Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | 5.ª SECÇÃO | ||
Relator: | LEONOR FURTADO | ||
Descritores: | ACÓRDÃO DE FIXAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA PERDA DE INSTRUMENTOS PRODUTOS E VANTAGENS PERDA DE BENS A FAVOR DO ESTADO PEDIDO DE INDEMNIZAÇÃO CIVIL LESADO | ||
Data do Acordão: | 04/11/2024 | ||
Votação: | MAIORIA COM * VOT VENC | ||
Referência de Publicação: | DRE N.º 90/2024, I SÉRIE DE 09-05-2024, P. 1-39 (ACÓRDÃO N.º 5/2024). | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
Meio Processual: | RECURSO DE FIXAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA (PENAL) | ||
Decisão: | PROVIDO. | ||
Indicações Eventuais: | TRANSITADO EM JULGADO. | ||
Sumário : | Acordam os Juízes que constituem o Pleno das Secções Criminais do Supremo Tribunal de Justiça em: a) Fixar a seguinte jurisprudência: “Nos termos do disposto no artigo 111.º, n.ºs 2 e 4, do Código Penal, na redacção dada pela Lei n.º 32/2010, de 02/09, e no artigo 130.º, n.º 2, do Código Penal, na redacção anterior à Lei n.º 30/2017, de 30/05, as vantagens adquiridas pela prática de um facto ilícito típico devem ser declaradas perdidas a favor do Estado, mesmo quando já integram a indemnização civil judicialmente pedida e atribuída ao lesado pelo mesmo facto.”. b) Reenviar o processo ao Tribunal da Relação do Porto para revisão da decisão recorrida, em conformidade com a jurisprudência ora fixada, nos termos do disposto no art.º 445.º, n.º 2, do CPP. | ||
Decisão Texto Integral: | Recurso Fixação de Jurisprudência Processo: 1105/18.7T9PNF.P1-A.S1 Acordam no Pleno das Seções Criminais do Supremo Tribunal de Justiça: I – RELATÓRIO Do recurso extraordinário para fixação de jurisprudência 1. O MINISTÉRIO PÚBLICO junto do Tribunal da Relação do Porto interpôs Recurso Extraordinário de Fixação de Jurisprudência, nos termos dos arts.ºs 437.° e seguintes do Código de Processo Penal (CPP), para o Pleno das Secções Criminais do Supremo Tribunal de Justiça, do Acórdão do Tribunal da Relação do Porto (TRP), proferido em 19/01/2022 (acórdão recorrido), considerando que, no domínio da mesma legislação, se encontra em oposição com outro aresto daquela mesma Relação, proferido em 10/12/2019, 4.ª Secção, no Processo n.º 282/18.1T9PRD (acórdão fundamento), disponível em www.dgsi.pt . O Ministério Público afirma que os acórdãos recorrido e fundamento adoptaram soluções opostas na resolução da mesma questão de direito, que se lhes deparara e que directamente respeita ao art.º 111.º do Código Penal: trata-se do modo de conjugar a declaração judicial de perda das vantagens derivadas do crime com a indemnização civil atribuível ao ofendido. E, realmente, os dois arestos enfrentaram esse mesmo problema de direito, aliás fundamental na economia de ambos, por afectar directamente as suas pronúncias decisórias nesse preciso domínio. Assim, colocou-se nos dois casos a questão de saber se as vantagens adquiridas pelo agente do crime deviam, ou não, ser declaradas perdidas a favor do Estado, embora elas já integrassem a indemnização judicialmente pedida e arbitrada à vítima do ilícito-típico. E, por outro lado, tal temática nunca foi objecto de fixação de jurisprudência pelo STJ. Por acórdão de 23-06-2022, decidiu o Supremo Tribunal de Justiça julgar verificada a oposição de julgados e determinar o prosseguimento do recurso, nos termos da 2.ª parte do art.º 441.º, n.º 1, do CPP, com cumprimento do disposto no art.º 442.º n.º 1, do CPP, considerando que “(…) os arestos em confronto resolveram a sobredita questão jurídica fundamental mediante a enunciação de proposições jurídicas mutuamente contrárias e facilmente deles extraíveis. Assim, o acórdão recorrido disse que as vantagens do crime, se consideradas na indemnização atribuída à vítima (que não seja o Estado), não são perdíveis a favor do Estado. Enquanto o acórdão fundamento disse que as vantagens do crime, se consideradas na indemnização atribuída à vítima (que não seja o Estado) são perdíveis a favor do Estado. Em suma: os dois julgados decidiram a mesma questão fundamental de direito em sentidos logicamente contrários, ou seja, opostos. Pelo que o presente recurso está em condições de prosseguir – art.º 441.º, n.º 1, do CPP.”. 2. Notificados os sujeitos processuais interessados, nos termos do disposto no art.º 442.º, n.º 1, do CPP, apresentarem alegações escritas às quais se expurgaram as notas de rodapé, dizendo, em síntese, o seguinte: A. O MP, junto do STJ – nos termos do art.º 442.º, n.º 2, do Código de Processo Penal – terminando por dizer que “Nos termos do artigo 111.º, n.ºs 2 e 4, do Código Penal (na redação da Lei n.º 32/2010, de 2 de setembro), há lugar à declaração de confisco ou de perda das vantagens que tiverem sido adquiridas, para si ou para outrem, pelo agente através do crime, independentemente de as mesmas integrarem, ou não, a indemnização civil arbitrada ao respetivo lesado ou do interesse, ou desinteresse, por este manifestado na reparação dos prejuízos sofridos.”, citando extensa jurisprudência, essencialmente alegou: “(…) JORGE DE FIGUEIREDO DIAS, a respeito do artigo 109.º do Código Penal de 1982, ensina que «[a] distinção de um regime da perda relativa a instrumentos e produto, por um lado [artigo 107.º do Código Penal de 1982], e a vantagens, por outro, justifica-se amplamente. Desde logo (e sobretudo) porque é diferente, num caso e noutro, o fundamento político-criminal do regime, se bem que ambos assentem – como não poderia deixar de ser dada a sua natureza de instrumentos sancionatórios de caráter criminal – em considerações de prevenção. Nos instrumentos e produto está em causa a perigosidade imediata, resultante da sua adequação para a prática de crimes. Nas vantagens, diversamente, o que está em causa primariamente é um propósito de prevenção da criminalidade em globo, ligado à ideia – antiga, mas nem por isso menos prezável – de que «o ‘crime’ não compensa». Ideia que se deseja reafirmar tanto sobre o concreto agente do facto-ilícito (prevenção especial ou individual), como nos seus reflexos sobre a sociedade no seu todo (prevenção geral), mas sem que neste último aspeto deixe de caber o reflexo da providência ao nível do reforço da vigência da norma (prevenção geral positiva ou de integração).» (…) Ainda segundo JORGE DE FIGUEIREDO DIAS, o regime da perda de vantagens deve ser considerado «uma providência sancionatória de natureza análoga à da medida de segurança. Análoga, pelo menos, no sentido em que é sua finalidade prevenir a prática de futuros crimes, mostrando ao agente e à generalidade que, em caso de prática de um facto ilícito-típico, é sempre e em qualquer caso instaurada uma ordenação dos bens adequada ao direito; e que, por isso mesmo, esta instauração se verifica com inteira independência de o agente ter ou não atuado com culpa.» Quanto à indemnização civil. Aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação (artigo 483.º, n.º 1, do Código Civil), o que significa que deve reconstituir a situação que existiria, se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação (artigo 562.º do Código Civil). Este princípio aplica-se à indemnização de perdas e danos emergentes de crime (artigo 129.º do Código Penal), cujo pedido deve ser deduzido no processo penal respetivo (artigo 71.º do Código de Processo Penal), ou, em situações contadas, em separado, perante o tribunal civil (artigo 72.º do Código de Processo Penal), pelo lesado, entendendo-se como tal a pessoa que sofreu danos ocasionados pelo crime, ainda que se não tenha constituído ou não possa constituir-se assistente (artigo 74.º, n.º 1, do Código de Processo Penal), sendo certo que, não tendo sido deduzido pedido de indemnização civil no processo penal ou em separado, o tribunal, em caso de condenação, pode arbitrar uma quantia a título de reparação pelos prejuízos sofridos quando particulares exigências de proteção da vítima o imponham (artigo 82.º-A, n.º 1, do Código de Processo Penal). Um determinado comportamento criminoso pode, assim, causar danos a terceiros [e dar azo à condenação, no processo penal (a pedido do lesado ou oficiosamente) ou em separado, no pagamento de uma indemnização civil] e, simultaneamente, proporcionar vantagens e proveitos patrimoniais para o agente, nomeadamente, um aumento do ativo, uma diminuição do passivo, o uso ou consumo de coisas ou direitos alheios, a poupança ou supressão de despesas, «isto é, tudo o que signifique um enriquecimento patrimonial do visado», incluindo «os juros, os lucros e outros benefícios (…) obtidos mediante a rentabilização da vantagem inicial». Agora, em tais hipóteses, pode o agente ser condenado na perda das vantagens a favor do Estado [ou no pagamento do sucedâneo das vantagens (artigos 111.º, n.º 3, do Código Penal) ou no pagamento do respetivo valor ao Estado caso as mesmas não possam ser apropriadas em espécie (artigo 111.º, n.º 4, do Código Penal)] e no pagamento da indemnização civil ao lesado? A resposta só pode ser afirmativa. Na verdade, os termos categóricos em que se encontram redigidos os n.ºs 1 e 2 do artigo 111.º do Código Penal apontam incondicionalmente para o decretamento obrigatório do confisco: - A recompensa dada ou prometida aos agentes de um facto ilícito típico é perdida a favor do Estado (n.º 1); - As coisas, direitos ou vantagens que, através do facto ilícito típico, tiverem sido adquiridos, para si ou para outrem, pelos agentes são também perdidos a favor do Estado (n.º 2). É certo que a perda deve ocorrer sem prejuízo dos direitos do ofendido ou de terceiro de boa-fé (artigo 111.º, n.º 2, do Código Penal). Nessa parte, porém, o preceito deve ser conjugado com o artigo 130.º do Código Penal… (…) Parafraseando novamente JORGE DE FIGUEIREDO DIAS, «[à] primeira vista, a consagração da perda de vantagens como providência de carácter criminal pode parecer absurda: em princípio, com efeito, ela resulta automaticamente das regras da responsabilidade civil (nomeadamente, sob a forma da restituição em espécie). A providência justifica-se, no entanto, de um duplo ponto de vista. Por uma parte, o lesado pode prescindir da reparação, não apresentando o respetivo pedido; caso em que as finalidades de prevenção, geral e especial, acima apontadas dão fundamento autónomo ao decretamento da perda. Por outra parte, casos haverá em que as vantagens vão além daquilo em que a vítima foi prejudicada. Suscita-se, nestas hipóteses, o problema de saber até onde deverá a perda das vantagens ser decretada (…). Mas seja como for quanto a este ponto, também aqui há lugar e justificação autónomos para a perda. Sem deixar de reconhecer-se, em todo o caso, que, sempre que tenha havido pedido civil conexo com o processo penal, poucas serão as hipóteses em que a perda de vantagens poderá vir a ser decretada utilmente» (…) Como ainda há não muito tempo se pronunciou o Supremo Tribunal de Justiça, «[a] perda de vantagens tem em vista, primordialmente, uma perigosidade em abstrato, um propósito de prevenção da criminalidade em geral. A perda de vantagens procura demonstrar que o crime não compensa; na sua base está a necessidade de retirar ao arguido os benefícios resultantes ou alcançados através do facto ilícito típico. Tal como a perda de instrumentos e produtos do crime, também a perda de vantagens vem sendo definida, maioritariamente, no que respeita à sua natureza jurídica, como uma “providência sancionatória de natureza análoga à da medida de segurança”. (…) O pedido de indemnização não é uma espécie de questão prejudicial que impeça o confisco prévio dos instrumentos, produtos e vantagens decorrentes da prática do crime. Ou seja, a declaração de perda de vantagens é independente do pedido de indemnização civil e do interesse ou não do lesado na reparação do seu prejuízo. O art. 130.º do Código Penal, particularmente do seu n.º 2, ao estabelecer que “Nos casos não cobertos pela legislação a que se refere o número anterior, o tribunal pode atribuir ao lesado, a requerimento deste e até ao limite do dano causado, os instrumentos, produtos ou vantagens declarados perdidos a favor do Estado ao abrigo dos artigos 109.º a 111.º, incluindo o valor a estes correspondente ou a receita gerada pela venda dos mesmos”, consagra a preferência da perda de bens sobre o pedido de indemnização, além de salvaguardar o direito dos lesados, que poderiam ver dificultada a execução dos bens do arguido em face da declaração do confisco. Importa demonstrar ao arguido que o crime não compensa e, por outro lado, que se houver bens obtidos através da prática do crime devem ser usados para indemnizar os lesados. Deste modo, nem o Estado está impedido de confiscar os proventos do crime, nem o lesado vê a sua compensação dificultada, nem o arguido pode ser constrangido a pagar duas vezes» (acórdão de 2 de junho de 2022, processo n.º 61/21.9GBMTS.S1, relatado pelo conselheiro ORLANDO GONÇALVES, alojado in www.dgsi.pt).” B. Por sua vez, o recorrido AA limitou-se a declarar que concordava com a doutrina do Ac. de 19/01/2022, proferido nestes autos n.º 1105/18.7T9PNF.P1, que é o acórdão recorrido. E, apesar de devidamente notificado para o efeito, o recorrido BB nada disse – Notificação Ref.ª Cítius, n.º11229866. 3. Colhidos os vistos legais e reunido o Pleno das Secções Criminais, cumpre decidir. 3.1. Da oposição de julgados Por força do que dispõe o art.º 692.º, n.º 4, do CPC aplicável ex vi art.º 4.º, do CPP, a decisão que reconheceu a existência de oposição de julgados não vincula o Pleno das Secções Criminais. Assim, impõe-se, antes de mais, reapreciar a questão, ou seja, verificar se, no caso concreto, estão - como se decidiu - preenchidos os pressupostos do recurso, designadamente, a oposição de julgados, conforme julgado no Ac. de 23/06/2022, proferido nestes autos. A admissibilidade de recurso extraordinário para fixação de jurisprudência, perante duas decisões com soluções opostas relativamente à mesma questão de direito, no âmbito da mesma legislação, está directamente relacionada com a necessidade de garantir a estabilização e a uniformização da jurisprudência, eliminando eventuais conflitos existentes entre decisões dos tribunais superiores sobre a mesma questão de direito, no domínio da mesma legislação, acautelando-se a previsibilidade e a segurança jurídica sem beliscar a independência dos tribunais. A este propósito, dispõe o art.º 437.º, n.º 1, do CPP que: “(...) Quando, no domínio da mesma legislação, o Supremo Tribunal de Justiça proferir dois acórdãos que, relativamente à mesma questão de direito, assentem em soluções opostas, cabe recurso, para o pleno das secções criminais, do acórdão proferido em último lugar. (...)”. Nos termos do n.º 2, do art.º 437.º do CPP, “(...) É também admissível recurso, nos termos do número anterior, quando um tribunal de relação proferir acórdão que esteja em oposição com outro, da mesma ou de diferente relação, ou do Supremo Tribunal de Justiça, e dele não for admissível recurso ordinário, salvo se a orientação perfilhada naquele acórdão estiver de acordo com a jurisprudência já anteriormente fixada pelo Supremo Tribunal de Justiça. (...)” e do n.º 3 do mesmo preceito “(...) 3 - Os acórdãos consideram-se proferidos no domínio da mesma legislação quando, durante o intervalo da sua prolação, não tiver ocorrido modificação legislativa que interfira, directa ou indirectamente, na resolução da questão de direito controvertida. (...)”, sendo que, nos termos do n.º 4 “(...) Como fundamento do recurso só pode invocar-se acórdão anterior transitado em julgado. (...)”. Têm, assim, legitimidade para interpor este recurso extraordinário, nos termos do n.º 5 daquele normativo, o arguido, o assistente e as partes civis, sendo o mesmo obrigatório para o Ministério Público. Por outro lado, esta disposição liga-se com o n.º 3 do art.º 445.º do CPP que prevê que “(...) A decisão que resolver o conflito não constitui jurisprudência obrigatória para os tribunais judiciais, mas estes devem fundamentar as divergências relativas à jurisprudência fixada naquela decisão. (...)”. Entende-se, pois, que incumbe ao tribunal que não acate tal jurisprudência, um particular dever de fundamentação (aduzindo uma nova argumentação) de modo a convencer da razoabilidade da divergência sustentada, havendo recurso nos termos do art.º 446.º, do CPP, para permitir uma reponderação que atenda aos novos argumentos não abrangidos no acórdão que fixou jurisprudência. Quanto ao regime de interposição, efeito e processamento do recurso, este mostra-se previsto no capítulo "Da fixação de jurisprudência" (Capítulo II, do Título II "Dos recursos extraordinários", do Livro IX "Dos recursos") - cf. art.º 437.º e seguintes, do CPP. E, sendo assim, tem assumido a jurisprudência que, para a admissibilidade deste recurso extraordinário, impõe-se a verificação de determinados pressupostos de natureza formal e substancial (cf. art.ºs 437.º e 438.º, n.ºs 1 e 2, do CPP). Assim, contam-se como pressupostos de natureza formal: (i) a interposição de recurso no prazo de 30 dias após o trânsito da decisão proferida em último lugar; (ii) a identificação de acórdão anterior ao recorrido que sirva de fundamento ao recurso, com o qual se encontra em oposição e, se estiver publicado o lugar da publicação; (iii) o trânsito em julgado, de ambas as decisões, pois deverá estar esgotada a possibilidade de recurso ordinário; (iv) a legitimidade do recorrente (sendo esta restrita ao Ministério Público, ao arguido, ao assistente e às partes civis), devendo existir, ainda, interesse em agir destes últimos, pois para o Ministério Público o recurso é obrigatório. Por seu lado, os pressupostos de natureza substancial são os seguintes: (i) a existência de dois acórdãos (o recorrido e o fundamento) que respeitem à mesma questão de direito e a justificação da oposição entre os mesmos que motiva o conflito de jurisprudência (deve resultar explícita os termos em que a contradição se verifica); (ii) a identidade de legislação do domínio da qual foram proferidas as decisões, ou seja, que, no período compreendido entre a prolação das decisões conflituantes, não exista alteração ou modificação do texto da lei que interfira, directa ou indirectamente, na resolução da questão controvertida; (iii) a existência de soluções opostas, que assentem em decisões de sinal contrário, ou seja, que a questão seja decidida em termos expressamente contraditórios, relevando uma patente posição divergente sobre a mesma questão de direito; (iv) a identidade das situações de facto, i. e., a identidade de facto respeitante à mesma questão de direito. 3.2 Conforme se fundamentou no acórdão preliminar, a situação fáctica juridicamente relevante nos dois acórdãos assenta, em síntese, nas seguintes ocorrências: “(...) a. No acórdão recorrido considerou-se provado que o arguido cometeu um crime de falsificação de documento, p e p. pelo art.º 256.º, n.º 1 als. a), c) e d) e n.º 3 do Código Penal e um crime de burla qualificada, p. e p. pelos art. ºs 217.º e 218.º do Código Penal; b. No acórdão fundamento considerou-se provado que os arguidos cometeram um crime de abuso de confiança, p. e p. pelas disposições conjugadas dos artigos 30.º, nº 2 e 79º do Código Penal, 107.º, n.ºs 1 e 2 e 105.º, n.ºs 1 e 4, do RGIT, traduzido na apropriação das quantias que haviam sido deduzidas nas remunerações dos trabalhadores a título de contribuições para a Segurança Social; c. Em ambos os processos foi formulado pedido de indemnização civil – no acórdão recorrido pelo particular lesado e no acórdão fundamento pelo Instituto da Segurança Social, IP -, sendo os arguidos condenados no pagamento aos ofendidos de indemnizações fundadas na prática dos crimes por que foram condenados (150.000 euros, acrescidos de juros de mora, por danos patrimoniais, e 1000 euros, acrescidos de juros de mora, por danos não patrimoniais, no acórdão recorrido; 69.591,80 euros, acrescidos de juros de mora sobre o montante de 55.230,73 euros, no acórdão fundamento); d. Em ambos os acórdãos, ficou provado que os arguidos obtiveram vantagens económicas com os crimes por que foram condenados, coincidentes, ainda que parcialmente, com os valores da condenação nos pedidos de indemnização civil (150.000 euros, no acórdão recorrido, 55.230,73 euros, no acórdão fundamento). e. Em ambos os processos o Ministério Público formulou o pedido de perda a favor do Estado da vantagem económica obtida pela prática do facto ilícito. (...)”. No acórdão recorrido (no Processo n.º 1105/18.7T9PNF.P1) decidiu-se: “(...) se o arguido/demandado for condenado no âmbito da acção cível enxertada, cuja causa de pedir é constituída pelos factos ilícitos, culposos, tipificados como crime de burla, causadores de um dano patrimonial, não pode por esses mesmos danos ser responsabilizado duplamente, não obstante a natureza distinta, mas que podem levar ao mesmo objectivo, como atrás referimos, ou seja, o valor pecuniário cuja perda se requer está incluído no valor da indemnização civil decretada (acrescida de juros legais devidos). (...) (...) Assim, se o agente vê o seu património aumentado apenas com o valor da burla e é condenado, a título de indemnização civil, a pagar esse montante ao Assistente, não existe qualquer vantagem. Porém, pode existir vantagem quando o agente vê o seu património aumentado para além, e na medida do excesso, e não abrangido pela condenação no pedido de indemnização civil. Contudo, a tudo o que acabamos de referir, há ainda que ter em conta a expressão ‘sem prejuízo dos direitos do ofendido’, uma vez que o artigo 111.º, 2 do CP impede que se declare perdido a favor do Estado um direito cujo titular seja o ofendido. Porém, em nada se altera o raciocínio que temos estado a defender, pois relevante é que o agente do facto ilícito não fique com qualquer vantagem económica, ficando para o Estado (se não for ele o ofendido), o que o ofendido não reivindicou ou a parte remanescente, ou seja, tudo o que excede o pedido cível, por exemplo, e constitua vantagem patrimonial do agente do facto ilícito, como parece ser linear, atento os preceitos invocados, em conjugação com o acima citado art. 9.º do Código Civil. Por isso, no caso concreto, a perda a favor do Estado de ‘vantagens’, numa situação em que o arguido já foi condenado a pagar essa quantia a título de indemnização civil, contraria as finalidades e a própria necessidade de prevenção prevista no citado art. 111.º do CP, que visa exclusivamente finalidades de prevenção geral e especial. Por sua vez, se o assistente/demandante não pretende deduzir pedido de indemnização, por já ter recorrido a outros meios que lhe dão as mesmas prerrogativas que obteria com a dedução do pedido cível, não se justifica nem tem fundamento o recurso à declaração de perda de bens a favor do Estado, com um objecto coincidente à dedução do pedido de indemnização, pois outra atitude, ofenderia a consciência jurídica e violaria os mais elementares princípios constitucionais. (...)”. E no acórdão fundamento (Processo n.º 282/18.1T9PRD.P1), servindo-nos da parte do respectivo sumário que para o caso releva, decidiu-se: “(...) VI - A vantagem do crime corresponde a um benefício e a eliminação de um benefício não está limitada a objectos certos e determinados. VII - O confisco das vantagens não constitui um mecanismo eventual ou facultativo de assegurar as finalidades que lhe estão subjacentes, mas antes uma medida obrigatória, subtraída a qualquer critério de oportunidade, e que ocorrerá sempre que, por imperativo legal, com a prática do crime tenham sido gerados benefícios económicos. VII - Reconhecendo-se a autonomia do instituto da perda de vantagens, tendo presente a sua natureza e finalidade (marcadamente preventivas) e o seu carácter sancionatório(análogo à da medida de segurança) e, para além disso, sendo obrigatório, o juiz não pode, na sentença penal, deixar de decretar a perda de vantagens obtidas com a prática do crime, independentemente de o lesado ter deduzido ou não pedido de indemnização civil ou de ter optado por outros meios alternativos de cobrança do crédito que possam coexistir com a obrigação e necessidade de reconstituição da situação patrimonial prévia à prática do crime, própria do instituto da perda de vantagens. VIII - Tendo ficado demonstrado que a recorrente obteve uma vantagem patrimonial ilícita, decorrente da prática de um crime de abuso de confiança em relação à Segurança Social, não podia o tribunal a quo deixar de a condenar, como condenou, no pagamento ao Estado do valor correspondente a tal vantagem, mostrando-se totalmente irrelevante para o efeito a circunstância de ter sido deduzido pedido de indemnização civil pelo lesado Instituto da Segurança Social. (...)”. O Ministério Público tem legitimidade para a interposição de recurso e interesse em agir, uma vez que a interposição de recurso é obrigatória, conforme o disposto no n.º 5, do art.º 437.º, do CPP. Por outro lado, o recorrente delimitou de forma explícita, cabal e compreensível o motivo pelo qual, no seu entendimento, os acórdãos são conflituantes, justificando a oposição que origina o conflito de jurisprudência. Ambos os acórdãos, recorrido e fundamento, transitaram em julgado – em 23/01/2020 e em 21/02/2022, respectivamente –, encontrando-se este último publicado e acessível na internet, na localização devidamente identificada pelo recorrente em www.dgsi.pt. Acresce que o presente recurso foi interposto, em 04/03/2022, ou seja, no prazo de 30 dias a contar do trânsito em julgado do acórdão recorrido, conforme impõe o art.º 438.º, n.º 1, do CPP. Em conclusão, mostram-se preenchidos todos os pressupostos formais de admissibilidade do presente recurso. 3.3 O mesmo sucede relativamente aos requisitos substanciais. Em ambos os acórdãos foi o Tribunal da Relação do Porto chamado a decidir se as vantagens adquiridas pelo agente do crime devem, ou não, ser declaradas perdidas a favor do Estado, quando já integram a indemnização judicialmente pedida e arbitrada à vítima do ilícito-típico (que não o Estado), nos termos do disposto no art.º 111.º, do CP, na redacção dada pela Lei n.º 32/2010, de 02/09. E, quanto à mesma questão, foram proferidas decisões diametralmente opostas. No acórdão recorrido (Processo n.º 1105/18.7T9PNF.P1) se decidiu indeferir a declaração de perda de vantagem económica a favor do Estado por se considerar que nas hipóteses em que o arguido já foi condenado a pagar essa quantia a título de indemnização civil ou não pretende deduzir tal pedido por já ter recorrido a outros meios que lhe dão as mesmas prerrogativas, carece de fundamento a declaração de perda de vantagem. No acórdão fundamento (Processo n.º 282/18.1T9PRD.P1) reconhece-se a autonomia e a diferente natureza de ambos os institutos, concluindo-se que o tribunal não pode deixar de declarar a perda de vantagens obtidas mesmo que o lesado tenha optado por deduzir pedido de indemnização civil ou recorrido a outro meio alternativo para cobrança do seu crédito. Constata-se, assim, que as decisões versam sobre a mesma questão de direito, tendo sido proferidas no domínio da mesma legislação – art.º 111.º, do CP, na versão introduzida pela Lei n.º 32/2010 de 02-09, cuja redacção não sofreu qualquer modificação durante o intervalo da prolação daqueles acórdãos. Assim sendo, ambos os acórdãos – recorrido e fundamento – assentaram em situação de facto idêntica, relacionada com a declaração de perda de vantagens do crime a favor do Estado, quando já consideradas na indemnização civil atribuída à vítima em processo penal, perfilhando soluções de direito opostas, no domínio da mesma legislação, sobre a efectividade desse perdimento. Está, pois, verificada a oposição de julgados, em conformidade com o disposto no art.º 437.º, n.º 1, do CPP, tal como se decidira no Ac. do STJ de 23/06/2022. II- FUNDAMENTAÇÃO 1. Do objecto do presente recurso A questão objecto do presente recurso versa exclusivamente sobre saber se há lugar a perda das vantagens obtidas através de facto ilícito típico, nos termos do disposto no art.º 111.º, do CP, na redacção introduzida pela Lei n.º 32/2010, de 02/09, nas situações em que o arguido foi condenado a pagar essa quantia a título de indemnização civil ao lesado. Dito de outra forma, impõe-se averiguar e decidir se o valor dessas vantagens obtidas através da prática de crime, uma vez reclamado em pedido de indemnização civil ou por outra via alternativa de cobrança de crédito, poderá, ainda, constituir objecto de declaração de perda de vantagem a favor do Estado, uma vez requerida pelo Ministério Público, no âmbito do processo-crime. Tal questão nunca foi objecto de fixação de jurisprudência pelo Supremo Tribunal de Justiça, assistindo-se a divergência na jurisprudência das Relações quanto a esta matéria. 1.2. Uma parte da jurisprudência tem entendido que, na sentença penal, o juiz não pode deixar de decretar a perda de vantagens obtidas com a prática do crime. Considera tal medida de carácter obrigatório, subtraída a qualquer critério de oportunidade ou utilidade. Para esta corrente jurisprudencial, a declaração de perda de vantagens obtidas com a prática de ilícito deve ser decretada, independentemente de o lesado ter deduzido pedido de indemnização civil (e do seu desfecho), ou de ter optado por outros meios alternativos de cobrança do crédito que possam coexistir com a obrigação e necessidade de reconstituição da situação patrimonial prévia à prática do crime, própria do instituto da perda de vantagens. Neste sentido, e de forma maioritária, tem vindo a decidir o Tribunal da Relação do Porto, designadamente conforme os acórdãos (todos os acórdãos citados encontram-se em www.dgsi.pt), de: • 18/10/2023, Proc. n.º 732/20.7T9PVZ.P1; • 19/04/2023, Proc. n.º 666/18.5PAVNG.P1; • 15/03/2023, Proc. n.º 786/20.6T9VLG.P1; • 18/01/2023, Proc. n.º 7930/19.4T9PRT.P1; • 29/06/2022, Proc. n.º 638/17.7IDPRT.P2; • 26/01/2022, Proc. n. º 2769/16.1T9PRT.P1; • 28/10/2021, Proc. n.º 321/19.9IDPRT.P1; • 10/12/2019, Proc. n.º 282/18.1T9PRD.P1; • 25/09/2019, Proc. n.º 964/15.0IDPRT.P1; • 31/05/2019, Proc. n.º 259/15.9IDPRT.P1; • 11/04/2019, Proc. n.º 3304/17.0T9PRT.P1; • 11/04/2019, Proc. 360/17.4IDPRT.P1; • 12/09/2018, Proc. n.º 260/16.5IDPRT.P1; • 31/01/2018, Proc. n.º 176/16.5PAVFR.P1; • 17/01/2018, Proc. n.º 126/14.3GBAMT.P1; • 26/10/2017, Proc. n.º 217/15.3IDPRT.P1; • 24/10/2017, Proc. n.º 904/15.6IDPRT.P1; • 12/07/2017, Proc. n.º 149/16.8IDPRT.P1; • 21/06/2017, Proc. n.º 25/15.1IDPRT.P1; • 22/03/2017, Proc. n.º 86/14.0IDPRT.P1; • 22/02/2017, Proc. n.º 2373/14.9IDPRT.P1; • 14/09/2016, Proc. n.º 459/15.1GAPRD.P1. Do mesmo modo e no mesmo sentido, também tem decidido o Tribunal da Relação de Lisboa, conforme os acórdãos de: • 08/07/2020, Proc. n.º 165/16.0T9LNH.L1-3; • 18/06/2019, Proc. n.º 2706/16.3T9FNC.L1-5; • 04/04/2019, Proc. n.º 1487/17.8T9FNC.L1-9. Também, assim, o Tribunal da Relação de Guimarães, nos acórdãos: • 03/10/2023, Proc. n.º 21/20.7T9BRG.G1; • 21/02/2022, Proc. n.º 127/19.5IDBRG.G1; • 08/11/2021, Proc. n.º 4/19.0T9VNC.G1; • 11/10/2021, Proc. n.º 450/16.0T9BRG.G1; • 14/01/2019, Proc. n.º 240/16.0IDBRG.G1. E, igualmente, o Tribunal da Relação de Évora, nos acórdãos de: • 12/09/2023, Proc. n.º 55/20.1GAFZZ.E1; • 18/04/2023, Proc. n.º 59/20.4PACTX.E1; • 24/01/2023, Proc. n.º 308/19.1GACTX.E1; • 07/09/2021, Proc. n.º 95/18.0T9LLE.E1. 1.3. Outra parte da jurisprudência tem considerado que, nos casos em que a perda de vantagens corresponda à obrigação de indemnização civil decorrente da prática do facto ilícito típico, apenas pode ser decretada se o titular dos danos causados pelo mesmo se desinteressar da reparação do seu direito. Para esta corrente jurisprudencial não há lugar ao decretamento da perda de vantagens se o lesado optar pela recuperação do seu crédito por outra via, designadamente através de execução, pedido de indemnização civil, ou outra forma de cobrança alternativa. Nesse sentido, já se pronunciou, também, o Tribunal da Relação do Porto, embora em menor número de decisões, designadamente nos acórdãos de: • 08/11/2023, Proc. n.º 2693/17.0T9VFR.P1; • 24/05/2023, Proc. n.º 2915/17.8T9AVR.P1; • 07/07/2021, Proc. n.º 5183/16.5T9PRT.P1; • 13/11/2019, Proc. n.º 15710/17.5T9PRT.P1; • 10/07/2019, Proc. n.º 4929/17.9T9PRT.P1; • 26/06/2019, Proc. n.º 1267/17.0T9PRD.P1; • 30/04/2019, Proc. n.º 1325/17.1T9PRD.P1; • 05/04/2017, Proc. n.º 67/15.7IDPRT.P1; • 22/03/2017, Proc. n.º 84/15.7T9FLG.P1; • 07/12/2016, Proc. n.º 193/15.2IDPRT.P1; • 23/11/2016, Proc. n.º 905/15.4IDPRT.P1. No mesmo sentido, decidiram o Tribunal da Relação de Lisboa, no acórdão de 07/11/2019, Proc. n.º 43/17.5IDFUN.L1-9, o Tribunal da Relação de Coimbra, no acórdão de 12/07/2023, Proc. n.º 47/21.3IDLRA.C1 e, ainda, o Tribunal da Relação de Guimarães, nos acórdãos 07/11/2022, Proc. n.º 12/17.5IDBRG.G1 e de 01/12/2014, Proc. n.º 218/11.0GACBC.G1. 2. Equacionada a questão, há que apreciar e decidir. Para melhor compreensão da questão justifica-se efectuar uma breve incursão ao enquadramento normativo em causa. 2.1. Do enquadramento jurídico A norma sub judicio é o art.º 111.º, do CP, na redacção dada pela Lei n.º 32/2010, de 02/09. O regime geral da perda de vantagens está actualmente previsto, sob a epígrafe "Perda de instrumentos, produtos e vantagens", no Capítulo IX, do Título III -"Das consequências jurídicas do facto", do Livro I "Parte Geral", do Código Penal - cfr. art.ºs. 109.º a 112.º-A, do CP. A par deste regime geral, o legislador nacional criou vários instrumentos que não se excluem entre si, ainda que possam ter alguma margem de sobreposição, através de diversos regimes especiais sobre a perda de bens que se encontram previstos em legislação avulsa, designadamente: (i) na lei que transpôs para a ordem jurídica interna a Decisão Quadro n.º 2006/783/JAI, do Conselho, de 06/10, relativa à aplicação do princípio do reconhecimento mútuo às decisões de perda, Lei n.º 88/2009, de 31/08 – Emissão e Execução Decisões Perda de Instrumentos, Produtos e Vantagens do Crime, substituída pelo Regulamento (UE) 2018/1805 do Parlamento Europeu e do Conselho de 14 de novembro de 2018, relativo ao reconhecimento mútuo das decisões de apreensão e de perda; (ii) outros diplomas que regulam a perda alargada de bens e de instrumentos nos casos de criminalidade organizada e económico-financeira, Lei n.º 5/2002, de 11/01, Medidas de Combate à criminalidade Organizada, art.ºs. 7.º a 12.º-B; (iii) a perda de mercadorias, meios de transporte, armas e outros instrumentos relacionados com crimes fiscais e aduaneiros, Lei n.º 15/2001, de 05 de Junho, Regime Geral das Infracções Tributárias, art.ºs. 18.º a 20.º; (iv) a perda de bens relacionados com infracções antieconómicas e contra a saúde pública, DL n.º 28/84 de 20 de Janeiro – Regime das Infracções Antieconómicas e Contra a Saúde Pública, art.ºs. 9.º, 46.º, 76.º; (v) a perda de objectos relacionados com o tráfico de estupefacientes, DL n.º 15/93 de 22 de Janeiro – Lei de Combate à Droga, art.ºs. 35.º a 39.º; (vi) a perda de objectos no âmbito da Lei n.º 109/2009 de 15 de Setermbro, Lei do Cibercrime, art.º. 10.º; (vii) a perda e venda de armas apreendidas, Lei n.º 5/2006, de 23 de Fevereiro, Regime Jurídico das Armas e Munições, art.º 94.º; (viii) a perda de objectos relacionados com o jogo ilegal, DL n.º 422/89, de 02 de Dezembro, Reformula a Lei do Jogo, art.ºs. 116.º e 117.º; (ix) a perda de bens na propriedade industrial, direitos de autor e direitos conexos, Código da Propriedade Industrial, art.º 329.º e Código do Direito de Autor e dos Direitos Conexos, art.º 201.º. Todos estes diplomas avulsos foram criados com o objectivo de prevenir e reprimir manobras tendentes a iludir a detecção e perda de vantagens de origem ilícita. 2.2. No direito comparado, assistiu-se a movimento semelhante. Seguindo de perto o estudo elaborado por PEDRO CAEIRO, em “Sentido e Função do Instituto da Perda de Vantagens Relacionadas com o Crime no Confronto com Outros Meios de Prevenção da Criminalidade Reditícia, Em Especial os Procedimentos de Confisco In Rem e a Criminalização do Enriquecimento “Ilícito””, Revista Portuguesa de Ciência Criminal, Ano 21, n.º 2, Abril-Junho 2011, pp. 279-289, onde se faz uma descrição exaustiva das normas que regulavam a perda de vantagens no direito estrangeiro, à data da elaboração desse estudo, constata-se, em síntese, que: (i) no direito espanhol prevê-se no art.º 127.º, do Código Penal Espanhol, a imposição ao tribunal de ‘ampliar’ o âmbito da perda (comiso) às vantagens provenientes das «actividades criminosas» cometidas no quadro de uma organização criminosa ou terrorista. Ou seja, a lei presume – iuris tantum – a conexão entre a dita actividade criminosa (terrorista) e a desproporção patrimonial. Também, relativamente ao crime de tráfico de estupefacientes e ao crime de branqueamento, havia já jurisprudência do Tribunal Supremo de 05/10/1998 a estabelecer que o art.º 374.º, do Código Penal Espanhol deve ser interpretado no sentido de que a decisão do confisco abrange as vantagens provenientes de operações anteriores ao crime pelo qual o agente é condenado sempre que se faça prova dessa proveniência e se respeite o princípio do acusatório. (ii) no direito neerlandês está também prevista a possibilidade de, a requerimento do Ministério Público, o tribunal impor a obrigação de pagar certo montante como forma de privação das vantagens ilegalmente obtidas, porque provenientes de crime quando se prove que foi cometido pelo condenado. (iii) no direito francês o controlo das vantagens seguiu duas direcções. Por um lado, a Lei n.º 2006-64, de 23/01/2006 alterou o art.º 321-6, do Código Penal Francês – integrado no capítulo no qual se pune a receptação e crimes afins –, passando a punir como crime, o facto de o agente não apresentar recursos lícitos que justifiquem o seu modo de vida, mantendo, em simultâneo, relações habituais com pessoas conotadas com a prática de ilícitos e que lhes trazem benefício directo ou indirecto, ou são vítimas de uma das infracções. Por outro, a Lei n.º 2007-297, de 05/03/2007 alterou o art.º 131-21, do mesmo Código, criando um regime de confisco em que a perda (confiscation) é uma verdadeira pena complementar, de carácter facultativo, aplicável nos casos previstos na lei a determinadas infracções. (iv) no direito italiano constata-se a existência de um regime mais próximo do regime legal português. O art.º 204.º, do Código Penal Italiano, regula a ‘perda clássica’ (confisca) que tem como pressupostos a existência de uma condenação e a prova do nexo entre o crime e as vantagens, sendo classificada como ‘uma medida de segurança patrimonial’, assente na perigosidade que a mera posse daqueles bens representa. (v) no direito alemão estão também previstas a ‘perda clássica’ (Verfall) e a ‘perda alargada’, nos art.ºs 73.º e 74.º, do Código Penal Alemão. Importa referir que tradicionalmente a perda era vista como medida de segurança que tinha como objectivo privar o infractor da vantagem patrimonial obtida através do facto ilícito típico, colocando-o na posição em que estaria se não o tivesse praticado. Porém, a expressão ‘vantagem patrimonial’ foi alterada com a Lei de 28-02 que a substituiu por ‘aquilo’, passando a perda a ter como objecto os bens obtidos ao invés de uma vantagem líquida calculável. Por sua vez, a ‘perda alargada’ foi introduzida no art.º 73.º daquele Código, pela Lei de 15/07/1992, que entrou em vigor em 22/09/1992, criando a possibilidade de o Tribunal ordenar a perda dos bens titulados ou detidos pelos autores e participantes no facto ilícito típico sempre que as circunstâncias justifiquem a suposição de que foram obtidos através dos mesmos. (vi) no direito britânico, mais recente, a perda de bens mostra-se prevista no Proceeds of Crime Act 2002 (POCA), em duas subespécies, o confisco penal, (criminal confiscation) e o confisco administrativo (civil recovery). O primeiro ocorre num Crown Court e pode seguir-se à prolação de uma sentença condenatória ou à recepção de um processo que terminou com uma sentença condenatória proferida num Magistrates’Court. Para a sua decretação, o tribunal apura se o condenado tem um modo de vida criminoso (criminal lifestyle), o que se afere através da prova pela acusação de determinados factores – certo tipo de crime; o crime inserir-se numa sequência de actividade criminosa; o infractor tenha sido condenado por outros ilícitos donde tenha retirado benefícios –; já o segundo tipo de confisco, o confisco administrativo (civil recovery), consubstancia um procedimento in rem, dirigido contra a propriedade confiscável (recoverable property) que se defina como sendo composta pelos bens obtidos através de actividade criminosa de determinado valor. 2.3. Em Portugal, a perda de bens remonta ao Código Penal de 1886 que continha, embora esporádicas, referências a casos específicos de perda que classificava como um efeito não penal da condenação. Já a Constituição da República Portuguesa (CRP), de 1976, prescrevia que as sanções das actividades delituosas contra a economia “(…) poderão incluir, como efeito da pena, a perda de bens, directa ou indirectamente obtidos com a actividade criminosa, e sem que ao infractor caiba qualquer indemnização” – art.º 88.º, n.º 2, da CRP. O Código Penal de 1982, de forma mais detalhada, regulou o regime da perda de instrumentos, produtos, recompensas e vantagens – art.ºs 107.º, 109.º, incluindo a perda pelo valor correspondente e a perda de bens de terceiros –, mesmo quando não baseada numa condenação, “(…) O legislador luso lançou as bases materiais para uma política criminal persuasora, perene e audaciosa”, conforme refere JOÃO CONDE CORREIA, em “Gabinete de Recuperação de Ativos: A Pedra Angular do Sistema Português de Confisco”, Investigação Criminal, Ciências Criminais e Forenses - IC3F, N.º 1, ASFIC / PJ, Outubro de 2017, p. 50. Ou seja, já nessa altura, a perda tinha lugar mesmo sem a existência de uma condenação, considerando-se, à data, uma figura híbrida, com funções preventivas e finalidades punitivas. Neste sentido, também, JOÃO CONDE CORREIA a propósito da evolução das non-conviction based confiscations no processo penal português, “«Non – Conviction Based Confiscations» No Direito Penal Português Vigente “Quem Tem Medo do Lobo Mau?”, Revista Julgar On Line, 32, Almedina, 2017, p. 86, disponível em http://julgar.pt/wp-content/uploads/2017/05/JLGR32-JCC.pdf Em consequência, a reforma operada com o DL n.º 48/95, de 15/03, consolidou este regime, limitando-se a introduzir pequenas alterações de pormenor com vista a afinar a distinção entre instrumentos, produtos, recompensas e vantagens e a harmonizar o sistema implementado. No dizer de FIGUEIREDO DIAS, em “Direito Penal Português, Parte Geral II - As Consequências Jurídicas do Crime”, Aequitas Editorial Notícias, 1993, p. 635, trocou-se o vocábulo «crime» por «facto ilícito típico» clarificando, na letra da lei, que as recompensas e as vantagens obtidas são, também, declaradas perdidas nos casos em que o condenado seja inimputável ou actue sem culpa, independentemente de um juízo de condenação. Na sua versão original, dada pelo DL n.º 48/95, de 15/03, o art.º 111.º, do CP, previa o seguinte: Artigo 111.º Perda de vantagens “(...) 1 - Toda a recompensa dada ou prometida aos agentes de um facto ilícito típico, para eles ou para outrem, é perdida a favor do Estado. 2 - São também perdidos a favor do Estado, sem prejuízo dos direitos do ofendido ou de terceiro de boa fé, as coisas, direitos ou vantagens que, através do facto ilícito típico, tiverem sido directamente adquiridos, para si ou para outrem, pelos agentes e representem uma vantagem patrimonial de qualquer espécie. 3 - O disposto nos números anteriores aplica-se às coisas ou aos direitos obtidos mediante transacção ou troca com as coisas ou direitos directamente conseguidos por meio do facto ilícito típico. 4 - Se a recompensa, os direitos, coisas ou vantagens, referidos nos números anteriores, não puderem ser apropriados em espécie, a perda é substituída pelo pagamento ao Estado do respectivo valor. (...)”. Com a Lei n.º 32/2010, de 02/09, foi suprimido o advérbio «directamente» que constava do art.º 111.º, n.º 2, do CP, única alteração ocorrida em duas décadas de vigência, deixando de se exigir que as coisas, direitos ou vantagens tivessem sido «directamente» adquiridos pelos agentes, assim permitindo a ablação das vantagens directas e indirectas. HÉLIO RIGOR RODRIGUES e CARLOS A. REIS RODRIGUES, consideram que “(…) Esta redacção levantava algumas dificuldades de concretização e, por essa razão, o projecto de 1991 que deu origem à redacção actual do art. 111.º, n.º 3 do CP estabeleceu que ‘o disposto nos números anteriores aplica-se às coisas ou aos direitos obtidos mediante transacção ou troca com as coisas ou direitos directamente conseguidos por meio de facto ilícito’. Cumpre salientar que, depois da alteração produzida, o grau de vinculação ou nexo causal – entre o facto ilícito e o bem permanece idêntico, quer quanto à necessidade quer quanto à intensidade da sua verificação. Da alteração produzida não resultou uma modificação substancial na forma como este preceito se concretiza, atendendo que, nos termos do n.º 3 do artigo 111.º do Código Penal, a declaração de perda continua limitada aos benefícios obtidos «na primeira operação».” – em “Recuperação de Activos na Criminalidade Económico-Financeira, Viagem pelas Idiossincrasias de um Regime de Perda de Bens em Expansão”, Lisboa, Sindicato dos Magistrados do Ministério Público, 2013, p. 184. O n.º 2, do art.º 111.º, do CP, passou a ter a seguinte redacção, mantendo-se o demais inalterado: “Artigo 111.º Perda de vantagens “(...) 2 - São também perdidos a favor do Estado, sem prejuízo dos direitos do ofendido ou de terceiro de boa fé, as coisas, direitos ou vantagens que, através do facto ilícito típico, tiverem sido adquiridos, para si ou para outrem, pelos agentes e representem uma vantagem patrimonial de qualquer espécie. (...)”. O normativo em questão, bem como os demais que integravam o capítulo "Perda de instrumentos, produtos e vantagens", foi alvo de alteração legislativa e passou a ter a redacção introduzida pela Lei n.º 30/2017, de 30/05, que transpôs para o ordenamento jurídico interno a Directiva 2014/42/UE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 03/04/2014, sobre o congelamento e a perda dos instrumentos e produtos do crime na União Europeia, nos seguintes termos: “Artigo 109.º do Código Penal (Perda de instrumentos) (...) 1 - São declarados perdidos a favor do Estado os instrumentos de facto ilícito típico, quando, pela sua natureza ou pelas circunstâncias do caso, puserem em perigo a segurança das pessoas, a moral ou a ordem públicas, ou oferecerem sério risco de ser utilizados para o cometimento de novos factos ilícitos típicos, considerando-se instrumentos de facto ilícito típico todos os objetos que tiverem servido ou estivessem destinados a servir para a sua prática. 2 - O disposto no número anterior tem lugar ainda que nenhuma pessoa determinada possa ser punida pelo facto, incluindo em caso de morte do agente ou quando o agente tenha sido declarado contumaz. 3 - Se os instrumentos referidos no n.º 1 não puderem ser apropriados em espécie, a perda pode ser substituída pelo pagamento ao Estado do respetivo valor, podendo essa substituição operar a todo o tempo, mesmo em fase executiva, com os limites previstos no artigo 112.º-A. 4 - Se a lei não fixar destino especial aos instrumentos perdidos nos termos dos números anteriores, pode o juiz ordenar que sejam total ou parcialmente destruídos ou postos fora do comércio. (...)” Artigo 111.º do Código Penal (Instrumentos, produtos ou vantagens pertencentes a terceiro) “(...) 1 - Sem prejuízo do disposto nos números seguintes, a perda não tem lugar se os instrumentos, produtos ou vantagens não pertencerem, à data do facto, a nenhum dos agentes ou beneficiários, ou não lhes pertencerem no momento em que a perda foi decretada. 2 - Ainda que os instrumentos, produtos ou vantagens pertençam a terceiro, é decretada a perda quando: a) O seu titular tiver concorrido, de forma censurável, para a sua utilização ou produção, ou do facto tiver retirado benefícios; b) Os instrumentos, produtos ou vantagens forem, por qualquer título, adquiridos após a prática do facto, conhecendo ou devendo conhecer o adquirente a sua proveniência; ou c) Os instrumentos, produtos ou vantagens, ou o valor a estes correspondente, tiverem, por qualquer título, sido transferidos para o terceiro para evitar a perda decretada nos termos dos artigos 109.º e 110.º, sendo ou devendo tal finalidade ser por ele conhecida. 3 - Se os produtos ou vantagens referidos no número anterior não puderem ser apropriados em espécie, a perda é substituída pelo pagamento ao Estado do respetivo valor, podendo essa substituição operar a todo o tempo, mesmo em fase executiva, com os limites previstos no artigo 112.º-A. 4 - Se os instrumentos, produtos ou vantagens consistirem em inscrições, representações ou registos lavrados em papel, noutro suporte ou meio de expressão audiovisual, pertencentes a terceiro de boa-fé, não tem lugar a perda, procedendo-se à restituição depois de apagadas as inscrições, representações ou registos que integrarem o facto ilícito típico. Não sendo isso possível, o tribunal ordena a destruição, havendo lugar à indemnização nos termos da lei civil. (...)” Finalmente, os art.ºs 112.º e 112.º-A, do CP, preveem a forma de pagamento do valor declarado perdido a favor do Estado. Da alteração legislativa operada constata-se que a anterior redacção do art.º 111.º, n.ºs 2 e 4, do CP, equivale à actual redacção do art.º 110.º, n.ºs 1, al. b) e 4, do mesmo diploma legal. Não obstante, uma vez que o objecto da fixação da jurisprudência se refere expressamente à redacção do art.º 111.º, do CP, na redacção introduzida pela Lei n.º 32/2010, de 02/09, será esta a ser tida em conta para efeitos da análise que segue. 3. Das modalidades de perda No Código Penal Português prevêem-se três modalidades de perda de bens: de instrumentos, de produtos e de vantagens. (i) Os instrumentos ‘instrumenta sceleris’ representam os objectos utilizados ou destinados a utilizar, pelo agente, na execução do facto ilícito típico. O fundamento da sua declaração de perda prende-se com o facto desses instrumentos terem sido utilizados de modo perigoso para sociedade, devendo o Estado prevenir essa perigosidade futura, garantindo que tais objectos saem da disponibilidade da comunidade, evitando a sua utilização para a prática de factos ilícitos típicos futuros. O seu confisco deve basear-se na sua perigosidade intrínseca ou extrínseca, revelada pela sua natureza ou pelas circunstâncias do caso. Para FIGUEIREDO DIAS, em “Direito Penal Português, Parte Geral II - As Consequências Jurídicas do Crime”, p. 618, são exemplos de instrumentos: “(…) a pistola no homicídio; a navalha na ofensa corporal; o automóvel no qual se transporta o contrabando, ou a vítima para o local em que é violada, ou com o qual se atropela alguém, ou no qual se foge do local do acidente, omitindo o auxílio; ou a impressora na qual se imprime moeda falsa.”.; (ii) Os produtos ‘productum sceleris’ são, por sua vez, quaisquer bens que tenham sido obtidos ou sejam resultantes da prática do facto ilícito típico. É, pois, um qualquer benefício económico que pode consistir num determinado bem ou no fruto da transformação do mesmo por via de um reinvestimento posterior ou até qualquer outro ganho (lucro) quantificável; (iii) As vantagens ‘fructum sceleris’, que ao caso interessam, correspondem aos benefícios ou proventos que resultaram para o agente da prática do facto ilícito e que se traduzem no incremento patrimonial da sua situação económica. Esse incremento é, por vezes, o móbil do crime. Distinguem-se, pois, dos ‘productum sceleris’ que são os objectos criados ou gerados pela prática do facto ilícito típico – na acepção do Código Penal – que “por estes tiverem sido produzidos”. A noção de ‘produto’ na generalidade dos diplomas internacionais, é entendida com significado idêntico ao conceito de ‘vantagens’ utilizado na legislação portuguesa. A Directiva 2014/42/UE classifica como produto qualquer vantagem económica resultante, directa ou indirectamente, de uma infracção penal; pode consistir em qualquer tipo de bem e abrange a eventual transformação ou revestimento posterior do produto directo assim como qualquer ganho quantificável (art.º 2.º, n.º 1). Trata-se de um conceito amplo que inclui tudo o que resulta do crime e que, em termos nacionais, integra os ‘productum sceleris’, as recompensas e os ‘fructum sceleris’. Alguns diplomas nacionais têm vindo a definir o produto do facto ilícito típico como “[…] qualquer vantagem económica resultante das infracções penais, podendo consistir em qualquer bem […]” – vd. Lei n.º 88/2009, de 31 de Agosto. A vantagem pode ser uma coisa ou um direito, pode incluir o benefício de uso ou a evitação de dispêndios, ou seja, pode traduzir-se num aumento do activo ou na diminuição do passivo, na utilização ou consumo de bens ou direitos alheios ou na redução ou eliminação de despesas, resultante ou alcançado através da prática do facto ilícito típico. Tal conceito é abrangente na medida em que abarca as recompensas dadas ou prometidas ao autor ou a terceiros, as coisas, os direitos ou vantagens, adquiridos através do facto ilícito típico, por aquele ou por outrem, desde que representem um incremento patrimonial de qualquer espécie. No conceito de perda de vantagens tal como previsto no art.º 111.º, do CP, estão abrangidos os ‘designados efeitos patrimoniais do crime’, ou seja, quer as vantagens obtidas ‘com o crime’, quer aquelas que são obtidas pela ‘prática do crime’, como tudo o que possa ser considerado preço ou recompensa de carácter económico que alguém entrega a outrem para que cometa um ilícito penal – HÉLIO RIGOR RODRIGUES e CARLOS A. REIS RODRIGUES, “Recuperação de activos na criminalidade económico-financeira, Viagem pelas Idiossincrasias de um Regime de Perda de Bens em Expansão”, p. 183 –; mas, não se confunde com o produto resultante da prática do crime – ou seja, “(...) No fundo, fiel aos propósitos de política criminal que tem subjacente, o conceito abarca todos os proventos ou benefícios, directa ou indirectamente, provenientes do facto ilícito típico na tentativa de demonstrar que ele não pode ser lucrativo. Apenas os valores puramente imateriais, sem qualquer valor comercial (...) são excluídos (...)” – JOÃO CONDE CORREIA, in “Da Proibição do Confisco à Perda Alargada”, INCM, 2012, p. 81. Todas as modalidades radicam em necessidades de prevenção. Contudo na perda de instrumentos e objectos está em causa a perigosidade imediata da sua adequação para a prática de factos ilícitos típicos, ao passo que na perda de produtos e vantagens está em causa a prevenção da criminalidade ligada à ideia de que o ‘crime não compensa’, como adiante se mostrará. 4. Do conceito de “perda” e de “vantagem” Para analisar o conceito da perda de vantagens, impõe-se, antes de mais, perceber o significado jurídico dos conceitos de ‘perda’ e de ‘vantagem’, neste contexto legislativo. Acontece que, nenhum dos citados diplomas contem uma definição expressa do conceito de ‘perda de vantagem’. Porém, a nível do direito internacional, a ‘perda de bens’ encontra-se definida, em alguma legislação, como uma sanção ou medida imposta por decisão de um tribunal ou outra entidade competente, enquanto decorrência da prática de uma infracção penal, que impõe a privação definitiva de um bem. Veja-se, neste sentido e, embora não com uma redacção uniforme, mas muito similar, a Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção, aprovada pela Resolução da Assembleia da República n.º 47/2007, de 31/09 e ratificada pelo Decreto do Presidente da República n.º 97/2007; a Convenção das Nações Unidas contra a Criminalidade Organizada Transnacional, aprovada pela Resolução da Assembleia da República n.º 32/2004 e ratificada pelo Decreto do Presidente da República n.º 19/2004; Decisão-Quadro 2005/212/JAI, do Conselho, de 24/02/2005 (relativa à perda de produtos, instrumentos e bens relacionados com o crime); a Decisão Quadro n.º 2006/783/JAI, do Conselho, de 06/10/2006 (relativa à aplicação do princípio do reconhecimento mútuo às decisões de perda); a Directiva 2014/42/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 03/04/2014 (relativa ao congelamento e a perda dos instrumentos e produtos do crime na União Europeia) e o Regulamento (UE) 2018/1805 do Parlamento e do Conselho de 14 de novembro de 2018 relativo ao reconhecimento mútuo das decisões de apreensão e de perda (JOUE L 301 de 28.11.2018), que nos termos do seu art.º 2.º, n.º 2, preceitua: “Para efeitos do presente regulamento, entende-se por: 2) «Decisão de perda», uma sanção ou medida de caráter definitivo, imposta por um tribunal relativamente a uma infração penal, que conduza à privação definitiva de bens de uma pessoa singular ou coletiva”; 3) «Bens», os ativos de qualquer espécie, corpóreos ou incorpóreos, móveis ou imóveis, bem como documentos legais ou atos comprovativos da propriedade desses ativos ou direitos com eles relacionados, que a autoridade de emissão considere que: a) Constituem o produto de uma infração penal ou correspondem, no todo ou apenas em parte, ao valor desse produto; b) Constituem os instrumentos dessa infração penal ou correspondem ao valor desses instrumentos; c) São passíveis de perda mediante a aplicação no Estado de emissão de um dos poderes de perda previstos na Diretiva 2014/42/UE; ou d) São passíveis de perda por força de quaisquer outras disposições relacionadas com os poderes de perda, incluindo a perda sem condenação definitiva, previstos na legislação do Estado de emissão relativamente a uma infração penal; 4) «Produto», qualquer vantagem económica resultante, direta ou indiretamente, de uma infração penal, consistindo em qualquer tipo de bem e abrangendo a eventual transformação ou reinvestimento posterior do produto direto, assim como quaisquer ganhos quantificáveis;”. Ainda, no âmbito do Conselho da Europa, a Convenção Relativa ao Branqueamento, Detecção, Apreensão e Perda dos Produtos do Crime, do Conselho da Europa, assinada por Portugal em 8 de Novembro de 1990, aprovada pela Resolução da Assembleia da República n.º 70/97, DR I-A, n.º 287, de 13/12/1997 e a Convenção do Conselho da Europa Relativa ao Branqueamento, Detecção, Apreensão e Perda dos Produtos do Crime e ao Financiamento do Terrorismo, adoptada em Varsóvia em 16 de Maio de 2005, aprovada pela Resolução da Assembleia da República n.º 82/2009, de 27 de Agosto, DR I série n.º 166/2009, de 27/08/2009. Por seu lado, a nível nacional, alguns autores têm procurado avançar uma definição do conceito: PEDRO CAEIRO, em “Sentido e Função do Instituto da Perda de Vantagens Relacionadas com o Crime no Confronto com Outros Meios de Prevenção da Criminalidade Reditícia (Em Especial os Procedimentos de Confisco In Rem e a Criminalização do Enriquecimento Ilícito)”, Revista Portuguesa de Ciência Criminal, Ano 21, n.º 2, Abril-Junho 2011, pp. 269-270, define ‘perda’ ou ‘confisco’, utilizando ambos os vocábulos como similares, como “(…) as medidas jure imperii que instauram o domínio do Estado sobre certos bens ou valores, fazendo cessar os direitos reais e obrigacionais que sobre eles incidissem, bem como outras formas de tutela jurídica das posições fácticas que os tivessem por objecto…” . Por outro lado, considera que as ‘vantagens do crime’ são todos os bens que, já existindo à data do crime, passam para a disponibilidade do agente como efeito da prática daquele, incluindo-se nas mesmas, quer as recompensas dadas, quer as prometidas. Segundo o próprio Pedro Caeiro, a expressão ‘vantagens do crime’ engloba não só as vantagens que provêm dos factos ilícitos-típicos sujeitas à ‘perda clássica’, como também aquelas que se suspeita que provêm de uma actividade criminosa não incluída no processo e que dão origem à ‘perda alargada’ prevista Lei n.º 5/2002, de 11/01 - Ibidem, p. 273. Para HÉLIO RIGOR RODRIGUES e CARLOS A. REIS RODRIGUES, “(…) o instituto jurídico da perda de bens (…) caracteriza-se, no seu tradicional domínio de aplicação, pela privação definitiva de uma coisa ou direito, padecida pelo seu titular e derivada da sua vinculação ou relação com um facto típico e ilícito…”, ou seja, “(…) como consequência da perda dos bens o Estado – ou outro ente público – passa a adquirir a titularidade do bem declarado perdido, em prejuízo do anterior titular, que fica privado daquela; nesse sentido, a privação da titularidade não é mais que uma parte do fenómeno mais amplo de transferência coactiva da titularidade de uma coisa ou direito …” – em “Recuperação de Activos na Criminalidade Económico-Financeira, Viagem pelas Idiossincrasias de um Regime de Perda de Bens em Expansão”, citando Gascón Inchausti, p. 169. Porém, como explicam, a vinculação ao facto típico e ilícito, com a respectiva comprovação directa, é um requisito de verificação necessária no âmbito do regime geral previsto no Código Penal, não aplicável em determinados tipos de criminalidade, designadamente na criminalidade económico-financeira, quanto a alguns bens que integram o património do arguido. Assim, a perda de vantagens, também chamada perda ‘comum’, ‘clássica’, ou ‘tradicional’ é “(...) aquela em que se exige a demonstração do vínculo existente entre o facto ilícito típico em investigação e aquele bem concreto, susceptível de ser declarado perdido, de que é exemplo paradigmático a perda dos instrumentos, produtos e vantagens prevista nos artigos 109.º a 112.º do Código Penal.” – conforme HÉLIO RIGOR RODRIGUES e CARLOS A. REIS RODRIGUES, que a consideram substancialmente diferente da perda ‘alargada’ ou ‘ampliada’ prevista em legislação avulsa, na Lei n.º 5/2002 de 11/01, que incide sobre o valor do património incongruente e cujo vínculo com a actividade criminosa resulta de uma presunção legal (ou seja, embora se continue a exigir essa conexão, a lei presumiu a sua existência, em “Gabinete de Recuperação de Activos - O que é, para que serve e como actua”, Revista do CEJ, 1.º Semestre 2013, N.º 1, p. 71. É, pois, pressuposto, a existência de uma dupla vinculação: por um lado, entre o bem declarado perdido e um determinado facto ilícito típico (seja porque é um meio ou instrumento de preparação ou execução deste, porque é produto do mesmo, ou porque estão em causa as suas vantagens) e, por outro, entre o titular do bem declarado apreendido e a actividade criminosa punida (por regra, o titular do bem é o próprio agente infractor, mas poderá ser um terceiro a quem o bem foi, entretanto, entregue). O limite para a declaração de perda estará na protecção de terceiros de boa-fé. Ou seja, a perda de vantagens inclui todo e qualquer benefício patrimonial que resulte da prática do facto ilícito típico, quer haja ou não vítima, podendo ser directa ou indirecta (ou mediata), ou sucedâneo da vantagem directa, sendo possível tanto a perda de vantagens em espécie como do seu valor, quando a primeira não seja possível por qualquer razão. 5. Das finalidades político-criminais E qual a importância deste instituto? Citando JOÃO CONDE CORREIA e HÉLIO RODRIGUES, “(...) sobretudo a partir da década de setenta do século passado, com o despontar de novos fenómenos criminais, o confisco renasceu, afirmando-se, cada vez mais, como um momento imprescindível da actual política criminal: hoje é evidente que o «crime does pay, extraordinarily well, even beyond the imagination» e que, por isso mesmo, o seu combate só poderá ser eficaz se conseguir neutralizar os seus lucros avultados. Só dessa forma, através da asfixia económica, se poderá combater essa criminalidade, impedir que ela se consolide, reinvista os seus lucros, diversifique as suas operações, colocando em perigo a sobrevivência do próprio Estado de Direito. Em síntese, é imperioso remover os incentivos económicos subjacentes à prática do crime. Apenas o risco de perda do património poderá influenciar o homo economicus (que raciocina em termos de custos/benefícios) no momento capital de o decidir cometer…” – em ‘Anotação ao Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 01-12-2014, proferido no processo 218/11.0GACBC.G1’, Revista Julgar On Line, Abril de 2015, p. 7, disponível em file:///C:/Users/MJ02753/Desktop/Artigo-JULGAR-nota%C3%A7%C3%A3o-Ac%C3%B3rd%C3%A3o-do-TRG-Pedido-de-Indeminiza%C3%A7%C3%A3o-Civil-e Confisco%20(1).pdf. A sua finalidade assenta, pois, na prevenção geral e especial, na medida em que deve assegurar que os agentes que praticam factos ilícitos ficam privados de todos os proventos e benefícios obtidos com essa actividade. Só, desta forma, se garante o brocardo ‘o crime não compensa’, o que não tem sido conseguido exclusivamente com a aplicação da pena. Como explica PEDRO CAEIRO, em “Sentido e Função do Instituto da Perda de Vantagens Relacionadas com o Crime no Confronto com Outros Meios de Prevenção da Criminalidade Reditícia (Em Especial os Procedimentos de Confisco In Rem e a Criminalização do Enriquecimento Ilícito)”, cit., págs. 274-275. “(...) o crime, por definição, compensa, mesmo quando não se trate de uma auto-gratificação puramente egoística. É precisamente por o crime ser, estruturalmente, compensação para o seu autor, que a lei procura levantar obstáculos contra a sua prática – a cominação de penas (...). (...) Deste modo, o risco de sujeição às penas cominadas – maxime a privação da liberdade – faz com que, na óptica do Estado, a potencial gratificação potenciada pelo crime seja anulada. Nesse contexto, o crime torna-se uma acção sem sentido e é legítimo esperar que despareça. Porém, a experiência mostra que as coisas não se passam dessa forma e que essa expectativa continua, hoje como ontem, a frustrar-se com a prática de cada crime (...). (...) casos há em que a satisfação do infractor relativamente à compensação trazida pelo crime diverge daquela que o Estado supõe ao cominar as penas: a sujeição à pena pelo facto (...) não anula o sentimento de compensação material trazida pelo crime. Nesta óptica, a pena funciona como um custo, e tão só eventual, de um benefício económico.” Efectivamente, a perda de vantagens desenvolve um papel fundamental no combate à criminalidade, designadamente económica, pois, só privando os infractores, de forma efectiva, dos bens, serviços e benefícios que a actividade criminosa lhes proporciona, ou seja, garantindo que não beneficiam economicamente da sua prática, se consegue o efeito dissuasor pretendido. Nesta acepção, o instituto da perda de bens serve, ainda, outras finalidades que ultrapassam a sua conexão com o facto ilícito típico. HÉLIO RIGOR RODRIGUES e CARLOS A. REIS RODRIGUES, Comunicado da Comissão ao Parlamento Europeu e ao Conselho refere que “O confisco e recuperação de bens de origem criminosa constituem uma forma muito eficaz de combater a criminalidade organizada, que é exercida essencialmente com fins de lucro. O confisco impede que os capitais de origem criminosa possam ser utilizados para financiar outras actividades criminosas, comprometer a confiança nos sistemas financeiros e corromper a sociedade legítima. O confisco produz um efeito dissuasivo de que o ‘crime não compensa’. Este facto pode contribuir para eliminar modelos de conduta negativos das comunidades locais. Nalguns casos as medidas de confisco do produto do crime permitem atingir os líderes de algumas organizações criminosas, que raramente são investigados e processados.” – em Recuperação de Activos na Criminalidade Económico-Financeira, Viagem pelas Idiossincrasias de um Regime de Perda de Bens em Expansão, cit., p. 170. Por um lado, visa-se acentuar a intenção de prevenção, quer geral, quer especial, através da demonstração de que o crime não rende benefícios; por outro, pretende-se evitar o investimento dos proveitos da actividade ilícita na prática de novos factos ilícitos típicos, estimulando, ao invés, a sua aplicação na indemnização das vítimas e no reforço dos instrumentos de combate ao crime; e, ainda, reduzir os riscos de concorrência desleal no mercado, resultantes da acumulação de riqueza nas mãos de criminosos que investem os lucros em actividades empresariais ilícitas. “Poderá mesmo dizer-se que se vai firmando uma ideia de superação da prisão como fulcro da reacção penal em favor de soluções que viabilizem o “asfixiamento económico” do agente do crime, isto é, que facilitem a apreensão dos bens, produtos e instrumentos da sua actividade criminosa, actual ou pregressa, e a sua perda ou confisco.”, explicam EUCLIDES DÂMASO SIMÕES e JOSÉ LUÍS F. TRINDADE, a propósito da perda alargada, em “Recuperação de Activos: da Perda Ampliada à Actio in Rem (Virtudes e Defeitos de Remédios Fortes para Patologias Graves)”, Revista Julgar On Line, Abril de 2009, p. 2, disponível em file:///C:/Users/MJ02753/Desktop/Recupera%C3%A7%C3%A3odeactivosdaperdaampliada%C3%A0actioinrem.pdf Como explica FIGUEIREDO DIAS, em “Direito Penal Português, Parte Geral II - As Consequências Jurídicas do Crime”, pág. 632, o que está em causa é um propósito de prevenção da criminalidade em globo, ligado à ideia de que o ‘crime não compensa’ e que abrange não só a prevenção especial, visando incidir individualmente sobre o concreto agente do ilícito-típico, como a prevenção geral positiva ou de integração com reflexos sobre a sociedade no seu todo, mas também como factor de confirmação da validade e da vigência da norma jurídica violada. A distinção do regime relativo à perda de instrumentos e produtos, por um lado, e de vantagens, por outro, tem plena justificação. Enquanto ali se tutela uma perigosidade imediata e concreta, resultante da sua adequação para a prática de crimes, aqui tutela-se uma perigosidade abstracta, mediata ou latente. A perigosidade das vantagens decorre da sua própria natureza e das circunstâncias do caso concreto, dada a possibilidade de poderem vir a ser utilizadas para a prática de um novo facto ilícito com o intuito de gerar lucros, subvertendo as regras da economia. O Tribunal Constitucional, no Acórdão n.º 595/2020, citando o Acórdão n.º 392/2015, disponível em https://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20200595.html. refere: “(...) Prevê-se ainda a perda das vantagens decorrentes da prática de factos ilícitos (cfr. artigo111.º do Código Penal), medida esta que tem como finalidade subtrair ao arguido (ou a terceiros) os proventos obtidos em resultado da prática de factos ilícitos típicos. A doutrina tem apontado, como fundamento político-criminal deste regime de perda de vantagens, finalidades preventivas (quer de prevenção geral, quer de prevenção especial) considerando que, ao procurar colocar o arguido na situação patrimonial em que estaria se não tivesse praticado determinado ilícito, subtraindo as vantagens resultantes do mesmo, se visa demonstrar que «o crime não compensa», (...) No entanto, além destas finalidades preventivas, a este regime também está subjacente uma necessidade de restauração da ordem patrimonial dos bens correspondente ao direito vigente. Um Estado de Direito não pode deixar de preocupar-se em reconstituir a situação patrimonial que existia antes de alguém através de condutas ilícitas ter adquirido vantagens patrimoniais indevidas, mesmo que estas não correspondam a um dano de alguém em concreto.” Efectivamente, a comunidade não compreende ou aceita que o crime possa ser uma fonte de enriquecimento pessoal para o condenado. Se o fosse, como refere JOÃO CONDE CORREIA, em “Gabinete de Recuperação de Ativos: A Pedra Angular do Sistema Português de Confisco”, cit., págs. 48-49, estaríamos perante uma incongruência jurídica. Por um lado, punir com uma pena, ainda que exemplar, o infractor pela prática do facto ilícito e, por outro, permitir que, uma vez cumprida a pena, aquele pudesse livremente usar e usufruir de todos os proventos que obteve com a prática do mesmo. “(...) Condenar o arguido e, ao mesmo tempo, permitir que ele conserve intactos todos os proventos do crime será, como continua a suceder demasiadas vezes na nossa prática quotidiana, uma incongruência, que a comunidade, em nome de quem a justiça é feita, não compreende, nem pode aceitar”. Idem, “Reflexos da Diretiva 2014/42/EU (do Parlamento Europeu e do Conselho, de 3 de Abril de 2014, sobre o Congelamento e a Perda dos Instrumentos e produtos do Crime na União Europeia) no Direito Português Vigente”, Revista do CEJ, Lisboa, n.2 (2º Semestre 2014), págs. 85-86. Em conclusão, o objectivo do decretamento da perda de vantagens é corrigir a situação patrimonial do infractor, que não goza de tutela jurídica porque foi originada com a prática de facto ilícito, por forma a retirar todo e qualquer benefício patrimonial que o mesmo obteve, colocando-o na situação em que estaria se não tivesse praticado tal facto e demonstrando que aquele não é título legítimo de aquisição. O mecanismo é dirigido contra os próprios bens, sem qualquer juízo de censura da acção individual que lhes está subjacente. Ou seja: “(...) As vantagens do crime devem ser, tanto quanto ainda seja possível, apagadas, colocando o condenado na situação patrimonial em que estaria se não o tivesse cometido. A perturbação da paz jurídica provocada pelo enriquecimento não pode prolongar-se, servindo o confisco para impedir essa continuação. (...) (...) não está em causa a imposição de um mal, mas a supressão dos benefícios do crime, cuja manutenção na esfera do visado poderia induzi-lo à prática de novos ilícitos e criar na comunidade perniciosas sensações de impunidade. (...) (...) O património do condenado deve ser restituído à situação anterior ao seu cometimento, àquilo que ele teria se não o tivesse praticado. Só dessa forma será possível, quer ao nível individual, quer ao nível colectivo, prevenir a prática de futuros crimes, impedindo a sua reprodução. O Estado não pode, ao mesmo tempo, proibir uma determinada conduta e permitir que o condenado dela beneficie.” – JOÃO CONDE CORREIA, em “Da Proibição do Confisco à Perda Alargada”, p. 93. 6. Da natureza jurídica A perda de bens, instrumentos e vantagens surgiu como uma providência que concretizava objectivos distintos, por um lado de ‘retribuição’, ligados à ideia tradicional de apagar todos os resquícios ou concretizações do ilícito (bens), de ‘prevenção geral’ enquanto principal veículo de transmissão à comunidade da ideia de que o crime não deve compensar ‘commodum ex injuria sua nemo habere debet’ (vantagem), e de ‘prevenção especial’ no sentido de procurar evitar o perigo da repetição criminosa, quer pela aptidão intrínseca do objecto para tal, quer por permanecerem na posse de infractores que já haviam demonstrado a sua habilidade para os utilizar na prática ilícita (instrumento). Por isso, em certas legislações, é tratada como pena acessória, enquanto medida de carácter retributivo, ao passo que noutras é havida como medida de segurança de carácter preventivo, sendo, ainda, noutras, classificada como uma medida de natureza mista, dadas as finalidades concorrentes de prevenção geral e especial, que a definem como uma medida de natureza análoga ora à da pena, ora à da medida de segurança. No direito comparado são exemplo o “comiso” do direito espanhol, a “confiscation” do direito francês, nos quais ainda se mostra muito presente o elemento ‘retributivo’; a “confisca” do direito italiano no extremo oposto assinala de forma mais acentuada uma finalidade de prevenção especial; e a “verfall” dos direitos alemão, suíço e austríaco que, combinando as finalidades de prevenção geral e especial, concluem pela natureza mista da providência – FIGUEIREDO DIAS, in “Direito Penal Português, Parte Geral II - As Consequências Jurídicas do Crime”, pp. 614-615. 6.1. Em Portugal, ainda na vigência do Código Penal de 1886, a consagração da providência foi concebida como se de um efeito da pena ou da condenação se tratasse, com a consequência indesejável de que toda a perda estaria dependente de um juízo de condenação do agente numa pena, assumindo-se que o mesmo teria de ser imputável e tivesse actuado com culpa. Contudo, tal concepção foi alterada, no Código Penal de 1982, conforme se deixou expresso supra, quando a condenação deixou de ser conditio sine qua non do confisco, tendo-se consolidado com o Código Penal de 1995. Para a admissibilidade da perda de bens mesmo sem condenação do agente, invocava-se, à data, precisamente, a perigosidade e necessidade de prevenção em relação aos bens e não à pessoa: “(...) Não estava em causa um mecanismo de censura in personam de uma qualquer conduta pregressa, mas a prevenção in rem de determinados perigos futuros ...” – a propósito da evolução das non-conviction based confiscations no processo penal português, JOÃO CONDE CORREIA, em “«Non – Conviction Based Confiscations» No Direito Penal Português Vigente «Quem Tem Medo do Lobo Mau?»”, pp. 86-87. E é por força dessas finalidades tão diversas que, tanto a doutrina, como a jurisprudência, têm discutido qual a natureza jurídica do instituto. 6.2. Alguns autores defendem a sua natureza sancionatória, ainda que não puramente penal, recorrendo aos seguintes argumentos: depende de uma condenação penal, é um instituto orientado para fins de prevenção penal geral e especial, o regime encontra-se previsto nas regras gerais do Código Penal. Outros, porém, têm-na considerado uma medida mais próxima das penas do que das medidas de segurança, em face das finalidades que lhes estão associadas, concebendo-a como um tertium genus das reacções penais. A posição mais seguida, não é a da natureza penal ou quase penal, mas sim a de que se trata de uma providência sancionatória de natureza análoga à da medida de segurança. Neste sentido, JOÃO CONDE CORREIA, Ibidem, p. 90 “(...) Recuperar os activos que, directa ou indirectamente, resultaram do facto ilícito, quer em proveito da vítima, quer em benefício do Estado, não é uma pena ...” . Esta tese foi preconizada por FIGUEIREDO DIAS, que a respeito da natureza jurídica da perda de vantagens, esclarece que não se define como uma pena acessória porque não possui qualquer ligação com a culpa e, também, não é efeito da pena ou da condenação, mas, antes, “(...) uma providência sancionatória de natureza análoga à da medida de segurança, (...) no sentido em que é sua finalidade prevenir a prática de futuros crimes, mostrando ao agente e à generalidade que, em caso de prática de um facto ilícito-típico, é sempre e em qualquer caso instaurada uma ordenação dos bens adequada ao direito; e que, por isso mesmo, esta instauração se verifica com inteira independência de o agente ter ou não actuado com culpa ...” – em “Direito Penal Português, Parte Geral II - As Consequências Jurídicas do Crime”, p. 638, – sublinhado nosso. No mesmo sentido, VICTOR SÁ PEREIRA e ALEXANDRE LAFAYETTE, em “Código Penal Anotado e Comentado”, Quid Juris Sociedade Editora, 2008, p. 300: “12. A perda de vantagens não é uma pena acessória. É antes uma «providência sancionatória de natureza análoga à da medida de segurança». Na verdade, «previne a prática de futuros crimes» e «mostra ao agente e à generalidade que, em caso de prática de um facto ilícito típico, é sempre e em qualquer caso instaurada uma ordenação dos bens adequada ao direito», instauração que «se verifica com inteira independência de o agente ter ou não actuado com culpa»” – sublinhado nosso. Igual qualificação foi adoptada pelo Tribunal Constitucional, no Acórdão n.º 336/2006, em https://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20060336.html, ao considerar que “(...) A perda das “vantagens que, através do facto ilícito típico tiverem sido directamente adquirida[o]s”, prevista no artigo 111.º, n.º 2, do CP, encontra o seu essencial fundamento político-criminal numa ideia de que “o crime não compensa”. Em vista do cumprimento desta funcionalidade político-criminal, ela abrange por isso todo e qualquer benefício patrimonial que resulte directamente do crime ou através dele tenha sido directamente alcançado, podendo essa vantagem traduzir-se na obtenção de coisas, de direitos ou até de simples benefícios de uso ou mesmo, apenas, no de evitação de dispêndios. Trata-se de uma medida sancionatória em que “o que está em causa primariamente é um propósito de prevenção da criminalidade em globo”, “ideia que se deseja reafirmar tanto sobre o concreto agente do ilícito-típico (prevenção especial ou individual), como nos seus reflexos sobre a sociedade no seu todo (prevenção geral),mas sem que neste último aspecto deixe de caber o reflexo da providência ao nível do reforço da vigência da norma (prevenção geral positiva ou de integração) (JORGE FIGUEIREDO DIAS, Direito Penal Português – As Consequências Jurídicas do Crime“, 1993, p. 632). Por isso, como diz o mesmo Autor, “ela deve ser considerada não uma pena acessória, mas uma providência sancionatória de natureza análoga à da medida de segurança. Análoga, pelo menos, no sentido em que é sua finalidade prevenir a prática de futuros crimes, mostrando ao agente e à generalidade que, em caso de prática de facto ilícito, é sempre e em qualquer caso instaurada uma ordenação dos bens adequada ao direito; e que, por isso mesmo, esta instauração se verifica com inteira independência de o agente ter ou não actuado com culpa” (Op. cit.,p. 638). Tratando-se de uma providência sancionatória penal não pode a sua conformação legislativa deixar de estar abrangida pela axiologia constitucional do princípio da legalidade penal, consagrado, no que concerne às penas e medidas de segurança, no artigo 29.º, nºs 3 e 4, da CRP.” – sublinhado nosso. Igualmente, JORGE A. F. GODINHO, em “Brandos Costumes? O Confisco Penal com base na inversão do ónus da prova (Lei n.º 5/2002, de 11 de Janeiro, artigos 1.º e 7.º a 12.º)”, em Liber Discipulorum para Jorge de Figueiredo Dias (Manuel de Costa Andrade, José de Faria Costa, Anabela Miranda Rodrigues, Maria João Antunes Org.), Coimbra: Coimbra Editora, 2003, págs. 1349 - 1351. 6.3. Também, este Supremo Tribunal já se pronunciou nesse sentido, tal como resulta do Ac. de 25/03/2015, Proc. n.º 244/10.7JAAVR.C1.S1, em www.dgsi.pt, que, a este propósito, disse: “(...) O conceito vantagem tem «um sentido amplo que abrange tanto a recompensa dada ou prometida aos agentes, como todo e qualquer benefício patrimonial que resulte do crime ou através dele tenha sido alcançado», sendo a perda ordenada por forma obrigatória contra os agentes do facto ilícito (autores e comparticipantes), e quando a vantagem assuma a forma de recompensa dada ou prometida, insuscetível de transferência direta para o Estado, a perda traduzir-se-á em o Estado ficar com o direito de exigir de quem a recebeu ou se obrigou a pagá-la o valor correspondente. A doutrina convém que a perda de vantagens é determinada por razões de prevenção, sendo qualificável como uma medida sancionatória análoga à medida de segurança, tendo como seu pressuposto formal a prática de um ilícito típico, só podendo ser decretada contra os agentes do crime, de acordo com o princípio da proporcionalidade, e «devendo ser declarados perdidos apenas os objetos estritamente necessários».”. No mesmo sentido, se pronunciou o Ac. do STJ de 11/01/2018, Proc. n.º 68/13.0TAMTL.E1.S1, com o sumário disponível em www.stj.pta/ Jurisprudência/Acórdãos/Sumários de acórdãos/Criminal – Ano de 2018. Mais recentemente, no Ac. do STJ de 12/01/2022, Proc. n.º 3519/16.8T8LLE.E1.S1, em www.dgsi.pt., disse-se: “(…) é importante frisar (e aditar como elemento de ponderação na decisão do problema colocado) que o confisco de bens tão pouco se reveste, seguramente, de uma natureza estritamente civil, (…). Na verdade, independentemente da posição que se prossiga sobre a precisa natureza jurídica do confisco, é claramente de afastar que esta se situe num plano estritamente civil. Desde logo, porque na base do seu decretamento está sempre a prática de um crime e esta prática é pressuposto de tal decretamento. “É pressuposto do confisco que tenha sido praticado um facto ilícito típico, o que arrasta a natureza penal da solução”, refere acertadamente João conde Correia, na obra “Da Proibição do Confisco à Perda Alargada”, a p. 78 (itálico nosso). São conhecidas as divergências doutrinárias e jurisprudenciais sobre a natureza jurídica do confisco. Mas independentemente de se poder considerar tratar-se mais de uma verdadeira pena acessória, ou antes de uma medida de segurança, ou até de uma providência sancionatória de natureza análoga à da medida de segurança (ob. cit. pp. 77 e 78), o que seguramente o confisco não tem é uma natureza estritamente civil.” 6.4. Na doutrina, PINTO DE ALBUQUERQUE, em “Comentário do Código Penal à Luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, Lisboa”, Universidade Católica Editora, 3.ª Edição Actualizada, 2015, pág. 460, afasta a natureza de pena acessória, considerando que “(...) A perda de vantagens (fructa sceleris) é exclusivamente determinada por necessidades de prevenção. Não se trata de uma pena acessória, porque não tem relação com a culpa do agente, nem de efeito da condenação, porque também não depende de uma condenação. Trata-se de uma medida sancionatória análoga à medida de segurança pois baseia-se na prevenção do perigo da prática de crime.”. No mesmo sentido, MIGUEZ M GARCIA e CASTELA J. M. RIO, “A perda de vantagens é exclusivamente determinada por necessidades de prevenção. O instituto integra uma medida sui generis, baseada na prevenção do perigo da prática de crimes – em “Código Penal Parte Geral e Especial”, 2.ª Edição, Almedina, 2015, pág. 465. Para LEAL-HENRIQUES e SIMAS SANTOS, em “Código Penal Anotado”, 1.º vol., Lisboa: Editora Rei dos Livros, 3.ª Edição, 2002, págs. 1160-1161, 1165, o instituto da perda de vantagens patrimoniais apresenta-se “(...) não como uma pena acessória, mas sim como uma medida destinada a restabelecer a ordem económica conforme o direito, conduzindo a uma justa privação dos benefícios ilicitamente obtidos que só indirecta e imprecisamente se poderia conseguir com a multa, elevando a taxa diária ou impondo multa cumulativamente com a prisão.” e destina-se “(...) a impedir a manutenção de situações patrimoniais antijurídicas, satisfazendo assim finalidades de prevenção especial e geral ...”, tendo a “(...) feição de um expediente semelhante ou análogo à medida de segurança...”. Pressupõe a ocorrência de um facto antijurídico, doloso quanto à previsão do n.º 1, ou culposo quanto à previsão do n.º 2, que tenha proporcionado uma vantagem patrimonial, como tal se entendendo “tudo o que pode ser objecto de uma pretensão de enriquecimento”. Já DAMIÃO DA CUNHA, em posição diametralmente oposta, considerava tratar-se de uma verdadeira pena acessória dependente da aplicação de uma pena principal. Esta posição ficou mais frágil após a alteração do vocábulo ‘crime’ por ‘facto ilícito típico’, no art.º 111.º, n.º 1 e 2, do CP, operada pelo DL n.º 48/95, de 15/03. Como esclarece JOÃO CONDE CORREIA, aquela tese está hoje afastada por ser legalmente insustentável, uma vez que a perda de vantagens não pressupõe a condenação pelo cometimento de um crime, mas apenas a prática de um facto ilícito típico (pode ser uma non-conviction based asset confiscation), pelo que não se pode dizer que está em causa uma pena acessória ou, sequer, um efeito da pena. Contudo, afasta também a possibilidade de se considerar uma providência sancionatória de natureza análoga à da medida de segurança, por não estar dependente da perigosidade presente nas recompensas ou nas vantagens do crime. Considera, ainda, que uma providência sancionatória aplicada sem perigosidade dificilmente poderá ser análoga a uma medida de segurança, no entanto, não dá resposta à natureza jurídica do instituto apesar de reconhecer a sua importância – JOÃO CONDE CORREIA, “Da Proibição do Confisco à Perda Alargada”, págs. 96-97 . Para PEDRO CAEIRO, a perda clássica é um ‘tertium genus’ dentro da panóplia das reacções penais supra mencionada. Segundo este autor, a perda encontra-se mais próxima das penas do que das medidas de segurança, uma vez que o aforismo ‘o crime não compensa’ é dirigido à comunidade, ou seja, pretende enviar uma mensagem primordialmente ao nível da prevenção geral e, só em segundo plano, da prevenção especial, dirigida ao infractor. No entanto, não exige a culpa. Contudo, também não a considera análoga à medida de segurança, pois inexiste a perigosidade revelada pelo agente, elemento que, a par do facto ilícito, é fundamental para aquela sanção. De resto, como explica, mesmo que se tentasse fazer incidir o juízo de perigosidade sobre o estado patrimonial – a disponibilidade da vantagem – e não sobre o agente, tal avaliação estava vetada ao fracasso, pois o concreto perigo de as vantagens poderem vir a ser utilizadas para a prática de novos crimes impõe uma avaliação que é totalmente alheia ao instituto da perda. Assim, conclui no sentido de que “(...) Todas visam finalidades de prevenção criminal e todas arrancam de um tronco comum – um concreto facto ilícito-típico -, requerendo depois, circunstâncias particulares (que aliás não são mutuamente exclusivas): a pena exige a culpa; a medida de segurança exige a perigosidade do agente; a perda basta-se, muito prosaicamente, com a existência de vantagens patrimoniais obtidas através da prática do crime.” – em, “Sentido e Função do Instituto da Perda de Vantagens Relacionadas com o Crime no Confronto com Outros Meios de Prevenção da Criminalidade Reditícia (Em Especial os Procedimentos de Confisco In Rem e a Criminalização do Enriquecimento Ilícito)”, cit., págs. 307-308. 6.5. Também o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (TEDH) já se pronunciou a este respeito. Na verdade, porque pode ser complexa a tarefa de determinar se o regime previsto para um determinado procedimento ablativo (a perda de vantagens) é conciliável com os direitos fundamentais estabelecidos, sentiu aquele tribunal a necessidade de encontrar critérios para determinar previamente se serão aplicáveis as regras estabelecidas na Convenção Europeia dos Direitos Humanos relativas a direitos de natureza penal ou de natureza civil. Assim, para aferir da compatibilidade do regime previsto para a perda de vantagens nas diversas legislações nacionais com o catálogo das garantias e os direitos fundamentais consagrados nos diplomas que regulam os direitos e liberdades fundamentais, o TEDH criou os parâmetros ou princípios, conhecidos como «Engel criteria», que permitem aferir da natureza penal de uma determinada consequência do facto e determinar quando se devem aplicar as garantias previstas para as penas – princípios criados no Acórdão Engel and others vs. Netherlands – Procs. queixas n.ºs 5100/71,5101/71, 5102/71, 5354/72 e 5370/72, de 08-06-1976. Nestes termos, os princípios «Engel Criteria» consistem: (i) na qualificação formal da infracção no ordenamento jurídico nacional, (ii) na natureza intrínseca da infracção, e (iii) no grau de severidade da sanção que está associada à infracção. Com estes critérios o TEDH não pretendeu substituir-se aos ordenamentos nacionais para determinar a natureza de uma determinada sanção, mas, tão só, reiterar que o conceito de ‘pena’ em ‘matéria penal’, «criminal charge» previsto na Convenção, possui autonomia relativamente à classificação formal dos Estados e é independente para efeitos de aplicação da Convenção. Para densificação e desenvolvimento de cada um dos critérios, com apontada crítica por serem vistos como demasiado vagos pela doutrina e alguma jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem – vd. HÉLIO RIGOR RODRIGUES , “II – O Confisco das Vantagens do Crime: Entre os Direitos dos Homens e os Deveres dos Estados A Jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem em Matéria de Confisco”, em O Novo Regime de Recuperação de Ativos à Luz da Diretiva 2014/42/EU e da Lei que a Transpôs (Maria Raquel Desterro Ferreira, Elina Lopes Cardoso, João Conde Correia, coord.), Lisboa, INCM, 1ª Edição, 2018, pp. 42-43. Não obstante, estes critérios mantêm validade e actualidade na jurisprudência do TEDH e foram sendo desenvolvidos e concretizados em decisões posteriores. A título de exemplo, no Acórdão de 09/02/1995 – em https://hudoc.echr.coe.int/eng#{%22itemid%22:[%22001-57986%22]}, caso Welch c. Reino Unido, queixa n.º 17440/90 –, o TEDH considerou que o instituto da perda de bens previsto no Drug Trafficking Offences Act de 1986 tinha a natureza de uma sanção penal, mas não excluiu que certas medidas de confisco possam ter natureza não penal. O mesmo sucedeu com o Acórdão de 20/10/2020, caso Pasquini c. San Marino, queixa n.º 23349/17, em https://hudoc.echr.coe.int/eng#{%22itemid%22:[%22001-205166%22]} . Já no Acórdão de 05/07/2001, em caso Phillips c. Reino Unido, queixa n.º 41087/98 – em https://rm.coe.int/09000016806ebe19 –, com referência ao Drug Trafficking Act de 1994, cujos mecanismos são estruturalmente próximos dos previstos na Lei n.º 5/2002, de 11/01, a conclusão foi no sentido da natureza não penal, classificação que tem sido semelhante sempre que o confisco visa unicamente a reposição tendente à eliminação do enriquecimento de fonte ilícita, para reconstituir a situação patrimonial que existiria se o mesmo não tivesse ocorrido. No mesmo sentido, e a título meramente exemplificativo, o Acórdão de 27/06/2002 , queixa n.º 41661/98, caso Butler contra o Reino Unido, no qual o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos defendeu que o confisco tinha natureza preventiva, não podendo ser comparado com uma sanção criminal “(...) since it was designed to take out of circulation money which was presumed to be bound up with the international trade in illicit drugs ...” – em https://www.juridice.ro/wp-content/uploads/2015/08/BUTLER-v-THE-UK-ECHR-Decision-_English_.pdf. Também o Acórdão de 10/07/2007, queixa n.º 696/15, caso Dassa Foundation c.Liechtenstein, onde se concluiu “(...) that, given in particular the nature of forfeiture under Liechtenstein law which makes it comparable to a civil law restitution of unjustified enrichment, the orders of seizure made against the applicant foundations in view of a subsequent forfeiture of their assets did not amount to a “penalty” within the meaning of Article 7 § 1, second sentence, of the Convention(...)”vd. https://rm.coe.int/CoERMPublicCommonSearchServices/DisplayDCTMContent?documentId=09000016806ebe42 . E, ainda, o Acórdão de 05/07/2001, queixa n.º 52024/99, caso Arcuri e outros, referente ao confisco italiano, no qual se fez constar que “(...) the Court reiterates that, according to the case-law of the Convention institutions, the preventive measures prescribed by the Italian Acts of 1956, 1965 and 1982, which do not involve a finding of guilt, but are designed to prevent the commission of offences, are not comparable to a criminal “sanction”...” – vd. em https://rm.coe.int/CoERMPublicCommonSearchServices/DisplayDCTMContent?documentId=09000016806ebc9b . HÉLIO RODRIGUES tem, por seu lado, uma visão diferente das demais. Considera que o confisco de vantagens deve ser considerado uma quarta via das reacções que o Estado pode assumir contra os crimes, a par das penas, das medidas de segurança e da reparação da vítima – vd. em HÉLIO RIGOR RODRIGUES , “II – O Confisco das Vantagens do Crime: Entre os Direitos dos Homens e os Deveres dos Estados A Jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem em Matéria de Confisco”, cit. págs. 52 e sgs; JOÃO CONDE CORREIA, “«Non – Conviction Based Confiscations» No Direito Penal Português Vigente «Quem Tem Medo do Lobo Mau?»”, págs. 84-85. Para este autor, a perda de vantagens não é uma medida ou sanção administrativa exercida com base no ius imperii porque não é resultado de uma decisão da Administração do Estado, no exercício de competências próprias; é, antes, uma decisão jurisdicional, tramitada, decidida e executada pelos tribunais e não pelo poder executivo. É, pois, função jurisdicional e não administrativa. Também não a considera uma pena ou medida de segurança (embora assegure algumas das finalidades preventivas tipicamente associadas às penas, desde logo, enquanto inegável desincentivo à prática de crimes que visam o lucro), em suma, porque: não integra o catálogo do Código Penal (princípio da legalidade); não responde a fins de ressocialização do agente, de protecção de um bem jurídico e, por outro lado, também responde a critérios de prevenção geral ou especial, ou a fins retributivos; não se encontra sujeito ao princípio nulla pena sine culpa (art.º 40.º, n.º 2, do CP) face ao estabelecido no art.º 110.º., n.º 5, do CP; não reflecte o carácter pessoalíssimo da pena, pois a perda pode ocorrer relativamente a bens de terceiro; não existe qualquer consideração de proporcionalidade entre o crime e a perda; e, finalmente, tendo natureza penal ou sancionatória “não soa bem” que possa ser aplicado sem condenação do visado. Afasta, igualmente, a natureza de sanção, pois defende que, uma vez que a perda de vantagens visa repor o status quo ante a prática do facto ilícito, a devolução ao Estado dos proventos económicos resultantes da prática dessa infracção é mera «restituição» ou «recuperação de activos». Conclui o Autor que é uma consequência civil da prática de um facto ilícito típico penalmente relevante, ainda que com algumas finalidades preventivas também presentes no âmbito penal: “(...) o que está em causa é uma medida de não tolerância com uma situação patrimonial ontologicamente ilícita, ou por outras palavras, de uma medida tendente a impedir um lucro ilícito. Neste caso, como sugere Mapelli Caffarena trata-se de uma medida muito próxima da responsabilidade civil, uma vez que não responde aos fins retributivos e preventivos do sistema penal, bem como porque a sua abrangência não se determina com base em critérios estabelecidos para as consequências do crime. (...) A posição que assumimos nesta matéria é clara: o confisco das vantagens assume natureza civil – nem penal, nem administrativa, nem sequer minimamente sancionatória, mas puramente civil. O princípio subjacente ao confisco das vantagens é o da necessidade de evitar o enriquecimento ilícito causado pela infracção criminal. (...) Visa-se apenas, com o confisco das vantagens, colocar o agente precisamente na mesma situação em que estaria se o crime não tivesse sido cometido. (...) corresponde a uma reconstituição natural, que não implica qualquer sanção ou sequer qualquer prejuízo para o visado. Salvo para quem defenda que o crime é título aquisitivo da propriedade.” – ob. cit. págs. 51, 53-54. 6.6. Em suma, definir a natureza jurídica da perda de vantagens afigura-se matéria controversa, longe de encontrar consenso na doutrina ou na jurisprudência. Contudo, parece essencial compreender a natureza deste instituto para conseguir compatibilizá-lo com o pedido de indemnização civil. Assim, dir-se-á que a perda de vantagens se trata de uma providência sancionatória, com propósitos de prevenção, quer geral, quer especial, na medida em que funciona como um verdadeiro travão à prática de novos factos ilícitos típicos, uma vez que retira aquilo que, por vezes, é o principal estímulo do crime – o lucro. Por outro lado, permite transmitir de forma clara e evidente à comunidade a mensagem de que o crime não pode compensar. Neste sentido veja-se o explanado no Ac. do STJ, de 29/04/2020, Proc. n.º 928/08.0TAVNF.G1.S1, em www.dgsi.pt, quando diz que “(...) a declaração de perda, independentemente da classificação que lhe possa ser atribuída, sendo uma consequência jurídica de carácter patrimonial dos ilícitos cometidos, não é uma pena nem uma medida de segurança, nem uma forma de indemnização civil por danos emergentes do crime, regulada na lei civil (artigo 129.º do Código Penal, Título VI da Parte Geral). Devendo notar-se, a este propósito, que a perda não se inclui nos capítulos relativos às penas (Capítulo II), às penas acessórias e efeitos das penas (Capítulo III) ou às medidas de segurança (Capítulo VII), mas num capítulo autónomo (Capítulo IX) do Título III (Das consequências jurídicas do crime) da Parte Geral (Livro I) do Código Penal.”. 7. Dos pressupostos da perda de vantagens 7.1. A finalidade da providência da perda de vantagens consiste na reafirmação da força da vigência da norma e na resposta ao alarme social que pode advir da convicção de que o “crime compensa”, pelo que, são pressupostos do seu decretamento a prática de um facto ilícito típico (e não de um crime, enquanto facto típico, ilícito, culposo e punível), e a existência de proventos económicos. É suficiente que o facto ilícito típico tenha sido cometido, independentemente da punição do seu autor ou da sua actuação culposa e é irrelevante a aplicação de uma pena ou sequer a existência de um juízo de condenação. Neste sentido, veja-se o que se disse nos acórdãos do STJ, de 12/09/2019, Proc. n.º 736/03.4T0PRT.P2, “(…) A perda de vantagens implica a ocorrência de facto ilícito típico e existência de vantagens, proveitos, devendo aplicar-se o instituto mesmo que não seja possível sujeitar o arguido a condenação. É o que sucede em caso de prescrição do procedimento criminal, quando esteja já estabelecida a comprovação de que as coisas, direitos ou vantagens tenham sido obtidas através de facto ilícito típico …”; e de 21/03/2018, Proc. n.º 736/03.4T0PRT.P2.S1, “(…) Os pressupostos do instituto da perda de vantagens são: a ocorrência de facto ilícito típico, ou seja, de facto antijurídico; a existência de vantagem, ou seja, de proveitos. (…) A circunstância de a lei exigir, tão só, a ocorrência de facto ilícito típico (e não a ocorrência de crime), conduz a que o instituto seja aplicável ao respectivo agente, ainda que não seja possível sujeitá-lo à condenação, à cominação de uma pena. Daí que possa e deva ser aplicado no caso de prescrição do procedimento criminal, quando já esteja estabelecida a comprovação de que as coisas, direitos ou vantagens tenham sido obtidos através de facto ilícito típico …” – ambos em www.dgsi.pt. A desnecessidade da verificação de um crime para a declaração da perda de vantagens resulta expressamente da letra da lei. Novidade trazida pela Lei n.º 30/2017, de 30/05 que trouxe alterações significativas às disposições da perda dos instrumentos, produtos e vantagens estatuídos no Código Penal, designadamente no n.º 5, do art.º 110.º, do CP, porque passou a prever expressamente aquilo que já vinha sendo defendido pela doutrina na redacção anterior do art.º 111.º, do CP (perda das vantagens), ou seja, que a perda de vantagens pode ocorrer mesmo nos casos em que não exista culpa, isto é, “ainda que nenhuma pessoa determinada possa ser punida pelo facto”, nos casos de inimputabilidade, falecimento, não consumação do crime, ou contumácia. 7.2. A própria Directiva 2014/42/UE, no ponto 15) dos Considerandos previa a possibilidade de “(...) Se não se puder decidir a perda com base numa condenação definitiva, deverá todavia continuar a ser possível, em determinadas circunstâncias, decidir a perda de instrumentos e de produtos, pelo menos em casos de doença ou de fuga do suspeito ou arguido.”. Esta ideia veio depois a ser consagrada no próprio corpo da Directiva, conforme art.º 4.º, n.º 2, como referido por RAUL DE CAMPOS COELHO e LENCASTRE BRITO, “(…) Posteriormente, a transposição feita da diretiva levou a que, neste ponto, houvesse uma abertura maior do que o mínimo exigível pela mesma, ocorrendo a perda nos casos acima referidos, que no fundo não exigem a ocorrência de um crime, mas não se confinando somente a estas situações que poderiam ser subsumidas a uma ausência “momentânea”, isto é, casos de doença ou fuga do suspeito/arguido, e que levariam à aplicação da figura da contumácia. Assim, ao transpor a diretiva o legislador nacional decidiu, parece-nos, ir mais além. Não se quedou pela obrigatoriedade mínima, dessa forma a perda pode ocorrer mesmo em caso de morte do agente e quando este nem sequer tenha chegado a ser condenado. A declaração de perda pode ocorrer independentemente de serem apuradas as responsabilidades jurídico-penais do agente ou da culpa do mesmo por se ter verificado uma situação superveniente, no caso, a morte do infrator.” – em “A Recuperação de Ativos à luz da Lei n.º 30/2017, de 30 de maio”, Dissertação de Mestrado, Universidade de Direito da Universidade de Lisboa, 2018, p. 63. Desta forma, a perda de vantagens pode ter lugar mesmo quando o agente seja inimputável, como esclarece FIGUEIREDO DIAS, “(...) seria absolutamente contrário à finalidade da providência que ela não tivesse lugar só porque o agente é inimputável ou, sendo imputável, actuou sem culpa. Ainda nestes casos, o benefício resultante de um facto ilícito típico deve ser anulado e a ordem patrimonial dos bens correspondente ao direito restaurada (...). Do exposto resulta que a perda de vantagens não tem de possuir qualquer correlacionação com a culpa ou com a sua medida. Mas já a tem de ter, através do princípio da proporcionalidade, com a gravidade do ilícito típico cometido.” – vd. Direito Penal Português, Parte Geral II - As Consequências Jurídicas do Crime, cit., p. 636. Segundo JOÃO CONDE CORREIA, não parece ser possível decretar a perda de vantagens quando o facto ilícito tenha sido cometido por um desconhecido. Torna-se necessário que tal facto possa ser imputado a uma pessoa concreta e, em termos processuais, será necessário, pelo menos, uma acusação (ou acto equivalente), ainda que perfunctória, e a posterior determinação judicial do facto. – vd. “Da Proibição do Confisco à Perda Alargada”, pág. 95. O que é diverso de um juízo de condenação ou de imputação de culpa, pois, ainda que o facto tenha sido praticado por um inimputável ou com ausência de culpa, continua a justificar-se a anulação do benefício resultante da prática do facto ilícito típico e a restauração da ordem patrimonial dos bens correspondente ao direito. É a prática de um facto ilícito típico (e não de um crime) que constitui pressuposto da perda de vantagens. Além disso, constitui pressuposto jurídico-constitucional irrenunciável que a perda de vantagens seja decretada com respeito pelo princípio da proporcionalidade face à gravidade do facto ilícito típico praticado. 7.3. Em conclusão, o fundamento da declaração de perda de vantagens assenta na existência de uma vinculação entre o bem declarado perdido e um determinado facto ilícito típico (que poderá assumir várias formas - directa ou indirecta), sendo essa a principal diferença entre o regime geral previsto no Código Penal e os regimes avulsos regulados em legislação extravagante a que, acima, se fez referência. Enquanto, no Código Penal se estipula que a declaração da perda ocorre quanto a recompensas dadas ou prometidas ao agente de um facto ilícito típico ou quanto a vantagens obtidas através desse facto, nos regimes especiais exige-se a efectiva prática de uma infracção nos termos previstos no diploma em causa. 8. Da compatibilidade entre a perda de vantagens e o pedido de indemnização cível A presente oposição de julgados versa precisamente sobre a compatibilidade entre a declaração de perda de vantagens e o pedido de indemnização civil. No acórdão recorrido (Processo n.º 1105/18.7T9PNF.P1) está em causa a condenação pela prática de um crime de falsificação e de um crime de burla qualificada, tenho sido julgado procedente o pedido de indemnização cível deduzido pelo assistente e indeferida a declaração de perda de vantagens a favor do Estado requerida pelo Ministério Público. No acórdão fundamento (Processo n.º 282/18.1T9PRD.P1) está em causa a condenação pela prática de um crime de abuso de confiança à Segurança Social, tendo sido julgado procedente o pedido de indemnização cível deduzido pelo lesado Instituto da Segurança Social e deferida a declaração de perda de vantagens a favor do Estado requerida pelo Ministério Público. Os acórdãos em oposição decidiram de forma oposta, o requerimento de declaração de perda de vantagens adquiridas pelo agente do crime, a favor do Estado, quando já integravam a indemnização judicialmente pedida e arbitrada ao ofendido pelo ilícito-típico (que não o Estado), nos termos do disposto no art.º 111.º, do CP, na redacção introduzida pela Lei n.º 32/2010 de 02-09. 8.1. O acórdão recorrido fundamentou a sua decisão, em síntese, nas seguintes premissas: (i) o agente não pode ser duplamente responsabilizado pelos mesmos danos, não obstante a natureza distinta do instituto (se o agente vê o património aumentado apenas com o valor da burla e é condenado no pedido de indemnização cível a pagar esse montante ao assistente, não há qualquer vantagem. Tal só ocorre quando vê o seu património aumentado para além e na medida do excesso, não abrangido pela indemnização civil); (ii) o risco de instrumentalização do condenado ao interesse geral de apaziguamento dos receios colectivos quanto à segurança, com violação de princípios constitucionais de necessidade, proporcionalidade e utilidade prática de toda a reacção penal (art.º 18.º da Constituição da República Portuguesa); (iii) caso já tenha sido condenado a pagar a quantia a título de indemnização civil, a perda de vantagens contraria as finalidades e a necessidade de prevenção contida na previsão legal; (iv) caso o lesado não pretenda deduzir pedido de indemnização cível por já ter recorrido a outros meios que lhe dão as mesmas prorrogativas, falta fundamento ou justificação para a declaração da perda de vantagens a favor do Estado. Por seu lado, no acórdão fundamento, para o deferimento da declaração de perda de vantagens, considerou-se os seguintes argumentos: (i) a natureza e finalidades preventivas daquele instituto; (ii) a necessidade de restauração da ordem patrimonial dos bens correspondente ao direito vigente; (iii) o carácter sancionatório análogo à medida de segurança; (iv) o efeito dissuasivo da perda de vantagens mediante o reforço da noção de que o crime não compensa; (v) a necessidade de reposição da situação económica existente antes da prática do crime; (vi) o carácter obrigatório e imperativo, subtraído a critérios de oportunidade, da providência que integra, ainda, o conceito de operativo da acção penal; (vii) a autonomia do instituto face aos outros mecanismos de cobrança do crédito alternativos. Concluindo no sentido de que, sendo a determinação da perda de vantagens conexa com o crime praticado, não pode deixar de ser decidida na sentença penal, pois trata-se de um poder-dever do Tribunal. 8.2. Do excurso sobre o regime jurídico aplicável ressalta evidente que uma das questões que ocorre a propósito da perda de vantagens é a de não agravar a posição da vítima ou, dito de outro modo, que o confisco de vantagens provenientes da prática do crime não pode, obviamente, prejudicar os direitos do lesado. E, a posição da vítima é agravada nas situações em que, por exemplo, se verifica quando a possibilidade de cobrança efectiva à custa dos bens do lesante deixa de existir porque o valor é atribuído ao Estado. Como a própria lei refere, a perda de bens deve ocorrer sem prejuízo dos direitos do ofendido – art.º 111.º, n.º 2, do CP. A justiça penal é feita em razão de um concreto titular de um bem jurídico, cujos interesses patrimoniais não podem ser esquecidos e postergados. Daí que, sendo o lucro a principal motivação do infractor, a reparação dos prejuízos a que dá causa é um elemento essencial para o restabelecimento da paz jurídica violada. Seguindo o entendimento da maioria da doutrina – a perda de vantagens é uma providência sancionatória que preconiza o exercício do ius punendi estadual –, há que concluir que este instituto não se confunde com uma medida de natureza civil – acção cível enxertada no processo penal – com objectivo de reparação dos danos civis emergentes da prática do facto ilícito (a propósito da natureza da indemnização de perdas e danos arbitrada em processo penal, veja-se o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 305/2001, de 27/06/2001, Proc. n.º 412/00 - TC – 1ª Secção, em https://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20010305.html.). GERMANO MARQUES DA SILVA refere mesmo que “(…) Devemos ter presente que o instituto de perda de vantagens não se confunde nem com a indeminização civil emergente da prática do crime nem com a obrigação tributária, embora materialmente interconexos, mas processualmente distintos. (…) A indeminização tem por fim ressarcir os danos causados pelo crime, a perda de vantagens tem natureza sancionatória análoga à da medida de segurança.” – em “Direito Penal Tributário”, 2.ª Edição revista e ampliada, Universidade Católica Editora, Lisboa, 2018, cit., pp. 140-141. Efectivamente, no caso dos crimes fiscais, a natureza da relação jurídica tributária subjacente à prática do crime é diferente da natureza da obrigação de restituição da vantagem patrimonial indevidamente obtida com a prática desse crime. Subsistindo o dano, consistente na vantagem patrimonial indevidamente obtida, mantem-se a obrigação de restituição, através da declaração de perda dessa vantagem patrimonial, que se integra na reacção jurídico-penal a que a prática do crime dá lugar. Assim sendo, a perda de vantagens deve ser decretada sempre que ocorram vantagens adquiridas pelo agente, para si ou para terceiros, decorrentes da prática do facto ilícito, considerando que se trata de instituto autónomo em relação à indemnização de perdas e danos emergentes da prática de crime, pois, esta tem uma natureza fundamentalmente ressarcitória, distinta daquela outra natureza sancionatória. Neste sentido, afirma FILIPA NUNES CUNHA : “(…) São realidades distintas, pelo que não se pode confundir a perda de vantagens com a pretensão indemnizatória, sendo de refutar, por completo, a forçada sobreposição destes dois institutos até como modo de sustentar o afastamento da perda de vantagens nos casos em que o ofendido comunique ao processo que pretende obter ressarcimento dos danos causados com o crime por outra via que não através do pedido de indemnização civil. Processualmente não se confundem, pois, repetimos, a perda de vantagens é uma providência de carácter sancionatório e a indemnização civil é uma medida de natureza civil, apesar de enxertada numa acção penal.” – vd. em “A admissibilidade de (co)existência do confisco e outros mecanismos de recuperação de vantagens no âmbito dos crimes tributários”, Revista do Ministério Público 151, Julho-Setembro de 2017, cit., pág. 187. Tanto assim é que a condenação em indemnização civil pelos danos emergentes do crime exige a formulação do respectivo pedido cível que pode vir a ser apreciado no processo criminal por via do princípio da adesão (art.º 71.º, do CPP), mas é regulada pela lei civil (cf. art.º 129.º, do CP). No entanto, no âmbito do processo penal, a perda de vantagens relacionadas com a prática do facto ilícito deverá ser objecto do conhecimento e decretamento pelo Tribunal, independentemente da formulação de pedido do lesado, bastando-se com o requerimento efectuado pelo Ministério Público – no exercício da acção penal –, e com a prova da ocorrência do facto ilícito típico e de que dele resultaram vantagens que vieram a ser adquiridas pelo agente. E, mesmo que a vantagem obtida corresponda integralmente ao prejuízo causado ao lesado, cremos que, ainda nesses casos, deverá ser decretada a perda da vantagem. Como explica GERMANO MARQUES DA SILVA, a propósito do imposto devido no crime tributário, “(…) Parece-nos que, mesmo neste caso, o Tribunal deve condenar na perda de vantagem correspondente, ainda que se entretanto tiver sido pago o imposto em dívida deva considerar não haver já lugar à condenação por essa vantagem pertencer ao Estado a título de imposto já cobrado, e na execução da sentença deva ter-se em conta se a vantagem que corresponda integralmente ao imposto evadido foi entretanto recebido pela Autoridade Tributária.” – Direito Penal Tributário, Lisboa: Universidade Católica Editora, 2.ª Edição revista e ampliada, 2018, cit., pp. 140-141. Ou seja, deverá ocorrer sempre condenação na perda de vantagem, sem prejuízo de, em fase de execução de sentença, ser possível deduzir oposição à execução, por facto extintivo da obrigação – cf. art.º 729.º, al. g), do CPC. Isto porque, o confisco funciona como um mecanismo subsidiário e só opera no montante da vantagem que exceder o valor dos danos civis causados. A mesma lógica subsidiária deverá aplicar-se, quer o lesado seja o Estado, quer seja um particular. “(…) O Estado só pode confiscar as vantagens que excedam a pretensão indemnizatória formulada por aquele, sob pena de prejudicar o titular concreto do bem jurídico violado.” – cf. JOÃO CONDE CORREIA, em “Da proibição do Confisco à Perda Alargada”, cit., pág. 145. Assim, LEAL-HENRIQUES e SIMAS SANTOS, em “Código Penal Anotado”, cit., pág. 1162, admitem a hipótese de a perda poder deixar de ser declarada, quando o ofendido ou o terceiro tenha uma pretensão tutelada pelo direito civil ao provento patrimonial obtido do crime pelo agente, já que a perda de proventos ilicitamente obtidos deve servir também para restabelecer o direito do ofendido, não devendo, portanto, piorar a sua situação. Ou seja, quando os bens que integram o benefício patrimonial obtido forem restituídos ao lesado, no decurso do processo ou na decisão final, a declaração de perda apenas terá lugar se a vantagem for superior àqueles ou se o ofendido, por um qualquer motivo válido, não aceitar a restituição. O Estado não pode confiscar os bens do lesado, devendo restituí-los ao seu legítimo proprietário (cf. art.º 186.º, n.º1, do CPP), desse modo anulando a vantagem obtida, sob pena de violação do ne bis in idem. “(…) Aliás, em bom rigor, como já não há vantagem, também não há nenhum conflito prático entre o confisco e um eventual pedido de indemnização civil (v.g. para recuperar os danos causados com a má utilização da viatura), cujas regras também são, igualmente, desnecessárias, porque se trata de restituir «o seu a seu dono» (suum cuique tribuere)…” –JOÃO CONDE CORREIA e HÉLIO RIGOR RODRIGUES , em “Anotação ao Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 0112-2014, proferido no processo 218/11.0GACBC.G1”, cit., pág. 13. 8.3. Nestes termos, conclui-se que a declaração de perda dos instrumentos, produtos e vantagens não é facultativa – vd. FIGUEIREDO DIAS, que afirma “(…)A perda é, por outro lado, uma vez verificados os seus pressupostos, inclusive o de proporcionalidade (…) de decretamento obrigatório, não ficando (…) na discricionariedade do tribunal.”, em “Direito Penal Português, Parte Geral II - As Consequências Jurídicas do Crime”, , cit., pág. 627. Igualmente, FILIPA NUNES CUNHA, “(…) Verificados os pressupostos, a declaração de perda de vantagens torna-se obrigatória como, aliás, decorre do normativo legal ao prescrever que ‘toda a recompensa … é perdida’ e ‘São também perdidos …’ mas não poderá, nunca, prejudicar os direitos do lesado – n.º 6 do artigo 110.º do CP(…).” – em “A admissibilidade de (co)existência do confisco e outros mecanismos de recuperação de vantagens no âmbito dos crimes tributários”, cit., pág. 178. Em suma, a declaração da perda de bens é independente de qualquer ponderação sobre a sua utilidade prática, pois é alheia a juízos de oportunidade, de conveniência, eficácia ou de utilidade. JOÃO CONDE CORREIA, propõe convocar o princípio da proporcionalidade dos meios aos fins visados, considerando que o Ministério Público pode prescindir daquela declaração quando, da ponderação, conclua que os meios necessários não são razoáveis face aos fins visados – vd. em “Da Proibição do Confisco à Perda Alargada”, melhor identificado supra, p. 148. No mesmo sentido, HÉLIO RIGOR RODRIGUES , em “Gabinete de Recuperação de Activos - O que é, para que serve e como actua”, citando João Conde Correia, cit., pág. 71. Além disso, ainda que a decretação de perda de vantagens como providência de carácter criminal possa, à primeira vista, parecer inútil e inconsequente – como é defendido pela posição que entende que as vantagens adquiridas não devem ser declaradas perdidas a favor do Estado quando já integram a indemnização judicialmente pedida, precisamente por se traduzir na aquisição de mais um desnecessário título executivo –, a mesma sempre se justifica pelo valor pedagógico da decisão e não é absurda. Como se disse no Ac. do STJ, de 03/10/2002 , Proc. n.º 02P1870, em www.dgsi.pt, “À primeira vista até, a consagração legal da perda das vantagens conseguidas, como providência de carácter penal, pode parecer absurda e despicienda; com efeito e em princípio, será ela uma resultante automática das regras da responsabilidade civil (nomeadamente sob a forma de restituição em espécie) conexionados com as que objectivam o regime de adesão em processo penal (cfr: artigos 71º e seguintes, do Código de Processo Penal). De todo o modo, não é de acoimar a decisão de perdimento de vantagens ilicitamente adquiridas como destituída de válida razão de ser no espírito da filosofia que lhe subjaz, uma vez que ela sempre achará suporte justificativo, sob um duplo ponto de vista; é que, por um lado, o ofendido pode prescindir do accionamento civil ( sob a tutela da adesão) da reparação não formulando o respectivo pedido, caso em que as faladas finalidades e conveniência da prevenção geral e da comissão de juízo de censura penal dão fundamento bastante (e autónomo) ao decretamento da perda e, por outro, se situações haverá em que as tais vantagens, obtidas pelo agente, vão além daquilo que consubstancie o real prejuízo da vítima – logo gerando a questão de saber até onde deverá a perda das vantagens ser concretizada – a verdade é que, ainda que, é vislumbrável motivo válido para avalizar positivamente a determinação de perdimento, máxime que toque à parte excedente do prejuízo próprio e específico do lesado.”. Nas palavras de FIGUEIREDO DIAS, em “Direito Penal Português, Parte Geral II - As Consequências Jurídicas do Crime”, , cit., p. 633, o lesado pode prescindir da reparação não apresentando o respectivo pedido cível que acciona as regras da responsabilidade civil e permite a restituição em espécie, caso em que as finalidades de prevenção geral e especial dão fundamento autónomo ao decretamento da perda; da mesma forma que, casos haverá em que as vantagens vão além daquilo em que a vítima foi prejudicada, circunstância na qual também se justifica o autónomo decretamento da perda. Só assim não será se, no decurso do processo, se comprovar que o agente ressarciu o ofendido em montante exactamente igual ao das vantagens que obteve com a prática do facto ilícito. Neste caso, a declaração de perda revelar-se-á inútil. Sem prejuízo, FIGUEIREDO DIAS reconhece que, sempre que tenha havido pedido civil conexo com o processo penal, poucas serão as hipóteses em que a perda das vantagens poderá vir a ser decretada utilmente, afirmando que, na declaração de perda de vantagens, o que está em causa, primariamente, é um propósito de prevenção da criminalidade em globo ligada à ideia antiga, mas nem por isso menos prezável, de que “o crime não compensa”, como já se deixou expresso – ob. cit., pág. 632. Por isso, sendo uma providência de cariz preventivo, através de um exercício de poder de autoridade pública, transmite ao infractor e à comunidade em geral que, mesmo onde a cominação de uma pena não alcança, i) nenhum benefício resultará da prática de um ilícito; ii) penaliza o infractor, na medida em que a privação do benefício pretendido constitui, só por si, uma frustração ou agaste psicológico, constituindo um forte desincentivo ao cometimento de novas práticas ilícitas que possam enriquecer o seu património, interiorizando, assim, a convicção de que o crime não o irá compensar; e, iii) restaura a ordem patrimonial dos bens correspondente ao direito vigente, colocando o agente na situação patrimonial anterior à prática do facto ilícito típico. Estas finalidades não são asseguradas com a atribuição da indemnização ao lesado. O processo penal baliza-se pelo princípio constitucional da legalidade – art.º 219.º, da CRP –, não havendo qualquer poder discricionário do juiz para declarar a perda de vantagens, contrariamente ao pedido de indemnização cível, como decorre do princípio da suficiência do processo penal (cf. art.º 7.º do CPP), delegando no lesado a resolução de uma questão penal. 8.4. Sendo a declaração de perda de vantagens obrigatória importa perceber em que termos ela poderá compatibilizar-se com o pedido de indemnização civil. Segundo JOÃO CONDE CORREIA e HÉLIO RIGOR RODRIGUES, em “O Confisco das Vantagens e a Pretensão Patrimonial da Autoridade Tributária e Aduaneira nos Crimes Tributários (Anotação ao Acórdão do TRP de 23/11/2016, Processo n.º 905/15.4IDPRT.P1)”, Revista Julgar On Line, 2017, cit., pp. 14-15, disponível em http://julgar.pt/wp-content/uploads/2017/01/20170123-ARTIGO-JULGAR-Confisco-e-pretens%C3%A3o-da-Autoridade-Tribut%C3%A1ria-J-Conde-Correia-e-H%C3%A9lio-R-Rodrigues.pdf, são várias as formas possíveis de compatibilização destes institutos: i) o Estado pode confiscar os proventos do crime indiferente aos direitos das vítimas – como ocorre actualmente no âmbito da civil recovery do Reino Unido –, pois há uma obrigação geral de confiscar os proventos do crime e ao lesado cabe, apenas, opor-se ao mesmo. Com efeito, se nada fizer, o bem transfere-se para a esfera jurídica do Estado – este modelo privilegia o interesse comunitário no integral confisco dos proventos em detrimento dos direitos individuais; ii) o Estado não pode confiscar os bens quando exista uma vítima com a possibilidade abstracta de formular um pedido de indemnização civil ou de utilizar qualquer outro meio formal para compensar os seus prejuízos (é o que acontece no sistema alemão – Verfall, que transfere para a vítima o ónus de actuar em vez de assumir o confisco como uma obrigação estadual – em vez de ser uma proclamação geral, transforma-se num mero efeito esporádico e aleatório perdendo muito da eficácia preventiva que a justifica); iii) o Estado deve articular o confisco com a integral protecção dos direitos das vítimas (é o modelo que procura conjugar os interesses em jogo, situando-se a meio caminho dos anteriores, mas garantindo que o confisco é sempre declarado e que os direitos das vítimas são, também, sempre assegurados) e, deste modo, o legislador pode salvaguardar integralmente os efeitos preventivos do confisco (reduzir o arguido ao estado patrimonial anterior à prática do crime, assim demonstrando que ele não compensa) e respeitar os direitos da vítima. 8.5. Em Portugal, a opção legislativa recaiu sobre esta terceira via, um sistema misto que se densifica na letra do art.º 111.º, n.º 2, do CP, quando conjugado com o art.º 130.º, n.º 2, do mesmo Código. Neste conspecto, segue-se de perto o estudo de JOÃO CONDE CORREIA e HÉLIO RIGOR RODRIGUES a propósito da compatibilização do confisco das vantagens com a pretensão do Estado enquanto ele próprio ofendido, nos crimes fiscais e contra a Segurança Social, procurando demonstrar que a declaração de perda de vantagens é, obrigatória, embora salvaguarde igualmente os direitos dos lesados, designadamente, através da adjudicação dos bens declarados perdidos a favor do Estado ou do produto da sua venda, não existindo qualquer sobreposição entre este instituto e o pedido de indemnização cível ou outra forma alternativa de cobrança do crédito. Pela circunstância de o ofendido ser o próprio Estado, não se pode defender a incompatibilidade do pedido de indemnização civil com a declaração de perda de vantagens, assumindo que o ofendido protegido, na acepção do art.º 111.º, n.º 2, do CP, é o Estado lacto sensu, abrangendo os seus departamentos, Autoridade Tributária e Aduaneira e o Instituto da Segurança Social. Além disso, o facto de o Estado ter ao seu alcance mecanismos de ressarcimento coercivo mais amplos que os concedidos aos particulares, não determina solução diversa, sob pena de colocar em crise os fins preventivos da declaração de perda de vantagens. Os citados Autores do estudo que aqui se segue fazem referência aos elementos gramatical, histórico e teleológico. Assim, a letra do art.º 130.º, do CP – indemnização do lesado – não excepciona nenhuma situação, designadamente aquelas em que a vítima dispõe de outras formas legais de obter o ressarcimento dos danos causados pelo crime, como o pedido de indemnização civil ou a execução fiscal. A norma em causa não contempla nenhuma excepção nessa matéria e, se a lei não distingue, não poderá o julgador distinguir, ubi lex non distinguit, nec nos distinguire debemus. Qualquer outra interpretação redundaria numa subversão do espírito e da ratio da norma, pois, resulta da própria redacção do art.º 130.º, do CP, que foi dada preferência ao instituto da perda de vantagens, enquanto manifestação do ius imperium estadual, em detrimento das outras formas de reparação que deverão articular-se com aquela, à posteriori e não o seu contrário: “2 - Nos casos não cobertos pela legislação a que se refere o número anterior, o tribunal pode atribuir ao lesado, a requerimento deste e até ao limite do dano causado, os objectos declarados perdidos ou o produto da sua venda, ou o preço ou o valor correspondentes a vantagens provenientes do crime, pagos ao Estado ou transferidos a seu favor por força dos artigos 109.º e 110.º.”. 8.6. Acresce que, a declaração de perda de vantagens, enquanto mecanismo destinado a demonstrar que o “crime não compensa”, não pode ficar dependente da vontade do lesado, designadamente da sua intenção de deduzir ou não pedido de indemnização cível, sujeita a uma hipotética acção civil posterior, pois a decisão final é o momento ideal para transmitir essa mensagem, sob pena de se defraudar as expectativas da comunidade que espera uma resposta firme face ao comportamento do infractor – assim se desencadeando o efeito preventivo máximo. Saliente-se que, não existe qualquer instrumentalização do direito de propriedade privada do lesado a favor do Estado, como tem defendido a posição que não aceita a cumulação da declaração de perda de vantagens com a atribuição de indemnização, com fundamento no facto de que não pode o Estado, no âmbito da sua pretensão punitiva e na prossecução da sua política criminal, sobrepor-se à vontade do lesado. De facto, em face do que se deixa exposto, torna-se incompreensível para a comunidade que se deixe nas mãos do lesado a escolha de determinar se “o crime compensa” ou não. E, isso seria o que aconteceria, caso se aceitasse a interpretação de que a perda de vantagens deve comprimir-se quando, em presença do instituto concorrente do pedido de indemnização civil pelo lesado, e deve expandir-se quando este se desinteressa do seu património, perdido para o agente do crime, para que não se traduza numa dupla penalização para o agente. Segundo os autores desse estudo “(…) A obrigação de confisco é geral, sobrepondo-se à vontade egoística de qualquer indivíduo, mas salvaguarda, igualmente, os seus direitos, nomeadamente através da adjudicação dos bens declarados perdidos ou do produto da sua venda às vítimas.”, em “O Confisco das Vantagens e a Pretensão Patrimonial da Autoridade Tributária e Aduaneira nos Crimes Tributários (Anotação ao Acórdão do TRP de 23/11/2016, Processo n.º 905/15.4IDPRT.P1)”, cit., pág. 15. Ao contrário do que é defendido por quem entende não ser de decretar a perda de vantagens, quando já integram a indemnização judicialmente pedida e arbitrada – o valor da vantagem patrimonial e do pedido de indemnização civil nem sempre é idêntico – restringir o confisco ao montante dos danos causados e peticionados no pedido de indemnização civil, será insuficiente para colocar o agente na situação patrimonial em que se encontrava antes da prática do faco ilícito típico. Destarte, o direito à indemnização, mesmo quando já se mostra judicialmente estabelecido, é livremente renunciável e negociável, o mesmo não acontecendo com as medidas de carácter sancionatório, ou seja, mesmo havendo condenação no pedido de indemnização pode sempre o beneficiário desta vir a prescindir da mesma ou permanecer inactivo com vista à sua cobrança e, nesse caso, inexistindo declaração de perda da vantagem a favor do Estado e condenação do arguido nesse pagamento, ficariam frustradas as finalidades preventivas do instituto. 8.7. Por outro lado, também não se poderá colher o argumento – hoje desactualizado – de que o art.º 130.º, n.º 2, do CP, não remetia expressamente para o art.º 111.º, do CP, como passou a ocorrer, na sequência da alteração legislativa operada com a Lei n.º 30/2017, de 30/05, pois aquela omissão não importava, necessariamente, a impossibilidade de adjudicar ao lesado os bens declarados perdidos a favor do Estado ou o produto da sua venda, já que a própria norma referia que podia ser entregue ao lesado o preço (isto é, a recompensa) ou o valor correspondente às vantagens provenientes do crime sugerindo, claramente, que também elas estavam incluídas. Assim, o elemento histórico confirma esta tese decorrente da mera análise gramatical. “(…) A vontade do legislador, embora porventura mal expressa, nunca foi excluir esta possibilidade, porque, se assim fosse, teria que a eliminar em ambos os casos (na referência expressa e na remissão para a norma legal).” e, não viria, agora, com a alteração ocorrida pela Lei n.º 30/2017, de 30/05, a prever, expressamente, essa remissão – ob. cit., pág. 18. E, podendo o Estado utilizar os instrumentos e os produtos declarados perdidos para compensar o lesado, mal se compreenderia que não pudesse utilizar as vantagens, por vezes de valor muito superior, para o mesmo fim. Como referem aqueles Autores, esta solução decorre igualmente do elemento teleológico, pois a configuração da perda de vantagens como mecanismo de restituição do agente à situação patrimonial que tinha antes da prática do facto ilícito aconselha o mesmo tratamento legal. Em conclusão, “(…) o elemento gramatical, o elemento histórico e o elemento teleológico impõem que as vantagens apropriadas em espécie ou substituídas pelo pagamento ao Estado do respetivo valor, no âmbito do artigo 111.º do Código Penal, sejam suscetíveis de atribuição ao lesado: da correta interpretação da lei, segundo os cânones do artigo 9.º do Código Civil, resulta uma solução diversa da preconizada pelo douto acórdão. Acresce que (ainda que tal não decorresse da mera letra, da história e do espírito da lei) nada impediria o juiz de atribuir tais montantes ao lesado. O artigo 130.º, n.º 2, do Código Penal regula as relações entre o Estado e o ofendido não tendo qualquer carácter sancionatório, pelo que não está sujeito ao espartilho do princípio da legalidade (art. 29.º da CRP e art. 1.º do CP). Nada proibirá, aqui, o juiz de preencher a alegada lacuna (que, afinal, como vimos não existe) entregando aqueles bens ou o seu valor ao lesado.” – ob. cit., págs. 18 e 19. 8.8. Por outro lado, o panorama internacional reforça a ideia de que inexistem limites formais à declaração de perda de vantagens quando existam pretensões indemnizatórias dos lesados. A este respeito, impõe-se uma referência à generalidade das Convenções internacionais (que Portugal subscreveu e se comprometeu a observar) e que apontam no sentido de considerar prioritária a restituição dos bens declarados perdidos aos seus anteriores legítimos proprietários ou a indemnização das vítimas do crime, sugerindo a inexistência de qualquer incompatibilidade na coexistência do instituto da perda com as pretensões indemnizatórias. A título exemplificativo refira-se os seguintes preceitos convencionais: i) o art.º 8.º, n.º 4, da Convenção Internacional para a Eliminação do Financiamento do Terrorismo de 09/12/1999; ii) o art.º 14.º, n.º 2, da Convenção Contra a Criminalidade Organizada Transnacional de 15/11/2000; iii) o art.º 57.º, n.º 3, al. c), da Convenção Contra a Corrupção de 31/10/2003; iv) o art.º 25.º, n.º 2, da Convenção do Conselho da Europa Relativa ao Branqueamento, Detecção, Apreensão e Perda dos Produtos do Crime e ao Financiamento do Terrorismo de 16/05/2005. Em qualquer caso, o confisco é independente do pedido de indemnização cível e tem sempre lugar por forma a colocar o agente na situação patrimonial anterior à prática do facto ilícito, mesmo que a vítima nada faça, sem prejuízo de privilegiar a indemnização dos lesados com os bens confiscados, protegendo também os seus interesses. De igual modo, na União Europeia, a Directiva 2014/42/UE veio prescrever, expressamente, que os Estados-Membros devem tomar as medidas necessárias para assegurar que os mecanismos de perda não impeçam que as vítimas reclamem uma indemnização, cf. art.º 8.º, n.º 10, consignando no ponto 29) dos Considerandos que “(…) no âmbito de uma ação penal, os bens podem também ser congelados com vista a uma eventual restituição subsequente ou no intuito de salvaguardar a indemnização pelos danos causados por uma infracção penal”. Donde se conclui que o pedido de indemnização civil não é uma espécie de questão prejudicial, que impeça o confisco prévio dos instrumentos, produtos e vantagens decorrentes da prática do crime – vd. JOÃO CONDE CORREIA e HÉLIO RIGOR RODRIGUES, em “Anotação ao Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 01/12/2014, proferido no processo 218/11.0GACBC.G1”, p. 9 –, ou vice-versa, já que o instituto da perda de vantagens do crime não afasta, contudo, a responsabilidade civil dos agentes do crime – cf. o já citado Ac. STJ de 11/01/2018, Proc. n.º 68/13.0TAMTL.E1.S1, em www.dgsi.pt. 8.9. Também se sufraga a posição de que a existência de um segundo título executivo não prejudica a posição do lesado – razão apontada por quem defende a impossibilidade de decretamento da perda de vantagem quando o lesado disponha de um meio alternativo para obter o ressarcimento do seu crédito – antes reforça tal posição, pois o credor passa a dispor de dois títulos executivos que pode usar, alternativamente, e que tem âmbitos subjectivos distintos, o que não significa que possa executar duas vezes a mesma quantia. Na verdade, nada na lei impede que um credor possua mais do que um título executivo que poderá ser uma sentença, um reconhecimento de dívida, um título de crédito, ou qualquer outro documento com força executiva, nos termos do disposto no art.º 703.º, do CPC. Com efeito, no caso de um crime fiscal, pode a Autoridade Tributária utilizar uma certidão de dívida para instaurar um processo de execução fiscal – art.ºs 88.º, n.º 5 e 162.º do CPPT – e, ao mesmo tempo, obter, através do pedido de indemnização cível, uma sentença penal condenatória que sirva igualmente de título executivo – art.º 535.º, n.º 2, al. c), do CPC –, cabendo-lhe depois escolher qual dos títulos pretende utilizar e, em que circunstâncias, se para procedimento de natureza voluntária ou coerciva. O valor declarativo da sentença ou de outro título não deve ser confundido com a possibilidade da sua execução futura. Caberá, depois, ao próprio credor fazer a gestão dos seus títulos executivos para ser ressarcido, não competindo ao juiz decidir se uma nova acção declarativa o prejudicará. “(…) Desde que não seja ilegal, o juiz não pode, de forma paternalística, indeferir o pedido do autor, a pretexto de evitar um hipotético prejuízo, decorrente do deferimento da sua pretensão. Esse juízo só à parte concerne. Ela é que sabe se vai ou não ser prejudicada. (…) Justificar a rejeição da perda com a necessidade de evitar a proliferação de títulos executivos [art. 535.º, n.º 2, alª c), do CPC] subverte a política criminal definida pelo legislador, esquece as singularidades destes títulos e que esse problema é resolvido a montante, em sede de execução. O exequente não pode cobrar duas vezes a mesma quantia e, se o tentar fazer, deverá ser processualmente responsabilizado e o seu pedido indeferido.” – neste sentido, vd. JOÃO CONDE CORREIA e HÉLIO RIGOR RODRIGUES, “Anotação ao Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 01/12/2014, Processo 218/11.0GACBC.G1”, págs. 21, 24. A possibilidade de duas vias de cobrança, uma com base na sentença que condenou o agente no pagamento do pedido cível e outra com base noutro título executivo de diferente espécie, por exemplo, uma certidão de dívida emitida pela Administração Tributária ou pela Segurança Social, não significa que possa haver um duplo recebimento, o que constituiria um enriquecimento sem causa, uma vez que, o decidido numa acção, nunca poderá constituir fundamento de oposição na outra, devendo requerer-se a extinção da dívida pelo pagamento. Em proximidade com a questão equacionada, o Acórdão de Uniformização de Jurisprudência n.º 1/2013, de 15/11/2012, Proc. n.º 1187/09.2TDLSB.L2-A.S1, publicado no DR, I Série, de 07/01/2013, admitiu a pretensão do Instituto da Segurança Social, IP, de deduzir pedido de indemnização cível, no âmbito do processo penal, em acumulação com processo de execução fiscal que já se encontrava pendente, colocando fim à divergência doutrinal e jurisprudencial existente à data, fixando a seguinte jurisprudência “Em processo penal decorrente de crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, p. e p. no artº 107º nº 1, do R.G.I.T., é admissível, de harmonia com o art. 71.º, do C.P.P., a dedução de pedido de indemnização civil tendo por objecto o montante das contribuições legalmente devidas por trabalhadores e membros dos órgãos sociais das entidades empregadoras, que por estas tenha sido deduzido do valor das remunerações, e não tenha sido entregue, total ou parcialmente, às instituições de segurança social.”. Em síntese, defendeu-se naquele aresto que, ao recorrer aos dois institutos, “(…) Não se pode dizer que o demandante ISS, IP pretende usar o processo declarativo para definir um direito que já se encontrava estabelecido em termos idênticos num título com manifesta força executiva, como o que está presente nas execuções nas SPE (…) Ora a boa jurisprudência (v.g. Acórdãos de STJ de 11/12/2008 e de 29/10/2009) sustenta que a indemnização pedida nos processos crime por abuso de confiança contra a segurança social não se destina como vimos a liquidar uma obrigação tributária para com a segurança social, sendo antes fixada segundo critérios da lei civil, apesar de os factos geradores da obrigação de indemnizar e da obrigação tributária poderem ser parcialmente coincidentes não podendo naturalmente ser confundidos os seus fins e regimes.”. Tal significa que a responsabilidade pela prática de crime, consequência civil emergente da prática de ilícito criminal, é distinta da responsabilidade tributária que emerge da falta de pagamento de imposto, daí que a esta se aplique a Lei Geral Tributária e àquela a Lei Civil, mesmo que o resultado da prática do ilícito criminal cause dano à Administração Tributária ou à Segurança Social, entidades que dispõem de mecanismos alternativos de cobrança do seu crédito, “(…) a responsabilidade civil emergente do crime corresponde, em regra, ao imposto evadido e respectivos juros moratórios, mas materialmente são institutos diversos e de tal modo o são que (…) podem ser condenados a indemnizar civilmente agentes do crime que não sejam os devedores do imposto evadido.”, GERMANO MARQUES DA SILVA, em “Direito Penal Tributário”, cit., pág.141. Ora, mutatis mutandis, tal como se admitiu a cumulação de pedido de indemnização civil e de processo de execução fiscal no AUJ n.º 1/2013 n.º 1/2013, deverá, também, ser de admitir a cumulação entre o pedido de indemnização civil e a declaração de perda de vantagens. 8.10. A perda de vantagens distingue-se do imposto e das cotizações em dívida, bem como, da indemnização por perdas e danos emergentes de crime e não fica dependente do êxito da cobrança tributária ou da dedução do pedido civil, sendo que o ressarcimento das quantias em dívida cuja génese é o incumprimento da prestação tributária apenas terá lugar uma vez. Nunca poderá existir dupla execução, sob pena de subverter as finalidades pretendidas com a declaração de perda de vantagens, pois tornar-se-ia um mecanismo de redução do seu património lícito, ao invés de repor a situação patrimonial que detinha antes da prática do facto ilícito. Assim, não colhe o argumento de que não se justifica nem tem fundamento o recurso à declaração de perda de bens a favor do Estado, com um objecto coincidente com o da dedução do pedido de indemnização e de que a lesada expressamente prescindiu, quando o ofendido possa ser restabelecido do seu direito de forma mais eficaz ou menos onerosa ou mais vantajosa ou por outras vias legais, por ter recorrido a outros meios que lhe dão as mesmas prerrogativas que obteria com a dedução do pedido cível. Da mesma forma que não se vislumbra a razão pela qual se considera que as finalidades preventivas que estão na génese daquele mecanismo ablativo só ficam asseguradas nos casos em que o titular do interesse penalmente tutelado se desinteressa pela obrigação de indemnização civil por tal facto ilícito. Desde logo, porque, como explicam JOÃO CONDE CORREIA e HÉLIO RODRIGUES, nem sempre são suficientes o pedido de indemnização cível ou a execução fiscal. Exemplificando com o caso da cobrança de imposto devido, concluem que, nas situações em que a Administração Fiscal não pode cobrar o imposto, porque este deixou de ser exigível no âmbito da responsabilidade tributária (v.g., por decurso de prazos de caducidade) e não sendo pacífico que possa obter tais montantes através do pedido de indemnização cível, resta, apenas, a declaração de perda de vantagens a favor do Estado para assegurar o restabelecimento da ordem patrimonial dos bens correspondente ao direito. Acresce que a responsabilidade tributária assenta na responsabilidade do devedor directo ou originário – art.º 18.º, n.º 3, da Lei Geral Tributária (LGT) –, os outros sujeitos passivos (administradores e gestores) são responsáveis apenas a título subsidiário – art.º 24.º da Lei Geral Tributária –, através do mecanismo da reversão – art.ºs. 9.º, n.º 3 e 153.º, n.º 2, ambos do CPPT – no âmbito do processo de execução fiscal e, apenas, nos casos de inexistência de bens penhoráveis ou insuficiência de bens do devedor directo – vd. art.º 23.º, n.º 2, da LGT –, o que pode levar à inaptidão do processo de execução para assegurar as finalidades pretendidas com a perda de vantagens. Bastará, pois, que as vantagens não estejam no património desse sujeito passivo directo, uma vez que não existe reversão contra terceiros adquirentes dos bens, independentemente de boa-fé, com excepção do caso raro em que a dívida tem direito de sequela – art.º 157.º do CPPT. Por isso, também não colhe o argumento de que o Ministério Público deverá abster-se de requerer o decretamento da perda de vantagem quando receba indicação para não deduzir pedido de indemnização civil em representação do Estado. Sendo a perda de vantagens, não obstante a controvérsia quanto à sua natureza jurídica, uma providência que ainda integra o conceito de «acção penal», insere-se no domínio das competências do Ministério Público. Os imperativos constitucionais que legitimam a sua intervenção no exercício da acção penal – art.º 219.º, da CRP – afastam qualquer discricionariedade na promoção daquele instituto, pois actua por direito próprio, exercendo o ius punendi estadual, no interesse supra individual da comunidade e não em representação de uma vítima. “(…) É indispensável que o Ministério Público comprometa o Tribunal com a necessidade de se pronunciar quanto à perda das vantagens na sentença, independentemente da possibilidade ou da probabilidade de dedução do respetivo pedido de indemnização civil pelo lesado. Sem esse estímulo do Ministério Público, a probabilidade do condenado não ser, por qualquer via, privado do benefício patrimonial obtido com a prática do facto ilícito típico, é intoleravelmente elevada, permitindo-lhe afirmar com propriedade que «o crime compensou». Tanto mais que, neste momento prévio, o Ministério Público nada sabe sobre a real intenção do lesado deduzir ou não um pedido de indemnização civil.” – vd. JOÃO CONDE CORREIA e HÉLIO RIGOR RODRIGUES, “Anotação ao Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 01/12/2014, Processo 218/11.0GACBC.G1”, cit., pág. 15. Aliás, a redacção do art.º 111.º, n.º 2, do CP é assertiva e não permite leituras ambíguas, referindo de forma imperativa: “São também perdidos a favor do Estado”. Esta redacção atesta, inequivocamente, que toda e qualquer vantagem patrimonial obtida por meio de prática de facto ilícito típico, possa e deva ser declarada perdida a favor do Estado. A lei não criou qualquer ressalva ou exigiu como requisito do instituto, a dedução de pedido de indemnização civil ou a falta dele, ou a existência de um título executivo prévio, como pressupostos negativos. De resto, quando conjugada com o citado art.º 130.º, n.º 2, do CP, permite facilmente constatar o modo como o legislador separou o confisco do pedido de indemnização civil. 8.11. Igualmente, também não procede o argumento da reserva prevista no art.º 110.º, n.º 6 do CP, (anterior art.º 111.º, n.º 2, do CP), em benefício dos direitos do ofendido, pois não se prevê qualquer derrogação legal das medidas de perda de vantagens. Tal normativo, apenas, significa que, concorrendo a execução do pedido de indemnização civil com a do valor da perda de vantagens, prevalecerá a primeira. Ou seja, remete para uma fase de tramitação posterior, a executiva, em que já estão atribuídos e delimitados os valores da indemnização do ofendido ou de terceiro, e o valor das vantagens, que poderão não coincidir. Donde sai reforçada, mais uma vez, a conclusão de que, “(…) o pedido de declaração de perda de vantagens não depende de qualquer pedido de indemnização, do qual é autónomo/independente, o que não significa que, caso esse pedido exista, deva ser ignorado.(…) Com efeito, no caso da perda de produtos e vantagens estão sempre ressalvados os direitos do ofendido, nos termos do n.º 6 do artigo 110.º do Código Penal (cf. também artigo 8.º, n.º 10 da Directiva 2014/42/EU).”. Neste sentido, MARIA DO CARMO SILVA DIAS, “«Perda alargada» prevista na Directiva 2014/42/EU (artigo 5.º) e «Perda do Valor de Vantagem de Actividade criminosa» prevista na Lei n.º 5/2002 (artigos 7.º a 12.º)”, em O Novo Regime de Recuperação de Activos à Luz da Diretiva 2014/42/EU e da Lei que a Transpôs, cit., págs. 94-97, citada no já indicado Ac. do STJ, de 29/04/2020, Proc. n.º 928/08.0TAVNF.G1.S1. Em face de todo o exposto, entende-se que, também, não existe qualquer instrumentalização do condenado ao interesse geral ou à mera estabilização de ansiedades colectivas de segurança, sem justificação ou utilidade, como alguma jurisprudência tem defendido. É o caso dos Acs. da Relação do Porto, de 10/07/2019, Proc. n.º 4929/17.9T9PRT.P1; e de 30/04/2019, Proc. 1325/17.1T9PRD.P1, donde se destaca, pela singularidade, a seguinte fundamentação: “(…) Assim, julgamos que do art. 111º do C.P decorre a impossibilidade de se declararem perdidas a favor do Estado as quantias equivalentes às prestações não entregues à Segurança Social e, por maioria de razão, aquelas relativamente às quais tenha havido condenação no pedido de indemnização civil, fundamentalmente por duas razões: uma, assente na letra do preceito e outra, na inutilidade dessa declaração. Quanto à primeira razão, (…) a expressão “sem prejuízo dos direitos do ofendido ou de terceiro quer dizer (segundo pensamos) que os direitos do ofendido ou de terceiro não podem eles mesmos ser declarados perdidos a favor do Estado (…) Daí que se o direito de crédito da Segurança Social não pode ser declarado perdido a favor do Estado, também não pode ser declarado perdido a favor do Estado o dever de cumprir essa obrigação. (…) Se estamos perante dois direitos de crédito cujo titular é o ofendido, parece que não pode o Tribunal declarar perdida a favor do Estado a obrigação/correspectivo jurídico desses direitos, com fundamento num artigo que manda precisamente salvaguardar os “direitos do ofendido ou de terceiro”. (…) Ora, é precisamente a clara e manifesta desnecessidade da perda de vantagens relativamente a uma obrigação que o arguido/condenado tem de prestar e para a qual já existem, no caso concreto, dois títulos executivos que evidencia não estar na finalidade do preceito (art. 111º) a intenção de se obter mais um (eventualmente inútil) terceiro título executivo. Em termos de pura retribuição (reacção penal constrangedora), o agente tem de pagar a contribuição devida, porque a Segurança Social tem um título executivo; e tem ainda de pagar essa quantia, acrescida de juros de mora, por força da sentença que o condenou no pedido cível; ou seja, o agente já sente (duplamente) que o crime não compensa. Em termos de justiça estritamente comutativa, o agente vê-se condenado a pagar um montante equivalente ao benefício obtido e, pelas razões expostas, não vê o seu património enriquecido; na verdade, se por um lado não entregou as quantias devidas, por outro, tem uma dívida de igual montante, acrescida dos juros de mora. Em termos de plena reintegração do agente na situação em que se encontrava, antes da prática do crime, nada mais é necessário, pois o mesmo é obrigado, através de dois títulos, a pagar a quantia de que se apropriou, acrescida de juros de mora vencidos, até integral pagamento (no caso de condenação civil).” – em www.dgsi.pt. Embora cientes dos argumentos aduzidos a este respeito, designadamente de que o regime jurídico previsto no art.º 111.º, do CP, não justifica que sejam declaradas perdidas a favor do Estado vantagens que efectivamente não existiram, nem justifica declarações de perda de vantagens meramente intimidatórias e sem qualquer utilidade prática, já se demonstrou a utilidade da declaração de perda de vantagens, bem como da existência de mais de um título executivo. A perda de vantagens é um mecanismo subsidiário, podendo apenas ser utilizado para o montante que exceder o valor da indemnização do ofendido, quando este solicite o seu pagamento e o mesmo tenha lugar, operando plenamente nos demais casos. Assim, não existe qualquer violação dos princípios da necessidade, proporcionalidade e adequação da aplicação das sanções, como é comummente defendido pela posição que não admite a compatibilidade entre a perda de vantagens e o pedido de indemnização civil. Por outro lado, também não se assiste ao efeito desta medida apenas com a verificação dos pressupostos formais – a declaração de perda de vantagens não é automática – tem de ser requerida pelo Ministério Público, no exercício da acção penal, em conformidade com o sistema sancionatório penal que é orientado pelos princípios constitucionais da fragmentaridade e do mínimo de intervenção do direito penal. Em conclusão, o Estado deverá proceder ao confisco, sem constrangimento e independentemente da dedução de pedido de indemnização cível, quando os bens não possam ser restituídos ao lesado. Se houver pedido de indemnização cível deduzido, o Tribunal poderá atribuir ao lesado, a requerimento deste, até ao limite do dano causado, as vantagens declaradas perdidas – art.ºs. 110.º, 111.º, e 130.º, n.º 2, do CP. No entanto, se o lesado puder beneficiar do regime de reparação oficiosa da vítima – art.º 82.º-A, do CPP – ou tiver deduzido pedido de indemnização cível ou puder deduzi-lo em separado, nos termos do art.º 72.º, do CPP, sempre poderá requerer ao Estado a atribuição dos bens perdidos ou o produto da sua venda, por força do disposto no art.º 130.º, nº 2, do CP. Caso os bens possam ser restituídos ao lesado – art.º 186.º, n.º 1, do CPP – e, com isso, o agente for colocado na situação patrimonial em que estaria antes da ocorrência do facto ilícito, nada mais haverá a fazer. Se a vantagem for de valor superior ao prejuízo causado ao lesado, deverá o Estado confiscar o seu excesso. A coexistência entre a perda de vantagens e a pretensão indemnizatória é, pois perfeitamente admissível. Tal não significa que o arguido possa vir a ser executado por ambos os títulos, mas nada impede que o ofendido/lesado os utilize alternativamente, pois têm âmbitos subjectivos distintos, não estando a sentença que condena no pagamento da indemnização apta a assegurar as finalidades pretendidas com o confisco. Como se disse no recente Ac. do STJ, de 02/06/2022, Proc. n.º 61/21.9GBMTS.S1, em www.dgsi.pt, “O pedido de indemnização não é uma espécie de questão prejudicial que impeça o confisco prévio dos instrumentos, produtos e vantagens decorrentes da prática do crime. Ou seja, a declaração de perda de vantagens é independente do pedido de indemnização civil e do interesse ou não do lesado na reparação do seu prejuízo.”. O art. 130.º do CP, particularmente do seu n.º 2, ao estabelecer que “Nos casos não cobertos pela legislação a que se refere o número anterior, o tribunal pode atribuir ao lesado, a requerimento deste e até ao limite do dano causado, os instrumentos, produtos ou vantagens declarados perdidos a favor do Estado ao abrigo dos artigos 109.º a 111.º, incluindo o valor a estes correspondente ou a receita gerada pela venda dos mesmos”, consagra a preferência da perda de bens sobre o pedido de indemnização, além de salvaguardar o direito dos lesados, que poderiam ver dificultada a execução dos bens do arguido em face da declaração do confisco. Importa demonstrar ao arguido que o crime não compensa e, por outro lado, que se houver bens obtidos através da prática do crime devem ser usados para indemnizar os lesados. Deste modo, nem o Estado está impedido de confiscar os proventos do crime, nem o lesado vê a sua compensação dificultada, nem o arguido pode ser constrangido a pagar duas vezes.”. 9. A importância do confisco num Estado de Direito é insofismável, pois, permite a reconstituição da situação patrimonial existente à data anterior à prática pelo agente do facto ilícito típico, não admitindo que este obtenha vantagens patrimoniais indevidas, actuando, assim, como um mecanismo não só preventivo, mas também como instrumento de profilaxia do enriquecimento ilícito. Constitui, pois, um modo verdadeiramente eficaz de combater a actividade ilícita que visa o lucro. Nestes termos, entende-se que, no regime penal português, o entendimento mais adequado e que maior correspondência tem com as finalidades e natureza jurídicas do instituto da perda “clássica” de vantagens e com a letra da lei é o espelhado no acórdão fundamento, proferido no Processo n.º 282/18.1T9PRD.P1. IV – DECISÃO Acordam os Juízes que constituem o Pleno das Secções Criminais do Supremo Tribunal de Justiça em: a) Fixar a seguinte jurisprudência: “Nos termos do disposto no artigo 111.º, n.ºs 2 e 4, do Código Penal, na redacção dada pela Lei n.º 32/2010, de 02/09, e no artigo 130.º, n.º 2, do Código Penal, na redacção anterior à Lei n.º 30/2017, de 30/05, as vantagens adquiridas pela prática de um facto ilícito típico devem ser declaradas perdidas a favor do Estado, mesmo quando já integram a indemnização civil judicialmente pedida e atribuída ao lesado pelo mesmo facto.”. b) Reenviar o processo ao Tribunal da Relação do Porto para revisão da decisão recorrida, em conformidade com a jurisprudência ora fixada, nos termos do disposto no art.º 445.º, n.º 2, do CPP. c) Sem custas. d) Cumpra-se o art.º 444.º, n.º 1, do CPP. Lisboa, 11 de Abril de 2024 Leonor Furtado, (Relator) Teresa de Almeida Ernesto Carlos dos Reis Vaz Pereira Agostinho Soares Torres António Latas Jorge Gonçalves João António Gonçalves Fernandes Rato Heitor Bernardo Cardoso Vasques Osório Jorge Manuel Almeida dos Reis Bravo Celso José das Neves Manata Antero Luís Helena Isabel Gonçalves Moniz Falcão de Oliveira José Luís Lopes da Mota Maria Teresa Féria Gonçalves de Almeida Ana Maria Barata de Brito (tem voto de acordo com a declaração da Ex.ª Senhora Conselheira Maria do Carmo Silva Dias) Orlando M. J. Gonçalves Maria do Carmo Silva Dias (junto declaração de voto) Pedro B. Ferreira Dias -*- Recurso Fixação de Jurisprudência Processo: 1105/18.7T9PNF.P1-A.S1
Declaração de voto de Maria do Carmo Silva Dias
Conforme resulta, desde logo, do ponto 8 da fundamentação do presente Acórdão de Fixação de Jurisprudência, a oposição de julgados incide sobre dois acórdãos que “decidiram de forma oposta, o requerimento de declaração de perda de vantagens adquiridas pelo agente do crime, a favor do Estado, quando já integravam a indemnização judicialmente pedida e arbitrada ao ofendido pelo ilícito-típico (que não o Estado), nos termos do disposto no art.º 111.º, do CP, na redacção introduzida pela Lei n.º 32/2010 de 02-09.” Ou seja, a jurisprudência a fixar pelo pleno das secções criminais do STJ tem de ter em atenção os termos/limites da questão colocada, que neste caso é (resumidamente) saber se é ou não possível, no mesmo processo penal, declarar a perda de vantagens (adquiridas pelo agente com a prática do facto ilícito típico) requerida pelo Ministério Público, nos termos do art. 111.º, n.º 2 e nº 4, do CP, na redação da Lei n.º 32/2010 de 02.09, independentemente do agente ser também condenado em indemnização civil que tiver sido pedida e for arbitrada ao lesado. E sendo este o objeto a decidir (sobre o qual incidiram soluções jurídicas opostas), é sobre ele que o Pleno das secções criminais deste STJ se deve debruçar, sob pena de extravasar/exceder, de forma inadmissível, a finalidade deste recurso extraordinário. Com efeito, perante soluções jurídicas opostas para a mesma questão direito, em nome da unidade do direito, impõe-se resolver o conflito, fixando jurisprudência com eficácia interna no concreto processo em que o recurso foi interposto e nos processos cuja tramitação tiver sido suspensa nos termos do n.º 2 do artigo 441.º do CPP (conforme art. 445.º, n.º 1, do CPP), mas que terá também eficácia externa, nos termos do art. 445.º, n.º 3, do CPP. Ora, pressuposto da eficácia da decisão que resolve o conflito e, portanto, do seu efeito útil é que a mesma não ultrapasse os limites da oposição de julgados a decidir. O mesmo se passa com a fundamentação/justificação apresentada, sendo considerada relevante a que seja essencial (e não a acessória ou lateral) para a resolução do conflito, que reflete a solução de casos concretos. Assim, a jurisprudência aqui fixada (no seguinte sentido: “Nos termos do disposto no artigo 111.º, n.ºs 2 e 4, do Código Penal, na redacção dada pela Lei n.º 32/2010, de 02/09, e no artigo 130.º, n.º 2, do Código Penal, na redacção anterior à Lei n.º 30/2017, de 30/05, as vantagens adquiridas pela prática de um facto ilícito típico devem ser declaradas perdidas a favor do Estado, mesmo quando já integram a indemnização civil judicialmente pedida e atribuída ao lesado pelo mesmo facto.”) apenas pode ser entendida, nos estritos limites e âmbito da oposição de julgados que era preciso decidir. E é nesse sentido que voto a jurisprudência fixada (e respetiva fundamentação essencial que a suporta), uma vez que entendo que, só assim, pode ter plena eficácia a decisão, como resulta do disposto no art. 445.º do CPP, de acordo com a natureza e finalidade deste recurso excecional, tendo presente que na oposição de julgados em ambos os casos concretos, foi requerida pelo MP a declaração de perda de vantagens, não sendo aplicável o também invocado artigo 130.º do Código Penal. Maria do Carmo Silva Dias |