Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
3563/22.6T8STS.P1.S1
Nº Convencional: 1.ª SECÇÃO
Relator: JORGE LEAL
Descritores: REGULAÇÃO DO EXERCÍCIO DAS RESPONSABILIDADES PARENTAIS
FILHO MENOR
ASCENDENTE
MEDIDAS TUTELARES
PROCESSO TUTELAR
INCUMPRIMENTO
PODERES DA RELAÇÃO
PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO
AMPLIAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
COMPETÊNCIA EM RAZÃO DE HIERARQUIA
Data do Acordão: 03/12/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Sumário :

I. O art.º 1887.º-A do Código Civil, introduzido pela Lei n.º 84/95, de 31.8, reconhece a relevância jurídica do convívio das crianças com os irmãos e ascendentes.

II. Na prossecução desse interesse os avós poderão intentar a correspondente ação tutelar comum, ao abrigo do art.º 67.º do Regime Geral do Processo Tutelar Cível (RGPTC).

III. Fixado um regime de convívio entre o requerente e a sua neta, o meio processual adequado para apreciar o seu eventual incumprimento é o incidente de incumprimento regulado no art.º 41.º do RGPTC.

IV. A Relação não pode substituir-se à primeira instância na apreciação do incumprimento indevidamente alegado na ação tutelar cível já julgada e finda, não podendo proceder à fixação da matéria de facto sem o prévio cumprimento do contraditório e com ultrapassagem de uma instância.

Decisão Texto Integral:

Acordam os juízes no Supremo Tribunal de Justiça

I. RELATÓRIO

1. AA instaurou ação tutelar cível contra BB e CC, pais da menor DD.

O requerente alegou ser avô materno da menor DD, nascida em 2013. Os pais da menor obstam a que a menor conviva com o avô. Requer que seja reconhecido o direito de o requerente visitar a sua neta.

2. Foi convocada a conferência a que alude o art.º 35.º do RGPTC.

3. No decurso da conferência foi obtido acordo, que foi homologado por sentença, e que tem os seguintes termos:

O avô materno terá um convívio semanal com a sua neta DD, nas instalações e com a mediação e monitorização do CAFAP de ..., o qual articulará com o avô e os progenitores da criança a modalidade e horários que permitam este convívio”.

4. Em 23.02.2023 foi aposto no processo visto em correição.

5. Em 15.5.2023 o requerente apresentou nos autos o seguinte requerimento:

1. O aqui requerente, figurou como interveniente processual na conferência datada de 5 de Janeiro de 2023, tendo nesta sido estabelecido um acordo entre as partes, ficando a constar da ata de conferência o seguinte:

Aberta a conferência, a Mmª Juíza tentou o acordo entre as partes, as quais, após conversações, acordaram que se mostra necessário iniciar um processo de mediação nos contactos entre o avô e a neta, com intervenção do CAFAP, a qual será inicialmente individualizada junto de neta e avô a fim de, gradualmente, permitir os desejados contactos, mostrando-se assim possível um acordo nos seguintes termos:

1.º

O avô materno terá um convívio semanal com a sua neta DD, as instalações e com a mediação e monitorização do CAFAP de..., o qual articulará com o avô e os progenitores da criança a modalidade e horários que permitam este convívio. (…)

2. De facto, o aqui transcrito resultou da concordância das partes, que ficaram cientes do acordo convencionado. No entanto, os requeridos não deram cumprimento ao acordado.

3. Por outro lado, o aqui requerente, por forma a dar seguimento ao decidido em conferência, participou, no início de Março, numa primeira consulta individualizada, onde conversou com uma das orientadoras, com o intuito de iniciar o convívio com a sua neta.

4. No decurso de tempo que medeia o mês de Março e Maio e já depois da primeira consulta, o requerente ficou a aguardar o contacto do CAFAP para realização do primeiro convívio em conjunto com a sua neta.

5. Com o aproximar da Páscoa e, concomitantemente, o período de férias escolares, seria de esperar que este processo fosse agilizado de maneira mais célere, já que o requerente, sendo uma pessoa idosa, queria aproveitar o máximo de tempo possível com a sua neta.

6. Somente no dia 5 de Maio é que o requerente foi contactado, tendo sido informado que deveria comparecer no CAFAP na próxima segunda-feira, isto é, no dia 8 deste mês.

7. Quando chegado ao local, uma das orientadoras informou-o que a menor se tinha recusado a comparecer aos convívios.

8. Naturalmente que, levando em consideração a idade da menor, o seu não comparecimento se deveu unicamente à imposição/influência dos seus progenitores, que desde a realização da referida conferência, se mostraram avessos ao convívio da sua filha com o avô.

9. Durante o hiato temporal que permeia a sentença e o dia de hoje, já deveriam ter ocorrido cerca de 14 convívios, contudo, até agora, nenhum se sucedeu.

10. Por outra perspetiva, no que respeita à atuação do CAFAP, afigura-se necessário ressalvar a mediação pouco interventiva e morosa, que tendo sido notificada da douta sentença em Janeiro, somente procedeu à primeira intervenção com o requerente nos inícios de Março.

11. Assim, pelo exposto, incontestável será dizer que a situação em apreço é verdadeiramente inadmissível, consubstanciando não só um incumprimento de sentença judicial, bem como um verdadeiro atropelo ao dever de cooperação entre as partes.

12. Neste sentido, requer-se a V. Exª que se digne oficiar os requeridos para, no prazo que doutamente estabelecer, cumprirem o decidido em sentença judicial, por forma a acautelar os superiores interesses da menor, que não pode ser privada de conviver com o seu avô.

Pede Deferimento”

6. Em 17.5.2023 o CAFAP “Saber para crescer” juntou aos autos informação, na qual concluiu pela seguinte forma:

Face ao sucintamente exposto e considerando:

- A recusa da criança face ao estabelecimento de convívios com o avô;

- As várias propostas/estratégias apresentadas à criança e aos pais, não obtiveram recetividade;

- A inexistência de uma relação de afeto entre avô e criança;

- A idade da criança e a exposição e conhecimento da criança do conflito dos pais-avô:

- A imagem negativa que a criança tem do avô;

- Os pais terem demonstrado reduzida abertura face à realização de convívios da filha com o avô. Entendem que não existe relação e que isso poderá trazer instabilidade emocional para a criança.

A equipa do CAFAP “Saber para Crescer”, entende não ter condições para propor um plano de aproximação entre avô e neta, considerando ser contraproducente adotar uma atitude de imposição, potenciadora de sentimentos negativos na criança.”

7. Os autos foram ao Ministério Público, o qual em 09.6.2023 emitiu a seguinte promoção:

“Em 29.11.2022, veio o avô materno da DD instaurar incidente de regulação de regulação dos convívios entre avô e neta contra os progenitores da DD, alegando que os estes a impediam de conviver consigo.

Efetuada a conferência a que alude o artigo 35.º do RGPTC, foi proferida, em 05.01.2023, sentença homologatória de acordo de regulação nos seguintes termos: “O avô materno terá um convívio semanal com a sua neta DD, nas instalações e com a mediação e monotorização do CAFAP de ..., o qual articulará com o avô e os progenitores da criança a modalidade e horários que permitam esta convívio”.

O CAFAP encetou diligências no sentido de implementar os convívios entre o avô materno e a DD.

Sucede que, não obstante as diversas estratégias apresentadas à DD e aos progenitores, as mesmas não tiveram qualquer tipo de acolhimento.

Acresce que, não existe qualquer tipo de relação afetiva entre o avô e a DD, a qual recusa qualquer tipo de contacto com o avô.

Concluiu o CAFAP que não existem condições para propor um plano de aproximação entre a DD e o avô.

Atendendo à idade da DD (9 anos) e ao seu desinteresse e recusa nesses contactos, não se revela adequado impor-lhe uma convivência com o avô, na medida em que tal imposição é suscetível de a afetar de uma forma negativa.

O artigo 1887.º-A do Código Civil consagra um direito de convívio entre avós e netos às relações afetivas, tendo em vista um relacionamento próprio com os membros da família alargada.

Subjacente a esta norma está uma presunção de que o convívio da criança com os avós é benéfico para a mesma, na medida em que promove a formação e transmissão da memória familiar e do sentido de pertença, e fortalece a criação de laços de afetividade recíproco, o que corresponde, presumidamente, a um benefício do desenvolvimento e formação da personalidade da criança, direitos consagrados constitucionalmente, nos artigos 26.º, n.º 1, 68.º, n.º 1 e 29.º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa.

A implementação ou manutenção de tais convívios depende do concreto e real interesse da criança, o que significa que, tais convívios apenas devem ocorrer quando se afigurem como uma verdadeira experiência saudável e enriquecedora que potencie o enriquecimento da sua personalidade.

Por outro lado, quando tais convívios possam surtir na criança um efeito prejudicial, suscetível de pôr em causa a sua saúde emocional, a sua implementação ou manutenção é contrária ao superior interesse da criança.

No caso, a criação de laços de afetividade entre a DD e o avô encontra-se claramente comprometida, em virtude da inexistência de qualquer tipo de relação entre ambos e da imagem negativa que a DD tem do avô.

Pelo exposto, entendemos que a implementação de um regime de convívios entre a DD e o avô não realizada o seu superior interesse.”

8. Em 13.6.2023 foi proferido o seguinte despacho:

“- Ref.ª ...49 e ...40:

Visto.

Os presentes autos encontram-se findos e arquivados, tendo já sido proferida decisão final, pelo que nada mais cumpre determinar.

Notifique, sendo o requerente do relatório elaborado pelo CAFAP, dando conta da inviabilidade de implementar um plano de aproximação do avô à sua neta, considerando a recusa sistemática da menor e o sofrimento evidenciado face às estratégias já adotadas por aquela equipa.

Dê conhecimento ainda do teor da douta promoção que antecede.

Após, arquive”.

9. O requerente apelou deste despacho.

10. Em 23.11.2023 o Tribunal da Relação do Porto proferiu acórdão, que culminou com o seguinte dispositivo:

Tudo visto, nega-se provimento ao recurso, mantendo-se a decisão recorrida.

Custas pelo recorrente.”

11. O requerente interpôs revista desse acórdão, tendo formulado as seguintes conclusões:

“1) O presente recurso, vem do douto Acórdão que indeferiu a implementação de um regime de convívios entre a menor DD e avô recorrente, pelo motivo de estes não realizarem o superior interesse da menor, mantendo a decisão do Tribunal a quo.

2) O arguido, salvo devido respeito, está convencido de que a decisão recorrida foi proferida com errada aplicação da lei de processo, inadequada exposição de matéria factual, erro não aplicação do direito, desacordo com os preceitos legais adequados e contradição com um outro Acórdão, do douto Tribunal da Relação de Lisboa, no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de direito.

3) No nosso humilde entender, a decisão recorrida, padece de uma leviana análise do processo por parte do douto Tribunal da Relação do Porto, assim como enferma por uma atuação processual incuriosa do Tribunal a quo, originando a revista do Acórdão, que carece de uma ponderação mais assertiva.

4) Em primeiro lugar, o recorrente considera que o Tribunal ad quem é omisso na consideração que faz acerca do ónus de impugnação da matéria factual vertida nos autos.

5) Reparemos que na prolação de sentença do Tribunal a quo, não se especifica, em concreto, os pontos da matéria de facto dados como provados e não provados, constando somente o arquivamento dos autos.

6) Deste modo, inexistindo quaisquer pontos de facto dados como provados, tal como a ausência de indicação de quais os meios probatórios que sustentam a tomada de decisão, gera a impossibilidade de o recorrente proceder à impugnação dos mesmos, bem como inviabilizar a indicação do sentido ou conteúdo da decisão a proferir pelo douto Tribunal da Relação do Porto relativamente a esse (s) facto (s).

7) Assim sendo, o recorrente considera que estamos perante uma errada aplicação da lei do processo, ao abrigo do artigo 674º, n.º 1, alínea b) do CPC, já que a norma invocada pelo Tribunal ad quem (artigo 640º CPC), não é compatível com a realidade vertida nos autos, por razão imputável ao Tribunal a quo.

8) Pelo exposto, requer a V.ªs Exªs, se dignem a considerar o explanado pelo recorrente em sede de recurso de apelação, apreciando e decidindo em conformidade com a exposição deste.

9) Por outro lado, o douto Tribunal ad quem expôs no Acórdão, fls. 11 e 12, parte b), factos que indevidamente retirou dos relatórios constantes nos autos, considerando-os como demonstrados.

10) No entanto, os factos ali exarados, não podem ser dados como demonstrados, uma vez que não foi produzida prova a respeito destes.

11) Ou seja, os juízos dedutivos levados a cabo pelos Ilustres Desembargadores, apesar de objetivos, não podem proceder, mormente por consubstanciarem ilações que carecem de comprovação.

12) Desta forma, requer a V.ªs Exªs a desconsideração dos factos expostos na fls. 11 e 12, parte b), especificadamente os pontos 7,8,9,10,11 e 13.

13) No que respeita ao direito, designadamente o direito de convívio com os ascendentes, estatuído no artigo 1887º-A do Código Civil, doravante CC, o recorrente considera que a questão subjacente a esse direito, atendendo à sua relevância jurídica, carece de uma melhor aplicação, à luz do artigo 672º, n.º 1, alínea a) do CPC.

14) Além disso, na humilde opinião do recorrente, o douto Acórdão do Tribunal da Relação do Porto erra na apreciação do direito efetuada, pronunciando-se em desacordo com os preceitos legai adequados, interpretando a norma, doutrina e jurisprudência em sentido contrário à realidade plasmada nos autos.

15) O direito de convívio/visita, como já referido, encontra-se consagrado no artigo 1887-Aº do CC, que refere: “Os pais não podem injustificadamente privar os filhos do convívio com os irmãos e ascendentes.”

16) A criança é um ser autónomo, pelo que deve ser respeitada e considerada como um sujeito de direitos, conferidos pela ordem jurídica, entre os quais, os de relacionar-se com os seus avós, numa extensão inerente ao seu direito de personalidade, que transcende a vontade imposta pelos progenitores.

17) Noutro sentido, também não podemos desconsiderar o interesse dos avós no relacionamento com a criança, até porque, a não atribuição de pertinência jurídica a este interesse, originaria um esvaziamento do seu conteúdo e efeito prático, levando à inutilidade da norma e, por conseguinte, relegando-a à inércia, ao contrário do pretendido pelo legislador.

18) Os avós, enquanto membros da comunidade familiar, contribuem para o desenvolvimento psicossocial e educacional dos menores, sendo que o referido direito de convívio com os netos traduz-se também num sentimento de gratificação para os avós – vide Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 05 de Julho de 2005, in www.dgsi.pt.

19) Quando retratamos o convívio entre netos e avós, efetivamente suscitamos a possibilidade do mesmo mediante a positividade que daí pode resultar, associando-a a uma série de fatores, que permitem avaliar o quão benéfico será para a criança.

20) Ora, a vontade da criança, enquanto um dos principais parâmetros de aferição, desde cedo, demonstrou-se viciada, nomeadamente por unicamente interiorizar uma versão dos factos, relatada pelos progenitores, pelo que tenderá a adotar a mesma postura destes.

21) Não obstante, não olvidemos que a criança e o avô não se conhecem, pelo que, condenar ao insucesso a pretensão do convívio entre estes, mais do que arbitrário, é injusto.

22) Votar ao insucesso uma relação familiar que não existe, por impedimento dos progenitores, é, na nossa humilde opinião, impedir o direito da menor ao livre desenvolvimento da sua personalidade, ao seu desenvolvimento integral e ao seu direito à historicidade pessoal.

23) Deste modo, proibir o avô de conviver com a sua neta, sem oferecer uma causa justa ou comprovar os motivos subjacentes a esta recusa, afigurasse-nos violador dos princípios da proporcionalidade, da necessidade e da adequação ao superior interesse da criança.

24) O avô recorrente tem 81 anos, sendo a menor a sua única neta, pelo que, à parte dos seus filhos, a menor é a sua única descendente.

25) Como tal, o recorrente pretende ver assegurada a saúde, educação, segurança e demais necessidades da menor, dispondo de meios para o garantir. Aliás, para salvaguardar o futuro da neta, o recorrente já a incluiu no seu testamento.

26) Desta forma, deferida a pretensão do recorrente, a menor estará em segurança, verá assegurada a sua saúde, sendo que o avô poderá, com as condições que dispõe, ajudar no seu sustento, educação e autonomia, ou mesmo no seu desenvolvimento físico, intelectual e moral.

27) Logo, face aos elementos constantes dos presentes autos, o direito de visita do avô não verá sobreposto o interesse da neta, pois, na realidade, não se encontra o mesmo em risco.

28) No que concerne à manifestação de vontade da criança, isto é, o direito de audição da mesma, concluímos que a atendibilidade depende da idade, maturidade e do seu superior interesse.

29) A menor DD tem 9 anos, encontrando-se numa fase de desenvolvimento, porém, pelo evidenciado, denotamos que não dispõe de maturidade emocional que lhe permita distanciar-se de toda a conflituosidade patente entre os seus familiares, incorporando as dores e queixas dos progenitores.

30) Como é que a menor pode avaliar corretamente a situação que levou ao corte de relacionamento entre o seu avô e os seus pais, se apenas conhece a versão destes últimos?

31) Mais, porque deve a menor ser envolvida num conflito que não tem por fundamento a sua própria existência?

32) Claro está que a manifestação de vontade por parte da menor, não poderá considerar-se como sendo livre de qualquer pressão, já que, segundo as regras de experiência comum e do normal acontecer, anormal seria se uma criança que nunca conviveu com o avô e, que do mesmo apenas sabe aquilo que os progenitores lhe comunicam, manifestasse a sua vontade em conviver com o mesmo.

33) Temos por certo que a criação de laços afetivos, sentimentos e o amor não podem ser impostos por decisão judicial, contudo, não podemos esquecer que sem o conhecimento e o convívio entre pessoas, esses sentimentos também não se poderão desenvolver, ou seja, temos de criar oportunidades e deixar que os relacionamentos sigam os seus destinos, pelo que há que criar um espaço para que outros sentimentos possam afluir.

34) Temos de criar oportunidades e deixar que os relacionamentos sigam os seus destinos, pelo que há que criar um espaço para que outros sentimentos possam afluir.

35) Assim, levando em consideração o exposto, depreendemos que a questão em discussão nos autos, carece de uma melhor apreciação, porquanto, no caso em concreto, parece-nos incontestável a necessidade de uma melhor aplicação do direito, dada a violação do artigo 1887º-A do CC.

36) Por outro prisma, sempre se dirá que o Acórdão do douto Tribunal da Relação do Porto, encontra-se em contradição com um outro, proferido pelo Douto Tribunal da Relação de Lisboa, datado de 01-06-2010, processo n.º 5893/06.5TBVFX.L1- 7, relatado por Dina Monteiro, em www.dgsi.pt, nos termos e para os efeitos do artigo 672º, n.º 1, alínea c) do CPC.

37) O referido Acórdão do douto Tribunal da Relação de Lisboa já transitou em julgado, decidiu no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de direito.

38) Pela apreciação dos supramencionados Acórdãos, constatamos a divergência resultante de duas decisões, cujas circunstâncias fácticas revestem contornos idênticos, pelo que o Acórdão do douto Tribunal da Relação do Porto urge de ser revogado por um outro, que seja consentâneo com o decidido pelo douto Tribunal da Relação de Lisboa, no âmbito do processo aludido.

39) Sendo assim, a prolação do douto Acórdão recorrido, violou o artigo 1887º-A do Código Civil e os artigos 26º e 69º da Constituição da República Portuguesa, pelo que se requer a substituição deste, por um outro que seja coadunam-te coma legislação que nos rege.

NESTES TERMOS, e nos mais de direito que V.ªs Exªs doutamente suprirão, deverá o recurso ser julgado totalmente procedente por provado, e por via dele, ser revogado o douto Acórdão recorrido, por contraditar um outro, proferido pelo douto Tribunal da Relação de Lisboa e, consequentemente, ser substituído por um outro que decida em conformidade com o Acórdão da Relação de Lisboa.

Caso assim não entendam, deve o douto Acórdão recorrido ser revogado, por violação da legislação em vigor, e em consequência, ser substituído por um outro que defira o peticionado pelo recorrente, estabelecendo um regime de convívios, fazendo-se, assim, a habitual e necessária JUSTIÇA.”

12. O Ministério Público contra-alegou, rematando com as seguintes conclusões:

1.º- A Revista interposta pelo recorrente não deverá ser admitida como “revista normal”, nos termos do art.º 671.º, n.ºs 1 e 2 do Cód. Processo Civil, por não se verificarem os seus pressupostos.

2.º- Também deverá ser rejeitada a revista excecional, nos termos 9 de 10 previstos nos art.ºs 671.º, n.º3, e 672.º, n.º1, al.s a) e/ou al. c), do CPC, por inverificação dos respetivos pressupostos.

3.º- Mas caso assim não seja entendido – e sem prescindir – deverá a revista ser julgada totalmente improcedente pelas fundadas razões que constam do Acórdão recorrido.

4.º - Como nele bem se decidiu, a implementação de um regime de convívios entre a DD e o avô não realiza o superior interesse da criança, pelo que bem andou a decisão recorrida ao não deferir qualquer diligência de execução ou cumprimento do acordo homologado, determinando antes o arquivamento dos autos, sem a continuidade das diligências tendentes ao estabelecimento de convívios ou contatos entre ambos.

5.º- Contrariamente à tese do recorrente, o acórdão recorrido fez corretas subsunção jurídica dos factos e aplicação do direito, e não violou qualquer norma legal ou constitucional - devendo ser mantido nos seus precisos termos.

***

Pelo exposto:

1. Não deverá ser admitida a Revista interposta pela recorrente, nos “termos normais”;

2. Deverá ser rejeitada a Revista excecional, nos termos do art.º 672.º, n.ºs 1 e 2, alínas a) e/ou c) do CPC;

3. Mas caso venha a ser admitida pela Formação – e sem prescindir - deverá a Revista interposta ser julgada improcedente, mantendo-se nos seus precisos termos o douto Acórdão recorrido”.

13. A Relação entendeu não admitir a revista normal, mandando subir os autos ao STJ, para os efeitos previstos no n.º 3 do art.º 672.º do CPC (revista excecional).

14. Neste STJ, o relator admitiu a revista normal.

15. Foram colhidos os vistos legais.

II. FUNDAMENTAÇÃO

1. As questões suscitadas na revista são as seguintes: errada aplicação da lei de processo; indevida demonstração da matéria factual; erro na aplicação do direito; contradição com outro acórdão. A apreciação de uma das questões pode prejudicar as questões sobrantes.

2. Primeira questão (errada aplicação da lei de processo)

Na apelação o recorrente declarou, além do mais, que recorria “da matéria de facto e de direito”, não se conformando com o recorrido despacho de arquivamento, “dado que interpreta a matéria de facto e a matéria de direito de forma diversa” (conclusão 26). E, após tecer considerações sobre a obstrução que os pais da menor estariam a fazer ao seu convívio com a menor e sobre as razões por que esta não o quereria ver, o requerente pugnou por que lhe fosse concedido “o direito de convívio/visita com a sua neta, com as demais consequências legais.”

Quanto a este anunciado propósito de o requerente recorrer da matéria de facto, a Relação, após enunciar os requisitos a que deve obedecer a impugnação da decisão de facto, nos termos do art.º 640.º do CPC, concluiu que o recorrente não cumprira tais ónus. Segundo a Relação, “[d]esde logo, não resultam os concretos pontos de facto que considera incorretamente adquiridos; decisivamente, os concretos meios probatórios que impõem decisão diferente, limitando-se o recorrente a impugnar juízos e conclusões e a contrapor também juízos e conclusões. Sempre a decisão que, no seu entender, se apresenta como fundada vem antes a ser ela mesma uma série de conclusões, que não factos concretos e opostos aos que, mediante remissão para o relatório junto ao processo foram considerados para fundamentar a decisão recorrida”.

Por assim concluir, a Relação anunciou que rejeitava o recurso na parte relativa à impugnação da decisão da matéria de facto.

O recorrente insurge-se contra tal rejeição, alegando que não lhe tinha sido possível impugnar a decisão de facto nos termos exigidos, por que a decisão impugnada era somente um despacho de arquivamento dos autos, nele não existindo “indicação de quais os concretos pontos da matéria de facto que foram dados como provados, bem como dos meios probatórios que impõem decisão diferente” (ponto 16 da alegação da revista).

Ora, se assim é, resta concluir que, como o próprio recorrente reconhece, não havia lugar a apreciação de impugnação da decisão de facto, pois que, afinal, não havia decisão de facto nem impugnação de tal decisão.

Daqui se extrai que, nesta parte, o acórdão recorrido não violou a lei processual, nomeadamente o disposto no art.º 640.º do CPC.

3. Indevida demonstração da matéria factual

3.1. No acórdão recorrido a Relação, invocando os “termos dos autos” e o “relatório de acompanhamento e monitorização do regime fixado nos autos”, afirmando ter “objectivado o mais possível o ali relatado/observado”, deu como demonstrada a seguinte

Matéria de facto

1. Em 29.11.2022, veio o avô materno da DD instaurar incidente de regulação de regulação dos convívios entre avô e neta contra os progenitores da DD, alegando que os estes a impediam de conviver consigo.

2. Efetuada a conferência a que alude o artigo 35.º do RGPTC, foi proferida, em 05.01.2023, sentença homologatória de acordo de regulação nos seguintes termos: “O avô materno terá um convívio semanal com a sua neta DD, nas instalações e com a mediação e monotorização do CAFAP de ..., o qual articulará com o avô e os progenitores da criança a modalidade e horários que permitam esta convívio”.

3. O CAFAP encetou diligências no sentido de implementar os convívios entre o avô materno e a DD.

4. Não obstante as diversas estratégias apresentadas à DD e aos progenitores no decurso daquele acompanhamento, conforme relatado no relatório junto aos autos em 17.05.2023, que nessa parte aqui se tem por reproduzido, a menor manteve a sua recusa em encontrar-se com o avô.

5. Não existe qualquer tipo de relação afetiva entre o avô e a DD, a qual recusa qualquer tipo de contacto com o avô.

6. A menor DD tem 9 anos.

7. A menor tem memória de episódios de “barulho ou discussão” entre o avó e a avô, recordando-se de ouvir a avó a pedir ajuda e de a ver magoada.

8. A menor distingue os episódios de que se recorda e vivenciou daqueles que lhe foram contados pelos pais.

9. Tem receio/medo do avô.

10. A menor tem conhecimento e foi desde sempre exposta ao conflito entre os pais e o avô.

11. A menor tem uma imagem negativa do avô, associando-o a violência na pessoa da avó, desde logo e também sobre os seus animais.

12. Os pais manifestam aberta oposição à realização de convívios entre a menor e o avô.

13. Todas as intervenções ao longo do tempo junto da menor não a demoveram da sua recusa peremptória em encontrar-se com o avô.

3.2. O Direito

O art.º 1887.º-A do Código Civil, introduzido pela Lei n.º 84/95, de 31.8, reconhece a relevância jurídica do convívio das crianças com os irmãos e ascendentes.

Na prossecução desse interesse os avós poderão intentar a correspondente ação tutelar comum, ao abrigo do art.º 67.º do Regime Geral do Processo Tutelar Cível (RGPTC). Na alínea l) do art.º 3.º do RGPTC se incluem, no elenco das providências tutelares cíveis, “[a] regulação dos convívios da criança com os irmãos e ascendentes”. E na alínea l) do art.º 6.º do RGPTC se inclui, na área da “competência principal das secções de famílias e menores”, “[r]egular os convívios da criança com os irmãos e ascendentes”.

Foi ao abrigo dessa competência e na prossecução desses interesses que o ora recorrente instaurou ação tutelar cível que, realizada conferência de interessados, teve o seu fruto num acordo que veio a ser homologado por sentença, reconhecendo-se ao requerente, avô da pequena DD, o direito a um encontro semanal com a sua neta, supervisionado pela competente equipa de apoio social.

Sucede que, meses após o assim decidido, o requerente dirigiu aos autos um requerimento em que, alegando que os requeridos não estavam a cumprir o acordo, criando obstáculos ao convívio entre o requerente e a criança, pediu que fosse oficiado aos requeridos para, em prazo a estabelecer, cumprirem o decidido na sentença.

Ora, a reação do tribunal a este requerimento foi o despacho supratranscrito em I.8., e que aqui se reproduz novamente:

“- Ref.ª ...49 e ...40:

Visto.

Os presentes autos encontram-se findos e arquivados, tendo já sido proferida decisão final, pelo que nada mais cumpre determinar.

Notifique, sendo o requerente do relatório elaborado pelo CAFAP, dando conta da inviabilidade de implementar um plano de aproximação do avô à sua neta, considerando a recusa sistemática da menor e o sofrimento evidenciado face às estratégias já adotadas por aquela equipa.

Dê conhecimento ainda do teor da douta promoção que antecede.

Após, arquive”.

Isto é, a 1.ª instância considerou que nada mais havia a determinar, pois no processo já havia sido proferida decisão final. E, consequentemente, determinou que o processo fosse arquivado, sem prejuízo de ser dado conhecimento ao requerente da informação junta pela equipa de apoio social e da promoção do Ministério Público.

Tendo o requerente apelado deste despacho, a Relação confirmou a decisão recorrida. Porém, tal desfecho assentou numa perspetiva diversa da adotada pelo tribunal recorrido: a Relação, com base no teor da mencionada informação social deu como provados os factos acima indicados em II.3.1., e, atendendo a esses factos, entendeu que “a implementação de um regime de convívios entre a DD e o avô não realiza o seu superior interesse, pelo que bem andou a decisão recorrida ao não deferir qualquer diligência de execução ou cumprimento do acordo homologado, determinando o arquivamento dos autos, sem a continuidade das diligências tendentes ao estabelecimento de convívios ou contactos.

Ora, na revista o recorrente insurge-se contra a enunciação de factos provados a que a Relação procedeu.

Diz o recorrente:

23. Ora, não se nos afigura como razoável a exposição de factos que, sem prova, sustentam-se somente em narrativas apresentadas pela contraparte, sem direito ao contraditório do recorrente, ou até mesmo a livre apreciação por parte da Meritíssima Juiz do Tribunal a quo, que não fixou qualquer facto dado como provado ou não provado.

24. Ou seja, o douto Tribunal da Relação do Porto, na nossa modesta opinião, não poderia inferir ou depreender factos, dos quais não se produziu prova em sede de primeira instância.

25. Deste modo, a demonstração dos factos fixados, consubstanciam juízos dedutivos, retirados dos relatórios constantes nos autos, que não urgem colher, por inexistência de prova, pelo que requer a desconsideração dos factos constantes nas fls. 11 e 12, na parte “b)”, pontos 7, 8, 9, 10, 11 e 13.

Consideramos que, nesta parte, o recorrente tem razão.

O requerente alegou, perante a primeira instância, o incumprimento, pelos requeridos, do regime de convívio com a sua neta que havia sido fixado.

O meio processual adequado para apreciar tal requerimento seria o incidente de incumprimento regulado no art.º 41.º do RGPTC (neste sentido, cfr. Clara Sottomayor, Regulação do Exercício das Responsabilidades Parentais nos Casos de Divórcio, 8.ª edição, 2022, Almedina, pág. 260; na jurisprudência, cfr. acórdão da Relação de Lisboa, de 02.12.2009, proc. n.º 1604/08.9TMLSB-A.L1-7). Nos termos de tal procedimento os interessados poderiam ser ouvidos em conferência (na qual poderiam, eventualmente, acordar na alteração do regime fixado) e/ou alegarem o que tivessem por conveniente, e poderiam realizar-se diligências de instrução, decidindo-se depois em conformidade – sempre com respeito pelo contraditório – art.º 25.º do RGPTC.

E, do assim decidido, poderia caber apelação, estando então a Relação habilitada a apreciar do bem fundado da decisão recorrida.

Não assim no caso sub judice, em que a primeira instância se limitou a mandar arquivar os autos, por considerar que a ação tutelar cível já tinha alcançado o seu objetivo, nada mais havendo a decidir no âmbito do processo.

Isto mesmo foi salientado pelo Ministério Público, na sua resposta à apelação:

A decisão recorrida, sendo um despacho de mero expediente apenas apreciou a impossibilidade legal de voltar a pronunciar-se sobre a questão – alegado incumprimento – decidindo a remessa dos autos ao arquivo, uma vez que não existia qualquer outra operação administrativa a determinar.

Note-se que não se discorda da posição de fundo suscitada pelo recorrente – o direito de contactos da criança com ascendentes.

O que se afirma é que, nestes autos, tal já não pode ocorrer. Para tanto caberia ao recorrente suscitar uma ação de incumprimento, a correr por apenso. O QUE NÃO ACONTECEU”.

Assim, a decisão da Relação, de confirmação do despacho recorrido, faz sentido na medida em que a apreciação do incumprimento alegado pelo requerente não cabia na ação tutelar cível, que se encontrava decidida e finda – pelo que, com esse fundamento, o despacho de arquivamento não merece censura.

A decisão da Relação já não é aceitável na sua fundamentação, na medida em que nela se procede indevidamente à apreciação do alegado incumprimento, fixando-se a matéria de facto sem o prévio cumprimento do contraditório e com ultrapassagem de uma instância.

Em suma: o acórdão recorrido deve ser confirmado quanto ao seu dispositivo – manutenção do despacho recorrido; mas não quanto à sua fundamentação, pelas razões já expostas.

As restantes questões suscitadas na revista ficam prejudicadas pelo ora expendido e decidido.

III. DECISÃO

Pelo exposto, julga-se a revista improcedente, mantendo-se o acórdão recorrido, embora com alteração na fundamentação.

As custas da revista são a cargo do recorrente, que nela decaiu, sem prejuízo do apoio judiciário de que beneficie.

Lx, 12.3.2024

Jorge Leal (Relator)

Nelson Borges Carneiro

Pedro de Lima Gonçalves