Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
441/22.2T9STB.S1
Nº Convencional: 3.ª SECÇÃO
Relator: PEDRO BRANQUINHO DIAS
Descritores: RECURSO PER SALTUM
TRÁFICO DE ESTUPEFACIENTES
TRÁFICO DE MENOR GRAVIDADE
MEDIDA CONCRETA DA PENA
CULPA
PREVENÇÃO GERAL
PREVENÇÃO ESPECIAL
IMPROCEDÊNCIA
Data do Acordão: 03/13/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário :

I. Conforme vem sendo entendido pela jurisprudência dominante do Supremo Tribunal de Justiça, o crime de tráfico de menor gravidade p. e p. pelo art. 25.º do DL n.º 15/93, de 22/1, representa, em relação ao tipo fundamental do art. 21.º, do mesmo diploma, um crime privilegiado de tráfico de estupefacientes, em função da menor ilicitude do facto, tendo em conta, nomeadamente, os meios utilizados, a modalidade e as circunstâncias da ação e a qualidade ou a quantidade do produto estupefaciente. Em regra, está associado à atividade do dealer de rua, do pequeno traficante.

II. A menor ilicitude terá, neste contexto, de resultar de uma avaliação global da situação de facto.

III. Da factualidade dada como provada, consta que o arguido durante um período de, pelo menos, 1 ano e 4 meses, mais concretamente de maio de 2021 a outubro de 2022, procedeu à venda a consumidores de cocaína e, por uma vez, também de heroína.Não sendo consumidor, dedicou-se à atividade de venda dessas substâncias com intuito puramente lucrativo, sendo que os mencionados estupefacientes, consideradas drogas duras, são especialmente danosos em matéria de degradação da saúde humana.

IV. Nesta conformidade, nada há, pois, a apontar à subsunção efetuada pelo tribunal a quo no tipo legal fundamental previsto no art. 21.º n.º 1, do citado diploma legal.

V. Também como podemos também constatar, o tribunal da primeira instância fundamentou bem a determinação da medida da pena aplicada, em função da culpa do agente e das exigências de prevenção (art. 71.º n.º 1, do Cód. Penal).

VI. O dolo foi direto e intenso e os sentimentos manifestados no cometimento do crime não abonam a favor do arguido, porque unicamente económicos. Por sua vez, as exigências de prevenção geral são elevadas, atento o número crescente de ocorrência de crimes desta natureza e tendo em conta o bem jurídico tutelado pela incriminação, que é a saúde publica na sua dimensão física e psíquica. No que concerne às necessidades de prevenção especial, as mesmas são também elevadas, dado o arguido já ter antecedentes criminais pela prática de crime da mesma natureza, tendo já até cumprido uma pena de prisão efetiva e, além do mais, não manifestou arrependimento.

VII. Assim, numa moldura abstrata que vai dos 4 aos 12 anos de prisão, uma pena de 5 anos e 8 meses de prisão, abaixo do respetivo ponto médio, não pode, de forma alguma, ser considerada excessiva, sendo, antes, adequada, proporcional e que respeita o limite da culpa.

VIII. Nestes termos, acorda-se em julgar totalmente improcedente o recurso interposto pelo arguido.

Decisão Texto Integral:
Proc. n.º 441/22.2T9STB.S1

Recurso per saltum

Acordam, em Conferência, na 3.ª Secção Criminal, do Supremo Tribunal de Justiça

I. Relatório

1. Por acórdão do Juízo Central Criminal de Setúbal -J1, de 27/11/2023, foi o arguido AA, com os sinais dos autos, condenado pela prática, no período compreendido entre maio de 2021 e 27 de outubro de 2022, de um crime de tráfico de estupefacientes previsto e punido pelo art. 21.º n.º 1, do Decreto-lei 15/93, de 22 de janeiro, na pena de 5 (cinco) anos e 8 (oito) meses de prisão.

2. Inconformado, interpôs o referido arguido, em eze/12/2023, recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, concluindo a sua Motivação nos seguintes termos, que passamos a transcrever:

1.ª Ora, entendeu o Tribunal a quo condenar o arguido recorrente na pena 5 (cinco) anos e 8 (oito) meses de prisão, pela prática de um crime de crime de tráfico de estupefacientes, p. e p. pelo artigo 21º, n.º1 do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de janeiro, porquanto resultou demonstrado nos autos que o arguido no período desde maio de 2021 até ao dia 27 de outubro de 2022, dedicou-se à venda de estupefacientes, mormente cocaína e heroína, mediante contacto telefónico, aos consumidores que o procuraram para esse efeito.

2.ª Sucede que, o arguido jamais se conformará com o entendido e decidido pelo Tribunal a quo, estando em crer que este Acórdão recorrido carece da superior correção de Vossas Excelências, Colendos Senhores Juízes Conselheiros, porquanto:

1º Enquadrou, com erro, os factos imputados dentro da letra do artigo 21º do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de janeiro, considerando, assim, preenchido o tipo criminal do crime de tráfico de estupefacientes na sua modalidade comum;

e,

2º Alcançou um juízo final sancionatório, manifestamente desproporcional e excessivo, ultrapassando, claramente, a medida da culpa.

3.ª Assim, entendeu o Tribunal a quo que, tendo em conta, o período durante o qual o arguido se dedicou à venda de produtos estupefacientes – pouco mais de um ano (maio de 2021 até outubro de 2022) – bem como a espécie de estupefaciente transacionado – cocaína e heroína – a conduta sub juris jamais poderá beneficiar deste enquadramento jurídico mais vantajoso e assim, ser condenado pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes de menor gravidade, por não estarmos perante um conduta que acarreta uma ilicitude consideravelmente diminuída.

4.ª Neste conspecto, parece-nos, salvo todo o devido respeito, que a integração ou não da conduta do arguido à luz do artigo 25º do Decreto-lei n.º 15/93, de 22 de janeiro, contrariamente àquilo que parece-nos entender o Tribunal a quo, deverá assentar, afinal, numa ponderação e avaliação global da situação de facto, de forma a apurar-se se, concretamente, aquela determinada conduta criminosa apresenta, no seu todo, uma ilicitude consideravelmente diminuta necessária a enquadrar os factos como um crime de tráfico de menor gravidade e não analisar, isoladamente, cada pormenor daquela atividade, recusando, sempre, o preenchimento de um crime de tráfico de estupefacientes de menor gravidade, quando estejam em causa, as chamadas drogas duras e/ou o período de atividade ultrapasse em pouca medida um ano.

5.ª Veja-se a este respeito, exemplarmente, os Acórdãos proferidos por este Altíssimo Tribunal de Justiça, processo n.º 07P149d e 29/03/2007, processo n.º 07P4723, de 30-04-2008 e processo n.º 1/19.5PBPTM.S1, de 08/04/2021.

6.ª Assim, o enquadramento de determinados atos de tráfico dentro da letra do artigo 25º do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de janeiro, adjetivando-os como tráfico de menor gravidade, depende da realização de uma ponderação global da situação de facto onde se apure a existência de uma ilicitude consideravelmente diminuída, sendo que, o peso pejorativo de qualquer circunstância não faz recusar a sua aplicabilidade, tal como o seu preenchimento benéfico não suporta automaticamente a sua inserção num crime de menor gravidade.

7.ª Com efeito, parece-nos que, apesar da atividade imputada ao arguido ter sido desenvolvida por mais de um ano e os estupefacientes envolvidos configurarem as chamadas drogas duras – o que jamais se negará – tudo o demais leva-nos a defender, na globalidade, uma ilicitude consideravelmente diminuída, fazendo subsumir aqueles factos no artigo 25º do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de janeiro.

8.ª Pelo que, tendo em conta, o entendimento perfilhado por este Colendo Supremo Tribunal de Justiça a respeito da aplicação de tal normativo, o qual ficou superiormente expresso no Acórdão proferido a 23 de Novembro de 2011 e que tem vindo a ser um ponto partida e de referência na definição dos critérios orientadores no exercício de ponderação global da situação de facto, parece-nos assumir-se como relevante proceder à contraposição entre a conduta que foi imputada ao arguido ora recorrente e os diversos critérios de aplicação do artigo 25º do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, que foram desenvolvidos pela Doutrina e pela Jurisprudência do Colendo Supremo Tribunal de Justiça crendo, o Tribunal a quo errou na qualificação jurídica dos factos atinentes à atividade de tráfico levada a cabo pelo arguido, tendo-lhe atribuído uma conotação substancialmente mais elevada e altamente prejudicial.

9.ª Assim, é verdade que a atividade de tráfico desenvolveu-se ao longo de 17 (dezassete) meses, sendo obviamente um período que ultrapassa um ano de atividade, contudo, parece-nos, tratar-se, sem dúvidas, de um curto período de tempo: um período que, quer em tese, quer potência, permite ainda não mais do que um reduzido ataque ao bem jurídico protegido, quando comparado com o ataque mínimo e o ataque máximo que, em sede de tráfico de droga, já se verificaram.

10.ª E, portanto, assente em critérios de razoabilidade e numa perspetiva de uma avaliação global de toda a situação de facto envolvida, nomeadamente stock apreendido, lucro, quantidades vendidas e número de consumidores (cerca de 4), parece-nos que o fator tempo, neste nosso caso em discussão, por si só não impõe o afastamento da qualificação da alegada atividade de tráfico como tráfico de menor gravidade.

11.ª Pelo que, estamos em crer, salvo todo o devido respeito que o tempo durante o qual a atividade perdurou aliado a todas as demais circunstâncias apuradas e numa avaliação global de facto, não afasta a verificação de uma ilicitude consideravelmente diminuída e, portanto, o enquadramento dos factos imputados na letra do artigo 25º do Decreto-lei n.º 15/93, de 22 de janeiro.

12.ª No que à questão das quantidades transacionadas respeita, tendo em conta que as quantidades a levar em linha de conta são exatamente aquelas que foram transacionadas em cada um dos atos de venda praticados ou participados pelo arguido e não pelo somatório de todo o produto estupefaciente transacionado, verifica-se que o arguido em cada ato concreto de venda, transacionava apenas e tão somente pequenas doses individuais, destinadas ao consumo próprio e imediato daqueles consumidores. O arguido em momento algum, vendeu elevadas doses de produto estupefaciente, colocando-o numa posição de larga disponibilidade de produto estupefaciente e por sua vez direcionando-nos para uma atividade de tráfico mais desenvolvida e lucrativa.

13.ª Como se percebe, o arguido era um traficante muito pequeno, um daqueles que se situam no limite inferior do patamar mais baixo da grande pirâmide do narcotráfico, cujos compradores eram sempre consumidores finais.

14.ª Relativamente às quantidades apreendidas na residência do arguido – 4,992 gramas de cocaína, suficiente para 22 doses individuais - parece-nos que, apenas vem reforçar a diminuta ilicitude do trafico praticado, pois, à semelhança daquilo que vendia, o arguido também apenas dispunha de um stock notoriamente diminuto, suficiente para o fornecimento de pequenas doses e jamais em larga escala.

15.ª Pelo que, observando as quantidades vendidas e o stock apreendido, parece-nos que evidenciam uma ilicitude nitidamente diminuída, a sugerir a integração dos factos num crime de tráfico de menor gravidade.

16.ª Já em relação ao lucro obtido por força do tráfico de estupefacientes, nem o dinheiro apreendido na sua residência, nem tão-pouco o volume de vendas que se fixa nos autos, sugere a colocação do arguido numa posição acima do mero traficante de rua, pelo contrário, tal factualidade parece-nos vir reforçar a colocação do arguido na base da pirâmide do narcotráfico.

17.ª Aliás, o próprio estilo de vida do arguido e do seu agregado familiar, não demonstram qualquer sinal de riqueza ou luxo e, facto é que, a atividade de tráfico de estupefacientes era desenvolvida simultaneamente com a atividade laboral do arguido, levando-nos a defender a obtenção de escassos lucros.

18.ª Depois, como resulta da prova produzida e dos factos descritos, o modus operandi do arguido era absolutamente artesanal nos seus moldes, pois o arguido não dispunha de qualquer suporte logístico com o mínimo de sofisticação ou, mesmo engenho; tudo se passava na rua, sem qualquer controlo contra policial e até sem o uso de qualquer meio de comunicação mais imune à atividade policial que o arcaico contacto pessoal e telefónico, onde o arguido usava apenas e só os meios de deslocação e de comunicação que já tinha afetos à sua vida.

19.ª Para além disso, a sua atividade era, ainda, desenvolvida num âmbito geográfico restrito, circunscrito à cidade de Setúbal, não apresentando assim qualquer amplitude espacial a fazer sobressair a intensidade e grandiosidade do tráfico desenvolvido.

20.ª E mais, é indiscutível que as transações levadas a cabo pelo arguido tiveram como objeto cocaína e/ou heroína, as quais formam o conjunto das chamadas drogas duras, contudo teremos de relembrar as palavras deste Supremo Tribunal, (Ac. de 24.5.2007, CJ-STJ, XV, 2, p.200, Ac. do STJ de 19.10.2000, Proc. n.º 2803/2000, 5ª Secção), onde muito embora a qualidade e quantidade dos estupefacientes seja um elemento relevante para aferir da imagem global dos factos, os mesmos não são decisivos.

21.ª Com efeito, conforme já vimos a esclarecer, somos a advogar, acompanhando a Doutrina e Jurisprudência dominantes e que, como neste nosso caso concreto, se uma determinada atividade de tráfico de estupefacientes apresentar em toda a sua globalidade uma ilicitude consideravelmente diminuída, não é o facto de o produto em causa pertencer ao grupo dos mais tóxicos - como ocorre com a cocaína e heroína - que acentua o nível de ilicitude de tal atividade, em moldes tais que já não nos seja permitido defender tratar-se de tráfico de estupefacientes de menor gravidade.

22.ª Até porque – não podemos deixar de lado - rigorosamente, o legislador português não distinguiu, em sede de ilicitude, as drogas duras das drogas leves, conforme se pode constatar pela inclusão da cannabis, enquanto droga leve, e da cocaína e da heroína, enquanto drogas ditas duras, na mesmíssima previsão legal. E, onde o legislador não distinguiu, não deve o interprete distinguir.

23.ª Pelo que, apesar do produto transacionado enquadrar-se no leque das chamadas drogas duras a verdade é que as quantidades transacionadas eram manifestamente diminutas, o que, coadunado com os concretos moldes da atividade desenvolvida, não poderá, per se, subsumir a conduta do arguido na tipificação do artigo 21º do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro.

24.ª Por fim, o arguido não preenche qualquer das previsões constantes do artigo 24º do Decreto-Lei n.º 15/93 de 22 de janeiro, nem tão-pouco se apurou qualquer operação de cultivo, corte e embalagem do produto estupefacientes, porquanto não foi apreendido qualquer utensilio demonstrativo dessas atividades.

25.ª Com efeito, parece-nos que, apesar de ter ficado demonstrado que o arguido se dedicava ao tráfico de substâncias estupefacientes, encontram-se ainda assim preenchidos os oito critérios tendencialmente cumulativos desenvolvidos por este Supremo Tribunal de Justiça por forma a aferir acerca da ilicitude diminuída referida no artigo 25º do Decreto-Lei nº 15/93.

26.ª Parece-nos, então, concluindo que, no caso em apreço estamos, pois, perante factos que, pese embora, ao nível do tipo, preencham os elementos objetivo e subjetivo do crime de tráfico de estupefacientes, espelham, todavia, uma ilicitude nitidamente diminuída face ao tipo base e, portanto, apenas enquadrável na previsão privilegiada do art. 25º do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, ou seja, no crime de Tráfico de Menor Gravidade.

27.ª Por tudo isto, pugnamos pelo acompanhamento de Vossas Excelências ao entendimento aqui apresentado, devendo a conduta do arguido ser enquadrada na previsão legal do artigo 25º do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de janeiro e consequentemente, a pena concretamente aplicada diminuída.

28.ª No entanto, caso Vossas Excelências não acompanhem em nada o nosso entendimento supra apresentado, considerando que os factos imputados e, portanto a atividade de tráfico de estupefacientes desenvolvida pelo arguido qualifica-se ao abrigo do artigo 21º do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de janeiro, como tráfico na sua modalidade base, parece-nos, ainda assim que o Tribunal a quo, salvo todo o devido respeito, no momento da ponderação e determinação da pena concreta aplicável, sobrevalorizou prejudicialmente a conduta do arguido, alcançando a aplicação de uma pena altamente castigadora, punindo, assim, para além da medida da culpa e portanto em violação do disposto no artigo 40º, n.º 2 do Código Penal.

29.ª Assim, ainda que possamos admitir, por mera cautela e dever de patrocínio, que a conduta do arguido configura a prática de um crime de trafico de estupefacientes, p. e p. pelo artigo 21º do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de janeiro, cremos que dentro da moldura penal abstrata daquele ilícito penal, os concretos contornos de facto apurados fazem sobressair uma ilicitude e culpa reforçadamente diminuídas, direcionando-nos para a justeza de uma pena a situar-se naquele intervalo de coincidência das molduras penais abstratas dos artigos 25º e 21º e portanto, a situar-se entre os 4 (quatro) e, no limite 5 (cinco) anos de prisão.

30.ª Ora, revisitando o exercício de avaliação global da situação de facto que conduziu ao Tribunal de Julgamento situar a atividade do arguido na modalidade base da ação, ou seja, no tráfico a que alude o art. 21º do Decreto-Lei n.º 15/23, de 22 de Janeiro, verifica-se, que dentro dos vários critérios a que deve obedecer essa avaliação, nem todos, nem a maioria deles sugere o afastamento do enquadramento pela letra do art. 25º do mesmo Diploma. Doutro modo: a atividade pela qual o arguido foi julgado e condenado tem traços de um tráfico de menor gravidade, com o tempo pelo qual perdurou e a espécie de produto estupefaciente transacionada, a impedirem se a considere dessa forma, deixando-a situada na gravidade do art. 21º.

31.ª Em concreto, parece-nos que concorreriam para consideração como tráfico de menor gravidade o facto do o arguido (i) vender diretamente ao consumidor final; (ii) as quantidades cedidas serem diminutas; (iii) não terem sido empregues quaisquer meios sofisticados; e (iv) não ter sido apreendido um elevado stock de produto estupefacientes; (v) não ter sido apurada a obtenção de avultados lucros. Mas, o tempo pelo qual perdurou a atividade – cerca de 17 (dezassete) meses e a espécie de estupefaciente transacionado, não deixam validada a considerável diminuição da ilicitude.

32.ª Com efeito, havendo parâmetros que nos empurram para o tráfico de menor gravidade, mas encontrando-se a sua aplicação condicionada por força do período de tempo pelo qual perdurou a atividade e tipo de estupefaciente vendido – o que aceitamos – parece-nos ser razoavelmente defensável que a posição onde a pena aplicada deve ser encontrada está precisamente naquele intervalo onde as molduras do artigo 25º e do artigo 21º coincidem, isto é, entre os 4 (quatro) e os 5 (cinco) anos de prisão.

33.ª Salvo melhor opinião, nesse intervalo de coincidência entre as duas molduras penais para diferentes medidas de ilicitude (do ponto mínimo do art. 21º ao máximo do art. 25º, ou seja, dos 4 aos 5 anos) cabem precisamente estas situações onde há um vasto conjunto de fatores a exercer força para a integração pelo art. 25º, mas algum deles força a aplicação do art. 21º.

34.ª Assim, parece-nos, salvo todo o devido respeito, que tendo sido a conduta do arguido enquadrada à luz do artigo 21º, apenas e só por força do tempo durante o qual o arguido desenvolveu aquela atividade criminosa e espécie, deveria a pena ter sido fixada entre o intervalo onde as molduras penais do artigo 21º e artigo 25º coincidem, isto é, entre os 4 a 5 anos de prisão, aproximando-se assim do seu limite mínimo da moldura penal abstratamente aplicável, contrariamente ao punitivamente entendido pelo tribunal recorrido que lhe encontrou a justa medida da pena nos 5 (cinco) anos e 8 (oito) meses de prisão.

35.ª Igualmente, não se poderá descurar que a aproximação do arguido a estilos de vida desviantes – sem nunca olvidar a prejudicialidade desse comportamento – moveu-se pelas sentidas dificuldades económicas que o arguido e a sua família estavam a passar, motivado pela forte dificuldade do arguido conseguir inserir-se profissionalmente.

36.ª Contudo, apesar disso, o arguido adotou sempre uma postura ativa de busca por uma ocupação laboral digna, o que conseguiu, encontrando-se à data da sua detenção a trabalhar na empresa .... Na verdade, o arguido procurou sempre, reorientar-se e reinserir-se, contudo esse foi um caminho atribulado que no final, com todo o esforço do arguido foi bem-sucedido.

37.ª Para além disso, o arguido apresenta um contexto familiar favorável, tem companheira e dois filhos, uma maior de idade e outro menor de idade, pelo que sempre se acreditará, em plena concordância com o Tribunal a quo, que esta realidade servirá de desincentivo à reiteração de práticas criminosas, bem como será um forte apoio de consciencialização do desvalor das suas condutas.

38.ª Relativamente à situação profissional do arguido, e por sua vez do agregado familiar, atualmente a mesma apresenta-se estável mas humilde, encontrando-se o arguido, no momento da sua detenção, empregado a auferir rendimentos lícitos.

39.ª A par de que, salvo melhor opinião e o douto suprimento de Vossas Excelências, na operação de fixação da pena, não pode olvidar-se que o grau de culpa do arguido recorrente, aquando da prática do crime, revela-se manifestamente atenuado e não lhe corresponde diferentes condutas típicas, adotadas em diferentes momento e com motivações e vontades distintas, pelo que, terá de refletir-se uma mitigação do juízo de censura e da culpa, reclamando uma pena mais atenuadas e ponderadas, mais próxima do seu limite mínimo da moldura penal abstrata.

40.ª Por tudo isto que acabámos de expor, vimos perante Vossas Excelências, apelando ao amplamente reconhecido rigor jurídico e sensibilidade humana, reclamar um juízo de censura mais baixo sobre a conduta adotada pelo arguido recorrente, pugnando, respeitosamente, em consequência, pela aplicação de uma pena de prisão a fixar-se naquele campo de coincidência das molduras penais abstratas dos artigo 25º e 21º do Decreto-lei n.º 15/93, de 22 de janeiro, ou seja, entre os 4 (quatro) e 5 (cinco) anos de prisão.

Pelo exposto e ressalvado o doutíssimo suprimento de Vossas Excelências, Colendos Senhores Juízes Conselheiros deste Supremo Tribunal de Justiça, deverá o recurso merecer provimento e, nesse contexto:

i.) Proceder-se à requalificação dos factos imputados, enquadrando-os como tráfico de estupefacientes de menor gravidade, p. e p. pelo artigo 25º do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de janeiro, encontrando-se, pois, nesta moldura penal, a pena a aplicar ao arguido;

Mas, em todo o caso,

iii.) Considerar-se que a pena aplicada em primeira Instância - 5 (cinco) anos e 8 (oito) meses – peca por excesso relativamente à culpa resultante da atuação do arguido, operando-se à sua redução.

Porquanto,

Só assim farão a costumada Justiça!!!

3. Por despacho do Senhor Juiz titular, de 04/01/2024, foi tal recurso admitido, com efeito suspensivo.

4. Em 13/01/2024, o Ministério Público, junto do tribunal recorrido, respondeu ao recurso do arguido, apresentando as seguintes Conclusões (Transcrição):

1ª – Para uma correcta subsunção jurídico-penal dos factos julgados provados no acórdão assumem preponderância decisiva o período temporal assaz significativo durante o qual a conduta delituosa foi desenvolvida (17 meses, apenas cessando com a detenção do Recorrente, seu interrogatório e sujeição à medida de coacção de prisão preventiva), o intuito meramente lucrativo desta (inexistem evidências de que o Recorrente fosse consumidor de estupefacientes e quer ele, quer a sua companheira, exerciam actividade laboral) e a natureza das substâncias estupefacientes vendidas e detidas para venda (essencialmente cocaína – venda e detenção – mas também heroína – venda por uma vez –, ambas incluídas no grupo das usualmente denominadas “drogas duras”);

2ª – Nas sobreditas circunstâncias (e a despeito da falta de sofisticação da actividade de tráfico e da ausência de sinais de venda, a cada interessado, de quantidade de estupefaciente superior à necessária para o respectivo consumo individual), não é possível concluir que a ilicitude da conduta do Recorrente se mostra diminuída nem, muito menos, consideravelmente diminuída por forma a subsumi-la ao crime de tráfico de estupefacientes de menor gravidade p. e p. pelo artº 25º do D.L. nº 15/93 de 22/01;

3ª – Assim, ao condenar o Recorrente pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes p. e p. pelo artº 21º nº 1 do D.L. nº 15/93 de 22/01, o tribunal fez adequada aplicação do direito aos factos dados como assentes;

4ª – São consabidamente fortíssimas as exigências de prevenção geral do crime de tráfico de estupefacientes;

5ª– Mostram-se igualmente muito acentuadas as necessidades de prevenção especial, dada a prévia e recente condenação do Recorrente, pelo cometimento de um crime de tráfico de estupefacientes de menor gravidade, em pena de prisão efectiva – e efectivamente cumprida;

6ª – Ainda assim, o Recorrente foi condenado numa pena de prisão muito aquém do limite superior do primeiro terço da respectiva moldura abstracta, a demonstrar que na sua determinação concreta foram devidamente valoradas todas as circunstâncias susceptíveis de o beneficiar;

7ª – A pena de cinco anos e oito meses de prisão concretamente cominada ao Recorrente pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes p. e p. pelo artº 21º nº 1 do D.L. nº 15/93 de 22/01 deverá ser mantida, por não deixar transparecer violação dos critérios contemplados no artº 71º nºs 1 e 2 do Código Penal, nem desconsideração das finalidades das penas, consagradas no artº 40º nº 1 do mesmo compêndio normativo.

5. Por sua vez, neste Supremo Tribunal, o Senhor Procurador-Geral Adjunto emitiu, em 26/01/2024, douto e esclarecido parecer, sustentando também que o recurso devia ser julgado improcedente, confirmando-se, integralmente, o acórdão recorrido.

Observado o contraditório, nada foi acrescentado.

6. Colhidos os vistos e realizada a Conferência, cumpre apreciar e decidir.

II. Objeto do recurso

Atendendo ao conteúdo das Conclusões apresentadas, que delimitam, conforme é conhecido, o objeto do recurso, sem prejuízo, naturalmente, das questões de conhecimento oficioso, o recorrente entende que a sua conduta deverá ser, antes, subsumida no tipo legal do art. 25.º do DL n.º 15/03, de 22/01, devendo a pena a aplicar ser encontrado na respetiva moldura, mas, em todo o caso, considerar-se que a pena aplicada na primeira instância - 5 anos e 8 meses – seria sempre excessiva, tendo-se em atenção a sua culpa, pelo que deveria ser reduzida.

III. Fundamentação

1. Na parte que ora releva, é do seguinte teor a decisão recorrida (Transcrição):

(…)

II – MATÉRIA DE FACTO

A) Resultaram provados os seguintes factos com relevância para o objeto do processo:

1. O arguido dedicou-se à venda de cocaína aos clientes/consumidores que o procuraram para esse efeito pelo menos, desde maio de 2021 até ao dia 27 de outubro de 2022.

2. Em regra, o arguido era contactado telefonicamente pelos clientes/consumidores para marcarem a hora e local de encontro, tendo aquele disponibilizado para o efeito o n.º ....

3. Para tanto os clientes consumidores utilizavam linguagem dissimulada para se referirem ao produto estupefaciente e ao n.º de doses, designadamente: “5 chaves”, “carne sem gordura”, “uma carne de 30 e outra de 10”, “pilon pilon”, “duas sandes daquelas boas”, “duas daquela que foi menos, sem corte, 3 com 3 60”, “3 de castanha e uma branca, crua, sem corte”, “é uma de cada”, “3 quartas”, “orienta 50€”, “orienta lá 40 paus”, “arranja um ou dois” e “é o mesmo de ontem”.

4. O arguido vendia 0,30 gramas de cocaína pelo preço variável entre 7,00€ a 10,00€, meio grama a 20,00€ e um grama a 40,00€.

5. O arguido deslocava-se dos seus dois veículos automóveis, marca Audi, modelo A3, ..., matrícula ..-OF-.. e outro de marca ..., ... Corolla, cinzento ..., com a matrícula ..-..-JR.

Concretizando:

6. No dia 17 de janeiro de 2022, cerca das 21h42m, no parque de estacionamento em frente às instalações da Junta de freguesia ..., sita no largo BB em ..., o arguido entregou a CC 0,248 gramas de cocaína mediante contrapartida monetária em montante não concretamente apurado.

7. O arguido vendeu cocaína a DD em número não inferior a 5 vezes, desde finais de 2021 até ao dia 09 de fevereiro de 2022, data em que pelas 11h30, junto ao ..., sito em Rua ..., vendeu 0,29 gramas de cocaína por 10,00€, tendo sido o consumidor posteriormente abordado e apreendido o estupefaciente.

8. No período a que se alude em 7, o arguido vendeu a DD pelo menos uma “pedra” de heroína pelo valor de 10,00€.

9. No dia 29 de abril de 2022, cerca das 17H52m, no parque de estacionamento do restaurante ..., sito em ... em setúbal o arguido entregou ao seu cliente consumidor CC quantidade não concretamente apurada de produto estupefaciente, recebendo em troca quantia não concretamente apurada de dinheiro.

10. O arguido vendeu cocaína a EE, desde maio de 2021 até 05 de maio de 2022, data em que pelas 18h00, vendeu 0,274 gramas de cocaína, tendo sido a consumidora posteriormente abordada e apreendido o estupefaciente.

11. O arguido vendeu cocaína a FF, uma vez por semana, desde finais de 2021, até pelo menos 23 de maio de 2022, data em que pelas 17H32m vendeu a este consumidor meio grama de cocaína por 20,00€.

12. No dia 06 de junho de 2022 cerca das 14h30m, o arguido encontrou-se com um dos seus clientes/consumidores nas imediações do parque da ..., que entrou no veículo automóvel daquele com a matrícula ..-..-JR de marca Toyota entregando aí o produto estupefaciente e recebendo, em troca, dinheiro em montante não apurado.

13. No dia 27 de outubro de 2022, na sequência de busca realizada foi apreendido o seguinte ao arguido na sua residência:

a) 4,992 gramas de cocaína, com grau de pureza de 90,1%, suficiente para 22 doses individuais;

b) 28,52€ (vinte e oito euros e cinquenta e dois cêntimos) em notas e moedas que se encontravam dentro de uma bolsa a tiracolo preta;

c) 1 (um) telemóvel marca Nokia, n.º de série ...

d) 1 (um) telemóvel de marca Nokia, n.º de série ...

e) 1 (um) telemóvel de marca Nokia, n.º de série ...

f) 1 (uma) bolsa a tiracolo de cor preta marca Nike;

g) Veículo automóvel marca Audi, modelo A3, de cor ... de matrícula ..-OF-.. e os documentos respetivos

h) Veículo automóvel de marca Toyota, modelo Corolla, cor ..., matrícula ..-..-JR

14. O arguido conhecia as características estupefacientes da cocaína e da heroína que detinha, preparava, guardava e vendia.

15. O arguido agiu sempre de forma livre deliberada e consciente.

16. Sempre soube que a sua conduta era proibida e punida por lei, podia determinar-se em sentido contrário de acordo com essa avaliação que efetivamente fez e, ainda assim, não se absteve de a praticar.

Mais se provou:

17. O arguido é natural de ..., onde viveu até aos 23 anos com os progenitores e 3 irmãos.

18. Por motivos laborais dos pais, o arguido não conviveu com os mesmos tendo conhecido ao pai apenas aos 9 anos.

19. Não concluiu o 3.º ciclo do ensino básico e ainda adolescente estabeleceu relação afetiva com GG.

20. Em 2008 emigrou para ... em ... para junto da tia materna HH em busca de melhores condições de vida, o que não logrou regressando para Portugal para junto do irmão II.

21. A vieram de ... para junto do arguido em ..., tendo nessa altura arrendado apartamento em local onde estabeleceu relações de amizade com pares conotados com a criminalidade.

22. Na sequência de condenação em pena de prisão efetiva pela prática do crime de tráfico foi expulso do território nacional, passando 3 anos em ..., após o que regressou sem autorização a ....

23. À data em que foi detido exercia funções temporárias de manutenção e pintura na empresa ..., sendo a companheira funcionária efetiva no ... em setúbal, auferindo o ordenado mínimo nacional.

24. Fruto do relacionamento com GG o arguido tem uma filha que à data da detenção encontrava-se a concluir o 12-º ano e um filho menor que se encontrava a frequentar o 4.º ano de escolaridade.

Antecedentes criminais

25. Por sentença proferida no dia 05 de junho de 2017, transitada em julgado no dia 01 de março de 2018, no âmbito do processo 109/15.6T9GDL, foi o arguido condenado pela prática no ano de 2015 de um crime de tráfico de estupefacientes previsto e punido pelo artigo 21.º e 25.º alínea a) do Decreto-lei 15/93 de 22 de janeiro na pena de 2 anos e 9 meses de prisão efetiva, declarada extinta pelo cumprimento no dia 21 de outubro de 2019.

26. O arguido foi ainda condenado por decisões datadas de 23 de novembro de 2017 e 21 de junho de 2021, pela prática de dois crimes de condução de veículo em estado de embriaguez em penas de multa.

(…)

III – ENQUADRAMENTO JURÍDICO

Importa efetuar o enquadramento jurídico e aferir se o arguido efetivamente praticou o crime imputado e se deverá pelo mesmo ser condenado.

Está em causa a prática do crime de tráfico de produto estupefaciente, previsto e punido pelo artigo 21.º n.º 1 do Decreto-lei 15/93 de 22 de janeiro que dispõe o seguinte:

Artigo 21.º n.º 1:

“Quem, sem para tal se encontrar autorizado, cultivar, produzir, fabricar, extrair, preparar, oferecer, puser à venda, vender, distribuir, comprar, ceder, ou por qualquer título receber, proporcionar a outrem, transportar, importar, exportar, fizer transitar, ou ilicitamente detiver, fora dos casos previstos no artigo 40.º, plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas I a III é punido com pena de prisão de 4 a 12 anos.”

O bem jurídico tutelado pela norma incriminadora é a saúde pública num sentido amplo. Pretende-se garantir uma convivência sã dos cidadãos e da sociedade, evitando os perigos representados pelo consumo e tráfico de droga. Aos produtos estupefacientes estão normalmente associados, para além da degradação física e psíquica gradual dos seus consumidores, a prática de outro tipo de ilícitos criminais violadores de outros bens jurídicos essenciais, como sejam o património, a integridade física e a vida.

No tipo de crime estão previstas diversas atividades ilícitas, cada uma delas dotada de virtualidade bastante para integrar o elemento objetivo do crime. Tem sido entendimento dominante na nossa jurisprudência que o crime de tráfico de estupefacientes, em qualquer das suas modalidades, é um crime de perigo abstrato ou presumido, pelo que não se exige, para a sua consumação, a existência de um dano real e efetivo - o crime consuma-se com a simples criação de perigo ou risco de dano para o supra referido bem jurídico protegido. Disso são exemplo as expressões legais “cultivar, produzir, fabricar, extrair, preparar, oferecer, puser à venda, vender, distribuir, comprar, ceder, ou por qualquer título receber, proporcionar a outrem, transportar, importar, exportar, fizer transitar, ou ilicitamente detiver”

Nos presentes autos provou-se que o arguido durante um período de, pelo menos, 1 ano e 4 meses, de maio de 2021 a outubro de 2022, o arguido procedeu à venda a consumidores de cocaína e, por uma vez, de heroína, sendo que para isso teve necessariamente de adquirir previamente, armazenar, cortar e separar o produto estupefaciente para depois então proceder à sua venda, integrando os conceitos “preparar, vender, transportar e ilicitamente detiver”. Uma vez que tais substâncias se encontram previstas nas tabelas I-A e I-B, anexas ao Decreto-lei 15/93 de 22 de janeiro, conclui-se que o elemento objetivo do tipo de crime se encontra preenchido.

O elemento subjetivo encontra-se igualmente preenchido, uma vez que agiu de forma livre e consciente conhecendo as características estupefacientes dos produtos em causa e sabendo que não os podia adquirir, deter, vender ou ceder a outrem, por a tal não estar autorizado, e que tais condutas eram proibidas e punidas por lei.

Conclui-se que o arguido com a sua conduta preencheu o tipo base no âmbito do crime de tráfico, previsto no artigo 21.º do Decreto-lei 15/93 de 22 de janeiro.

Vejamos agora, se as especificidades deste caso em concreto permitem, subsumir os factos à previsão do crime privilegiado previsto no artigo 25.º do mesmo diploma legal, conforme pretende o arguido:

“Se nos casos dos artigos 21.º e 22.º, a ilicitude do facto se mostrar consideravelmente diminuída, tendo em conta nomeadamente os meios utilizados, a modalidade ou as circunstâncias da ação, a qualidade ou a quantidade das plantas, substâncias ou preparações, a pena é de:

a) Prisão de um a cinco anos, se se tratar de plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas I a III, V e VI.”

É necessário que a ilicitude dos factos se mostre consideravelmente diminuída atendendo a diversos fatores como sejam os meios utilizados, a modalidade ou circunstâncias da ação, a qualidade ou a quantidade das plantas, substâncias ou preparações.

Neste caso em concreto, afigura-se que o arguido não poderá beneficiar deste enquadramento jurídico mais vantajoso. O arguido não sendo consumidor dedicou-se à atividade de venda com intuito puramente lucrativo, fê-lo com estupefaciente considerado especialmente danoso em matéria de degradação humana, como é a cocaína e a heroína e, por fim, fê-lo no que concerne à cocaína em período superior a um ano. Concede-se que por se tratar de venda direta, de pequenas quantidades, utilizando para tanto apenas o telemóvel ou o simples encontro pessoal na rua, sem quaisquer outros meios, se poderá enquadrar a conduta do arguido num quadro de ilicitude diminuída mas, atento o período temporal empreendido superior a um ano, o tipo de estupefaciente especialmente danoso para a saúde humana e a criminalidade conexa que sempre envolve a atividade de tráfico destas substâncias, não poderemos considerar o grau de ilicitude consideravelmente diminuído. A venda direta por período superior a um ano não poderá ser considerada um descuido, desmando ou ato irrefletido do arguido, mas antes o exercício de uma atividade refletida e especialmente danosa. Por outro lado, esta venda direta ao consumidor é o ponto de contacto com a efetiva lesão do bem jurídico saúde humana, um dos visados pela norma incriminadora, e que sofre a lesão no momento em que o estupefaciente adquirido ao arguido é consumido. Neste quadro, a gravidade da conduta do arguido que se predispõe a vender o estupefaciente diretamente ao consumidor, no âmbito do tráfico de estupefacientes, não deverá ser excessivamente desvalorizada. O conceito de “ilicitude consideravelmente diminuída” tem sido algo esbatido, mas se o legislador expressamente o consagrou, importa interpretar o preceito de acordo com o significado semântico. Consideravelmente exponencia o grau de diminuição da ilicitude que não se basta com uma ilicitude diminuída dentro da pirâmide do narcotráfico. Pelas razões expostas não é possível subsumir a conduta do arguido neste conceito, pelo que é de enquadrar a mesma no tipo base do crime de tráfico de estupefacientes.

Termos em que, inexistindo causas de exclusão da ilicitude ou da culpa, deverá o arguido ser condenado pela prática no período compreendido entre maio de 2021 a 27 de outubro de 2022, de um crime de tráfico previsto e punido pelo artigo 21.º n.º 1 do Decreto-lei 15/93 de 22 de janeiro.

*

IV – DA ESCOLHA E DETERMINAÇÃO DA MEDIDA DA PENA

O crime de tráfico, previsto e punido pelo artigo 21.º n.º 1 do Decreto-lei 15/93 de 22 de janeiro é punido com uma pena de prisão de 4 a 12 anos.

Não estando prevista a condenação em pena de multa não há que fazer a ponderação entre pena privativa e não privativa da liberdade prevista no artigo 70.º do Código Penal.

O artigo 71.º n.º 1 do Código Penal, dispõe que a determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção.

Importa ter em consideração as exigências de prevenção geral e especial.

Na prevenção geral utiliza-se a pena para dissuadir a prática de crimes pelos cidadãos - prevenção geral negativa – e para incentivar a convicção na sociedade, de que as normas penais são válidas, eficazes e devem ser cumpridas, servindo assim a pena para aprofundar a consciência dos valores jurídicos por parte dos cidadãos – prevenção geral positiva.

Na prevenção especial, a pena é utilizada no intuito de dissuadir o próprio delinquente de praticar novos crimes e com o fim de auxiliar a sua reintegração na sociedade, podendo variar nesta medida, quer a escolha da pena, quer a execução da mesma, conforme as especificidades de cada condenado.

Verifica-se no caso em apreço que, quanto às exigências de prevenção geral, as mesmas são elevadas, atento o número elevado de verificação de crimes desta natureza e tendo em conta o bem jurídico tutelado pela incriminação. Protege-se a saúde pública na sua dimensão física e psíquica. A violação deste bem jurídico leva a proliferação de outro tipo de condutas criminosas, designadamente contra o património e integridade física, pois os toxicodependentes frequentemente furtam e roubam no intuito de se munirem de meios que lhes possibilitem sustentar o vício. Assim, é normal na comunidade, os cidadãos sentirem insegurança, perante toda e qualquer realidade associada ao mundo da droga e do tráfico. Tal sentimento generalizado reclama elevadas exigências de prevenção geral.

No que concerne às necessidades de prevenção especial, as mesmas são elevadas, pois o arguido tem vários antecedentes criminais pela prática de crime da mesma natureza, carecendo de uma reação forte do sistema de justiça para demover o arguido de continuar a praticar o crime.

Dispõe o artigo 71.º n.º 2 do Código Penal que na determinação concreta da pena, o tribunal atende a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele, considerando nomeadamente:

a) O grau de ilicitude do facto, o modo de execução deste e a gravidade das suas consequências, bem como o grau de violação dos deveres impostos ao agente.

b) A intensidade do dolo ou da negligência

c) Os sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram.

d) As condições pessoais do agente e a sua situação económica.

e) A conduta anterior ao facto e a posterior a este, especialmente quando esta seja destinada a reparar as consequências do crime

f) A falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto, quando essa falta deva ser censurada através da aplicação da pena.

O artigo 40.º limita a pena, estipulando que em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa e que o objetivo de aplicação da pena é a reintegração do agente na sociedade.

Assim, no caso concreto, a ilicitude dentro do tipo de crime em causa é baixa ou simplesmente diminuída, considerando a quantidade de produto estupefaciente apreendido e parcelarmente cedido ou vendido aos consumidores sem qualquer grau de sofisticação.

O dolo foi direto e intenso e os sentimentos manifestados no cometimento do crime não abonam a favor do arguido, porque unicamente económicos.

A situação económica do arguido é modesta mas estável, considerando os rendimentos da companheira, inserida no mercado de trabalho e do próprio arguido que à data da detenção encontrava-se a trabalhar como pintor naval.

O contexto familiar é favorável, pois o arguido tem companheira, filha maior e um filho menor que poderá servir como fonte de incentivo à adoção de condutas conforme ao direito. A conduta anterior aos factos é muito desfavorável, pois o arguido tem antecedentes criminais pela prática de crime da mesma natureza, tendo já cumprido prisão efetiva numa pena de 2 anos e 9 meses de prisão, ainda assim ineficaz para salvaguardar as necessidades de prevenção especial, já que não se absteve de praticar o crime nestes autos.

A conduta posterior é inócua, pois que o arguido ficou privado da liberdade após ser sujeito a primeiro interrogatório judicial de arguido detido.

Assim, apenas a ilicitude pouco elevada, no quadro daquilo que são as práticas abrangidas pelo tipo legal de crime do artigo 21.º, conjugada com a inserção familiar e, recente inserção profissional, permitem ponderar uma pena ainda substancialmente situada abaixo do primeiro terço da moldura penal, desde que forçosamente afastada dos limites mínimos, considerando os antecedentes criminais e a falta de arrependimento. Deverá o arguido ser condenado em pena superior ainda que muito próxima do primeiro quinto da moldura penal deste tipo de crime.

Concretizando, afigura-se justa, porque proporcional à gravidade dos factos e adequada à personalidade do arguido, a aplicação de uma pena de prisão de 5 (cinco) anos e 8 (oito) meses de prisão.

(…)

2. Relativamente à qualificação jurídica dos factos em causa, que o recorrente contesta, defendendo que deveria ter sido condenado pelo crime de tráfico de menor gravidade p. e p. pelo art. 25.º do DL n.º 15/93, de 22/01, atentemos no seguinte:

Consta dos factos dados como provados que o arguido durante um período de, pelo menos, 1 ano e 4 meses, mais concretamente de maio de 2021 a outubro de 2022, procedeu à venda a consumidores de cocaína e, por uma vez, também de heroína.

Não sendo consumidor, dedicou-se à atividade de venda dessas substâncias com intuito puramente lucrativo, sendo que os mencionados estupefacientes, consideradas drogas duras, são especialmente danosos em matéria de degradação da saúde humana.

Ora, a venda direta por período superior a um ano não poderá ser considerada um descuido, desmando ou ato irrefletido do arguido, mas antes o exercício de uma atividade refletida e particularmente perniciosa.

Nesta conformidade, nada, pois, a apontar à subsunção efetuada pelo tribunal a quo no tipo legal fundamental previsto no art. 21.º n.º 1, do citado diploma legal.

Na verdade, conforme vem sendo entendido pela jurisprudência dominante deste Supremo Tribunal1, o crime de tráfico de menor gravidade representa, em relação ao tipo fundamental, um crime privilegiado de tráfico de estupefacientes, em função da menor ilicitude do facto, tendo em conta, nomeadamente, os meios utilizados, a modalidade e as circunstâncias da ação e a qualidade ou a quantidade do produto estupefaciente.

Em regra, está associado à atividade do dealer de rua, do pequeno traficante.

A menor ilicitude terá, neste contexto, de resultar de uma avaliação global da situação de facto.

Ora, na situação sub judice, pelas razões atrás assinaladas, não vemos que, na imagem global da factualidade provada, se possa conceber estarmos em presença de uma menor ilicitude, com aquele significado.

Passando, de seguida, à medida concreta da pena aplicada, que o recorrente acha excessiva, devendo, em seu entender, ser reduzida para 4 ou 5 anos de prisão, também não assiste razão ao recorrente.

Com efeito, como podemos constar, o tribunal da primeira instância fundamentou bem a determinação da medida da pena, em função da culpa e das exigências de prevenção2 - art. 71.º n.º 1, do Cód. Penal.

O dolo foi direto e intenso e os sentimentos manifestados no cometimento do crime não abonam a favor do arguido, porque unicamente económicos.

Por sua vez, as exigências de prevenção geral são elevadas, atento o número crescente de ocorrência de crimes desta natureza e tendo em conta o bem jurídico tutelado pela incriminação, que é a saúde publica na sua dimensão física e psíquica. No que concerne às necessidades de prevenção especial, as mesmas são também elevadas, dado o arguido já ter antecedentes criminais pela prática de crime da mesma natureza, tendo já até cumprido uma pena de prisão efetiva e, além do mais, não manifestou arrependimento.

Assim, numa moldura abstrata que vai dos 4 aos 12 anos de prisão, uma pena de 5 anos e 8 meses de prisão, abaixo do respetivo ponto médio, não pode, de forma alguma, ser considerada excessiva, sendo, antes, adequada, proporcional e que respeita o limite da culpa.

Nesta conformidade, não se vislumbram razões para uma intervenção corretiva por parte do Supremo Tribunal de Justiça.

Improcede, deste modo, in totum, o recurso do arguido.

V. Decisão

Em face do exposto, acorda-se em negar provimento ao recurso interposto pelo arguido AA e, em consequência, manter-se o acórdão recorrido.

Custas a cargo do recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 6 UC.

Lisboa, 13 de março de 2024

(Processado e revisto pelo Relator)

Pedro Branquinho Dias (Relator)

Teresa de Almeida (Adjunta)

Maria do Carmo Silva Dias (Adjunta)

____________________________________

1. Vejam-se, entre outros, os acórdãos do STJ de 31/1/2024 (Relator o Senhor Conselheiro Lopes da Mota), Proc. n.º 10/21.4GBFAF.P1.S1, 11/10/2023 (Senhor Conselheiro Agostinho Torres), Proc. n.º 314/22.9PDPRT.P1.S1, 7/9/2023 (Senhora Conselheira Leonor Furtado), Proc. n.º2/21.3GACNT.C1.S1, 25/5/2023 (Senhora Conselheira Helena Moniz), Proc. n.º 2/20.0GABJA.S1, 20/12/2017 (Senhor Conselheiro Manuel Augusto de Matos, Proc. n.º 1366/14.0TABABF.S, e 15/4/2010 (Senhor Conselheiro Maia Costa), Proc. n.º 17/09PJAMD.L1.S1, todos disponíveis em www.dgsi.pt.

2.Cfr., por todos, Jorge de Figueiredo Dias, in Direito Penal Português, As Consequências jurídicas do Crime, Aequitas Editorial Notícias, 1993, pg. 213 e ss., e Maria João Antunes, Penas e Medidas de Segurança, 2.ª ed., Almedina, pg. 53 e ss. Na Jurisprudência, entre outros, para citarmos os mais recentes, os acórdãos do STJ de 31/1/2024 (Relatora a Senhora Conselheira Maria do Carmo Silva Dias), Proc n.º 42/22.5SULSB.L1.S1, 8/11/2023 (Senhor Conselheiro Lopes da Mota), Proc. n.º 14/21.7PEBRG.S1, e 25/10/2023 (Senhor Conselheiro Sénio Alves), Proc. n.º 38/22.7SHLSB.S1, no sítio indicado.