artigo 127º do Código de Processo penal, e pela consequente violação do princípio do in dúbio pro reo ínsito no art.32.º, n.º 2 da Constituição da República Portuguesa.


E por violação do primado da prova pericial perante a livre apreciação


18º Os exames pedopsiquiátricos das menores (que dão conta de que as mesmas não efabulam e de que não têm problemas de memória), dúvidas inexistem de que os factos ocorreram conforme supra descrito. – Mas podem mentir .


19º Face ao modo como a menor BB descreveu a penetração vaginal ocorrida e conjugando tal descrição com o exame médico legal da mesma (que dá conta do não corrompimento do seu hímen) não é possível concluir que ocorreu penetração vaginal, mas tão só que o arguido colocou o seu pénis na vulva da menor (conforme supra assinalado).


20º Atento o teor do exame médico legal realizado às menores (e respetivos esclarecimentos) não é possível ao Tribunal afirmar, com o grau de segurança que se impõe, que o ‘apagamento do normal pregueamento perianal’ das menores é consequência de atos praticados pelo arguido – o que determinou que tais factos hajam sido dados como não provados.


21º Não se provou ainda que, em consequência dos factos em causa nos autos, as menores perderam a confiança depositada no arguido, porquanto não resultou da prova produzida que estas depositassem confiança no arguido (antes decorrendo do depoimento da menorBB que esta nunca gostou do arguido ou confiou no mesmo). Os demais factos não provados decorreram da ausência de prova sobre os mesmos ou porque se apuraram factos distintos ou incompatíveis com aqueles que se excluíram.


22º A existência de danos psicológicos nas menores em consequência da conduta do arguido decorre da conjugação dos factos praticados pelo mesmo com as mais elementares regras da normalidade e experiência comum ?? não a que foi desmitificada , no presente recurso (além de resultarem plasmados nas perícias pedopsiquiátricas efetuadas às mesmas).


23º Prova Testemunhal Novos meios de Prova


O fundamento de recurso de revisão previsto na al. d) do n.º 1 do art. 449.º do CPP exige desde logo a descoberta de novos factos ou meios de prova


II - Exige ainda que os novos factos ou meios de prova, por si sós ou combinados com os que foram apreciados no processo, suscitem graves dúvidas sobre a justiça da condenação.


d) Se descobrirem novos factos ou meios de prova que, de per si ou combinados com os que foram apreciados no processo, suscitem graves dúvidas sobre a justiça da condenação.


24º Os factos, com relevo para a revisão de sentença com o fundamento previsto na al. d) do n.º 1 do art.449.º do CPP, são os que, compondo o crime, devem constituir o tema da prova (“factos probandos”) e os meios de prova são constituídos pelas provas que se destinam a demostrar a verdade de quaisquer factos, ou que constituem o crime, ou que indiciam a existência ou inexistência do crime (“as provas relativas a factos probandos”).


25º A DD residente na Rua ... ... ... amiga muito chegada das ofendidas com a da idade atual desta confidenciou à mãe da arguida o seguinte:


26º Que as ofendidas confidenciaram há pouco tempo sempre depois do transito em julgado dos sucessivos Acórdão, ou seja, há cerca de um mês:


27º Que tudo foi inventado pelas ofendidas nunca tendo havido abusos sexuais praticados pelo padrasto e o fizeram só porque nunca gostaram do padrasto


28º Só agora foi levado ao conhecimento da companheira do arguido que integra a alínea na al. d) do n.º 1 do art. 449.º do CPP Se descobrirem novos factos ou meios de prova que, de per si ou combinados com os que foram apreciados no processo, suscitem graves dúvidas sobre a justiça da condenação


29º Requer-se o depoimento de nos temos do CPP de DD Rua ... ... ... nos termos e para os efeitos do CPP


Nestes termos e demais de Direito:


Erro Judiciário


Artigo 449 nº1 alínea F) CPP


a) A interpretação dada pelo tribunal Aquo viola o artigo 127 CPP e viola o principio Constitucional In dúbio pro reo aplicando-se aqui O presente recurso é sustentado pela incorreta interpretação que o Tribunal recorrido faz do artigo 127º do Código de Processo penal, e pela consequente violação do principio do in dúbio pro reo ínsito no art.32.º, n.º2 da Constituição da República Portuguesa.


E por violação do primado da prova pericial perante a livre apreciação


Requer-se a audição da perita identificada nos autos nos termos do CPP


Os factos, com relevo para a revisão de sentença com o fundamento previsto na al. d) do n.º 1 do art. 449.º do CPP, são os que, compondo o crime,


b) Que tudo foi inventado pelas ofendidas nunca tendo havido abusos sexuais praticados pelo padrasto e o fizeram só porque nunca gostaram do padrasto


Requer-se o depoimento nos temos do CPP de DD Rua ... ... ... nos termos e para os efeitos do CPP.”.


3. O Ministério Público, junto do Juízo Central Criminal de Leiria, respondeu ao recurso extraordinário de revisão, pugnando pela sua total improcedência e manutenção, na integra, do acórdão recorrido, apresentando as seguintes conclusões (transcrição):


“1. Nos autos, o arguido recorrente foi condenado pela prática de cada um dos três crimes de abuso sexual de criança agravados, p. e p. pelos artigos 171º, nº 1 e nº 2 e 177º, nº 1, alínea b) do Código Penal [relativos à menor BB], na pena de 5 (cinco) anos e 6 (seis) meses de prisão; cada um dos dois crimes de abuso sexual de criança agravados, p. e p. pelos artigos 171º, nº 1 e nº 2 e 177º, nº 1, alínea b) do Código Penal [relativos à menor CC], na pena de 5 (cinco) anos de prisão; em cúmulo jurídico das penas referidas, o arguido foi condenado na pena única de 10 (dez) anos de prisão.


2. Esgotadas todas as vias de recurso ordinário, inclusivamente da improcedência da providência de Habeas Corpus, o arguido interpôs recurso de revisão, nos termos do artigo 449.º, n.º1, als. d) e f), do Código de Processo Penal.


3. Os novos meios de prova previstos na lei, terão de ser a modo a introduzir dúvidas graves sobre a justiça da condenação, de tal modo a que a possibilidade de absolvição será quase certa.


4. A mera alegação de que, agora, se tem conhecimento de uma testemunha que terá ouvido dizer às ofendidas que mentiram quanto à existência dos abusos pelos quais o arguido foi condenado, não é de modo a criar tal dúvida.


5. Já durante o julgamento o arguido afirmou que as ofendidas mentiam porque “não gostavam dele”. O mesmo ocorreu com as restantes testemunhas de defesa, inclusivamente a companheira do arguido e mãe das ofendidas.


6. Não foram apenas as declarações prestadas pelas ofendidas que determinaram o convencimento do Tribunal de que o arguido praticou os factos. Foi a prova pericial médico legal, foi a prova pericial de análise do testemunho das ofendidas, foi a análise de todos os testemunhos prestados.


7. O alegado pelo recorrente não configura um novo meio de prova que intrusa a dúvida séria da justiça da condenação, pelo que o presente recurso não poderá ser provido, na medida em que os pressupostos legais do mesmo não estão verificados.


8. Não âmbito do recurso de revisão, que o Supremo Tribunal de Justiça julgue inconstitucional a interpretação de uma determinada norma.


9. Antes, o motivo da revisão é determinado, porque em momento posterior ao trânsito em julgado da sentença condenatória o Tribunal Constitucional declarou a inconstitucionalidade de uma norma legal, com força obrigatória geral, o que não ocorre nos autos.


10. A argumentação do recorrente nada mais que a tentativa de discutir a condenação de que foi alvo, esgotadas todas as vias de recursos ordinários.”.


4. A Ex.ma Juíza de Direito, ao abrigo do disposto no art.453º, nº 1 do CPP, procedeu à inquirição como testemunha de DD, da testemunha EE (companheira do arguido e mãe das assistentes) e da assistente BB.


5. Sobre o mérito do pedido formulado pelo condenado, pronunciou-se a Ex.ma Juiíza de Direito, informando o seguinte (transcrição):


Nos termos do disposto no artigo 454º do CPP, e porque efetuada no estrito cumprimento das normas legais aplicáveis, entende-se, salvo melhor e mais douta opinião, ser de manter a decisão recorrida nos seus precisos termos.


De facto, em nosso entender, das diligências probatórias realizadas no presente recurso de revisão nada resulta que permita infirmar o juízo de culpabilidade produzido nos autos principais, porquanto a testemunha arrolada como novo meio de prova [DD] não confirmou os factos narrados no recurso de revisão apresentado, negando ter alguma vez ouvido dizer às assistentes, suas primas, que estas faltaram à verdade em audiência de julgamento.


A testemunha EE, inquirida também no âmbito das diligências de prova realizadas, referiu ter ouvido a testemunha DD dizer que ouviu a prima BB dizer que mentiu em Tribunal, o que foi peremtoriamente negado pela testemunha DD.


Inquirida BB sobre tal facto alegado (ter faltado com a verdade em audiência de julgamento), a mesma negou que o tenha feito ou que tenha sequer conversado sobre o presente processo com a sua prima DD – o que havia já sido mencionado por esta.


Entende-se, salvo mais douta opinião, que o demais alegado em sede de recurso de revisão é igualmente destituído de fundamento legal.


Contudo, V. Exas., com outro saber e mais experiência, como sempre farão a costumada JUSTIÇA.”


6. O Ex.mo Procurador-Geral-Adjunto, neste Supremo Tribunal de Justiça, no visto a que alude o art.445.º, n.º1, do C.P.P., emitiu parecer no sentido de que deverá ser negada a revisão, por manifestamente infundado o pedido, de acordo com o disposto no art.456.º do Código de Processo Penal.


7. Notificado o requerente do pedido de revisão da posição assumida pelo Ministério Público na vista a que alude o art.455.º, n.º1 do C.P.P., para, em 10 dias, querendo, dizer que tivesse por conveniente, nada disse.


8. Realizada a Conferência, nos termos do art.455.º, n.º 3 do Código de Processo Penal, cumpre decidir.


II – Fundamentação


9. A factualidade dada como provada e respetiva motivação constante do acórdão recorrido são as seguintes (transcrição):


“Discutida a causa, e com relevância para a decisão da mesma, resultaram provados os seguintes fatos constantes da acusação:


1. A menor BB nasceu a ... de ... de 2005 e a menor CC nasceu a ... de ... de 2007.


2. À data dos factos em apreço nos autos, integravam o agregado familiar das menores a mãe das mesmas, um irmão uterino e o arguido AA, o qual vive com a mãe das menores, como marido e mulher, há cerca de 11 anos, tendo fixado residência na área do Concelho da ....


MENOR BB:


3. Em data não concretamente apurada do ano de 2013, numa ocasião em que a menor BB


Bernardo ficou sozinha com o arguido, este chamou-a ao quarto dele, tendo apalpado o peito, rabo e zona genital da menor, por cima da roupa, enquanto lhe deu beijos na cara e nos lábios.


4. Após, o arguido passou a apalpar a menor BB por baixo da roupa, tendo-a despido completamente e beijado o seu corpo desnudado, concretamente no peito, vagina e nádegas.


5. Em seguida, o arguido despiu-se, tendo ficado apenas de boxers, e, após, deitou a menor BB em cima da cama, de barriga para cima, e colocou-se em cima dela, continuando a apalpar e a beijar todo o seu corpo.


6. Após, o arguido baixou os boxers que envergava e colocou o seu pénis ereto na vulva da menor.


7. Nesse momento, o arguido disse à menor BB que não ia fazer ali mais nada porque ela era muito nova e tinha de se fazer mulherzinha primeiro.


8. Ato contínuo, o arguido virou a menor BB de barriga para baixo, levantou-lhe o rabo, colocou-a de joelhos, colocou-se por cima dela e penetrou-a com o seu pénis ereto no ânus.


9. Após alguns momentos, o arguido saiu de cima da menor, vestiu-se e mandou a menor vestir-se, e disse-lhe para não contar nada à mãe.


10. Nessa noite, quando a menor BB foi à casa de banho, o arguido estava no escritório e foi atrás da menor, levou-a até ao escritório da residência onde habitam, sentou-a ao seu colo e exibiu-lhe filmes pornográficos no computador.


11. Em virtude dos factos descritos, nos dias seguintes, a menor teve um grande ardor sempre


que urinava.


12. A partir desta data, com frequência e em número de vezes não determinado, o arguido passou a apalpar a menor BB no peito ou na zona genital ou a dar-lhe um beijo na boca.


13. Sempre que o arguido ficava sozinho em casa com a menor BB colocava o seu pénis na vulva da mesma e penetrava-a no ânus, de forma semelhante ao relato acima descrito quanto à primeira vez.


14. A partir de determinada data, não concretamente apurada, mas posterior à data mencionada em 3 dos factos provados, o arguido passou a pedir à menor BB que lhe fizesse também sexo oral, o que esta fez em número de vezes não concretamente apurado.


15. Para praticar os factos descritos, o arguido nunca usou preservativo, sendo que, por vezes,


ejaculava em cima das costas da menor.


16. Algumas das vezes, antes de praticar os factos descritos, o arguido punha no seu pénis um lubrificante, que se encontrava acondicionado num tubo preto, que guardava na gaveta esquerda da secretária do escritório da casa onde habitavam.


17. Os factos acima descritos sucederam, entre a menor BB e o arguido, em número não determinado de vezes, entre o ano de 2013 e data não concretamente apurada do ano de 2018, por vezes no quarto do arguido, no quarto da menor BB, na sala e na cozinha da casa onde residiam, e, em algumas ocasiões, em casa de clientes do arguido, nas ocasiões em que a menor acompanhou o arguido a tais locais e tendo o arguido aproveitado o facto de estar sozinho com a mesma.


18. De acordo com o exame médico legal a que a menor BB foi submetida, a menor apresenta um apagamento do normal pregueamento cutâneo perianal às 12h00 e às 06h00.


MENOR CC:


19. Em data não concretamente apurada do Verão de 2016, quando a menor CC se encontrava no sofá da sala da residência supra descrita, a ver televisão, deitada de barriga para baixo, o arguido sentou-se junto da mesma e começou a fazer-lhe festas nas pernas.


20. Após, o arguido baixou os calções do pijama que a menor CC envergava e colocou o seu pénis ereto no ânus da menor, provocando-lhe dor, após o que lhe disse para não contar nada à mãe nem à irmã.


21. Após o acima descrito, e sempre que se encontrava sozinho com a menor CC, por diversas vezes, em número e datas não concretamente apuradas, o arguido puxava a menor para o seu quarto, deitava-a na cama, de barriga para baixo, baixava-lhe as cuecas e colocava o seu pénis ereto no ânus da menor e penetrava-a até ejacular.


22. Em datas não concretamente apuradas, em pelo menos duas ocasiões distintas, o arguido utilizou um dildo, para penetrar a menor CC no ânus.


23. Sempre que o arguido tinha oportunidade, entrava na casa de banho quando a menor CC se encontrava nua no seu interior, aproveitando para observar a menor quando a mesma se encontrava desnudada.


24. Os factos em causa foram praticados pelo arguido na menor CC entre os anos de 2016 e 2020.


25. De acordo com o exame médico legal a que a menor CC foi submetida, a menor apresenta um apagamento do normal pregueamento cutâneo perianal às 12h00m.


26. O arguido quis agir como agiu, sempre com o propósito concretizado de satisfazer os seus instintos libidinosos, mediante os atos sexuais supra descritos, aproveitando-se do fácil contacto que mantinha com as menores e do ascendente que mantinha sobre as mesmas, face à relação que os unia, atuando sempre consciente que, com as suas ações, prejudicava gravemente o livre e são desenvolvimento da personalidade das menores, designadamente quanto ao seu desenvolvimento sexual, causando-lhes marcas psicológicas.


27. Em virtude dos factos acima descritos, as menores têm medo que o arguido volte a praticar


factos, contra si, da mesma natureza.


28. O arguido agiu de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo que a sua conduta era


proibida por lei penal.


Mais se apurou:


Da Situação Pessoal do Arguido:


29. O arguido é o mais velho de dois filhos de um casal de modesta condição socioeconómica, tendo o seu processo de desenvolvimento sido marcado pelo trabalho precoce, na arte xávega, junto do progenitor, que era pescador de profissão e se encontra atualmente reformado.


30. O arguido iniciou o seu percurso escolar em idade própria, tendo concluído, aos 13 anos de


idade, o 6º ano de escolaridade.


31. O arguido trabalhou junto do pai até iniciar atividade na área da construção civil, aos 16 anos de idade, como pintor, atividade que desenvolveu por conta de outrem até 2009/2010, altura em que iniciou atividade em nome individual.


32. Em 2019, o arguido constituiu a empresa “E...... ......., Unipessoal, Lda”, na qual o seu irmão presta serviços, e tendo ainda outros dois trabalhadores a seu cargo.


33. O arguido casou em 1998 e divorciou-se em 2010. Desta relação não tem filhos.


34. Ainda em 2010, o arguido iniciou relação análoga à dos cônjuges com a mãe das menores


BB e CC, da qual tem um filho com 10 anos de idade.


35. Após a detenção ocorrida no âmbito dos presentes autos, e na sequência das medidas de coação aplicadas, o arguido reintegrou o seu agregado familiar de origem, na ..., onde se manteve até 31 de Janeiro de 2022, data em que passou a viver, na morada atual, com a mãe das menores e o filho de ambos.


36. As menores saíram do agregado familiar da sua mãe e do arguido em Junho de 2021, encontrando-se aos cuidados de uma tia materna.


37. Atualmente, o arguido vive com a mãe das menores e o filho de ambos, em casa arrendada, pela qual pagam € 500,00 mensais de renda.


38. O arguido desenvolve a sua atividade laboral na sua empresa, como pintor de construção civil, auferindo ordenado mínimo nacional. Em meses mais produtivos, aufere um rendimento de cerca de € 900,00 mensais.


39. A mãe das menores trabalha numa das lojas ‘A .... – Cooperativa de produtos de fruta e de produtos hortícolas’, nas ..., onde aufere o ordenado mínimo nacional.


40. Na sequência do presente processo, a mãe das menores desenvolveu uma depressão, tendo ficado incapacitada para o trabalho, de baixa médica, entre Julho de 2021 e Fevereiro de 2022.


41. Do ponto de vista social, o arguido é descrito como uma pessoa educada, trabalhadora e respeitadora, sendo-lhe reconhecidas relações interpessoais ajustadas, não sendo alvo de informações desabonatórias.


42. Do certificado de registo criminal do arguido nada consta.


Factos não provados :


Com relevo para a boa decisão da causa, não se logrou provar:


DA MENOR BB: • Que, em data não concretamente apurada do ano de 2013, nas circunstâncias descritas em 6 dos factos provados, o arguido colocou o seu pénis ereto na vagina da menor, penetrando apenas um bocadinho; • Que, nesse momento, e por se sentir magoada, a menor BB gritou, tendo o arguido tapado a boca da menor; • Que o arguido apalpava a menor BB ou dava-lhe um beijo na boca todos os dias. Que sempre que o arguido ficava sozinho em casa com a menorBB penetrava-a com o seu pénis na vagina; • Que o arguido nunca ejaculou dentro da menor BB; • Que os factos descritos, ocorridos entre o arguido e a menor BB, sucederam até ao final do ano de 2019, cinco vezes por semana; • Que o apagamento do normal pregueamento que a menor BB apresenta é consequência dos factos praticados pelo arguido;


DA MENOR CC: • Que o arguido praticava sexo anal com a menor CC sempre que esta usava saia; • Que o arguido praticou os factos descritos, relativos à menor CC, cerca de três vezes por mês; • Que o apagamento do normal pregueamento que a menor CC apresenta é consequência dos factos praticados pelo arguido; • Que o arguido tinha relação familiar com as menores; • Que, em virtude dos factos descritos, as menores perderam a confiança que mantinham no arguido.


Motivação da Decisão de Factos:


A fixação dos factos provados e não provados teve por base a globalidade da prova produzida em audiência de julgamento e a livre convicção que o Tribunal granjeou obter sobre a mesma.


Nos termos do disposto no artigo 127º, do Código de Processo Penal, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente, salvo quando a lei dispuser diferentemente. Refere o Professor Figueiredo Dias (in “Lições Coligidas de Direito Processual Penal”, edição de 1988/1989, da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, p.141) que «a liberdade de apreciação da prova é, no fundo, uma liberdade de acordo com um dever – o dever de perseguir chamada “verdade material” – de tal sorte que a apreciação há-de ser, em concreto, recondutível a critérios objetivos e, portanto, em geral suscetível de motivação e controlo».


A audiência de julgamento decorreu com o registo, em suporte digital, dos depoimentos e esclarecimentos nela prestados. Tal circunstância que deve, também nesta fase do processo, revestir-se de utilidade, dispensa o relato detalhado dos depoimentos produzidos.


Assim, a motivação do Tribunal, no que respeita à matéria fáctica considerada provada e não provada, assentou:


Quanto à questão da culpabilidade:


A convicção do Tribunal assentou na conjugação das declarações prestadas pelo arguido em audiência (nas quais, no essencial e em síntese, negou a prática dos factos) com as declarações para memória futura de ambas as menores depoimentos prestados pela menor BB em audiência de julgamento,


os exames médicos,


esclarecimento e exames pedopsiquiátricos realizados às menores (fls. 50 a 56, fls. 568 e fls. 570 a 585 dos autos), a prova testemunhal produzida em audiência, os objetos apreendidos ao arguido nos autos (fls. 91, 106 e 220), a reportagem fotográfica de fls. 95 a 114, e a compaginação de todos estes elementos com as regras da normalidade e experiência comum.


Alguns aspetos importa, contudo, realçar.


O arguido negou a prática dos factos, assumindo a vivência em comum com as menores e a mãe das mesmas durante mais de 10 anos (desde 2010), e afirmando que, nesse lato período de tempo, nunca ficou sozinho com as menores – o que não mereceu credibilidade nem é minimamente compatível com as regras da normalidade e experiência comum.


Referiu o arguido que a menor BB nunca gostou de si, mas com a menor CC sempre teve uma boa relação, até 2015/2016, data em que esta menor começou a ser influenciada contra si pela irmã mais velha.


Referiu ainda o arguido que, no período dos factos em causa nos autos, nunca vinha a casa durante o dia, que saía de manhã para trabalhar e só regressava à noite, e que almoçava sempre com os seus pais na ....


Referiu ainda que a casa onde habitavam era contígua à casa dos pais da sua companheira, e que a porta da cozinha da residência do arguido encontrava-se sempre aberta, assim como a porta que dava para o quintal comum a ambas as casas, e que, por força disso, a mãe da sua companheira entrava e saía da sua residência a qualquer momento, sem qualquer aviso prévio.


Para evitar tal situação, o casal colocou o frigorífico à frente da porta que separa a cozinha da casa dos pais da sua companheira, assim barrando essa entrada.


O pai das menores, GG, referiu, em síntese, que mantinha algum contacto com as menores, após se separar da mãe das mesmas, que o arguido chegou a ir buscar as menores sozinho e que estas manifestavam receio do arguido, embora desconhecesse os motivos para tanto.


A mãe das menores, EE, referiu viver com o arguido há cerca de 11 anos, que a sua filha BB nunca gostou do arguido, mas que a menor CC tinha um bom relacionamento com este. Referiu ainda que o arguido não passava tempo sozinho com as menores, que pode ter estado sozinho com elas, embora por pouco tempo, uma vez que geralmente a testemunha ou o filho HH também estavam presentes.


Referiu ainda que o arguido saía de casa para trabalhar, por volta das 7h00m da manhã e só regressava a casa a partir das 22h00m, acompanhado do menor HH. Quando o menor HH tinha 4 ou 5 anos, colocaram o frigorífico a tapar a porta que separava a cozinha da casa dos seus pais, para evitar que a sua mãe entrasse na sua casa sem bater à porta da mesma.


Referiu ainda a mãe das menores que não tem as filhas por mentirosas, embora entenda que, nesta situação, não estão a dizer a verdade (sem que, contudo, apresente qualquer fundamento para tal entendimento).


A testemunha II, vizinha do arguido e das menores e tia avó materna destas últimas e com quem atualmente as menores residem (vivia a 500 metros da casa destes, à data dos factos), referiu, no essencial e em síntese, que, quando a mãe das menores trabalhava ao sábado, o arguido ficava com as menores ou levava-as para casa dos seus pais; que chegou a ver o arguido com as menores (geralmente as duas), de carro, ao fim de semana; que, a meio da manhã e por vezes à tarde, durante a semana, via o arguido passar para casa – o que é corroborado pelo depoimento da avó materna das menores e pelas declarações para memória futura prestadas pelas menores (que referiram que era usual o arguido vir a casa, durante a semana e durante o dia) e contraria as declarações prestadas pelo arguido (e pela mãe das menores), na parte em que refere que saía sempre de manhã e vinha à noite para casa, nunca vindo a casa durante o dia.


A avó materna das menores, a testemunha JJ, referiu ao Tribunal que tomava conta das netas quando a mãe destas (sua filha) não estava; mas que, quando o arguido estava em casa, muitas vezes não deixava as menores vir para a sua casa. Disse que o arguido ficava frequentemente sozinho com as menores – que fazia comida para elas e, muitas vezes, levava-as para a ....


Disse a testemunha que muitas vezes ia lá a casa ver se precisavam de alguma coisa e o arguido dizia-lhe que se podia ir embora. Mais referiu a avó das menores que o arguido vinha muitas vezes a casa durante a semana, especialmente quando as menores não tinham aulas; que o arguido saía cedo, para levar o filho do casal à escola, mas que mais tarde regressava a casa e ‘ficava lá o dia todo, se fosse preciso’. Disse ainda que, quando as menores estavam as duas na Escola, o arguido saía de manhã e só regressava à noite.


Disse também que o arguido, quando chegava a casa, fechava a porta que dá para o quintal que separa as duas casas (a casa do arguido e das menores da casa da testemunha). E que, quando o arguido estava em casa, tinha sempre de bater à porta, para entrar na casa da sua filha. Mais referiu que, muitas vezes, a sua neta BB lhe pediu para vir fazer crochet para o sofá da casa onde vivia, enquanto tomava banho, para não estar sozinha em casa.


A testemunha de defesa KK referiu ter sido colega de trabalho do arguido, na construção civil, e ainda, no essencial e em síntese, que o arguido fazia a sua vida toda na ... e que só ia a casa dormir, sempre depois das 22h00m; que, durante a semana, o arguido almoçava sempre em casa dos seus pais; disse ainda que, de sábado para domingo, muitas vezes o arguido ficava a dormir em casa dos pais, na ..., com o seu filho HH.


Referiu ainda a testemunha, no final do seu depoimento, que esteve emigrada em Londres entre 2014 e Maio de 2019, e que, durante esse período, apenas veio a Portugal nas férias, não sabendo qual era o modo de vida e as rotinas e horários diários do arguido.


A testemunha LL, amigo do arguido, referiu que a vida do arguido ‘é praticamente na ...’, que o arguido almoça em casa da mãe, que não regressa a casa antes das 20h00m, porque, no final dos dias de trabalho, vai sempre conviver com os amigos, na ....


A testemunha MM, amiga de infância do arguido e auxiliar de ação educativa na Pré-Escola e Escola dos menores, disse ver o arguido levar o filho à Escola diariamente; que via o arguido almoçar e jantar diariamente em casa dos pais; e que via o arguido na ... a horas tardias.


Disse ainda que chegou a ver o arguido ir buscar o filho HH acompanhado apenas da menor CC – o que contraria as declarações do arguido, na parte em que referiu que nunca ficou sozinho com as menores. Por outro lado, e pese embora se creia que o arguido, por vezes, tomava refeições em casa dos seus pais, acompanhado do seu filho HH, não se nos afigura minimamente credível que, diariamente, o arguido ‘fizesse a sua vida’ na ..., junto da casa dos pais, e não no agregado) familiar das menores, e que apenas fosse dormir a casa, chegando sempre a partir das 22h00m, acompanhado do menor HH.


Na verdade, no que respeita às rotinas diárias do arguido, mereceram credibilidade, porque seguros, convictos, detalhados, lógicos e descomprometidos, revelando conhecimento direto dos factos, os depoimentos prestados pela vizinha da família e tia avó das menores, a testemunha II, e da avó materna das menores, JJ. Tais depoimentos são ainda compatíveis com o narrado pela testemunha NN (madrinha da menor CC), acerca do que ouviu dizer à mãe das menores – que as menores por vezes ficavam sozinhas com o padrasto (e pese embora, em audiência, a mãe das menores não o haja assumido de forma espontânea). Referiu ainda a madrinha da menor CC (a testemunha NN), num depoimento escorreito, seguro, detalhado e totalmente descomprometido (e por isso merecedor de credibilidade), a forma como tomou conhecimento, através da menor BB, das situações ocorridas entre esta e o arguido. Vemos, assim, que da prova testemunhal produzida em audiência (nos moldes assinalados), e da conjugação da mesma com as regras da normalidade e experiência comum, é possível afirmar que, ao longo da vivência em comum com as menores, o arguido ficou sozinho com as mesmas em variadas situações – contrariamente ao afirmado pelo arguido em audiência de julgamento. Por outro lado, e para prova dos factos supra descritos, revelaram-se ao Tribunal essenciais as declarações para memória futura das menores e ainda o depoimento prestado (por duas vezes) em audiência de julgamento pela menor BB. Flui de tais declarações para memória futura a descrição minuciosa, segura, lógica, objetiva e descomprometida por banda de ambas as menores, com a menção a circunstâncias de facto e de detalhes que apenas poderiam ser narrados por quem vivenciou as situações descritas – a roupa que envergavam, o que estavam a fazer no momento dos factos, os objetos utilizados pelo arguido.


Atente-se nas declarações para memória futura prestadas pela menor CC e na forma como descreve a primeira relação sexual mantida com o arguido, assim como as relações sexuais que se seguiram. Referiu a menor CC que as situações em causa começaram quando tinha 8/9 anos e terminaram quandotinha12anos. Disse ainda que o arguido lhe dizia que aquele era o segredo deles e que não se podia contar a ninguém. Disse que as situações em causa aconteciam durante o dia, em casa, em época escolar, quando tinha tardes livres (no quarto do arguido), e que também ocorriam de noite, no quarto que partilhava com o seu irmão (sendo que situações de penetração, no seu quarto, ocorreram em situações em que o seu irmão não dormia no quarto, já que, nas situações em que este dormia no mesmo quarto, ocorriam toques do arguido no seu corpo, por cima e por baixo da roupa). Mais referiu que os factos em causa nunca aconteceram fora de casa. A menor BB, em sede de declarações para memória futura, explicou a forma como ocorreu o primeiro ato sexual com o arguido; que o arguido pôs a boca e um bocadinho do pénis na sua vagina, mas que lhe disse que ainda era muito nova e que depois tornava-se uma mulherzinha; que a virou de lado e depois de costas para ele, e que lhe introduziu o pénis no ânus, o que doeu. Disse que, nessa sequência, gritou, após o que o arguido lhe empurrou a cabeça para cima da almofada, para não se ouvir. Disse que ouviram o resto da família a regressar do café e que o arguido saiu rápido de dentro de si, vestiu-se, abriu os estores, pô-la na sala a ver bonecos e foi para a cozinha lavar a loiça. Mais referiu ter sentido frio nas costas, não sabe se era sémen. Disse ter ficado com dores e que ardia quando ia ao WC. O arguido disse-lhe que não contasse à mãe. Disse ainda que, nesse dia à noite, foi ao WC ‘fazer xixi’ e o arguido apanhou-a no corredor, chamou-a para o escritório e pôs vídeos de relações sexuais de adultos. Disse ainda que, quando estava gente em casa, o arguido só lhe dava uns apalpões, por cima ou por baixo da roupa, consoante as pessoas estivessem próximas ou mais afastadas, e que, quando não estava ninguém em casa, acontecia a penetração anal, que também sucedeu em trabalhos fora de casa. Disse que as penetrações aconteciam, em época escolar, quando tinha tardes livres, e ficava em casa sozinha com o arguido, e ainda à noite, no seu quarto. Disse também que o arguido entrava muitas vezes na casa de banho quando estava a tomar banho, e que, quando era mais nova, até lhe dava banho. Disse que os factos em causa aconteceram desde os 8 anos de idade até aos 15 anos, e que deixaram de acontecer quando começou a ter força para o afastar de si. A acrescer a tais declarações e reforçando as mesmas, revelou-se essencial à descoberta da verdade o depoimento prestado pela menor BB em audiência de julgamento, na qual, com segurança, objetividade, detalhe e descomprometimento, revelou ao Tribunal o modo de ocorrência dos factos supra descritos. Esclareceu a menor BB que, durante o dia, os atos praticados pelo arguido eram mais rápidos – apalpões, beijos, ‘coisas mais rápidas’ – e ocorriam em várias divisões da casa e quando apenas estavam os dois (e ainda que outras pessoas estivessem noutras divisões). Referiu ainda a menor que, quanto tinha tardes livres, chegava a ficar sozinha em casa (com 10/11 anos de idade). Disse ainda que o arguido lhe mostrou vários filmes pornográficos, na TV e no computador – no escritório e na sala (quando tinha cerca de 7/8 anos) e que o arguido a pôs a fazer-lhe sexo oral e a masturbá-lo, nessas circunstâncias. Disse que, após a primeira penetração, quando foi ao WC, ardeu muito. Disse ainda que a sua primeira menstruação ocorreu quanto tinha cerca de 11 anos de idade, e que, em determinada altura, já depois de ser menstruada, chegou a ter receio de ter engravidado, por força dos factos praticados pelo arguido, sem preservativo, e porque tinha um período menstrual muito irregular. Esclareceu que, na vagina, o arguido penetrava menos do que no ânus, e que lhe doía. Disse que, nessa altura, e atenta a sua precoce idade, desconhecia se podia ou não engravidar, por força dos atos praticados pelo arguido, tendo tido receio de ter ficado grávida por ter uma menstruação muito irregular. Referiu não saber se o arguido alguma vez ejaculou dentro de si, mas saber que chegou a suceder o arguido ejacular nas suas costas.


Disse que, por força destes factos praticados pelo arguido, não gostava dele e repelia-o, sempre que este a tentava agarrar à frente de outras pessoas. Disse que os factos em causa aconteceram desde os 7/8 anos até aos 12/13 anos (quando começou a ter força para o impedir). E que, entre os 13 e os 17 anos de idade, o que acontecia eram apalpões e ‘coisas mais rápidas’.


Mais referiu ter decidido contar à madrinha os factos em causa por ter receio de que o arguido pudesse fazer o mesmo à sua irmã CC, embora nunca se tenha apercebido que alguma coisa acontecesse entre os dois. Soube pela Polícia Judiciária que o arguido praticava os mesmos factos com a sua irmã CC.


Disse que os factos descritos (todos eles) chegaram a ocorrer na sala da residência da família, no quarto do arguido, no seu próprio quarto, na cozinha (embora geralmente na cozinha ocorressem situações mais rápidas, mas tendo ocorrido penetração na cozinha uma ou duas vezes) e em casas de clientes do arguido, na ... e noutros locais que não recorda. Face ao grau de pormenor, à tranquilidade, descomprometimento e objetividade dos depoimentos prestados pelas menores, corroborados, no que às circunstâncias de tempo e de lugar respeita, pelos depoimentos da avó materna e da vizinha e tia-avó das mesmas (e ainda parcialmente pelo depoimento da mãe das mesmas).”.


10. Apreciando


O recorrente peticiona a revisão do acórdão proferido no proc. n.º 565/21.3JALRA, apresentando, em síntese, os seguintes fundamentos:


(i) o acórdão recorrido preteriu as regras da perícia médico-legal ao decidir, sem qualquer fundamentação, em sentido diverso ao exame, pelo que violou o disposto nos artigos 127.º e 163.º do Código de Processo Penal, o que consubstancia a nulidade de sentença prevista no art.379.º, n.º1, alínea c), do mesmo Código;


(ii) o acórdão recorrido padece de erro judiciário (art.449.º, n.º1, alínea f) do C.P.P.), por “violação da ordem das provas contra legem”, pois a interpretação das provas feita pelo Tribunal a quo não é consentânea com as regras da experiência comum previstas no art.127.º do C.P.P., e viola o princípio “in dubio pro reo” ínsito no art.32.º, n.º2 da C.R.P., sendo inconstitucional a interpretação daquela norma levada a efeito na sentença;


(iii) o acórdão recorrido deve ser revisto com o fundamento previsto no art.449.º, n.º1, alínea d) do C.P.P. porquanto DD confidenciou à mãe das ofendidas1, há cerca de um mês, que estas ofendidas disseram que tudo foi inventado por elas, nunca tendo havido abusos sexuais praticados pelo padrasto e o fizeram só porque nunca gostaram deste.


11. Previamente à apreciação da pretensão e argumentos apresentados pelo recorrente AA no pedido de revisão de sentença, que tem o âmbito decorrente do requerimento inicial apresentado, impõe-se fixar, sinteticamente, os fundamentos e os pressupostos da revisão de sentença, ou seja, o regime legal que lhe subjaz.


O art.29.º da Constituição da República Portuguesa, inserido no Título II, epigrafado de «Direitos, liberdades e garantias» consagra, no seu n.º5, o princípio ne bis in idem e, assim, ainda que de forma implícita, a figura do caso julgado.


O fundamento central do caso julgado é uma concessão prática à necessidade de garantir a segurança e a certeza do direito.


Como assertivamente esclarece Eduardo Correia, com o caso julgado “…ainda mesmo com possível, sacrifício da justiça material, quere-se assegurar através dele aos cidadãos a paz; quere-se afastar definitivamente o perigo de decisões contraditórias. Uma adesão à segurança com eventual detrimento da verdade, eis assim o que está na base do instituto.”.2


Porém, embora a segurança seja um dos fins do processo penal, não é o único, como acentua Cavaleiro de Ferreira:


A justiça prima e sobressai acima de todas as demais considerações; o direito não pode querer e não quer a manutenção duma condenação, em homenagem à estabilidade das decisões judiciais a garantia dum mal invocado prestígio ou infabilidade do juízo humano, à custa de postergação de direitos fundamentais dos cidadãos, transformados então cruelmente em vítimas ou mártires duma ideia mais do que errada, porque criminosa da lei e do direito.”. 3


O caso julgado não pode, pois, ser um dogma absoluto face à injustiça patente.


E a nossa lei fundamental não deixa de o reconhecer, privilegiando a justiça material em detrimento da segurança e da certeza que resulta da autoridade do caso julgado, ao estabelecer no art.29.º. n.º 6 da Constituição da República Portuguesa, que «os cidadãos injustamente condenados o direito, nas condições que a lei prescrever, à revisão da sentença é á indemnização pelos danos sofridos».


Com o recurso de revisão consegue o legislador obter o equilíbrio entre a imutabilidade da sentença ditada pelo caso julgado (vertente da segurança) e a necessidade de assegurar o respeito pela verdade material (vertente da Justiça).


No mesmo sentido esclarece José Alberto dos Reis, no âmbito do processo civil, que “O recurso de revisão pressupõe que o caso julgado se formou em condições anormais, que ocorreram circunstâncias patológicas suscetíveis de produzir injustiça clamorosa. Visa a eliminar o escândalo dessa injustiça. Quer dizer, ao interesse da segurança e da certeza sobrepõe-se o interesse da justiça”.4


A revisão de sentença criminal, densificada no art.449.º e seguintes do Código de Processo Penal, é um recurso extraordinário que visa a impugnação de uma sentença transitada em julgado e a obtenção de uma nova decisão, mediante a repetição do julgamento.


Comporta, no entendimento generalizado da doutrina, duas fases: a fase do juízo rescindente e a fase do juízo rescisório.


A primeira fase abrange a tramitação desde a apresentação do pedido até à decisão que concede ou denegue a revisão; a segunda fase – do juízo rescisório – só existe se a revisão for concedida e inicia-se com a baixa do processo e termina com um novo julgamento.5


O requerimento a pedir a revisão, contendo os fundamentos e as provas, é apresentado no tribunal que proferiu a decisão que deve ser revista (art.451.º do C.P.P.) e, se o fundamento for a descoberta de novos factos ou meios de prova, o juiz procede às diligências que considera indispensáveis, mandando documentar as declarações prestadas (art.453.º do C.P.P.).


Os fundamentos e condições de admissibilidade da revisão da sentença penal transitada em julgado, em que seria injusto e intolerável manter a sentença transitada em julgado, constam das alíneas a) a g) do n.º 1 do art.449.º do Código de Processo Penal.


São elas, taxativamente, as seguintes:


- Falsidade dos meios de prova, verificada por outra sentença transitada em julgado - alínea a);


- Dolo de julgamento, decorrente de crime cometido pelo juiz ou por jurado relacionado com o exercício da sua função no processo - alínea b);


- Inconciliabilidade de decisões, entre os factos que servirem de fundamento à condenação e os dados como provados noutra sentença, resultando graves dúvidas sobre a justiça da condenação - alínea c);


- Descoberta de novos factos ou meios de prova que, em si mesmos ou conjugados com os que foram apreciados no processo, suscitem graves dúvidas sobre a justiça da condenação - alínea d);


- Condenação com recurso a provas proibidas - alínea e);


- Declaração pelo Tribunal Constitucional, com força obrigatória geral, de norma de conteúdo menos favorável ao arguido que haja servido de fundamento à condenação - alínea f); e


- Sentença vinculativa do Estado português, proferida por uma instância internacional, inconciliável com a condenação ou que suscite graves dúvidas sobre a sua justiça - alínea g).


O fundamento da revisão da sentença transitada em julgado previsto na alínea d) do n.º1 do art.449.º do Código de Processo Penal, que o recorrente AA traz à colação, exige a verificação cumulativa de dois pressupostos:


- a descoberta de novos factos ou novos meios de prova; e


- que esses novos factos ou meios de prova suscitem graves dúvidas sobre a justiça da condenação.


No que respeita ao primeiro destes pressupostos, importa, antes do mais, saber para quem devem ser novos os factos (“factos probandos”) ou os meios de prova (“as provas relativas a factos probandos”) que fundamentam a revisão da sentença, é uma das questões que esta norma coloca.


São três as orientações que o Supremo Tribunal de Justiça segue a este respeito:


Uma primeira, com interpretação mais ampla, considera que são novos os factos ou novos os meios de prova, invocáveis em sede de recurso de revisão, que não tiverem sido apreciados no processo que levou à condenação do arguido, por não serem do conhecimento do tribunal, na ocasião em que ocorreu o julgamento, pese embora, nessa altura pudessem ser do conhecimento do condenado.


Este entendimento foi partilhado durante um largo lapso de tempo pelo S.T.J, designadamente nos acórdãos de 3-7-1997 (proc. n.º 485/97 - 3.ª) e de 1-7-2009 (proc. n.º319/04.1GBTMR-B.S1 - 3.ª).6


Uma outra, mais restritiva, defende que os novos factos ou novos meios de prova, invocáveis em sede de recurso de revisão, são apenas aqueles que eram desconhecidos do recorrente aquando do julgamento.


Apela para o efeito, essencialmente, à natureza extraordinária do recurso de revisão e ao dever de lealdade processual que recai sobre todos os sujeitos processuais.


Neste sentido se pronunciaram, entre outros, os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 20-6-2013 (proc. n.º 198/10.0TAGRD-A-S1- 5.ª) e de 25-6-2013 (proc. n.º 51/09.0PABMAI-B.S1 - 3.ª).7


E, uma terceira orientação, mais restritiva do que a primeira e mais ampla que a segunda, sustenta que os novos factos ou novos meios de prova, invocáveis em sede de recurso de revisão, são os que embora conhecidos de quem cabia apresentá-los, no momento em que o julgamento teve lugar, apresente uma justificação bastante para a omissão verificada (por impossibilidade ou por, na altura, se considerar que não deviam ter sido apresentados os factos ou os meios de prova agora novos para o tribunal).


É a posição defendida no acórdão do S.T.J. de 11-11-2021 (proc. n.º769/17.3 PBAMD-B.S1- 5.ª Secção), onde se escreve: “Na sua aceção mais comum – e, por assim dizer, mais tradicional – «[a] expressão “factos ou meios de prova novos”, constante do fundamento de revisão da alínea d) do n° 1 do artigo 449º do CPP, deve interpretar-se no sentido de serem aqueles que eram ignorados pelo tribunal e pelo requerente ao tempo do julgamento e, por isso, não puderam, então, ser apresentados e produzidos, de modo a serem apreciados e valorados na decisão».


Concede, todavia, alguma jurisprudência mais recente – aliás, hoje, predominante e com que se concorda – que ainda sejam novos os factos ou meios de prova já conhecidos ao tempo do julgamento pelo requerente, desde que este justifique «porque é que não pôde, e, eventualmente até, porque é que entendeu, na altura, que não devia apresentar os factos ou meios de prova, agora novos para o tribunal».8


Seguimos esta última orientação, que vai no sentido de que os novos factos ou novos meios de prova, invocáveis em sede de recurso de revisão, são os desconhecidos pelo tribunal e ainda os que embora conhecidos de quem cabia apresentá-los, no momento em que o julgamento teve lugar, apresente uma justificação bastante para a omissão verificada.


Como se consignou no acórdão do S.T.J. de 6 de outubro de 2022, com relato deste mesmo relator, “É uma posição equilibrada, que tem em consideração, por um lado, a natureza extraordinária do recurso de revisão, preservando o caso julgado como fator estabilizador das relações jurídicas e, por outro, o interesse na efetiva realização da verdade material, permitindo ao recorrente justificar porque não alegou os novos factos ou meios de prova no momento em que o julgamento teve lugar.”.9


Para a procedência do recurso de revisão não basta, como vimos, a descoberta de novos factos ou novos meios de prova, tornando-se ainda necessário, um outro pressuposto: que eles suscitem graves dúvidas sobre a justiça da condenação.


Como se decidiu, entre outros, no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 1-7-2009 (proc. n.º 319/04.1GBTMR-B.S1), para efeitos do disposto no art.449.º, n.º1, al. d), do C.P.P., “A dúvida relevante para a revisão tem de ser qualificada; há-de elevar-se do patamar da mera existência, para atingir a vertente da “gravidade” que baste, tendo os novos factos e ou provas de assumir o qualificativo da “gravidade” da dúvida”. Não é, consequentemente, admissível revisão de sentença penal com o único objetivo de corrigir a medida concreta da sanção aplicada.”.


Por fim, a alínea f), n.º1 do art.449.º do Código de Processo Penal, prescreve que a revisão da sentença transitada em julgado é admissível quando « Seja declarada, pelo Tribunal Constitucional, a inconstitucionalidade com força obrigatória geral de norma de conteúdo menos favorável ao arguido que tenha servido de fundamento à condenação».


Este fundamento de revisão exige a verificação cumulativa de dois pressupostos:


a) que a inconstitucionalidade da norma de conteúdo menos favorável ao arguido seja declarada pelo Tribunal Constitucional com força obrigatória geral; e


b) que essa norma tenha servido de fundamento à condenação.


Este primeiro pressuposto deve conjugar-se com o disposto no art.282.º, da Constituição da República Portuguesa, pois a al. f), do nº 1, do art.449.º do Código de Processo Penal veio satisfazer a necessidade de inscrever no Código de Processo Penal o instrumento/fundamento correspondente à previsão da 2.ª parte do n.º 3 do art.282.º da Constituição.10


Retomando o caso concreto.


11.1. É pacífico na jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça que o recurso extraordinário de revisão não é um substitutivo do recurso ordinário.


Como se consigna no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 19-11-2020, o recurso extraordinário de revisão não deve transformar-se em “uma apelação disfarçada (appeal in disguise)”, num recurso penal encapotado, degradando o valor do caso julgado e permitindo a “eternização da discussão de uma mesma causa”, não podendo ver-se nele um recurso contra os recursos ou o recurso dos recursos, de que se lança mão em desespero de causa, quando todos os demais já redundaram em fracasso”.11


Ou como se diz no acórdão do TC n.º 376/2000, “no novo processo, não se procura a correção de erros eventualmente cometidos no anterior e que culminou na decisão revidenda, porque para a correção desses vícios terão bastado e servido as instâncias de recurso ordinário, se acaso tiverem sido necessárias(…). Só esta interpretação faz jus à natureza excecional do remédio da revisão e, portanto, aos princípios constitucionais da segurança jurídica, da lealdade processual e da protecção do caso julgado.”.12


No caso concreto, entende este Supremo Tribunal que a impugnação da decisão ora recorrida por parte do então arguido AA tinha adequada expressão processual no recurso ordinário, podendo ai ter suscitado, como questões a decidir, a alegada preterição das regras da perícia médico-legal e violação do disposto nos artigos 127.º e 163.º do Código de Processo Penal, a nulidade de sentença prevista no art.379.º, n.º1, alínea c), do mesmo Código, o alegado erro judiciário por “violação da ordem das provas contra legem” e das regras da experiência comum previstas no art.127.º do C.P.P., a violação do princípio “in dubio pro reo” ínsito no art.32.º, n.º2 da C.R.P., e a inconstitucionalidade da interpretação daquela norma levada a efeito na sentença.


O recurso de revisão interposto pelo condenado AA não pode servir para este efetivar o direito ao recurso ordinário, depois de ter esgotado todas as vias de recurso ordinário – segundo o Ministério Público, na resposta ao recurso, o arguido AA interpôs recurso do acórdão condenatório para o Tribunal da Relação de Coimbra, mas foi rejeitado por extemporaneidade, e após reclamação foi mantida a decisão de não admissão do recurso.


O recurso de revisão não visa a atribuição de meios extraordinários de defesa a quem, não fez atuar atempadamente os meios ordinários de defesa, nem as questões que poderia ter colocado no recurso ordinário - como a existência de erro na apreciação da prova, nulidade da sentença recorrida e de interpretação inconstitucional de uma norma, como a do art.127.º do C.P.P., - integram qualquer dos taxativos fundamentos de revisão extraordinária de sentença.


Não integrando as discordâncias processuais apontadas pelo recorrente ao acórdão recorrido, qualquer dos fundamentos de revisão de sentença, designadamente os enunciados nas alíneas d) e f), n.º1 do art.449.º do C.P.P., que o condenado invoca expressamente no seu recurso de revisão, não podem elas fundar a autorização de revisão de sentença.


11.1.2. Manifesta é, igualmente, a rejeição da revisão pedida pelo recorrente AA com o fundamento na alínea f), n.º1 do art.449.º do Código de Processo Penal, pois o mesmo não indica qualquer acórdão proferido pelo Tribunal Constitucional que tenha declarado a inconstitucionalidade com força obrigatória geral de norma de conteúdo menos favorável ao arguido, que tenha servido de fundamento à condenação.


Também este Supremo Tribunal não vislumbra que inconstitucionalidade de norma de conteúdo menos favorável ao arguido foi declarada pelo Tribunal Constitucional com força obrigatória geral e, menos ainda, que tenha servido de fundamento à condenação.


11.1.3. O único fundamento que, prima facie, poderia autorizar a revisão de sentença, seria o previsto no na alínea d), n.º1 do art.449.º, n.º1, alínea d) do C.P.P., porquanto DD confidenciou à mãe das ofendidas, há cerca de um mês, que estas ofendidas disseram que tudo foi inventado por elas, nunca tendo havido abusos sexuais praticados pelo padrasto e o fizeram só porque nunca gostaram deste.


Mas a pretensão do recorrente não resiste a uma análise mais fina do fundamento, essencialmente por três razões.


A primeira, e fundamental, é que o recorrente ao afirmar que as ofendidas BB e CC confidenciaram a uma terceira pessoa (DD) que nunca tinha havido abusos sexuais praticados pelo padrasto e que tudo foi inventado por elas, mais não faz que invocar a falsidade dos depoimentos que as ofendidas prestaram em audiência de julgamento.


Ora, a revisão com fundamento em falsidade dos meios de prova só é permitida, de acordo com o estabelecido na alínea a), n.º1 do art.449.º do C.P.P., por outra sentença, transitada em julgado, que tiver considerado falsos os meios de prova que tenham sido determinantes para a decisão revidenda.


A alteração das declarações prestadas em audiência de julgamento por parte das ofendidas em alegada confidência destas a uma terceira pessoa, cuja inquirição requereu, não é bastante, pois, para fundamentar uma revisão extraordinária de sentença transitada em julgado.


O que se passa aqui, como de algum modo ocorreu no acórdão do S.T.J. de 23-6-2021, indicado pelo Ex.mo Procurador-Geral-Adjunto no seu parecer, é que “aquilo que o recorrente pretende, ao cabo e ao resto, é uma revisão da sentença assente na falsidade de um depoimento prestado em audiência. Dado, porém, que (por força do estatuído no artº 449º, nº 1, al. a) do CPP) tal falsidade tem que previamente ser declarada em sentença transitada em julgado, o recorrente tenta cobrir essa insuficiência com as vestes de um novo facto ou meio de prova que, verdadeiramente, não o é. Como, em situação com algumas semelhanças, se refere no acórdão deste Supremo Tribunal de 18/02/2021, Proc. 274/16.5GAMCN-D.S1, “o que o recorrente está a fazer, com uma patente troca de etiquetas, é invocar a falsidade do meio de prova produzido no julgamento, mas fá-lo por via ínvia, sem juntar certidão da sentença onde tal falsidade tenha sido declarada. Essa falsidade, a existir, tem de ser declarada pelo meio próprio, uma sentença transitada em julgado, dado que, nestas situações, por razões facilmente apreensíveis, a exigência do legislador é qualificada”.13


No caso concreto, não tendo o recorrente juntado aos autos com o seu requerimento de revisão um outra sentença, transitada em julgado, que tenha considerado falsas as declarações prestadas pelas ofendidas menores, e tenha considerado essa falsidade como determinante para a decisão revidenda, improcede este último fundamento de revisão invocado pelo recorrente.


Mas mesmo que assim não fosse – mas é – caso o depoimento da nova testemunha DD fosse no sentido pugnado pelo recorrente, sempre estaria longe de se poder concluir que no caso se mostravam verificados os requisitos da al. d), n.º 1 do art.449.º do Código de Processo Penal.


Embora a testemunha DD só tenha aparecido depois do julgamento, por alegadamente só agora as ofendidas lhe terem confidenciado que inventaram os abusos sexuais imputados ao padrasto - que por sua vez as comunicou à companheira do condenado e mãe das menores ofendidas há cerca de um mês -, importa não esquecer que o seu depoimento sempre seria de ouvir dizer.


Nesta hipótese, não se vislumbra porque se haveria de valorar o depoimento da DD em detrimento dos depoimentos prestados pelas menores ofendidas, quando estes últimos foram prestados em audiência de julgamento e, consequentemente, dar por assentes “graves dúvidas” sobre a justiça da condenação.


Por fim, e para que dúvidas não restem sobre a inconsistência da revisão de sentença com fundamento na alínea d), n.º1 do art.449.º do C.P.P., não podemos deixar de realçar que a Ex.ma Juíza de Direito procedeu à inquirição da testemunha DD, tal como requerido pelo recorrente, e que a mesma negou ter alguma vez ouvido dizer às ofendidas, suas primas, que estas faltaram à verdade no julgamento.


Inquirida, a título oficioso, a ofendida BB, declarou esta que não teve qualquer conversa com a DD sobre o presente processo.


Neste contexto não subsistem dúvidas e menos ainda “dúvidas graves”, sobre a justiça da condenação do ora recorrente AA


Para efeitos do art.456.º Código de Processo Penal, o pedido de revisão é manifestamente infundado quando a avaliação sumária dos seus fundamentos, permite concluir, sem margem para dúvidas, que ele está votado ao insucesso.


Perante todo o exposto, consideramos que o pedido de revisão formulado pelo recorrente/condenado, ao abrigo das alíneas d) e f), n.º1 do art.449.º do Código de Processo Penal, é manifestamente infundado, pelo que se impõe a sua condenação, ao abrigo do disposto no art.456.º do mesmo Código, no pagamento de uma quantia entre 6 UC a 30 UCs.


III - Decisão


Nestes termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes da 5.º Secção do Supremo Tribunal de Justiça em negar a revisão de sentença peticionada pelo recorrente AA


Custas pelo recorrente, fixando em 3 UCs a taxa de justiça (art.8.º, n.º 9 e Tabela III do Regulamento das Custas Processuais), a que acresce a soma de 9 UCs nos termos do art.456.º Código de Processo Penal.


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(Certifica-se que o acórdão foi processado em computador pelo relator e integralmente revisto e assinado eletronicamente pelos seus signatários, nos termos do art.94.º, n.ºs 2 e 3 do C.P.P.).


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Lisboa, 29 de fevereiro de 2024


Orlando Gonçalves (Juiz Conselheiro Relator)


Agostinho Torres (Juiz Conselheiro Adjunto)


Jorge dos Reis Bravo (Juiz Conselheiro Adjunto)


Helena Moniz (Juíza Conselheira Presidente da Secção)


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1. Por lapso manifesto consta do requerimento de revisão “à mãe da arguida”, em vez de “à mãe das ofendidas”,, EE, que é também a companheira do arguido (art.28.º do requerimento de revisão e motivação do acórdão recorrido).↩︎

2. Cf. “II - Caso Julgado e Poderes de Cognição do Juiz”, Coimbra Editora, 1983, pág.7↩︎

3. Cf. In “Scientia Iuridica”, tomo XIV, n.ºs 75/76, págs. 520-521.↩︎

4. Cf. “Código de Processo Civil Anotado”, Coimbra Editora, vol. V, pág. 158.↩︎

5. Cf. Germano Marques da Silva, in "Curso de Processo Penal",3º Vol., pág. 364 e Maia Gonçalves, "Código de Processo Penal Anotado", 17ª Ed., pág.644).↩︎

6. In www.dgsi.pt.↩︎

7. In www.dgsi.pt.↩︎

8. Cf. no mesmo sentido, entre outros, os acórdãos do STJ de 17.12.2009 (Proc. n.º 330/04.2JAPTM-B.S1), in www.dgsi.pt e de 3-11-2016, publicados na C.J. ASTJ, n.º 275, pág. 178 e, ainda, o mais recente acórdão do S.T.J. do ora relator, de 9.12.2021, proferido no proc. n.º3103/15.3TDLSB-E.S1, consultável in www.dgsi.pt/stj.↩︎

9. Cf. proc. n.º 1106/19.8PAOLH-A.S1, in www.dgsi.pt↩︎

10. Cf. acórdão do S.T.J. de 06-09-2022, proc. n.º 4243/17.0T9PRT-K.S1, in www.dgsi.pt↩︎

11. In, www.dgsi.pt↩︎

12. In, www.tribunalconsttucional.pt↩︎

13. Proc. n.º 12/19.0PEBGC-A.S1. Ainda, no mesmo sentido, entre outros, o acórdão do S.T.J. de 27-5-2021 (proc. n.º 205/18.8GCAVR-B-S1, todos in www.dgsi.pt↩︎